Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5413/24.0T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ MANUEL CORREIA
Descritores: INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
ROL
IDENTIFICAÇÃO OFICIOSA
UTILIDADE DO DEPOIMENTO
Nº do Documento: RP202504105413/24.0T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Solicitada pelo tribunal, a pedido de uma das partes, mas a entidade diversa da sugerida por esta, informação sobre a identidade de pessoa com eventual conhecimento de factos relevantes para a decisão da causa, a fim de, ulteriormente, vir a ser inquirida como testemunha em julgamento, o silêncio da parte requerente, depois de notificada da impossibilidade de obtenção da informação pretendida junto da entidade a que o tribunal, por sua iniciativa, se dirigiu, não preclude a possibilidade de nova realização da diligência nos termos anteriormente requeridos pela parte junto da entidade por esta indicada.
II - O resultado da prova testemunhal produzida em julgamento não é motivo de recusa de inquirição de testemunha com base na irrelevância do seu depoimento, designadamente, por supostamente não ter conhecimento de factos relevantes para a boa decisão da causa, quando a indicação dessa pessoa como passível de ser inquirida em julgamento constava já do requerimento probatório da parte interessada no seu depoimento e o tribunal já levara a cabo diligência destinada à identificação da pessoa em causa em vista da sua inquirição como testemunha.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5413/24.0T8VNG-A.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia, Juiz 1
Recorrentes: AA e BB
Recorrida: A..., Sucursal em Portugal, S.A.

.- Sumário
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.- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,

I.- Relatório
1.- AA e BB instauraram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A..., Sucursal em Portugal, S.A., pedindo que, pela sua procedência, seja a Ré condenada a pagar-lhes:
i.- o valor orçamentado de € 6.813,26, relativo à reparação do motociclo;
ii.- o valor de € 50.000,00, a título de indemnização pela perda do direito à vida do sinistrado;
iii.- o valor de e 1.000,00, a título de dano moral próprio do sinistrado;
iv.- o valor de € 20.000,00, a título de dano não patrimonial da Autora, enquanto cônjuge do sinistrado;
v.- o valor de € 15.000,00, a título de dano não patrimonial do Autor enquanto filho do sinistrado;
vi.- o valor de € 55.000,00, a título de dano patrimonial futuro dos Autores;
vii.- os juros de mora, calculados no dobro da taxa legal em vigor, desde o 16.º dia posterior ao sinistro e até efetivo pagamento.
Alegaram, para tanto, e em síntese, o seguinte.
No dia 3 de julho de 2021, pelas 18h58m, na Avenida ..., .../..., Vila Nova de Gaia, ocorreu um acidente de viação, no qual intervieram o motociclo BMW ..., com a matrícula ..-RI-.., conduzido por CC, e o motociclo KTM ..., com a matrícula ..-..-IJ, conduzido por DD.
O acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do motociclo ..-..-IJ, DD, o qual, por desatenção e imperícia, no momento em que ambos, seguindo em grupo, ultrapassavam um veículo pesado de passageiros, com a matrícula .. .. LPP, foi colidir com a parte frontal do motociclo que conduzia no motociclo ..-RI-...
Do sinistro resultaram, não só estragos no motociclo ..-RI-.., cuja reparação terá o custo de € 6.813,26, como sofrimento e lesões corporais do respetivo condutor, CC, que conduziram à sua morte e, ainda, para os Autores, esposa e filho único da vítima, sofrimento e alterações do seu estado emocional.
As consequências do sinistro para a vítima e para os Autores constituem danos de natureza patrimonial e não patrimonial de que devem ser ressarcidos de acordo com os montantes peticionados, sendo que por tal ressarcimento é responsável a Ré, para a qual, por contrato de seguro, havia sido transferida a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do veículo causador do acidente.
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2.- No requerimento probatório constante da sua petição inicial, os Autores requereram, depois do rol de testemunhas, e além do mais, o seguinte:
i.- se oficiasse às autoridades espanholas para que procedessem à identificação do condutor do veículo .. .. LPP.
