Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1890/24.7T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ MANUEL CORREIA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP202504101890/24.7T8PRD.P1
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Numa ação cuja causa de pedir radica na responsabilidade civil extracontratual decorrente de acidente de viação é, em princípio, de três anos contados da data em que o lesado teve conhecimento do seu direito o prazo de prescrição atendível (n.º 1 do art.º 498.ºdo CC).
II - Se os factos que materializam o acidente de viação constituírem crime para o qual a lei estabeleça um prazo de prescrição mais longo é este, todavia, o aplicável (n.º 3 do art.º 498.º do Código Civil).
III - Sendo controvertidos os factos alegados na petição inicial suscetíveis de integrar um dos elementos constitutivos do crime que esteja em causa, impõe-se que o processo siga o seu curso normal e que só a final, em sede de sentença, seja conhecida a questão da prescrição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1890/24.7T8PRD.P1 - Recurso de apelação
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este - Juízo Local Cível de Paredes, Juiz 1
Recorrente: AA
Recorrida: A... - Sucursal em Portugal, S.A.

.- Sumário
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.- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,

I.- Relatório
.- AA instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A... – Sucursal em Portugal, S.A., pedindo que, pela sua procedência, fosse a Ré condenada a pagar-lhe a quantia pecuniária de € 39.980,00, acrescida de juros de mora, contados da citação. Alegou, para tanto, e em síntese, que no dia 5 de abril de 2019, na Avenida ..., Paredes, Porto, ocorreu um acidente de viação entre o veículo com a matrícula ..-PE-.., por si conduzido e o veículo com a matrícula ..-..-VP.
Acrescentou que o acidente de viação ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do segundo veículo e que, em consequência do mesmo, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais por cujo ressarcimento é responsável a Ré, por força de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel com ela celebrado pela proprietária do veículo.
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Válida e regularmente citada, contestou a Ré, defendendo-se, além do mais, por exceção, invocando, designadamente, a exceção perentória de prescrição do direito da Autora.
A sustentar a exceção alegou que, entre a data do acidente e a data da sua citação, decorreram mais de 5 anos, pelo que decorreu já o prazo de prescrição atendível no caso - o de 3 anos previsto no art.º 498.º, n.º 1 do Código Civil.
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A Autora, em articulado autónomo, apresentado no exercício do direito ao contraditório relativamente à exceção invocada, pugnou pela improcedência desta.
Assim, e em síntese, argumentou que os factos descritos na petição inicial integravam a prática de crime, pelo que o prazo de prescrição atendível no caso seria, não o de 3 anos previsto no n.º 1 do art.º 498.º do Código Civil, mas o alargado de 5 anos, previsto no n.º 3 deste preceito. Tal prazo, por outro lado, à data da citação da Ré para os termos da ação, ainda não se teria completado, mercê do regime de suspensão dos prazos que vigorou em tempo de pandemia.
Acrescentou que a Ré, como resultaria da documentação junta com a petição inicial, reconheceu o seu direito de ser ressarcida dos danos sofridos com o acidente de viação nos autos, o que também obstaria à sua prescrição.
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Depois de, por despacho adrede proferido, ter sido fixado em € 39.980,00 o valor da causa, foi proferida sentença que, conhecendo a exceção perentória de prescrição invocada na contestação, julgou-a procedente e absolveu a Ré do pedido.
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Inconformada com esta decisão, dela veio a Autora interpor o presente recurso, pugnando pela sua revogação, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:

