Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3345/20.0T8FAR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: DIVÓRCIO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RP202510093345/20.0T8FAR-B.P1
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O artigo 1790.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (01.12.2008), que nessa data ainda subsistam, não se aplicando aos que nessa data já hajam sido dissolvidos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3345/20.0T8FAR-B.P1

Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

Juízo de Competência Genérica de Estarreja – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO

Nos autos de inventário instaurados por óbito de AA, em que é requerente BB e cabeça de casal CC, foi proferido o seguinte despacho:

“Confirma-se que a interessada DD não foi regularmente citada para os termos do Inventário. Não obstante, desde 02.02.2022 vem intervindo nos autos, data em que constituiu mandatário, pelo que nos termos do previsto pelo art.º 189.º do Código de Processo Civil considero sanada a nulidade de falta de citação.

Notifique.


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Ref.ª Citius 16809369:

A questão da ilegitimidade de EE, ex-cônjuge da interessada DD, para intervir nos presentes autos de Inventário encontra-se decidida por despacho datado de 06.07.2023, já transitado em julgado.

Notifique.


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Ref.ª Citius 16597934:

Não obstante o texto da escritura de habilitação de herdeiros datada de 27.11.1984, junta aos autos em 23.02.2018 (sob a ref.ª Citius 118607227), da análise das certidões dos assentos de nascimento dos interessados (ref.ª Citius 118607224, de 22.06.2018) não resulta que os respectivos casamentos vigentes à data do falecimento do inventariado tenham sido celebrados sob o regime da comunhão geral de bens, mas sob o regime supletivo da comunhão de bens adquiridos (atentas as datas de celebração, todos posteriores a 1 de Junho de 1967 – data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro que aprovou o novo Código Civil, e levando em conta a falta de averbamento de existência de convenção antenupcial).

De qualquer forma, relativamente aos casamentos entretanto dissolvidos por divórcio – os dos interessados FF e da cabeça de casal, qualquer que seja o regime de bens que nos mesmos vigorou sempre se aplica a norma do art.º 1790.º do Código Civil, pelo que os respectivos ex-cônjuges não são interessados nos presentes autos – instaurados e autuados como inventário por óbito de AA.

O único casamento vigente é o do interessado GG com HH.

Antes de mais, mostra-se necessário esclarecer que são os interessados directos na partilha, por forma a aquilatar da legitimidade passiva dos ora requeridos nos presentes autos, nos quais têm que participar todos os que possam ser afectados pelas decisões a tomar. Salvo devido respeito pela tramitação que antecede, só após estabilizar a instância em termos subjectivos e depois de dar oportunidade a todos os interessados de se defenderem/exercerem os seus direitos, é que o Tribunal poderá fazer prosseguir os autos a fim de decidir o incidente de oposição ao próprio inventário, instaurado pela cabeça-de-casal CC em 11.11.2022 (ref.ª Citius 13732347).

Em face do exposto, determino a notificação da cabeça-de-casal para, no prazo de 10 (dez) dias, juntar aos autos, caso tenha sido celebrada, a certidão da convenção antenupcial referente ao casamento do interessado GG com HH, por forma a apurar definitivamente o respectivo regime de bens e a eventual posição de interessada directa de HH”.

Notificada de tal despacho e não se conformando com o mesmo, veio a interessada e cabeça de casal CC interpor recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. Não podia o Tribunal a quo conhecer de regimes de bens só cognoscíveis e passíveis de prova por documentos autênticos, escrituras públicas, não sendo matéria de conhecimento oficioso e menos sobrepor-se aos regimes efectivamente adoptados, sob pena de NULIDADE, como não podia concluir pelo afastamento de interessados na partilha fundando-se na existência de um regime supletivo – Art. 412.º e 607.º, n. 5 ex vi o art. 152.º do CPC e arts. 1717.º e 1732.º do Código Civil.