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3.- Citado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 3.º do D.L. n.º 59/89, de 22/2, o Instituto da Segurança Social, IP deduziu pedido de condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 37.272,12, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a citação e até integral pagamento, bem como no mais que se tenha pago e se viesse a apurar em execução de sentença.
Fundamentou o pedido no facto de, em virtude do óbito do sinistrado CC, seu beneficiário, ter pago à viúva, a Autora AA, prestações por morte no valor de € 35.955,69, bem como subsídio de funeral no valor de € 1.316,43 e pensões de sobrevivência no valor de € 26.773,91 à viúva e no valor de 9.181,78 ao filho BB..
Tendo pago tais valores, tem direito ao seu reembolso por força da sub-rogação legal prevista no art.º 70.º da lei n.º 4/2007, de 16/01, reembolso que deve ser assegurado pela Ré, por força do contrato de seguro celebrado com o proprietário do veículo causador do acidente.
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4.- Uma vez citada, contestou a Ré, batendo-se pela improcedência da ação e do pedido deduzido pelo Instituto de Segurança Social, I.P.”, defendendo-se, para o efeito, por impugnação motivada.
Em síntese, depois de reconhecer a existência do contrato de seguro, pôs em causa que a versão do acidente de viação dos autos tal como descrita na petição inicial correspondesse à realidade, retorquindo que não houve sequer embate entre os motociclos e que o motociclo ..-RI-.. despistou-se sozinho, sendo o sinistro, por isso, exclusivamente imputável ao mesmo.
Impugnou, também, seja por desconhecimento, seja por não serem devidos, os danos peticionados pelos Autores e o dever de reembolso das quantias reclamadas pelo Instituto da Segurança Social, IP.
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5.- Notificado da contestação e da oposição referidas em 4, os Autores, com fundamento no disposto no art.º 552.º, n.º 6 do CPC, alteraram o seu requerimento probatório, pedindo, além do mais, o seguinte:
.- a notificação da Direcção General de Tráfico (DGT), Espanha, para que procedesse à identificação do proprietário do veículo .. .. LPP à data de 3 de julho de 2021;
.- fosse, depois, o proprietário que viesse a ser notificado para proceder à identificação do condutor do veículo .. .. LPP naquele dia;
.- fosse, finalmente, o condutor assim identificado notificado para prestar depoimento na qualidade de testemunha.
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6.- Dispensada a audiência prévia, foi:
.- fixado em € 185.085,38 o valor da causa;
.- proferido despacho saneador tabelar;
.- fixado o objeto do litígio – contemplando, além do mais, a imputação da responsabilidade pela ocorrência do acidente de viação dos autos – e enunciados os temas da prova – prevendo, além do mais, o apuramento da dinâmica do acidente, nomeadamente, as manobras realizadas pelos condutores dos motociclos;
.- ordenada a notificação das partes, entre o mais, para, nos termos do art.º 598.º, n.º 1 do CPC, alterarem os respetivos requerimentos de prova.
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7.- Nada mais sendo requerido pelas partes após o referido em 6, foi, seguidamente, proferido despacho a designar a realização da audiência de julgamento e, a precedê-lo, a apreciar os requerimentos de prova das partes nos seguintes termos (no que ao caso importa):
(…)
Admito os róis de testemunhas indicados pelos autores, pelo CNP e pela ré.
As testemunhas deverão ser notificadas e as residentes fora da área metropolitana do Porto serão ouvidas por videoconferência, a partir do tribunal mais próximo da sua residência, sem prejuízo das diligências a realizar quanto à identificação do condutor do veículo .. .. LPP.
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Solicite ao Instituto dos Registos e Notariado informação sobre a possibilidade de o proprietário e/ou condutor do veículo pesado de passageiros de matrícula espanhola .. .. LPP no dia 3 de Julho de 2021 poderem ser identificados através do Sistema Europeu de Informação Sobre Veículos e Cartas de Condução (EUCARIS), sendo que, caso seja possível, deverá ser prestada tal informação.
Prazo: 10 dias.
(…).