1.- Vem a ora recorrente recurso interpor da sentença proferida nos autos e que julgou prescrito o direito da Autora à indemnização, por entender que o seu direito não prescreveu.
2.- Face aos factos dados como provados, certo é que o condutor do veículo seguro na Recorrida foi embater na traseira do veículo da Autora, provocando-lhe danos físicos já melhor alegados na Petição Inicial.
3.- Dispõe o artigo 24º, nº 1 do Código da Estrada que “o condutor deve regular a velocidade de modo a que atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características da via e do veículo, á carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do transito e quaisquer outras circunstâncias relevantes, para em condições de segurança, executar manobras cuja necessidade de prever e, especialmente, fazer para o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
4.- Refere, ainda, o nº 2 do artigo 3º do Código da Estrada que “as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança e visibilidade ou a comodidade dos utilizadores da via, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis”.
5.- Dos factos dados como provados, resulta claro que o condutor do veículo seguro na Recorrida não cumpriu as regras previstas no artigo 3º, nº 2 e 24º, nº 1 do Código da Estrada, o que provocou danos físicos na Recorrente.
6.- Nos termos do disposto no artigo 498º, nº1 do Código Civil, na responsabilidade civil extracontratual, o direito do lesado prescreve no prazo de 3 anos a contar da data em que tem conhecimento do seu direito à indeminização prescrevendo o nº 3 deste mesmo artigo que, nas situações em que o facto ilícito constitua crime para o qual a lei estabeleça prazo de prescrição mais longo será este o aplicável.
7.- Ora, nos termos do disposto nos artigos 148º nº1 do Código Penal, quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde da outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, sendo que, neste caso, o prazo de prescrição deste crime é de 5 anos (art.º 118 do Código Penal).
8.- Pelo que se acaba de expor, certo é que o prazo aplicável ao presente caso é de 5 anos, sendo certo que, tendo o acidente ocorrido em 05/04/2019 o prazo de prescrição do direito da recorrente terminaria em 05.04.2024.
9.- No entanto, atendendo aos prazos de suspensão da COVID 19 concretamente:
.- o período de suspensão ocorrido entre 09/03/2020 e 03/06/2020, correspondente a 88 dias, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 3 da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, artigo 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 06 de Abril e a Lei n.º 16/2020 de 29 de Maio;
.- o período de suspensão ocorrido entre 22/01/2021 e 05/04/2021, correspondente a 74 dias, por força dos n.º (s) 3 e 4 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março e do n.º 3 do artigo 4.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 01 de Fevereiro e da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, certo é que o prazo de prescrição do direito da Recorrente apenas terminaria em 13.09.2024.
10.- Assim, o direito da Recorrente não prescreveu, pelo que deve ser revogada a douta Sentença proferida, o que se pede.
11.- Mesmo que assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese académica, sempre deveria o Meritíssimo Juiz convidar a Recorrente a aperfeiçoar o seu articulado nos termos do disposto no artigo 590º, nº 4 do Código Processo Civil.
12.- Com efeito, se houver o entendimento que os factos alegados são insuficientes ou imprecisos deverá a Meritíssima Juíza convidar a Recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, o que não fez, pelo que também se pede que desçam os autos à primeira instância e ser a Recorrente convidada a aperfeiçoar a sua Petição Inicial.
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A Ré respondeu ao recurso interposto pela Autora, batendo-se pela sua improcedência e pela confirmação da sentença recorrida, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:
1.- Contrariamente ao vertido nas alegações de recurso, não se aplica “in casu”, o prazo prescricional de 5 anos porquanto a Autora não invocou factos que consubstanciassem qualquer crime punível com pena de prisão de 1 a 5 anos (Cód. Penal – artºs 148º e 118º nº 1, al. c));
2.- Devendo concluir-se pela verificação da exceção da prescrição e consequente absolvição da Ré do pedido.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, a questão que, neste recurso, importa apreciar e decidir é a seguinte:
.- da prescrição do direito da Autora.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- No dia 5 de abril de 2019, ocorreu um acidente de viação na Avenida ..., ..., Paredes.
2.- No qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-PE-.., conduzido pela Autora, AA, propriedade de BB, e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-VP, conduzido por CC, propriedade de B..., Lda., com a apólice de seguro n.º ..., Seguradora A... - Sucursal em Portugal, S.A..
3.- O veículo no qual se encontrava a Autora estava parado na Avenida ..., no sentido ... – ....
4.- No momento em que se preparava para virar à esquerda para a Rua ..., atento o seu sentido de marcha, é surpreendida com o veículo VP.
5.- O veículo VP circulava na Av. ..., no mesmo sentido e na mesma via que o veículo da Autora e, chegando ao local onde se encontrava o veículo da Autora, embateu na traseira do mesmo.
6.- A presente ação foi intentada em 02-08-2024 e a Ré foi citada em 05-09-2024.
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III.II.- Do objeto do recurso
.- Da prescrição do direito da Autora
A questão que aqui importa apreciar e decidir é a de saber se prescreveu ou não o direito que a Autora/Apelante pretende exercer nesta ação.
A prescrição é, como refere Carlos Alberto Mota Pinto, uma forma de “extinção de direitos”, consubstanciada no seu não exercício “durante certo tempo fixado na lei”. Deste modo, quem dela beneficia, pode, uma vez decorrido o respetivo prazo, “recusar o cumprimento da prestação ou opor-se ao exercício do direito prescrito” (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1991, p. 374).
Assenta, segundo Manuel de Andrade, na “negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular), indigno de protecção jurídica (dormientibus non sucurrit ius) (in Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, 1987, p. 445).
A propósito da prescrição, dispõe o art.º 298.º, n.º 1 do CC que estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
Uma vez completada, a prescrição, como decorre do n.º 1 do art.º 304.º do CC, tem como efeito o de garantir ao beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação a que está adstrito ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
A prescrição interrompe-se, de acordo com o n.º 1 do art.º 323.º do CC, pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
Todavia, nos termos do n.º 2, se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
Sem prejuízo, de harmonia com o n.º 4 do art.º 323.º do CC, é equiparado à citação ou notificação para os efeitos supra expostos qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido.
A prescrição é, ainda, nos termos do art.º 325.º, n.º 1 do CC, interrompida pelo reconhecimento do direito, efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido, reconhecimento esse que tem de ser expresso, a menos, de acordo com o n.º 2, resulte de factos que inequivocamente o exprimem, caso em que, porque tácito, também relevará.
Verificada a interrupção, fica inutilizado para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr, tal como prescreve o n.º 1 do art.º 326.º do CC, novo prazo a partir do ato interruptivo; mas se a interrupção resultar de citação, notificação ou ato equiparado, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 327.º, n.º 1 e 326.º, n.º 1 do CC).