II. A nova redacção do art. 1790.º do CC, introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, apenas se aplica aos casamentos celebrados em regime de comunhão geral de bens que não tenham sido dissolvidos antes da sua entrada em vigor, ocorrida a 01.12.2008, o que, in casu, apenas sucede com os interessados GG e respectivo cônjuge, ainda actualmente casados entre si – Art. 1790.º ex vi o art. 12.º, n.ºs 1 e 2, 2.ª parte, do Código Civil.

III. A decisão de não considerar todos os interessados fere de nulidade o processado – nulidade que se invoca –, por ilegitimidade das partes – Arts. 30.º; 33.º; 34.º; 196.º (2.ª parte); 199.º, n.º 1 e 200.º, n.º 3 do CPC e art. 2091.º do Código Civil.

IV. Ao decidir como decidiu, o despacho recorrido violou os arts. 30.º; 33.º; 34.º; 196.º (2.ª parte); 199.º, n.º 1; 200.º, n.º 3; 412.º e 607.º, n.º 5 ex vi o art. 152.º, todos do Código de Processo Civil; bem como, os arts. 1717.º; 1732.º; 1790.º ex vi o art. 12.º, n.ºs 1 e 2, 2.ª parte e 2091.º do Código Civil.

Por tudo, deve ser dado provimento ao presente recurso, pedindo-se que sejam revogadas as decisões ora recorridas e, consequentemente, expurgadas e supridas as nulidades, caso prossigam os autos, se ordene a citação de II (...) e JJ, ex-cônjuges de FF e de CC, respectivamente, e se reconheça que a actual redacção legal do artigo 1790.º do Código Civil não se aplica aos casos de casamentos celebrados em regime de comunhão geral de bens, dissolvidos antes da sua entrada em vigor.

ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se devem considerar-se interessados no inventário instaurado por óbito do inventariado AA, e nessa qualidade devendo ser citados, os ex-cônjuges do interessado FF e da interessada e cabeça de casal CC.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Os factos/incidências processuais relevantes para o conhecimento do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório e, além deles, os seguintes, documentados nos autos:
1. AA faleceu no dia 29 de Outubro de 1984.

2. Por óbito do mesmo, a 27 de Novembro de 1984 foi lavrada escritura de habilitação no Cartório Notarial de Estarreja.

3. Dela consta que o falecido AA deixou como seus únicos e universais herdeiros, além da sua esposa KK, com quem foi casado segundo o regime de comunhão geral de bens, os seguintes filhos:

- FF, casado segundo o regime de comunhão geral de bens com II;

- GG, casado segundo o regime de comunhão geral de bens com HH;

- CC, casada segundo o regime de comunhão geral de bens com JJ;

- DD, casada segundo o regime de bens de comunhão de adquiridos com EE.

- Em datas posteriores ao óbito de AA foram dissolvidos, por divórcio, os casamentos dos seus filhos FF, CC e DD.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Sobreviveram ao falecido AA a sua esposa, entretanto falecida, e quatro filhos.

Todos os filhos eram, à data do óbito do inventariado, casados.

Actualmente apenas o casamento do interessado GG (casado com HH) subsiste. Os casamentos dos demais filhos do inventariado foram, em datas posteriores ao decesso deste, dissolvidos por divórcio.

Entendeu a decisão sob recurso que os ex-cônjuges da cabeça de casal, e aqui recorrente, e do herdeiro FF - independentemente do regime de bens dos respectivos casamentos, entretanto dissolvidos -, não são interessados no inventário instaurado por óbito do inventariante AA, convocando, em abono desse entendimento, o estatuído no artigo 1790.º do Código Civil, que defende ser aqui aplicável.

Sob a epígrafe “Partilha”, dispõe o referido artigo 1790.º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro: “Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.”

A referida Lei n.º 61/2008, destinada a regular o regime jurídico do divórcio, entrou em vigor 30 dias após a sua publicação[1], ou seja, a 1.12.2008, não se aplicando aos processos então pendentes em tribunal[2].

A sucessão de leis no tempo demanda a existência de normas de direito transitório:

- especial, ou seja, as contidas na lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo;

- sectorial: que regulem a aplicação no tempo acerca de certa matéria específica;

- geral: que definam o modo de aplicação da lei no tempo, independentemente das matérias versadas, como sucede com o artigo 12º do Código Civil.