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8.- Solicitada ao Instituto dos Registos e Notariado a informação referida em 7, este organismo esclareceu o seguinte:
(…)
Sobre o pedido de informação, em anexo, se é possível consultar a plataforma EUCARIS para obter os dados do proprietário de matrícula espanhola, ao que obtivemos informação (via telefone com o Tribunal) para fins de processo relacionado com acidente de aviação, em que a seguradora (Réu), quer ter a certeza que efetivamente se trata deste veículo, por indicação da Senhora Coordenadora Unidade de Apoio Jurídico ao Registo Automóvel e de Navios, cumpre informar V.ª Exa. que tal pedido não pode ser obtido por via dessa Plataforma, pelo que deverá esse Tribunal desenvolver as diligências habituais para estes casos junto das entidades competentes.
A Plataforma está disponível para consulta no âmbito de processos-crimes (vide Lei n.º 46/2017, de 5 de julho, a qual veio estabelecer os princípios e as regras do intercâmbio transfronteiriço de informações relativas ao registo de veículos, para efeitos de prevenção e investigação de infrações penais, adaptando a ordem jurídica interna às Decisões 2008/615/JAI e 2008/616/JAI) e ainda no âmbito da Lei n.º 49/2017, de 10 de julho, para consulta quando com o veículo foi praticada alguma infração rodoviária num Estado membro da União Europeia por veículos registados em Estado membro que não o da infração, visando a emissão de multa ou contraordenação por parte da entidade fiscalizadora competente.
(…)”.
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9.- Notificadas, por comunicação expedida em 12-12-2024, do teor da informação prestada pelo IRN referida em 8, pelas partes nada foi dito
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10.- O Instituto de Segurança Social, IP, nos termos do art.º 265.º, n.º 2 do CPC, requereu a ampliação do pedido formulado no requerimento inicial e como consequência desse pedido, no sentido de a Ré ser condenada a pagar-lhe a quantia de € 42.509,14, acrescida de juros de mora vencidos, a partir da notificação do pedido, bem como dos vincendos, tendo por base aquilo que, entretanto, e a título de prestações sociais, foi pagando aos Autores em virtude do acidente de viação dos autos.
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11.- Iniciada a audiência de julgamento, foi, no decurso da sua primeira sessão, ocorrida em 11 de fevereiro de 2025, formulado pelos Autores o seguinte requerimento (cuja transcrição fazemos, em função daquilo que pudemos ouvir da precária gravação dele efetuada):
Considerando as declarações prestadas pelas diferentes testemunhas no dia de hoje durante a audiência de julgamento, afigura-se importante para a descoberta da verdade que seja feita a diligência no sentido de apurar quem era o condutor, à data do acidente, da viatura com a matrícula .. .. LPP, nos termos do disposto no art.º 411.º do CPC”.
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12.- Sobre tal requerimento, e depois de pronúncia da Ré no sentido do seu indeferimento, foi proferido o seguinte despacho:
A secretaria efetuou a diligência que consta dos autos, solicitando a informação à entidade que na sua ótica podia prestar a informação requerida.
(…) [A] informação que foi apresentada consta do processo e os autores foram notificados e nada requereram a esse propósito no prazo de 10 dias.
Por outro lado, os depoimentos prestados pelas testemunhas EE e DD são contraditórios no que diz respeito ao posicionamento do referido autocarro, afigurando-se-nos que no decurso da audiência de julgamento [não se produziu prova] no sentido de indicar que o seu condutor tenha conhecimento dos factos.
Nesse sentido, o tribunal indefere o requerido
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13.- Inconformados com este despacho, dele interpuseram os Autores o presente recurso, batendo-se pela sua revogação e pela sua substituição por outro que defira o que haviam requerido.
Para o efeito, formularam as seguintes conclusões:

1.- Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo, em audiência de discussão e julgamento, que indeferiu o requerimento apresentado pelos Autores;
2.- Consideram os Recorrentes que, s.m.o., mal andou o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que decidiu, porquanto atento ao princípio do inquisitório, expressamente consagrado no art.º 411.º do CPC, incumbia à Mma. Juiz, com vista à descoberta da verdade e à justa composição do litígio, ordenar a notificação da entidade espanhola competente para proceder à identificação do proprietário do veículo .. .. LPP e respetivo condutor à data do acidente.