Através desta ação, pretende a Autora/Apelante obter o ressarcimento dos danos que sofreu em virtude de acidente de viação devido a culpa exclusiva de condutor de veículo seguro na Ré/Apelada. A causa de pedir que lhe serve de suporte radica, por conseguinte, na responsabilidade civil extracontratual.
Para este tipo de casos, estabelece o n.º 1 do art.º 498.º do CC que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso.
De acordo com o n.º 3 do mesmo preceito, todavia, se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
In casu, o acidente de viação do qual resultaram os danos de que a Autora/Apelante pretende ser ressarcida ocorreu no dia 5 de abril de 2019, data esta que, portanto, constitui o termo inicial de contagem do prazo de prescrição atendível no caso, à luz dos sobreditos n.ºs 1 e 3, do art.º 498.º do CC.
A Ré/Apelada, por seu vez, foi citada para contestar a ação no dia 05-09-2024, muito além, portanto, do termo final do prazo de três anos previsto no n.º 1 do mesmo preceito.
A conclusão de que o direito da Autora/Apelante não prescreveu pressupõe, assim, aliás, como propugnado pela própria, que o facto ilícito e culposo materializado no referido acidente de viação constitua crime e que a tal crime corresponda um prazo de prescrição superior ao de três anos.

Ora, a haver crime, será ele, no caso, o da ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal.
De acordo com esta disposição legal, pratica o crime em apreço quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa.
A este crime corresponde, nos termos do n.º 1 do art.º 148.º do Código Penal, pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias, pelo que, de acordo com a alínea c), do n.º 1, do art.º 118.º deste Código, é de cinco anos o prazo de prescrição do procedimento criminal correspondente.
Por conseguinte, caso os factos descritos na petição inicial integrem a prática do crime em apreço pelo condutor do veículo seguro na Ré/Apelada, será este o prazo de prescrição atendível no caso.

É certo que o procedimento criminal pela instauração do crime de ofensa à integridade física por negligência carece, nos termos do n.º 4 do art.º 148.º do Código Penal, de queixa do ofendido, revestindo-se, por isso, da natureza de crime semi-público.
Não há elementos nos autos que apontem para que o direito de queixa tenha sido exercido tendo por objeto os factos descritos na petição inicial e, consequentemente, que contra o responsável pela produção do acidente dos autos tenha corrido ou venha a correr procedimento criminal.
Tal circunstância não é, contudo, impeditiva da consideração, no caso, do referido prazo prescricional de cinco anos, na certeza de que, à luz do n.º 3 do art.º 498.º do Código Civil, o que conta não é que tenha havido ou possa haver instauração efetiva de procedimento criminal, mas que os factos que integram a responsabilidade civil constituam, em abstrato, crime para o qual se preveja um prazo de prescrição mais longo do que o de 3 anos.
Como refere Antunes Varela “[a] possibilidade de o lesado exigir a reparação civil que lhe é devida, fora do prazo normal da prescrição, nos termos prescritos no n.º 3 do art.º 498.º do Código Civil, não está subordinada à condição de simultaneamente correr procedimento criminal contra o lesante, baseado nos mesmos factos. Para que a acção cível seja ainda admitida em tais condições, basta nos termos da disposição legal em foco que o facto ilícito gerador da responsabilidade constitua crime e que a prescrição do respectivo procedimento penal esteja sujeita a um prazo mais longo do que o estabelecido para a acção cível. Não é, pois, necessário que haja ou tenha havido acção crime na qual os factos determinantes da responsabilidade civil tenham de vir à barra do Tribunal, ainda que observados sob prisma diferente. Basta que haja, em princípio, a possibilidade de instauração do procedimento criminal, ainda que, por qualquer circunstância (v.g., por falta de acusação particular ou de queixa ou por amnistia entretanto decretada) ele não seja ou não possa ser efectivamente” (in RLJ, Ano 123, p. 46, apud Acórdão da Relação de Coimbra de 28-03-2023, proferido no processo n.º 1139/22.7T8CTB-A.C1, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Em suma, caso os factos descritos na petição inicial integrem a prática do crime em causa o prazo de prescrição atendível no caso é o de cinco anos.

Ora, o acidente de viação dos autos ocorreu em 5 de abril de 2019.
Entre esta data e a citação da Ré - 05-09-2024 - decorreram bem mais do que cinco anos.
Todavia, o prazo prescricional em causa, como, de resto, argumenta a Autora/Apelante na motivação do seu recurso, esteve suspenso:
i.- entre 09/03/2020 e 03/06/2020, num total de 88 dias, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 7.º, n.º 3 da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 06 de Abril e 8.º da Lei n.º 16/2020 de 29 de Maio;
ii.- entre 22/01/2021 e 05/04/2021, num total de 74 dias, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, decorrente da Lei n.º 4-B/2021, de 01 de Fevereiro e art.º 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril;
.- num total, portanto, de 162 dias.
O prazo de cinco anos de prescrição a considerar aqui, tendo-se iniciado em 5 de abril de 2019, terminou, portanto, em 16 de setembro de 2024 (cfr. art.º 279.º, al. e) do Código Civil).
Ora, como se viu, anteriormente a esta data, repita-se, em 5 de setembro de 2024, já se interrompera, por força da citação da Ré, o prazo de prescrição em curso, com o que, atento o estatuído nos supra citados art.ºs 326.º, n.º 1 e 327.º, n.º 1 do Código Civil, não só se inutilizou para a prescrição todo o tempo até então decorrido, como uma nova contagem do prazo prescricional só será feita a partir do trânsito em julgado das decisão que vier a pôr termo à presente causa.
Por conseguinte, a haver crime e sendo, por conseguinte, de cinco anos o prazo de prescrição atendível, não se terá extinguido, por prescrição, o direito que a Autora/Apelante se propõe exercer nesta ação.
Importará, pois, saber se, no caso, há crime de ofensa à integridade física por negligência.

Ora, tratando-se da imputação de um crime negligente, cumpre ter presente o disposto no art.º 15º do Código Penal, preceito que define aquilo que se deve entender por negligência para efeitos jurídico-penais.
Segundo esta norma, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas atuar sem se conformar com essa realização (negligência consciente), ou não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
Resulta de tal normal legal que é, desde logo, elemento integrante do conceito de negligência o da violação do dever objetivo de cuidado, ou seja, do cuidado cuja observância se mostra necessária para evitar a realização do ilícito-típico.
O dever objetivo de cuidado cuja violação é pressuposto condicionador da afirmação da tipicidade da conduta é decomposto em duas vertentes, designadamente, o dever de “cuidado interno” e o dever de “cuidado externo” (v. Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal – Parte General”, Granada, 1993, p. 524 e segs.).
O primeiro consiste no dever de o agente prever e valorar corretamente o perigo que, para um determinado bem jurídico, poderá advir da sua conduta, o que pressuporá uma correta avaliação das circunstâncias envolventes, bem como uma reflexão acerca de como pode evoluir o perigo previsto e sobre quais possam vir a ser os seus efeitos.
O segundo, por sua vez, consiste no dever de, uma vez prevista a possibilidade de a conduta poder consubstanciar um perigo, adotar um comportamento exterior adequado a evitá-lo.
Saliente-se, apenas, que o dever de cuidado externo pode alicerçar-se em diversas fontes, como sejam os usos, a experiência comum e, sobretudo, a lei, de que é exemplo, com relevo para o caso em apreço, o conjunto de normas destinadas à regulação do tráfego rodoviário.
Elemento integrante do conceito de negligência é, também, de acordo com a referida normal legal, o resultado, "em função do qual se decide não só se se pune, mas também porque e em que grau se pune" (Jescheck, ibidem, p. 530).
Entre o resultado e a violação do dever de cuidado tem de interceder um nexo de causalidade adequada (cfr. art.º 10, n.º 1 do Código Penal), ou seja, a conduta descuidada do lesante, considerada ex ante e tendo em conta os concretos conhecimentos do agente, deve ser, em abstrato, adequada à produção do resultado, no sentido de este ser uma consequência normal e típica daquele.
Ao juízo de causalidade adequada, porém, haverá que introduzir as correções propostas pela “doutrina da imputação objetiva”, isto é, o nexo causal quebrar-se-á quando o resultado sempre se tivesse produzido, mesmo que o agente tivesse respeitado o dever de cuidado (situações de “comportamento lícito alternativo”) e quando o resultado produzido se não insira no âmbito de proteção da norma porventura infringida pela ação descuidada do agente.
Elemento integrante do conceito de negligência é, ainda, a previsibilidade do resultado, previsibilidade esta que deverá ser aferida em função de um critério objetivo, "de acordo com as regras gerais da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem" (v. Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, vol. I, Coimbra, 1971, p. 426).
A afirmação da negligência, porém, não se basta com o conjunto de elementos acabados de referir e que fazem parte do tipo de ilícito objectivo dos crimes materiais negligentes, pressupondo, também, a existência de um elemento que integra o respetivo tipo de culpa.
Esse elemento consiste na capacidade pessoal do agente para cumprir o dever de cuidado, como o atesta a expressão “de que é capaz”, inserta no proémio do citado art.º 15º do Código Penal.
Com efeito, é esta capacidade do agente que verdadeiramente configura a censurabilidade própria da negligência, assumindo-se como o "elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever-ser jurídico-penal" (Figueiredo Dias, in "Jornadas de Direito Criminal - Pressupostos da Punição", C.E.J., p. 70).
Acrescente-se, apenas, que, ainda segundo este autor, com tal elemento pretendeu-se estabelecer "um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente" e não um critério objectivo, ligado à capacidade normal ou do homem médio.

Reportando-nos ao presente caso, estão já assentes os factos relativos à dinâmica do acidente de viação dos autos.
Está provado, na realidade, a este respeito, que o acidente de viação se deu estando o veículo conduzido pela Autora parado na Avenida ..., em ..., Paredes, no sentido Porto – ....
Nesse momento, a Autora/Apelante preparava-se para virar à esquerda para a Rua ..., atento o seu sentido de marcha, quando foi surpreendida pelo veículo ..-..-VP.
Este, circulando na mesma via e no mesmo sentido de trânsito, chegando ao local onde se encontrava o veículo da Autora, embateu na traseira do mesmo, assim originando o acidente de que resultaram lesões físicas para a Autora/Apelante.
Perante este quadro de facto, concluímos que está verificado o comportamento negligente do condutor do veículo ..-..-VP.
Na verdade, é dever do condutor, nos termos do art.º 24.º, n.º 1 do Código da Estrada, o de regular a velocidade de modo a que, atendendo, no que ao caso importa, à presença de outros utilizadores, às características e estado da via e do veículo e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
É dever dos utilizadores da via, também, nos termos do n.º 2 do art.º 3.º do mesmo Código, o de se absterem de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança e visibilidade ou a comodidade dos restantes utilizadores da via.
No caso, o condutor do veículo ..-..-VP não observou nenhum destes deveres, colidindo com o seu veículo no veículo da Autora quando esta efetuava uma manobra enquanto utilizadora da via porque, pura e simplesmente, não adequou a velocidade que imprimia ao veículo de modo a evitá-lo.
Ou seja, o condutor do veículo seguro na Ré/Apelada não valorou o perigo que uma condução em desconsideração das referidas regras poderia acarretar, não adotando, por isso, o comportamento externo que lhe era exigível naquelas circunstâncias e que era o de conduzir atento e em respeito pelos comandos inerentes às sobreditas disposições legais.
Vale o mesmo por dizer que o mesmo não observou os deveres de cuidado interno e externo que sobre ele impendiam naquelas circunstâncias, violando, consequentemente, o dever objectivo de cuidado, fundamento da punição a título de negligência.

Chegados aqui, importa dizer, contudo, que o crime em apreço, enquanto crime negligente, é um crime de resultado, pressupondo, por conseguinte, o dano, materializado, no caso, na ofensa à integridade física da Autora/Apelante.
Essa ofensa, mormente as repercussões que para a integridade física da Autora/Apelante advieram do acidente, foi efetivamente alegada na petição inicial, mas também foi impugnada pela Ré/Apelada na contestação, pelo que tudo quanto diga respeito à mesma constitui matéria de facto controvertida.
Tratando-se de matéria de facto controvertida, não é possível, ainda, concluir pela verificação de um elemento constitutivo do tipo legal de crime em apreço.
E não sendo ainda possível concluir pela existência de crime por esse motivo, importa que os autos prossigam os seus termos normais, com remessa da questão em apreço para decisão final, em função daquilo que, em audiência de julgamento, se venha apurar relativamente à matéria controvertida.

Em conclusão: não é possível saber, ainda, se se extinguiu ou não, por prescrição, o direito que a Autora/Apelante se propõe exercer nesta ação, na certeza de que tal conclusão pressupõe a conclusão de que os factos imputados ao condutor do veículo seguro na Ré/Apelada integram a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência e é controvertido, ainda, um dos elementos constitutivos desse crime, ou seja, o resultado; o processo deve, pois, seguir o seu curso normal e, a final, ser apreciada a questão da prescrição em função da prova produzida respeitante à matéria alegada na petição inicial que materializará aquele elemento constitutivo.
Procederá, pois, nesta medida, e ainda que por diversos fundamentos, a apelação.
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Porque vencida no recurso, suportará a Ré/Apelada as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
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IV.- Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando-se a sentença recorrida, ordenar que os autos prossigam os seus termos normais, relegando-se o conhecimento da exceção de prescrição deduzida pela Ré/Apelada para a sentença final, em função do resultado da prova produzida quanto aos factos que ainda permanecem controvertidos e que, em função do presente Acórdão, são determinantes para o conhecimento daquela exceção.
Custas da apelação pela Ré/Apelada.
Notifique.
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Porto, 10 de abril 2025
(assinado eletronicamente)
Os Juízes Desembargadores,
José Manuel Correia
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho
António Carneiro da Silva