A convocação de cada uma delas deve efectuar-se de forma sucessiva e sequencial, sempre que seja constatada a ausência das primeiras a serem chamadas a equacionarem a questão[3].

Com efeito, como explica o referido acórdão da Relação de Coimbra de 15.02.2011, “na sucessão de leis no tempo, potencialmente aplicáveis às relações jurídicas duradouras, o problema terá que ser resolvido, em primeiro lugar, através de normas de direito transitório especial (ou seja, normas da própria lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo), depois pelas normas de direito transitório sectorial (ou seja, que regulem na aplicação no tempo das leis sobre certa matéria), e finalmente por normas de direito transitório geral (ou seja, que definam o modo de aplicação no tempo da generalidade das leis, independentemente da matéria sobre que versam).

Por conseguinte, só na ausência de qualquer regime especial é que se deve indagar, sucessivamente, da existência de normas de direito transitório sectorial ou de direito transitório geral - como é o regime fixado no art.12º do CC - para, na sua falta, recorrer aos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência. Noutra perspectiva, não tendo aqui natureza constitucional o princípio da não-retroactividade das leis, a sua eficácia temporal postula, antes de mais, um problema de interpretação, ou seja, se o legislador pretendeu, ou não, abranger as situações jurídicas constituídas antes da sua entrada em vigor. Por isso, não basta atender às regras enunciadas no artigo 12º do CC, que só em caso de dúvida são de observar e não têm mais força vinculativa que as das outras leis ordinárias, e daí que não prevaleçam sobre os resultados da interpretação da lei em causa (cf. VAZ SERRA, RLJ ano 110, pág. 271 e segs.)”.

Segundo o artigo 12.º do Código Civil,

“1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos que a lei se destina a regular.

2. Quando a lei dispuser sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo-se dos factos que deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor”.

O divórcio dissolve o casamento, sendo uma forma de extinção do mesmo, fazendo cessar as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges. Os efeitos do divórcio quanto a estas relações retrotraem-se à data da propositura da acção de divórcio[4].

O novo regime introduzido pela referida Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro apenas não tem aplicação em relação aos processos pendentes aquando da sua entrada em vigor, aplicando-se, todavia, a todas as demais partilhas futuras, ainda que o casamento e respectivo regime de bens seja anterior à sua entrada em vigor.

A extensão da aplicação da norma em causa mereceu a crítica de alguns autores: Rita Lobo Xavier[5] defendeu que, nesses casos, o limite do artigo 1790.º só deve aplicar-se em relação ao património constituído depois da entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, não se refletindo no que se formou antes dessa data, sustentando, por sua vez Rute Teixeira Pedro[6] que, falhando os mecanismos de direito matrimonial para corrigir a distorção gerada pela imposição do limite quantitativo à operação de partilha, com que os cônjuges não podiam contar, haverá que “considerar se a aplicação imediata da norma não importa a violação do princípio da proteção da confiança dos cidadãos e da segurança jurídica, subprincípios em que se concretiza, segundo um entendimento consolidado do Tribunal Constitucional (…) o princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º da CRP”.

Estas posições críticas não se têm, porém, refletido no direito aplicado, seguindo entendimento distinto a generalidade da jurisprudência nacional.

No acórdão do STJ de 3.03.2016[7] pode ler-se:

“… II - A Lei n.º 61/2008, de 31-10 contém uma norma transitória que dispõe que o regime nela previsto não se aplica aos processos pendentes em tribunal; ou seja – a contrario – este regime vai aplicar-se aos processos que vierem a pender. O futuro é o futuro – o que vier a pender; o passado é o passado, o que inteiramente já passou ou o que está a passar, o que está pendente.

III - Podendo os dois regimes coabitar – o presente e o passado – a aplicação no tempo do novo regime jurídico do divórcio terá de encontrar-se no que se dispõe no art. 12.º do CC, sendo que a nova lei, dispondo directamente sobre a situação de casado, abstraindo do casamento que fez nascer esse estado, abrange as relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor (art. 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC).

IV - O casamento e o divórcio têm hoje (depois da Lei n.º 61/2008) uma nova luz e é essa nova luz que se deve derramar sobre todos os casados que ponham fim ao seu casamento pelo divórcio depois dela – sobre todos os casados e não apenas sobre os que casaram depois da entrada em vigor da mencionada Lei.

V - Não há nesta solução qualquer violação do princípio constitucional da igualdade já que respeitá-lo é tratar por igual todos aqueles que hoje estejam casados e hoje ou amanhã vejam o seu casamento extinto pelo divórcio – o divórcio há-de ter os efeitos patrimoniais que hoje a lei acha eticamente sustentáveis (e legalizou) e daí que os benefícios recebidos ou a receber em vista do casamento ou em consideração do estado de casado tenham de ser tratados como a lei os trata agora e não como eram pensados no tempo em que foram concedidos. […]”.

Como refere o acórdão do STJ de 26.03.2010[8], “[A]o alterar a regulamentação do divórcio e respectivas consequências, o legislador dispõe directamente sobre o conteúdo da relação do casamento, abstraindo dos factos que lhe deram origem, isto é, regulando a extinção da relação de forma genérica e não definindo uma regra específica para um determinado facto causal em particular. Não é do casamento que a lei fala, mas do estado de casado e do divórcio, como fenómeno extintivo desse estado”, concluindo o mesmo que “...o regime por ela introduzido aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (1/12/2008) e que nessa data ainda subsistam, isto é, não tenham sido dissolvidos, como sucede no caso dos autos em que o divórcio apenas foi decretado em 18/4/2012, já em plena vigência daquela lei”.

Do sumário do acórdão desta Relação de 6.12.2014[9], retira-se igualmente:

“I-O artigo 1790.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, é aplicável a todos os casamentos celebrados segundo o regime de comunhão geral de bens, ainda que em data anterior à entrada em vigor da referida Lei (01.12.2008) mas que nesta data ainda subsistam.

II-O artigo 1790.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, não altera o regime de bens a que se encontra sujeito o casamento celebrado, pelo que a partilha continua a fazer-se tratando como bens comuns aqueles que de acordo com esse regime o são” [...].

Da mesma Relação, extrai-se do acórdão de 26.05.2015[10]: “I - O regime da nova Lei nº 61/2008, de 31.10, …, aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (01.12.2008), mas que nessa data ainda subsistam e já não àqueles que à data dessa vigência já tenham sido dissolvidos” [...].

Também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.10.2021[11] adoptou idêntico entendimento, podendo ler-se no seu sumário: “I)-O artº. 1790º do Código Civil, na redação dada pela Lei nº. 61/2008 de 31/10, é aplicável a todos os casamentos celebrados segundo o regime da comunhão geral de bens, mesmo aos celebrados em data anterior à sua entrada em vigor (1/12/2008), desde que, neste caso, subsistam nessa data”.

Este é o entendimento uniforme das instâncias superiores.

Não subsistindo os casamentos do interessado FF e da interessada e cabeça de casal CC à data da entrada em vigor da Lei 61/2008[12], ao contrário do sustentado na decisão sob recurso, não lhes é aplicável o regime do artigo 1790.º do Código Civil, na redacção introduzida por aquela Lei.

E não tendo aplicação concreta tal regime, a legitimidade dos ex-cônjuges daqueles interessados há-de ser aferida em função do regime de bens dos respectivos casamentos, em vigor à data da abertura da sucessão por óbito do inventariante.

Não obstante a escritura de habilitação de herdeiros de 27.11.1984 fazer menção que todos os filhos do inventariado (à excepção da filha DD, casada, de acordo com o referido instrumento notarial, segundo o regime de comunhão de adquiridos com EE), tinham casado segundo o regime de comunhão geral de bens, dela não se pode extrair terem tais casamentos sido celebrados de acordo com o indicado regime de bens.

A referida escritura tem natureza de documento autêntico, cuja noção é facultada pelo artigo 369.º do Código Civil, definindo o artigo 371.º do mesmo diploma a força probatória destes documentos: “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base na percepção da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.

A escritura, elaborada por notário, faz, assim, prova plena dos factos nela atestados, quer por percepção directa da entidade atestadora, quer dos por esta praticados.

No caso, a referida escritura de habilitação apenas faz prova plena, relativamente ao regime de bens dos sucessores habilitados, dos factos nela atestados com base nas declarações prestadas perante o notário pelos respectivos outorgantes e nas certidões de nascimento dos filhos do autor da herança.

Essas certidões, que vieram a ser juntas ao processo de inventário a 22.06.2018, têm efectivamente averbado o casamento de cada um daqueles habilitados, filhos do inventariante, mas sem qualquer menção quanto ao respectivo regime de bens e existência ou não de celebração de convenção antenupcial.

Os referidos assentos de nascimento apenas permitem atestar as datas da celebração dos casamentos de cada um dos filhos do inventariado e a data da dissolução dos casamentos dos interessados FF, CC e DD.

É certo que, como dá conta a decisão recorrida, à data da celebração do casamento de cada um dos filhos do inventariante já se encontrava em vigor o regime supletivo de comunhão de adquiridos. Mas, dada a sua natureza supletiva, a sua aplicação sempre podia ser afastada através de convenção antenupcial que instituísse regime distinto para cada um dos casamentos celebrados.

Os documentos constantes dos autos não esclarecem com suficiência se o casamento dos interessados, filhos do inventariante, foi ou não antecedido de convenção antenupcial, sendo este dado fundamental para equacionar qual o regime de bens que concretamente vigorou na constância do matrimónio dos referidos interessados.

Justifica-se, por conseguinte, que, à semelhança do ordenado à cabeça de casal para “no prazo de 10 (dez) dias, juntar aos autos, caso tenha sido celebrada, a certidão da convenção antenupcial referente ao casamento do interessado GG com HH”, se alargue o âmbito dessa notificação, de modo a abranger a própria cabeça de casal e o interessado FF, podendo a cabeça de casal substituir aquela certidão por certidão de casamento completa, da qual conste o regime de bens ou menção de não existência de convenção antenupcial.

Procede, por conseguinte, parcialmente o recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine a notificação da cabeça de casal para os efeitos assinalados.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na procedência parcial da apelação, em revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que ordene a notificação da cabeça de casal, aqui recorrente, para, em prazo a fixar para o efeito, juntar aos autos, caso exista, certidão de convenção antenupcial relativa ao seu próprio casamento, assim como relativa ao casamento do interessado FF, ou certidão de casamento completa dos mesmos, da qual conste o regime de bens ou menção de não existência de convenção antenupcial.

Custas – pela apelante: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Notifique.

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[Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos]


Porto, 9.10.2025
Judite Pires
José Manuel Correia
Isabel Peixoto Pereira
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[1] Cfr. artigo 10.º do mencionado diploma.
[2] Cfr. artigo 9.º.
[3] Acórdão da Relação de Coimbra, 15.02.2011, processo nº 121/09.4T2ILH.C1, www.dgsi.pt.
[4] Artigos 1788.º, 1688.º e 1789.º, n.º 1, todos do Código Civi1.
[5] Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Coimbra, Almedina, 2009, págs. 33 e seguintes.
[6] Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. III, Almedina, 2011, pág. 474.
[7] Processo n.º 1808/13.2TBMTS-A.P1.S1, www.dgsi.pt.
[8] Processo n.º 199/10.8TMLSB-C.L1.S1, www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 124/10.6TBOAZ.P1, www.dgsi.pt.
[10] Processo n.º 5199/12.0TBMAI.P1, www.dgsi.pt.
[11] Processo n.º 1635/20.0T8VCT.G1, www.dgsi.pt.
[12] Conforme resulta do averbamento aos respectivos assentos de nascimento, o casamento do FF foi dissolvido por divórcio por sentença de 16.05.2007, transitada em julgado a 28.05.2007, e o da CC foi dissolvido por divórcio decretado por decisão de 5.04.2002, transitada em julgado na mesma data. Quanto ao casamento da DD, o mesmo foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 20.10.1989, transitada em julgado a 2.11.1989