3.- No âmbito do processo supra identificado, vieram os Recorrentes, através de requerimento de 08DEZ2024, (ref. Citius n.º 40295400), requerer a alteração do requerimento probatório, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 552.º do CPC, para o seguinte:
“(...)Requerem:
1. Seja notificada a Direcção General de Tráfico (DGT), Espanha, para que proceda à identificação do proprietário do veículo .. .. LPP à data de 03JUL2021.
2. Após, seja o proprietário que vier ser identificado pela Direcção General de Tráfico (DGT), Espanha, notificado para proceder à identificação do condutor do veículo .. .. LPP no dia 03JUL2021. 3. Após, seja o condutor assim identificado, notificado para prestar depoimento na qualidade de Testemunha (…)”
4.- Por despacho datado de 26NOV2024, (ref. Citius n.º 465989522), pelo Tribunal a quo foi determinado o seguinte:
Solicite ao Instituto dos Registos e Notariado informação sobre a possibilidade de o proprietário e/ou condutor do veículo pesado de passageiros de matrícula espanhola .. .. LPP no dia 3 de Julho de 2021 poderem ser identificados através do Sistema Europeu de Informação Sobre Veículos e Cartas de Condução (EUCARIS), sendo que, caso seja possível, deverá ser prestada tal informação.
Prazo: 10 dias. (...)”
5.- Em resposta, por aquele instituto foi dito o seguinte: “(...)deverá esse Tribunal desenvolver as diligências habituais para estes casos junto das entidades competentes(...)”
6.- No decurso da audiência de discussão e julgamento, realizada a 11FEV2025, terminado o depoimento das testemunhas indicadas pelas partes, pelos Recorrentes foi dito não prescindirem da notificação da “Direcção General de Tráfico (DGT), Espanha”, conforme requerido, com vista à identificação do condutor do veículo com a matrícula espanhola .. .. LPP.
7.- Considerou, o Tribunal a quo que os Recorrentes haviam sido notificados do ofício de 10DEZ2024 (ref. Citius 40977634, sendo que “(...) nada requereram no prazo de 10 dias(...)”, motivo pelo qual não podia o Tribunal a quo, atender, naquele momento ao pedido formulado pelos Recorrentes.
8.- Inconformados os Recorrentes, por requerimento oral, renovaram a necessidade e importância para a descoberta da verdade, da identificação do condutor do veículo espanhol.
9.- Ato contínuo, foi proferido, oralmente, pelo Tribunal a quo despacho de indeferimento, com a justificação de que os recorrentes não se pronunciaram relativamente ao ofício de 10DEZ2024 (ref. Citius 40977634), e por considerar não ter sido feita prova de que o condutor tenha conhecimento dos factos.
10.- Consideram os Recorrentes que s.m.o., mal andou o Tribunal a quo, prima facie ao não dar provimento á diligencia de prova, nos temos requeridos pelos Recorrentes, depois por indeferir o Requerimento dos Recorrentes de ©, (ref. Citius n.º 40295400), do qual se recorre.
11.- Contrariamente ao alegado no despacho proferido a 11FEV2025 pelo Tribunal a quo, apenas se impunha aos Recorrentes, a obrigação de agir processualmente na eventualidade de igual resposta ser obtida depois de oficiada a entidade “Direcção General de Tráfico (DGT), Espanha”, conforme requerido.
12.- O Requerimento probatório de 08OUT2024, (ref. Citius n.º 40295400) requerido pelos Recorrentes, foi aceite pelo Tribunal a quo.
13.- Os Recorrentes procederam tempestivamente à alteração do seu requerimento probatório, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 552.º do CPC.
14.- Requereram a notificação da “Direcção General de Tráfico (DGT)” para que fosse prestada a informação necessária e de concreta utilidade para os factos concretos em discussão
15.- Não obstante, o Tribunal a quo ignorou, os exatos termos em que a prova foi requerida.
16.- Foi o próprio Tribunal que negligenciou os seus deveres de atuação.
17.- Ainda assim, a inércia, inatividade ou passividade do Tribunal a quo podia, e devia, ter sido suprida com o deferimento do Requerimento de que se recorre.
18.- Coligidos os depoimentos prestados pelas testemunhas em audiência e discussão de julgamento, evidencia-se um elemento comum, que se prende com a referência á presença no local do acidente do veículo de matrícula espanhola, cujo motorista, tendo em consideração a dinâmica do acidente, poderá ter conhecimento direto dos factos.
19.- O certo é que, com ultrapassagem ou contorno do veículo espanhol, os motociclos posicionaram-se no campo de visão natural do motorista pelo que, é o seu depoimento imprescindível para aferir as efetivas circunstâncias em que o acidente ocorreu, nomeadamente confirmar a colisão entre os veículos.
20.- O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever na busca pelas provas dentro dos factos atempadamente alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.
21.- Com efeito, o art. 411º do CPC postula “um critério de plenitude do material probatório no sentido de que todas as provas relevantes devem ser carreadas para o processo, por iniciativa das partes ou, se necessário for, por iniciativa do juiz (…).
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14.- A Ré respondeu ao recurso, batendo-se pela sua improcedência e pela manutenção do despacho recorrido, não formulando conclusões.
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15.- O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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16.- Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, a questão que, neste recurso, importa apreciar e decidir é a seguinte:
.- saber se se deve diligenciar por que se apure a identidade do condutor, à data do acidente, do veículo com a matrícula .. .. LPP, por forma a que este possa ser, depois, inquirido como testemunha em audiência de julgamento.
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III.- Fundamentação
III.I.- Da Fundamentação de facto
.- Os factos que aqui importa considerar e que, em função dos elementos constantes dos autos, se mostram provados, são os acima descritos no relatório desta decisão, os quais, por razões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
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III.II.- Do objeto do recurso
Está aqui em causa a questão de saber se a pretensão dos Autores veiculada no seu requerimento supra referido em 11, no sentido de o tribunal a quo diligenciar pelo apuramento da identidade da pessoa que, aquando do acidente de viação dos autos, conduzia o veículo com a matrícula .. .. LPP, a fim de, ulteriormente, poder ser convocada como testemunha para a audiência de julgamento, deve, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, ser deferido.
No despacho recorrido entendeu-se que tal pretensão não merecia acolhimento, por duas ordens de razões: (i) porque a diligência em causa já teria sido efetuada, mediante a solicitação da informação pretendida à entidade que, na ótica do tribunal, podia prestá-la e, prestada a informação, os Autores, no prazo de 10 dias, nada disseram quanto a ela; (ii) porque os depoimentos prestados por duas das testemunhas inquiridas em julgamento foram contraditórios quanto ao posicionamento do veículo conduzido pela pessoa cuja identidade se pretende apurar, não se tendo produzido prova, por conseguinte, de que esta tivesse conhecimento dos factos.
Divergimos, contudo, da posição sufragada pela 1.ª instância no despacho recorrido, entendendo-se, pelo contrário, que se impõe o deferimento da pretensão dos Autores.
Vejamos porquê.

Importa começar por dizer que a pretensão dos Autores manifestada no requerimento em apreço, apesar de este ter sido deduzido no decurso da audiência de julgamento, já antes havia sido manifestada no requerimento supra referido em 5, pelo qual os Autores, perante a contestação da Ré, e com fundamento no disposto no art.º 552.º, n.º 6 do CPC, alteraram o requerimento probatório que constava da sua petição inicial.
Aliás, no que à pretensão aqui em causa diz respeito, esta já havia sido, inclusive, manifestada no requerimento de prova constante da petição inicial, surgindo o referido requerimento (o supra referido em 5), não propriamente como alteração daquele primeiro requerimento de prova, mas como explicitação ou desenvolvimento do mesmo.
Ora, tal pretensão foi, ao menos implicitamente, deferida pelo tribunal a quo, por via do despacho supra referido em 7.
Na verdade, embora não totalmente claro e direto na sua formulação, do despacho retira-se: por um lado, que a sua prolação assentou no pressuposto de que a pessoa cuja identidade se pretendia apurar havia de ser efetivamente inquirida como testemunha (tanto assim que, no segmento do despacho destinado a fixar o regime de convocação das testemunhas, se ressalvou expressamente “as diligências a realizar quanto à identificação do condutor do veículo .. .. LPP”); por outro lado, que nele se concedeu que havia necessidade de se indagar sobre essa identidade, por forma a que a pessoa em causa pudesse depor como testemunha (tanto assim que, embora não recorrendo para o efeito à entidade proposta pelos Autores, se tentou obter a informação pretendida junto do Instituto dos Registos e Notariado).
Do que se trata aqui não é, por conseguinte, de saber se havia ou não fundamento de mérito para o acolhimento da pretensão dos Apelantes – que havia fundamento, foi já chancelado pelo tribunal a quo no despacho supra referido em 7 – mas saber se a sua exequibilidade foi supervenientemente posta em causa pelo silêncio dos Apelantes face à notificação do resultado da diligência encetada pelo tribunal a quo junto do Instituto dos Registos e do Notariado ou pelo sentido da prova, mormente testemunhal, produzida em julgamento.

Ora, quanto ao silêncio dos Autores perante a notificação do resultado das diligências empreendidas pelo tribunal a quo junto do Instituto dos Registos e do Notariado, tal silêncio não pode ter o efeito que dele foi retirado no despacho recorrido.
Na verdade, e em primeiro lugar, não há normativo legal que estabeleça que o silêncio da parte perante a notificação do resultado de uma diligência com as características da dos autos acarrete a perda do direito que se pretende exercer, neste caso, o direito à prova.
Acresce que os Autores, no requerimento em que deduziram a sua pretensão, sugeriram que a informação pretendida, posto que dissesse respeito a veículo de matrícula espanhola, fosse obtida junto da Direcção General de Tráfico (DGT) – Espanha.
Esta concreta pretensão dos Autores não chegou a ser apreciada pelo tribunal a quo, que entendeu solicitar a informação a uma outra entidade, pelo que aquele pedido dos Autores ficou pendente de apreciação.
Consequentemente, não tendo sido obtida a informação pretendida junto da entidade a que o tribunal a quo entendeu dever recorrer, o que se impunha era, não exigir que os Autores se pronunciassem sobre o resultado de uma diligência que não requereram, mas que o próprio tribunal apreciasse a questão que estes haviam suscitado e que ainda não fora apreciada.
Acresce, ainda, que, como se disse, os Autores, logo no requerimento em que deduziram a sua pretensão, sugeriram logo que a informação pretendida fosse obtida de uma entidade diversa daquela a que o tribunal a quo, por sua iniciativa, entendeu dever recorrer.
A posição dos Autores quanto à forma de obtenção da informação em causa já era, assim, conhecida, pelo que, em face dos elementos constantes dos autos, era de todo desnecessário exigir-se-lhes que se pronunciassem novamente sobre algo de que já se tinham pronunciado.
Finalmente, como resulta do disposto no art.º 411.º do CPC, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Tal preceito, que consagra, em matéria de produção de prova, o denominado princípio do inquisitório, confere ao juiz do processo, relativamente aos factos de que lhe é lícito conhecer, um verdadeiro poder-dever de diligenciar pelo apuramento da verdade e justa composição do litígio.
Este poder-dever, como se referiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 26-10-2021, “emerge e justifica-se independentemente da vontade das partes na realização das diligências/produção de meios de prova” e tem como critério de aplicação o da “necessidade das diligências probatórias” para obtenção daquele fim, em termos tais que, “verificado o pressuposto da necessidade (baseado na fundada convicção de que a diligência a promover é necessária ao esclarecimento dos factos), o juiz, nos termos da lei, tem o dever de agir” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Ora, o que estava em causa no despacho recorrido era diligenciar pela obtenção de uma informação que o próprio tribunal a quo, por via do despacho supra referido em 7, já entendera relevante para a decisão da causa.
Diligenciar pela obtenção da informação, mesmo que a esse respeito os Autores nada tivessem dito (e disseram, como se viu), era, pois, uma imposição decorrente do princípio do inquisitório consagrado no preceito em análise.
O silêncio dos Autores perante a notificação do resultado das diligências empreendidas pelo tribunal a quo junto do Instituto dos Registos e do Notariado não podia, pois, fundar, como no despacho recorrido se entendeu que fundava, a recusa em solicitar a informação nos termos preconizados por aqueles.

Também não podia fundar a recusa de solicitação da informação em causa nos termos sugeridos pelos Autores aquele que foi o segundo fundamento invocado no despacho recorrido, atinente ao sentido dos depoimentos prestados por duas das testemunhas inquiridas em julgamento.
Na verdade, e desde logo, a relevância para a descoberta da verdade material da inquirição, como testemunha, da pessoa em causa e, consequentemente, da necessidade de se indagar sobre a sua identidade já estava chancelada pelo próprio tribunal a quo no despacho supra referido em 7.
Dizer-se depois que, da prova produzida em julgamento, não havia fundamento para se ordenar a diligência em causa, contraria, assim, o sentido da decisão anteriormente proferida sobre aquela questão.
Acresce que decidir-se da relevância de prestação de um depoimento de determinada pessoa como testemunha com base no resultado da prova produzida em julgamento só tem cabimento no quadro do regime previsto no art.º 526.º, n.º 1 do CPC, isto é, quando, no decurso da causa, haja razões para presumir que determinada pessoa não oferecida como testemunha tenha conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa.
Nos demais casos, sendo a testemunha arrolada tempestivamente, através do mecanismo legalmente previsto para o efeito e não havendo outro impedimento legal para a sua inquirição, forçoso é proceder-se à sua inquirição, sendo a relevância do seu depoimento aferida depois em sede de decisão da matéria de facto.
Ora, no presente caso, a indicação do condutor do veículo .. .. LPP como passível de ser inquirido como testemunha em julgamento emergiu dos requerimentos de prova dos Autores supra referidos em 2 e 5, o que bastava para que o seu depoimento tivesse de ser admitido - tal como, de resto, o foi, ao menos implicitamente, no despacho supra referido em 7.
Finalmente, se determinada pessoa tem ou não conhecimento de factos relevantes, só a própria o poderá dizer, não sendo curial - pelo menos no presente caso, em que Autores e Ré coincidem no facto de o acidente dos autos ter ocorrido quando os dois motociclos se depararam com a presença na via do veículo conduzido pela pessoa cuja inquirição se pretende - presumir o desconhecimento em função do que foi dito por outras testemunhas.
Em suma, não havia fundamento para que o tribunal a quo, com base no resultado da prova já produzida em julgamento, recusasse diligenciar pela obtenção da identidade da pessoa em causa, a fim de esta poder depor como testemunha.

Procede, em suma, a apelação, com a consequente revogação do despacho recorrido e a determinação de que o tribunal a quo, através do meio que tenha por adequado, leve a cabo a diligência requerida pelos Autores, no sentido de apurar a identidade do condutor, à data do acidente dos autos, da viatura com a matrícula .. .. LPP, por forma a que, obtida essa informação, se possa diligenciar, também pelo meio tido por adequado, pela sua inquirição como testemunha em julgamento.
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Porque vencida no recurso, suportará a Apelada as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
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IV.- Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogando-se o despacho recorrido, determinar que o tribunal a quo, através do meio que tenha por adequado, leve a cabo a diligência requerida pelos Autores, no sentido de se apurar a identidade do condutor, à data do acidente de viação dos autos, da viatura com a matrícula .. .. LPP, por forma a que, obtida essa informação, se possa diligenciar, também pelo meio tido por adequado, pela sua inquirição em julgamento.
Custas da apelação pela Apelada.
Notifique.
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Porto, 10-04-2025
(assinado eletronicamente)
Os Juízes Desembargadores,
José Manuel Correia
Álvaro Monteiro
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho