Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
384/19.7PBLRS.L1-3
Relator: ANA PAULA GRANDVAUX
Descritores: TRÂNSITO EM JULGADO
VÍCIOS DO ARTº 410º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – Tendo sido no Tribunal de 1ª instância, proferido despacho, no sentido de apenas admitir parcialmente o recurso do arguido, isto é, na parte respeitante à sua condenação no crime, não admitindo esse recurso, na parte em que o mesmo impugnou a sua condenação no pagamento da quantia de 1.000,00 euros arbitrada à vítima, a título de indemnização civil, definida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12º, nº 2 da Lei 112/2009, de 16 de setembro, e no artigo 82º - A do CPP, – considerando o Tribunal a quo, no mencionado despacho, que a sua decisão nesta parte, é irrecorrível nos termos do art.º 400º/2 do CPP – se o arguido não se insurgiu pelos meios legais que tinha ao seu dispor (nomeadamente reclamando para o Sr. Presidente da Relação de Lisboa), podendo fazê-lo, tal condenação no referido montante indemnizatório, já se mostra transitada em julgado e não poderá como tal ser apreciada pelo Tribunal de recurso.
II - Nada existe a apontar, quanto aos factos provados e não provados descritos na sentença recorrida, os quais se consideram bem julgados, de acordo com a prova produzida em audiência e como tal, a matéria de facto não pode ser alterada, considerando-se definitivamente fixada, no caso como o dos presentes autos, porquanto : a fundamentação exarada na sentença é exaustiva e criteriosa, tendo sido indicadas de forma exaustiva, minuciosa e conjugadas em sede de exame crítico, todas as provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sendo por isso a matéria de facto provada suficiente para a decisão, sem qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e sem qualquer erro notório na apreciação da prova (a qual não consta do elenco das provas proibidas), submetida ao contraditório e à imediação probatória processual e produzida ou examinada em audiência ou constante dos autos com conhecimento dos sujeitos processuais, sem impugnação da sua validade, não padecendo por isso a sentença recorrida, de qualquer vício que invalide a decisão da matéria de facto (art.º 410º/2 do C.P.P).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 - No processo nº 384/19.7PBLRS, do Juízo Local Criminal de ... - Juiz 3, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, natural de ..., filho de ZZ e BB, nascido em ... de ... de 1980, solteiro, titular do C.C. nº ... residente na ..., imputando-lhe o MP a prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, als. b) e c) e nºs 2, al. a), 4 e 5 do Código Penal (na pessoa da vítima CC) e de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. d) e nº 2, al. a) do Código Penal (na pessoa da vítima DD).
Pelo demandante «Hospital de ..., EPE» foi deduzido pedido de indemnização civil, no valor de € 106,41, contra o arguido, devidos pela assistência médica/cuidados de saúde que prestou à ofendida.
Pede afinal, a condenação do demandado, no pagamento do citado montante, acrescido dos juros legais moratórios.
O arguido contestou a acusação deduzida pelo Ministério Público, oferecendo o merecimento dos autos e dando por reproduzido tudo quanto já havia alegado no RAI, arrolando também testemunhas para sua defesa.
2- Realizado o julgamento, por sentença lida em 25-06-2024 e depositada em 6.9.2024, foi o arguido absolvido e condenado, nos seguintes (transcritos) termos:
III – Decisão Final:
III. 1. – Acusação Pública:
Pelos expostos fundamentos de facto e de Direito, o Tribunal julga parcialmente procedente, por parcialmente provada, a Acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, decide:
a. Absolver o arguido AA da prática de um crime de Violência Doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), nº 2, alínea a), do Código Penal, pelo qual vinha acusado na pessoa do ofendido DD;
b. Absolver o arguido AA da prática de um crime de Ameaça Agravada, p. e p. pelos artigos 153º e 155º, nº 1, alínea b), do Código Penal, no qual poderia ser convolado o crime referido em a);
c. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de Violência Doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e c) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão (na pessoa da ofendida CC);
d. Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA pelo período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses, nos termos do artigo 50º nº1, do Código Penal, no entanto, a suspensão da execução da pena de prisão ficará sujeita a regime de prova (artigos 50º, nº 2 e 53º, ambos do Código Penal), sendo que o Plano de Reinserção Social a elaborar pela DGRSP deverá conter as seguintes obrigações:
frequência pelo arguido de Programa para Agressores de Violência Doméstica,
a sua proibição de contactos com a vítima.
e. Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contacto com a vítima (CC), por qualquer meio, pelo prazo de 2 anos e 10 meses – artº 152º, nº 4 do Código Penal;
f. condenar oficiosamente o arguido AA, nos termos do artigo 12º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar à ofendida CC, a título de indemnização pelos danos morais, a quantia de € 1.000,00 (mil euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a presente data e vincendos até integral pagamento;
g. Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Hospital e, em consequência, condeno o arguido AA a pagar ao demandante «HOSPITAL DE ..., EPE» o montante de € 106,41 (cento e seis euros e quarenta e um cêntimo), correspondente ao total indemnizatório devido a título de danos patrimoniais por si originados na esfera jurídica do demandante Hospital, a que acresce juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação para contestação do pedido cível até integral pagamento.
h. Condenar o arguido AA nas custas do processo, que compreendem, designadamente, taxa de justiça, que se fixa em 3 (três) UCs e nas demais custas do processo – cfr. artigos 513º, nº 1, 514º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais ex vi artigo 524º, do Código de Processo Penal.
i. Condeno o arguido / demandado nas custas do pedido de indemnização civil, caso não haja isenção face ao valor do pedido.
***
O Tribunal ordena que, após trânsito em julgado do presente acto decisório, se:
- Remeta boletins aos serviços de registo criminal nos termos do disposto no artigo 374º, nº 3, alínea d) do Código de Processo Penal;
- Solicitar à DGRSP a elaboração de Plano de Reinserção Social nos termos supra determinados;
- Comunique a presente decisão, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 37º do Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica, à Protecção e à Assistência das suas Vítimas, aprovado pela Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, tendo presente a Divulgação nº 29/2012, do CSM e o ofício circular nº 32 da DGAJ/DSAJ.
- Comunique a presente decisão à ofendida, informando-a que ao arguido foi aplicada a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, por qualquer meio, pelo prazo de 2 anos e 10 meses, sem fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. Mais deverá ser informada a ofendida que caso o arguido viole a referida pena acessória deverá informar de imediato o OPC competente ou comunicar de imediato a estes autos através de requerimento dirigido ao processo;
*
A leitura da presente sentença equivale à sua notificação a todos os sujeitos processuais que se devam considerar presentes (artigo 372º, nº 4 do Código de Processo Penal).
Notifique.
*
Mais se notifique o arguido, com a advertência que caso viole a pena acessória imposta na presente sentença incorrerá na prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal.
* * *
Lida, vai a presente sentença, integralmente revista e elaborada pela signatária nos termos do artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal, ser depositada na Secretaria deste Tribunal (artigo 372º, nº 5 do Código de Processo Penal).
*
3 – Inconformado com tal decisão, dela recorreu o arguido, sendo que a motivação apresentada termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
1. O presente recurso tem por objeto a decisão sobre a matéria de fato provada, tomada no douto Acórdão proferido nos presentes autos, de que ora se recorre.
2. Nos termos do artigo 202º da Constituição da República Portuguesa, os Tribunais, além de órgãos de soberania, administram a justiça em nome do povo.
3. Daqui resulta, entre outros aspetos, que, nos termos do artigo 340º, nº 1 do CPP, o Juiz de Julgamento deve buscar a verdade material, a certeza processual, se quisermos, ou, de outra forma, o alicerce da decisão.
4. O mesmo é dizer, em sede de julgamento, que o Juiz só deva condenar se ficar efetivamente convencido quanto à culpa do arguido, convencido pela atividade probatória levada a cabo pelo Ministério Público ou pela investigação levada a cabo por si.1
5. A Constituição define os Tribunais e as funções da judicatura e atribui-lhes o dever de realização de Justiça em nome do Povo Soberano, sem deixar de lado princípios estruturantes tais como o da presunção da inocência, das decisões fundadas na Justiça e no Direito, na autoridade do Juiz, sem ser autoritária, e na prolação da decisão afastada dos pré-juízos, que, dito de outra forma, é a capacidade de o Juiz de Julgamento se abstrair do caso tal como ele é visto pela acusação2.
6. O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dúbio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os fatos decisivos para a solução da causa3 e significa que o arguido está isento do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação.4
7. Da conjugação do princípio da liberdade com o da presunção de inocência decorre o princípio in dúbio pro reo, que não se trata de uma regra de valoração da prova, como por vezes erradamente se pensa, mas apenas de um critério de valoração da dúvida sobre a prova e [...] como o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, a dúvida sobre os fatos que alegadamente provam a sua responsabilidade criminal só pode reforçar esse estatuto de inocência e não uma eventual condenação.5
8. A prova enquanto atividade probatória – é o esforço metódico através do qual são demonstrados os fatos relevantes para a existência do crime, a punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis6, cabendo ao julgador.
9. A livre apreciação da prova, enquanto atividade submetida à Constituição Penal, impõe ao Juiz, e bem, a prorrogativa de investigar oficiosamente todos os fatos que possam permitir, de forma imparcial, alcançar o alicerce da decisão.7
10. Em 25.06.2024 foi proferida Sentença que decidiu condenar AA:
a. numa pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) mês de prisão, cuja execução se suspende por igual período (i.e. 2 (dois) anos e 1 (um) mês), mediante a obrigação do arguido:
ser acompanhado por regime de prova que assente num plano de reinserção social, a ser elaborado pela Direção Geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais (DGRSP);
b. numa pena acessória de obrigação de frequentar Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD);
c. A proibição de contatos com a vítima, por qualquer meio, pelo prazo de 2 (dois) anos 10 (dez) meses;
d. a pagar custas do processo, que compreendem, designadamente, taxa de justiça, que se fixa em 3 (três) UCs e nas demais custas do processo - cfr. 513º, nº 1, 514º, ambos do Código de Processo Penal e arts. 8º, nº 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais ex vi artigo 524º, do Código de Processo Penal;
e. a pagar 1.000,00 (mil euros) à ofendida CC, a título de indemnização pelos danos morais, acrescido dos juros de mora vencidos desde a presente data e vincendos até integral pagamento;
f. a pagar ao demandante Hospital de ... EPE, o montante de €106,41 (cento e seis euros e quarenta e um cêntimos), correspondente ao total indemnizatório devido a título de danos patrimoniais por si originados na esfera jurídica do demandante Hospital, a que acresce juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação para contestação do pedido cível até integral pagamento;
g. Condenar o arguido / demandado a pagar custas do pedido de indemnização civil, caso não haja isenção face ao valor do pedido.
11. Não podendo, o entanto, a arguido conformar-se com a douta Sentença.
12. O arguido não concorda com os fatos provados mencionados nos artigos 1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39., nos termos do artigo 412º nº 3 al. a) do CPP.
13. Nos termos do artigo 412º, nº 3, al. b) as provas que contradizem a conclusão formada pelo Tribunal a quo são o depoimento da vítima, do filho de ambos, DD, o depoimento da testemunha EE, da testemunha FF da testemunha GG, e da testemunha HH, todos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como as mensagens escritas enviadas pela testemunha GG juntas aos autos.
14. Do depoimento da ofendida prestado a 04.12.2020 resulta que que viveu em união de fato desde os 17 anos desta.
15. Ao contrário do fato provado no ponto 2 que refere que o casal começou a coabitar aos 15 anos desta.
16. O Tribunal a quo considera provado que o arguido desferiu uma pancada na face da vítima (fato provado 5) tendo-lhe provocado dores.
17. Do depoimento da vítima resulta que não teve dores.
18. O Tribunal a quo apenas poderia dar como provado, com base nas declarações da mesma, que foi agredida com uma chapada na cara.
19. Nos factos provados nos pontos 6 a 9 o Tribunal a quo apenas fundamentou a sua convicção no depoimento da ofendida.
20. Não existindo, contudo, registos de tais lesões
21. Nos pontos 13 a 15 dos fatos provados mais uma vez o Tribunal a quo se baseia no depoimento da ofendida, sendo que do relatório social consta que o arguido sempre trabalhou.
22. O depoimento da ofendida é em tudo contraditório com o depoimento da testemunha EE.
23. A ofendida e a testemunha DD relatam que a ofendida tinha várias contusões na face.
24. Depoimento este desmentido pelas testemunhas EE e FF.
25. O depoimento de DD não pode ser valorado, porquanto o mesmo não assistiu às agressões, apenas sabe o que a ofendida lhe contou.
26. As fotografias juntas aos autos que alegadamente se reportam às lesões resultantes das agressões não foram tiradas por qualquer entidade oficial, pelo que a sua veracidade é questionável, não devendo as mesmas ser valoradas enquanto meio de prova.
27. Os pontos 30 a 35 dos fatos provados assentam apenas nas declarações da ofendida.
28. Do depoimento de todas as testemunhas presentes no local, incluindo o filho de ambos, todas são perentórias a afirmar que não viram o arguido a apertar o pescoço da ofendida.
29. O depoimento da suposta vítima pautou-se sempre pela falta de lembrança, quer a nível de datas, quer na forma como as coisas realmente aconteceram, designadamente, quando no dia ........2021 faltou à verdade ao dizer que as testemunhas entraram dentro de sua casa, ao não se recordar o que o arguido lhe terá dito em ........2019 quando supostamente lhe apertou o pescoço, quando em sede de denúncia refere que as agressões apenas tiveram início com a coabitação e perante o Tribunal relata uma situação anterior, entre outras.
30. A função acometida aos Tribunais pela Constituição não se compadece com a ideia de autoritarismo, porque, se assim fosse, onde existiria liberdade não poderia sobrevir autoridade e, nessa medida, a autoridade do Juiz deve ter na génese, ao contrário do arbítrio, uma ideia clara de Justiça: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente.
31. Porém, o Tribunal a quo desde muito cedo pautou a sua conduta pela arrogância e prepotência, desrespeitando o arguido.
32. Quanto à condenação do arguido a pagar €1.000,00 (mil euros) à vítima, a título de indemnização civil, definida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21º, nº 2 da Lei 112/2009, de 16 de setembro, e no artigo 82º - A do CPP, releva ter por referência o regime da responsabilidade civil por fato ilícito.
33. Com respeito ao valor em que foi o arguido condenado a pagar €1.000,00 (mil euros) a título de indemnização civil, definida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21º, nº 2 da Lei 112/2009, de 16 de setembro, e no artigo 82º - A do CPP, releva ter por referência o regime da responsabilidade civil por fato ilícito.
34. Ora, nos termos do artigo 129º do Código Penal, “a indemnização de perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil”.
Assim sendo, para se considerar que a lesada tem direito a indemnização por perdas e danos que sofreu, terá que previamente verificar- se se o demandado civil incorreu em responsabilidade pela prática de facto ilícito.
Nos termos definidos pelo artigo 483º, nº1 do Código Civil “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigada a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos são:
- Facto voluntário do lesante;
- Ilicitude do mesmo;
- Imputação do facto ao lesante;
- Dano;
- E, o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 1999, pp. 516).8
35. Assim, face à factualidade dada como provada e dos considerandos já supra expostos aquando da análise da responsabilidade criminal do arguido, verifica-se que este atuou à margem da ilicitude, não tendo praticado qualquer crime, não estando por essa incursa em responsabilidade civil delitual, inexistindo a correlativa obrigação de indemnizar os danos causados, por não verificados os pressupostos da responsabilidade civil previstos no artigo 483º do Código Civil.
36. Não tendo o arguido praticado qualquer crime, não existe lugar ao pagamento de qualquer indemnização.
37. O Tribunal a quo violou o Princípio da igualdade, consagrado no nº 1 e 2º do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, porquanto terá imposto ao Recorrente o pagamento de €1.000,00 (mil euros) a título de danos não patrimoniais bem sabendo que, o Recorrente não dispõe de meios financeiros para fazer face a tamanha indemnização.
38. Entende-se que não lhe pode ser imposto um dever de cumprimento de uma obrigação, sem que exista viabilidade económica no seu cumprimento.
39. Se não for este o entendimento de V. Exas, sugere-se a especial redução da indemnização imposta, nunca podendo o valor ser superior a €200,00 (duzentos euros).
40. Devendo o arguido ser absolvido pela prática do crime de violência doméstica p.e.p. pelo artigo 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a) do Código Penal, uma vez justificada a ilicitude da sua conduta nos termos do artigo 32º do Código Penal, o que por conseguinte, determina não estarem reunidos os pressupostos da responsabilidade civil por fato ilícito, não existindo, assim, fundamento ao pagamento de qualquer valor a título de indemnização civil ao arguido.
Assim se fará Justiça!
4- O recurso do arguido foi admitido parcialmente na 1ª instância (admissão referente apenas à parte penal da decisão condenatória), por despacho de 9.9.2024 (fls 710 e 709).
5- O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pelo não provimento do recurso, tendo terminado a sua resposta com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
1º O arguido AA interpôs recurso da sentença proferida nos presentes autos, na qual foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada pela prática de um crime de Violência Doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e c) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão (na pessoa da ofendida CC), suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses, nos termos do artigo 50º, nº1, do Código Penal, sujeita a regime de prova (artigos 50º, nº 2 e 53.º, ambos do Código Penal).
2º. O arguido, alega que o tribunal errou na apreciação da prova e invoca a violação do princípio do in dúbio pro reo, insurgindo-se contra o teor dos pontos 1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39, da matéria de facto provada.
3º. Segundo o recorrente existe contradição entre a decisão proferida e a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, ao abrigo do artigo 412º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
4º. Na mesma medida insurge-se contra a condenação nos termos do artigo 12º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar à ofendida CC, a título de indemnização pelos danos morais, a quantia de € 1.000,00 (mil euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a presente data e vincendos até integral pagamento.
5º. Entendemos que o tribunal a quo apreciou de forma correcta e precisa o comportamento do recorrente, de acordo com a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pelo que não assiste razão ao recorrente.
6º. As testemunhas de acusação foram credíveis e os depoimentos colocaram o arguido no local dos factos descrevendo as condutas do mesmo, sem prejuízo dos lapsos de memória, que são normais face às circunstâncias, ao tempo decorrido e à abundância de episódios relatados no libelo acusatório.
7º. Simplesmente o recorrente não aceita a fundamentação do Tribunal para o condenar.
8º. Para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu ao exame crítico e conexo da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos dos artigos 97º, nº 5 e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, ponderou os juízos retirados da experiência comum e aplicou critérios de razoabilidade, em consonância com os depoimentos prestados em audiência de julgamento e resultantes da prova documental.
9º. O Tribunal a quo fundamentou devidamente os motivos pelos quais as declarações de determinadas testemunhas mereceram credibilidade em detrimento de outras, nomeadamente pelo facto de terem estado presentes no momento dos factos e de serem condicentes quanto ao relato dos acontecimentos.
10º. O respeitante aos Pontos 6. a 9. foi relatado pela vítima de forma impressiva e credível, informando que foi atingida com golpes de cabo de vassoura, tendo um dos golpes atingido o relógio que trazia no pulso, causando-lhe lesões e dores: 09:03 Juiz: Deu-lhe uma pancada com o pau da vassoura em que parte do corpo? 09:04 CC: Principalmente no braço. Porque eu meti o braço à frente. 09:27 Juiz: A zona do braço, foi mais para a zona dos pulsos, mais para a zona do braço... 09:31: CC: Sim, foi na zona do pulso, onde eu tinha um relógio na altura e fez um hematoma, junto onde estava o relógio. 09:51: Juiz: Com o pau da vassoura só lhe deu uma pancada? 09:55: CC: Não, ele levantava o pau e batia-me só que como eu pus o braço à frente, a marca que mais ficou foi entre o relógio e o pulso. 10:05: Juiz: Foi mais do que uma pancada? 10:07: CC: Foi mais do que uma pancada, sim. 11º. O alegado pelo recorrente relativamente aos pontos 13. a 15 do recurso, não corresponde à verdade, uma vez que o que a vítima CC referiu, foi o seguinte: (...) 18:59: Juiz: Portanto 2018 é isso? 19:01: CC: Sim. 19:03: Juiz: O que é que aconteceu? 19:04: CC: O que aconteceu é que estávamos numa fase em que não tínhamos dinheiro para nada e eu estava a falar com ele, em modo de discussão, porque o senhor AA não queria trabalhar e eu disse que estava a ficar cansada, que nem uma simples camisola eu podia comprar, trabalhava e não tinha dinheiro, nem sequer para comprar uma camisola, nem para mim, e (imperceptível) ele agarrou-me num braço e pôs-me na rua e a minha filha estava a chorar, a pedir para abrir a porta, para eu entrar.
12º. Relativamente aos pontos 16 a 26 dos factos dados como provados, inexiste qualquer contradição ou imprecisão na apreciação nas provas produzidas. Simplesmente o recorrente, molda os depoimentos, citando trechos dos depoimentos das testemunhas para em alegações, apreciar a prova da forma que lhe convém. Efectivamente, a testemunha FF, agente da PSP, quando se dirigiu ao hospital para tomar conta da ocorrência de um episódio de violência doméstica, já a vítima tinha sido assistida medicamente.
13º. O texto transcrito pelo recorrente, ora arguido, não corresponde ao que ocorreu na audiência de discussão e julgamento, quando alega que a vítima referiu que tinha “a cara feita num oito, os olhos inchados, a boca toda arrebentada, sangue no nariz e um alto na testa”, sendo que, o que a vítima disse foi o seguinte: 30:38: CC: Entro em casa, (imperceptível) casa de banho, tinha sangue no nariz, tinha os olhos todos inchados, tinha um hematoma na testa do tamanho de um ovo, tinha a boca toda rebentada (...).
14º. De referir que tanto DD, como a testemunha GG, foram peremptórios em referir que viram a ofendida com estas lesões, tendo ambos confirmado, quando confrontados com as fotografias de fls. 117 a 120, que foram aquelas as marcas que viram na ofendida que corroborou a versão da última, referindo que a mesma estava desfigurada.
15º. A realidade é que em virtude das lesões provocadas pelo arguido, a vítima necessitou de tratamento hospitalar no ..., em ..., no dia ........2019. Relativamente a este episódio para além dos depoimentos das testemunhas, encontram-se confirmadas as lesões pela documentação médica junta aos autos a fls. 35 e 36 - “recorre ao SU aós quadro de agressão no contexto de violência doméstica há cerca de 3 h (...) Segundo a mesma trata-se de uma situação frequente, com início há 10 anos, já tendo permanecido em instituição de apoio à vítima (...)” “Face: equimoses na região periórbitária bilateralmente mas mais exuberantes àdireita, com extensão à região auricular e retroauricular direita. Hematoma com cerca de 5 cm de maior eixo na região supraciliar direita que condiciona ptose palpebral homolateral. Doloroso à apalpação (...) Equimose na região infra escapular esquerda (...)”, tais lesões, também encontram suporte nas fotografias juntas aos autos a fls. 117 a 120. 16º. Quanto aos pontos 30 a 35. dos factos dados como provados, o tribunal valorizou o depoimento da vítima que só por si, revelou-se credível e consentâneo com as regras da experiência comum.
17º. É por demais evidente, na decorrência da audição das sessões de julgamento que se tratou de uma situação traumática para as vítimas, viva nas suas memórias. Esclareceram que, no período de coabitação o arguido adoptou condutas violentas dirigiras à vítima, com repercussões nos filhos do ex-casal, tendo os últimos vivenciado a violência a que a progenitora foi submetida às mãos do arguido, visionando ou ouvindo os golpes que o arguido desferiu e que atingiram a vítima ou observado as lesões provocadas por esses golpes e que ficaram marcadas na face da vítima.
18º. Pelo que, com o devido respeito, as reservas do recorrente quanto aos factos provados, não são mais que uma tentativa desesperada de esgrimir argumentos contrários, aos adoptados pelo tribunal para o condenar pela prática do ilícito.
19º. Não se colocaram dúvidas ao Tribunal de que efectivamente, o arguido praticou os factos, não há qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados, entre uns e outros e a respectiva fundamentação, e entre esta e a decisão recorrida. Isto é, os factos dados como provados estão, pois suficientemente fundamentados, com expressa referência aos meios de prova, às razões determinantes da convicção do Tribunal, e é esta que conta.
20º. Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, afigura-se-nos que a sua discordância assenta na valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
21º. Efectivamente, a mera discordância da posição assumida pelo Tribunal quanto à valoração da matéria de facto, por não se conformar com o valor atribuído pelo julgador relativamente a provas que vão em sentido divergente, não constitui fundamento legal de reexame da matéria de facto que, enquanto tal, é insindicável, já que, no nosso entender, não ocorre nenhum dos vícios a que alude o artigo 410.º, do Código de Processo Penal.
22º. Não se verifica em momento algum, uma falha grosseira ou erro na
apreciação da prova, conforme alegado pelo recorrente, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

23º. Como fica patente da análise da motivação de facto supra transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, e os raciocínios aí expendidos merecem concordância. Na realidade, o tribunal superior pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, mas, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio da livre apreciação da prova.
24º. O art.º º 127.º do Código de Processo Penal, indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
25º. Como se viu, a sentença proferida pelo tribunal a quo assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova, elementos que uma transcrição da prova produzida em julgamento, não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe.
26º. Acresce que, na ponderação da prova deste tipo de crimes, nos quais se integra o crime de violência doméstica, existe um especial dever de apreciação da postura dos intervenientes processuais no relato dos factos, dos sinais de veracidade e dos sinais de desvio dessa veracidade.
27º. O crime de violência doméstica apresenta, as mais das vezes a dificuldade de prova decorrente de os factos ocorrerem tendencialmente no domínio das relações privadas do agressor e da vítima, longe dos olhares de terceiros.
28º. Como se tratam de factos ocorridos no seio familiar é praticamente impossível obter outros relatos para além daqueles que resultam das próprias vítimas. Não é incomum, outros familiares que tenham assistido a actos de violência adoptarem posturas reservadas em face dos factos, até mesmo omissivas invocando “lapsos de memória”, ou até mesmo, classificarem como “uma relação normal”, ou que “tudo estava bem”, apesar de, na realidade se tratar de um relacionamento disfuncional e marcado pela violência, não só pelas relações pessoais que mantêm com os intervenientes, ou de maior proximidade com algum dos intervenientes, mas também pelo temor do resultado que possa advir desses mesmos depoimentos.
29º. O tribunal fundamentou os motivos que a levaram a atribuir credibilidade ao depoimento de umas testemunhas em detrimento de outras, motivo pelo qual, mostra-se, por conseguinte, justa e acertada a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, aderindo o Ministério Público, in totum à fundamentação respectiva e em consequência, encontram-se devidamente demonstrados os elementos subjectivos e objectivos do(s) crime(s) pelo qual(quais) ocorreu condenação.
30º. Diz, também, o recorrente que deveria ter sido absolvido em obediência ao
princípio in dúbio pro reo.

31º. Também nesta sede não assiste razão ao recorrente, que remete a sua alegação para meros juízos conclusivos relativamente à prova.
32º. Na verdade, da análise da sentença recorrida não resulta que aí se tenha decidido, no que tange à matéria de facto, nomeadamente, no que respeita ao julgamento dos factos dados como provados, perante uma qualquer situação de dúvida, de factos incertos ou de non liquet.
33º. Com efeito, não é pelo facto de haver diferentes versões de uma determinada factualidade e de se optar por uma delas como sendo a que melhor a retrata, que se está a violar, sem mais, o princípio em apreço.
34º. Não se impunha, assim, aplicar o aludido princípio na justa medida em que o Tribunal a quo proferiu a sentença no pleno convencimento de que os factos ocorreram nos moldes relatados pela ofendida e de que o recorrente foi o seu autor, por força das provas devidamente valoradas e submetidas ao respectivo exame crítico.
35º. No caso em apreço, da leitura da sentença recorrida, facilmente se constata que a prova produzida foi de molde a não criar quaisquer dúvidas no Julgador, antes e pelo contrário, a prova produzida em audiência, conduziu o Tribunal a quo à certeza de que o recorrente praticou os factos que foram dados como assentes.
36º. Não se impunha, assim, aplicar o aludido princípio na justa medida em que o Tribunal a quo proferiu a sentença no pleno convencimento de que os factos ocorreram nos moldes relatados pela vítima e de que o recorrente foi seu autor, por força das provas devidamente valoradas e submetidas ao respectivo exame crítico.
37º. Não tinha, pois, o Tribunal que aplicar o princípio em apreço, não tendo, por isso, violado o artigo 32.º, n. º2, da Constituição da República Portuguesa.
38º. O recorrente insurge-se quanto às quantias que lhe foram impostas em virtude da condenação, invocando inclusivamente, que a quantia em virtude da condenação, no valor de 1000,00€ a pagar à vítima viola o princípio da igualdade por não ter rendimentos.
39º. O artigo 82.º-A do C.P.P. estabelece, em certos casos e reunidos determinados pressupostos, a atribuição oficiosa à vítima dos factos ilícitos de uma reparação pelos prejuízos sofridos.
40º. Dado o carácter subsidiário da reparação oficiosa da vítima, se esta deduzir pedido de indemnização a reparação é feita no âmbito do pedido formulado, cessando a aplicação do disposto no referido artigo 82º-A do C.P.P.
41º. Esta quantia é arbitrada oficiosamente pelo Tribunal, apenas em caso de condenação, segundo o prudente critério do julgador, sem pedido, relacionando-se com os prejuízos sofridos Çuma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos”), mas não, necessariamente, coincidente com o seu valor.
42º. Não se trata de uma indemnização por perdas e danos, objeto de pedido, relativa, direta e exclusivamente, aos danos quantificados, mas de uma indemnização oficiosamente atribuída, a título de reparação pelos prejuízos sofridos.
43º. Face à factualidade descrita e ao simbólico valor de 1.000,00€, a condenação do arguido naquela quantia pecuniária não se revela desadequada ou desajustada, pelo que deverá a mesma manter-se, nos seus exactos termos, sem qualquer exclusão ou redução.
44.º Face a tudo o exposto não se encontram violadas quaisquer das normas jurídicas invocadas pelo recorrente.
Deve, pois, manter-se a sentença recorrida, mas V.Exas., farão a tão costumada, Justiça.
*
6- Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, nos termos e para os efeitos do art.º 416º do C.P.P, emitiu parecer onde acompanha o entendimento preconizado na resposta ao recurso do M.P na 1ª instância, cfr texto que se transcreve em resumo: “(…) Aderimos à posição do Ministério Público em 1ª Instância, atenta a completude, pertinência, correção jurídica e clareza da sua fundamentação, a qual, debruçando-se proficientemente sobre cada uma das questões controvertidas, realça com total acerto, os fundamentos de facto e de direito determinantes do entendimento de que não deve ser procedente o recurso.
Em seu reforço, e focados na invocada violação dos princípios da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”, ancoramo-nos ainda na jurisprudência expressa nos seguintes acórdãos:
1- da Relação de Lisboa de 23-7-2023 ( processo 1074/21.6JAPDL.L1-5 ) : “ A ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo art.º 412º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum. Significa isto que o recorrente não pode pretender substituir a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção”.
2- da Relação de Lisboa de 9-3-2023 (processo 220/19.4GAMTA.L1-9: “ (...)
I. Incumbe ao recorrente definir os termos do seu recurso em matéria de facto, delimitando o respetivo objeto, não lhe bastando enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito, alegando que da prova produzida não resultam provados os factos do tipo legal ou que não se provou o crime, pelo deverá ser absolvido, de tal modo que tivesse de ser o Tribunal Superior oficiosamente a retirar conclusões sobre quais os factos e provas concretas que se ajustariam à pretensão final do recorrente e dentro destas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir a prova gravada na íntegra. Assim não cumprindo o legalmente determinado o recurso apresentado neste segmento, este não pode ser conhecido neste segmento; II- A violação do princípio “in dubio pro reo”, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido – pela prova em que assenta a convicção, coisa que de forma patente não aconteceu no caso em apreço. Mais se acrescenta que o “in dubio pro reo” constitui decorrência do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e dá resposta às situações de dúvida quanto à verificação de determinado facto, impondo que o “non liquet” em matéria de prova seja valorado a favor do arguido (...)”.
Patentemente, e como também sublinhado pelo o Ministério Público na resposta a recurso apresentada em 1ª Instância, mostra-se absolutamente acertada a decisão sobre a matéria de facto dada como provada e a sua subjunção jurídica e, em consequência, a condenação do recorrente pela prática do crime de violência doméstica.
(…) Em consonância com todo o exposto, e sufragando os fundamentos expostos na resposta a recurso apresentada pelo Ministério Público em 1ª Instância, emitimos parecer no sentido da manutenção da sentença recorrida, pugnando pela improcedência do recurso.”
7- Foi oportunamente cumprido o art.º 417º/2 do C.P.P, não tendo sido oferecida qualquer resposta.
8- Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II - Questões a decidir
Delimitação do objecto do recurso
Do art.º 412º/1 do C.P.P resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente definem as questões a decidir em cada caso (cf. Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal” III edição 2º edição, 2000 pág. 335 e Ac. do S.T.J de 13.5.1998 em B.M.J 477º 263), exceptuando aquelas que sejam do conhecimento oficioso (cf. art.º 402º, 403º/1, 410º e 412º todos do C.P.P e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J de 19.10.1995 in D.R I – A série, de 28.12.1995).
As questões a apreciar por este Tribunal ad quem são duas:
A) - impugnação da matéria de facto;
B) – Violação do princípio “in dubio pro reo”;
III- Fundamentação de Facto
A decisão recorrida
Na sentença recorrida o Tribunal a quo considerou provado o seguinte:
IIFundamentação:
II. 1- Enumeração dos Factos Provados e Não Provados:
II.
1.1. - Factos Provados:
- Da acusação:
1. O arguido e a vítima CC, nascida em ... de ... de 1984, passaram a manter relacionamento amoroso de namoro em data não apurada de 1999, quando a vítima contava quinze anos.
2. Em data não apurada de 2000, a vítima e o arguido passaram a coabitar, como se casados fossem, assim se mantendo, com algumas intermitências, até ... de ... de 2019.
3. Arguido e vítima são progenitores comuns de DD, nascido em ... de ... de 2004, e II, nascida em ... de ... de 2016.
4. Em data não apurada, compreendida no período de namoro, na ..., em ..., o arguido abeirou-se da residência onde à data aquela coabitava com a respetiva mãe, chamando-a à rua, pedido a que a vítima anuiu.
5. Então, na via pública, movido por ciúmes, o arguido desferiu uma pancada com a mão aberta na cara da vítima, assim lhe causando dores.
6. Em data não apurada, no início da coabitação, arguido e vítima encontravam-se no domicílio comum, então sito no ..., em ....
7. Então, movido por motivos não concretamente apurados, o arguido muniu-se de um cabo de vassoura e desferiu várias pancadas na vítima, levando a que esta colocasse os braços à frente da respetiva cara, em postura defensiva.
8. Nesse contexto, o arguido desferiu pelo menos uma pancada com o pau de vassoura num dos pulsos da vítima, assim lhe causando dores e marcas visíveis nas zonas atingidas.
9. Nessas circunstâncias, findas as agressões, o arguido saiu de casa.
10. Ao longo de todo o período subsequente de coabitação e relacionamento amoroso, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, por vezes na presença do filho comum DD, o arguido atingiu a vítima com pancadas desferidas com as mãos abertas, assim lhe causando dores.
11. Nessas ocasiões, movido por ciúmes, o arguido não se coibia de apelidar a vítima de “PUTA, VACA”, e de lhe dizer que a mesma dava conversa a qualquer tipo de homem.
12. Por força de tal conduta do arguido, no período compreendido entre 16 de Agosto e ... de ... de 2010, a vítima CC e o filho DD estiveram acolhidos em casa-abrigo, tendo a coabitação entre os mesmos e AA sido retomada em data posterior não apurada de 2010.
13. Em data não apurada de 2018, quando a filha comum II contava já dois anos de idade, no domicílio comum, à data no ..., em ..., o arguido, movido por ciúmes, puxou a vítima pelo braço.
14. Acto contínuo, o arguido projetou a vítima para a rua, fechando a porta de casa, assim lhe dando a entender que estava na disposição de a ali deixar e de não lhe permitir o regresso.
15. Volvidos alguns instantes, a rogo da filha comum II, o arguido abriu a porta e permitiu que a vítima ali voltasse a entrar.
16. No dia ... de ... de 2019, cerca da 01H30, a vítima encontrava-se já recolhida. no domicílio comum, à data sito na …, em ....
17. Então, o arguido, que se encontrava em tal ocasião num estabelecimento de restauração em convívio com amigos, dirigiu-se via telefónica à vítima, apodando-a de “PUTA, VACA”, e dizendo que a mesma relatara a um terceiro que era alvo de agressões da parte do arguido.
18. A vítima negou tais relatos.
19. Passado algum tempo, em hora não concretamente apurada, o arguido abeirou-se do domicílio comum, e, via telefónica, ordenou à vítima que saísse à rua, ao que esta se negou, por recear o que o arguido lhe pudesse fazer.
20. Então, o arguido declarou à vítima que ou saía à rua, ou a iria buscar a casa.
21. Face a tal, a vítima foi ao encontro deste na via pública.
22. Então, o arguido desferiu várias pancadas com as mãos abertas e fechadas na vítima, atingindo-a por todo o corpo, causando-lhe de imediato sangramento nas zonas atingidas, mormente na cara.
23. Enquanto o arguido assim procedia, a vítima gritava por socorro, ao que aquele respondeu “ESCUSAS DE ESTAR A FALAR ALTO QUE NINGUÉM TE ACODE”.
24. Volvidos alguns instantes, acompanhada de dois vizinhos (KK e LL), a vítima encaminhou-se para o hospital, momento em que, de viva voz e com foros de seriedade, o arguido declarou à vítima “AI DE TI SE TU DERES PARTE DE MIM”, expressões de que a mesma ficou bem ciente.
25. Como consequência de tal conduta do arguido, ocorrida em ... de ... de 2019, a vítima demandou assistência hospitalar, sofrendo dores, e bem assim equimose peri-orbitária direita com 52 por 38 milímetros, equimose peri-orbitária esquerda com 48 por 34 milímetros, equimose na região frontal esquerda com 28 por 14 milímetros, equimose na região malar esquerda com 34 por 23 milímetros, equimose no hemi-tórax direito, estendendo-se do 8º ao 12º arco costal, com 158 por 86 milímetros, lesões que lhe fizeram demandar para cura vinte e um dias de doença.
26. Nesse mesmo dia, por recear o que mais o arguido lhe pudesse fazer, a vítima abandonou o domicílio comum, na companhia de seus filhos DD e II, permanecendo a viver em casa de familiares durante cerca de dois ou três meses.
27. Ao longo desse período, o arguido, via telefónica, declarou à vítima que, se ficasse sem os filhos, cortar-lhe-ia o pescoço, expressões de que a vítima ficou bem ciente.
28. Volvido tal período, a vítima e os filhos DD e II retomaram a coabitação com o arguido, assim se mantendo até de ... de ... de 2019.
29. Ao longo desse período, em várias ocasiões, de número não apurado, sempre que a vítima se recusava a manter trato sexual consigo, o arguido apelidava-a de “PUTA, VACA”, e dizia que a mesma devia ter amantes no respetivo trabalho.
30. No dia ... de ... de 2019, a vítima reuniu alguns amigos e familiares em jantar num estabelecimento de restauração, com vista a celebrar o seu aniversário.
31. Nessas circunstâncias, movido por ciúmes, o arguido agarrou a vítima pelo pescoço, apertando-lho.
32. Volvidas algumas horas, já em casa, no quarto de casal, e quando a vítima já se encontrava deitada, o arguido, movido por ciúmes, agarrou a vítima pelas orelhas, levantando-a assim da cama, enquanto a apelidava de “PUTA, VACA”.
33. Acto contínuo, o arguido desferiu várias pancadas com as mãos abertas na cara da vítima, e puxou-lhe os cabelos, assim lhe causando dores.
34. Alertado pelo ruído de tais pancadas, o filho comum DD compareceu então no quarto de arguido e vítima.
35. Nessas circunstâncias, de viva voz e com foros de seriedade, o arguido declarou ao filho menor DD “VAI-TE DEITAR JÁ SENÃO PARTO-TE ESSAS PERNINHAS TODAS”, expressão de que este ficou bem ciente.
36. Por recear o que mais o arguido lhe pudesse fazer, no dia ... de ... de 2019 a vítima abandonou o domicílio comum, na companhia de seus filhos DD e II, fixando-se em ..., assim cessando em definitivo a coabitação com o arguido.
37. Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar a vítima CC, inclusive no domicílio comum e na presença do filho menor comum DD, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua companheira e da de mãe de seus filhos.
38. Ao agir da forma descrita contra a vítima CC, bem sabia e não podia ignorar o arguido que assim procedia na presença de DD, filho menor de ambos, e com quem coabitava.
39. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Igualmente se provou que:
- Dos antecedentes criminais do arguido:
32. O arguido não tem antecedentes criminais.
- Das condições sócio-económicas do arguido resultantes do teor do relatório social:
40. À data da constituição do presente processo, o arguido AA e a vítima viviam em união de facto.
42. Em ... de ... de 2019, após cerca de vinte anos de coabitação, a vítima abandonou-a, até então, casa do casal, levando consigo os filhos comuns - DD e II, no presente com 19 e 8 anos de idade.
43. O relacionamento marital do arguido AA e a vítima foi pautado por separações, a primeira devido ao cumprimento de pena de prisão do arguido, de 2006 a 2009, e as seguintes devido ao abandono da morada de família, por parte da vítima, uma das vezes em 2010.
44. Nesse ano, a vítima ficou acolhida com o filho mais velho numa Casa Abrigo, em ..., sem existência de qualquer processo por violência doméstica.
45. Reconciliados, o casal voltou a coabitar, tendo nascido a filha mais nova do casal, em 2016.
46. Durante a coabitação, o arguido AA admite a ocorrência de conflitos esporádicos, com ofensas verbais de ambas as partes, aos quais se terão sobreposto a existência de sentimentos afetivos pelos filhos.
47. O arguido AA iniciou o relacionamento afetivo com a vítima, quando esta tinha 14 anos de idade.
48. Do contacto estabelecido com a progenitora do arguido, esta descreveu o filho como um homem bom, muito trabalhador, um filho muito carinhoso e meigo e muito bom pai.
49. Realçou a sua preocupação com a saúde mental do mesmo, que se encontra psicologicamente em baixo, temendo pela sua integridade física, sobretudo porque sofre com a ausência da filha mais nova, com quem fala diariamente ao telefone e com quem tem ligação forte.
50. A mãe do arguido partilhou a sua surpresa com a ida da nora e netos para ..., referindo não existirem indicadores que tal pudesse acontecer, já que pareciam um casal feliz, não obstante saber que a vítima tinha vários familiares naquele país.
51. Atualmente, o arguido encontra-se a residir sozinho na morada que consta dos autos, ex-residência da família.
52. Embora se trate de habitação arrendada, onde reside desde 2016, pertenceu à avó da vítima, passando depois para o casal, que fez diversas obras, de forma a ficar com melhores condições de habitabilidade.
53. O arguido AA tem uma filha de 17 anos, de relacionamento esporádico, acontecido durante período de afastamento da ex-companheira, com quem tem relação de proximidade.
54. Pese embora a condição económica dos pais de AA, de nível satisfatório, proprietários de um restaurante e de um talho, o processo de desenvolvimento deste decorreu num bairro paredes meias com o Bairro ..., um conjunto de casas abarracadas, com elevados níveis de criminalidade, que se constituiu como um modelo social desviante e uma referência negativa na vivência do arguido AA.
55. Alguma permissividade parental e a ligação a grupos de pares com condutas procriminais, levou-o ao seu primeiro contacto com a justiça, tendo cumprido pena de prisão de 2006 a 2009, pelo crime de tráfico de estupefacientes.
56. À data da constituição do presente processo, em 2019, o arguido AA tinha atividade laboral como vigilante da ..., tendo trabalhado na área da segurança durante três anos.
57. No passado, trabalhou essencialmente com os pais, no café e no talho.
58. Desde 2020, o arguido AA é motorista de TVDE, tendo constituído a sua própria empresa.
59. A trajetória escolar do arguido AA foi assinalada por algum insucesso, tendo concluído apenas o 9.º ano de escolaridade.
60. Passou a trabalhar depois nos estabelecimentos comerciais dos pais.
61. O arguido refere subsistir do rendimento proveniente da remuneração obtida como motorista TVDE, cerca de 900€ (novecentos euros), sendo os principais encargos a renda da casa, de 139€ (cento e trinta euros), a que acrescem as restantes despesas domésticas, que contabiliza em cerca de 100€ (cem euros).
62. O arguido AA conta com o apoio da progenitora, que confeciona as suas refeições e lhe dá ajuda quotidiana.
63. O arguido AA, no espaço de seis meses, deslocou-se a ... três vezes, para conviver com a filha, de 8 anos, referindo ter gasto cerca de 3.000€ (três mil euros) nas viagens, estadia (hotel onde fica com a filha), roupa, alimentação, etc.
64. O arguido mantém um quotidiano adaptado, isento de consumo de álcool ou drogas, ainda que psicologicamente se sinta fragilizado.
65. Referiu falta de motivação para ocupar os tempos livres de forma estruturada, por exemplo com a prática de desporto ou outras atividades recreativas.
66. Em termos de características pessoais, do que foi possível observar pela técnica da DGRSP, o arguido AA apresenta-se emocionalmente debilitado, referindo sofrer com o afastamento dos filhos e privação do convívio com os mesmos.
67. O arguido AA apresenta competências pessoais e sociais, características que lhe permitiram realizar mudanças positivas na sua vida, ajustando-se a normas e regras, sendo critico relativamente aos seus comportamentos criminais de outrora, que terão terminado há mais de dez anos.
68. O arguido, verbaliza sentimentos de angústia e preocupação relativamente às consequências do presente processo, sobretudo ao nível pessoal e profissional, já que uma condenação por violência doméstica inviabiliza a manutenção da sua atividade como ....
Do Pedido de Indemnização Civil:
Para além dos factos demonstrados sob 1. a 39. provou-se, ainda, que:
69. Devido às agressões de que foi vítima por parte do arguido, a ofendida CC, teve de receber assistência médica no Hospital de ..., EPE no dia ........2019, a qual importou a quantia de € 106,41.
Na sentença recorrida, relativamente aos factos não provados, o Tribunal a quo considerou o seguinte:
II. 1.2. - Factos Não Provados:
- Da acusação:
a. O arguido e a vítima passaram a manter relacionamento amoroso de namoro em data não apurada de 1998, quando a vítima contava catorze anos.
b. Os factos referidos em 2) ocorreram em data não apurada de 2001, quando a vítima contava cerca de dezassete anos.
c. Os factos referidos em 4) ocorreram quando a vítima contava entre catorze e dezassete anos.
d. Em data posterior não apurada, anterior ao estabelecimento da coabitação entre ambos, a vítima encontrava-se em casa de sua madrinha, em morada não apurada de ..., quando o arguido a chamou à rua, pedido a que a mesma anuiu.
e. Então, movido por ciúmes, o arguido desferiu uma pancada com a mão aberta na cara da vítima, e puxou-lhe os cabelos, assim lhe causando dores.
f. Nas circunstâncias referidas em 7) o arguido agiu por ciúmes, espoletados por momentos antes ter presenciado a vítima em diálogo na via pública com outro homem.
g. Após os factos referidos em 8) o arguido pediu desculpa à vítima, dizendo-lhe ainda que não suportava imaginá-la com outro homem.
h. Os factos referidos em 10) ocorreram, em alguns trechos, com frequência diária.
i. Nas circunstâncias referidas em 10) o arguido também desferia pontapés.
j. Nas circunstâncias referidas em 11) o arguido dizia à vítima que não conseguia imaginar a vítima a foder com outro homem.
k. Nas circunstâncias referidas em 13) o arguido puxou a vítima pelos cabelos.
l. O arguido agarrou a vítima por baixo dos braços e sacudiu-a, assim lhe causando dores.
m. Os factos referidos em 16) ocorreram pela 1h00.
n. Nas circunstâncias referidas em 17) o arguido apodou a vítima de ORDINÁRIA.
o. Nas circunstâncias referidas em 18) a vítima pediu ao arguido que não fizesse mal ao aludido terceiro, ao que o arguido retrucou que não faria mal ao dito indivíduo, antes sim faria mal à vítima, expressões de que esta ficou bem ciente.
p. Os factos referidos em 19) ocorreram pela pelas 02H desse dia.
q. Nas circunstâncias referidas em 20) o arguido assegurou à vítima que não lhe iria bater.
r. Nas circunstâncias referidas em 22) o arguido desferiu pontapés na vítima.
s. Não se logrou apurar a identidade dos vizinhos.
t. Nas circunstâncias referidas em 24) o arguido disse à vítima “OLHA TU VAIS AO HOSPITAL (...) QUANDO VIERES EU MATO-TE”
u. A vítima permaneceu a viver em casa de familiares durante cerca de um mês.
v. Os factos referidos em 27) ocorreram em várias ocasiões.
w. Nas circunstâncias referidas em 31) o arguido apodou a vítima de “ALUADA”.
x. Nas circunstâncias referidas em 32) o arguido disse à vítima que a mesma se interessara por um terceiro que estivera no dito restaurante, enquanto que para o arguido não tinha vontade.
y. Nas circunstâncias referidas em 35) o arguido disse ao filho menor AA “VAI-TE DEITAR ANTES QUE EU TE PARTA OS OSSINHOS TODOS”.
z. Em várias ocasiões posteriores de datas não apuradas, anteriores a ... de ... de 2020, via telefónica, o arguido apelidou a vítima CC de “PUTA DO CARALHO”.
aa) Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao expor o menor DD a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem o menor tinha profunda vinculação pessoal e afectiva, causava-lhe sofrimento e angústia, maltratando-o e turbando o processo de desenvolvimento da sua personalidade, e ainda assim não se coibiu de proceder da forma descrita, bem sabendo que o menor AA, atenta a sua tenra idade, não tinha qualquer possibilidade de oferecer resistência à actuação do arguido.
bb) Nesse contexto, não se coibiu o arguido de dirigir ao filho menor DD expressões que sabia idóneas e adequadas a causarem-lhe temor e inquietação.
Do Pedido de Indemnização Civil:
Inexistem factos não provados.
*
Consigna-se que não foram reconduzidas aos factos provados, nem aos não provados, as afirmações de cariz jurídico ou meramente conclusivo que integram a acusação, pedido de indemnização civil e a contestação (que remete para o RAI), nem as alegações estranhas ao objecto processual configurado e delimitado nos autos, nem as que consubstanciam factualidade supérflua e irrelevante face a esse objecto, por se revelarem improfícuas para a decisão, nem tão pouco foi levada à matéria dada como provada ou não provada a factualidade que se mostrava repetida.
*
O Tribunal a quo, fundamentou a sua decisão de facto, nos seguintes termos:
II. 2. - Fundamentação da Decisão de Facto:
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, faz-se segundo as regras da experiência e a livre convicção do Juiz, nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal. No entanto, não se confunde esta, de modo algum, com apreciação arbitrária de prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
É, pois, dentro dos pressupostos valorativos da obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica, que o julgador se deve colocar ao apreciar livremente a prova, reflectindo sobre os factos, utilizando a sua capacidade de raciocínio, a sua compreensão das coisas, o seu saber de experiência feito.
É a partir desses factores que se estabelece, realmente, uma tarefa (ainda que árdua) que se desempenha de acordo com o dever de prosseguir a verdade material.
Assim, em conformidade com o disposto no nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, é nosso dever, para além da enumeração dos factos provados e não provados e a indicação das provas que serviram para formar a nossa convicção, fazer uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão sobre esta matéria, impondo-se ao tribunal, sob pena de incorrer em nulidade (cfr. alínea a) do artigo 379º do Código de Processo Penal), o dever de explicar porque decidiu de um modo e não de outro.
Os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos que constituem o substrato racional que conduzem à formação da convicção do tribunal em determinado sentido e não noutro, devem ser revelados aos destinatários da decisão que são, não apenas os sujeitos processuais mas também a própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.
O Tribunal tem de esclarecer porque é que valorou de determinada forma e não de outra os diversos meios de prova carreados para a audiência de julgamento.
Uma vez que só assim se permite aos sujeitos processuais e ao Tribunal Superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe, inequivocamente, o artigo 410º do Código de Processo Penal.
Deve, assim, a decisão sobre a matéria de facto assegurar pelo conteúdo um respeito efectivo pelo Princípio da Legalidade, pela independência e imparcialidade dos juízes.
Será à luz deste exacto sentido e alcance da Lei, que o Tribunal procedeu à apreciação das provas constantes dos autos e examinadas em audiência, afinal, as únicas que podem valer para a formação da convicção do tribunal, nos precisos termos do nº 1 do artigo 355º do Código de Processo Penal.
Relativamente aos factos dados como provados fundou o Tribunal a sua convicção nos seguintes meios de prova:
Declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento
O arguido em sede de audiência de discussão e julgamento prestou, em suma, as seguintes declarações:
Na altura em que começou a namorar tinha 19 anos e a ofendida tinha menos 4 ou 5 anos.
Começaram a viver juntos quando tinha 20 ou 21 anos e deixaram de coabitar em ........2019, sendo que viviam em Fetais.
O facto 3 da acusação é verdadeiro.
Os factos de 4) a 11 são falsos, pois nunca praticou tais factos, sendo que nem sequer sabe quem é a madrinha da ofendida.
Nunca agrediu a ofendida, nem nunca o fez à frente do filho.
Ela chegou a assumir que tinha outros homens, pelo que lhe dizia “não te dás ao respeito; não me respeitas a mim, nem ao filho”.
Recorda-se de a ofendida ter ido para uma casa abrigo, porque “a senhora inventava que eu lhe batia”
Ela esteve na casa abrigo mais de um mês, depois ela volta primeiro para casa da mãe e, entretanto, falar e voltaram a morar juntos.
Estavam a discutir e a filha II ficou nervosa porque a ofendida estava a falara alto. Que a ofendida não se calou e disse-lhe “vais-te acalmar porque a menina está a ficar nervosa” e depois colocou a ofendida na rua para ela se acalmar. A II ficou mais nervosa ainda e aí abriu a porta e a ofendida entrou.
Nunca tocou na ofendida ao pé dos filhos.
(O arguido recusou-se a continuar a prestar declarações, apresentando uma postura agressiva e desrespeitadora para com o Tribunal).
Prova testemunhal:
Depoimento das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa:
- CC, ofendida nos presentes autos, relatou, em suma:
Foi companheira do arguido;
Está de relações cortadas com ele desde há 4 anos;
Começou a namorar com ele quando tinha 15 anos, talvez em 1999/2000;
No ano de 2000 foram morar juntos, só os dois, na Quinta ..., …;
Têm dois filhos, o DD e a II.
Quando ainda vivia em casa da sua avó (antes de ir morar junta com o arguido), ela e o arguido tinham-se chateado e quando veio à rua para falar com ele, o arguido deu-lhe uma chapada na cara (não foi com muita força); o arguido fez uma cena de ciúmes pois ele dizia que ela ia a casa da madrinha por causa de um rapaz;
Não se recorda de nenhuma situação ocorrida perto da casa da sua madrinha;
No início de morarem juntos, o arguido colocava os amigos em casa e fez uma cena de ciúmes porque ela estava de pijama, sendo que lhe disse que a culpa era dele porque punha os homens lá em casa, sendo que o arguido acabou por partir a Playstation e a si bateu-lhe: puxou‑lhe os cabelos e deu-lhe bofetadas na cara;
Uma outra vez discutiram (não se lembra o motivo) e o arguido estava a agredi-la, sendo que lhe fez frente e aí ele deu-lhe com o pau da vassoura, acertando-lhe no braço – pulso (até tinha um relógio colocado e fez hematoma); foi mais do que uma pancada, mas a mais forte foi a que lhe acertou no pulso.
Teve dores, pensou que tinha o pulso partido e ficou com marcas (por causa do relógio);
Começou aos gritos e o arguido assustou-se, porque ela tinha um alto e aí ele parou e saiu porta fora;
Não lhe pediu desculpa;
No período de coabitação ele agredia-a com bofetadas, puxava-lhe os cabelos (sentia dores, principalmente no couro cabeludo); não sebe se era todas as semanas; o filho assistia;
No decurso das discussões ele chamava-lhe puta, vaca, filha da puta, tens vários homens, és uma oferecida;
As discussões eram por causa dos ciúmes que ele tinha, pois ele dizia que ela andava com outros homens;
Foi para uma instituição (casa abrigo) quando o seu filho tinha cerca de 4 ou 5 anos (ano de 2009 ou 2010) e esteve lá cerca de 6 a 8 meses;
Quando sai da casa abrigo, foi para casa da sua mãe, mas depois fez as pazes com o arguido e voltou para casa (acha que em 2011);
Depois as coisas ficaram bem, mas passados uns meses as discussões começaram outra vez por causa dos ciúmes que ele tinha;
No ano de 2018, quando a II tinha 2 anos, estavam numa fase que não tinham dinheiro para nada e estavam a discutir porque ele não trabalhava; ele pôs a II ao colo, mas como a menina estava a ouvir a discussão começou a chorar, pelo que o arguido lhe agarrou num braço (parte de cima do pulso) e pô-la fora da porta e fechou a porta;
A II chorava e dizia para ele abrir a porta à mãe e ele acabou por abrir a porta;
Entrou em casa e disse para ele acabar com a discussão por causa da menina, e acabou por ir para o seu quarto;
No dia ........2019, cerca da 1h30 estava em casa, na Rua 4, n.º 9, em ... e o arguido tinha ido para ... com uns amigos beber uns “copos”;
Que ele começou a mandar-lhe mensagens a chama-la de puta e vaca, dizendo que ela não tinha que falar com ninguém que era agredida; que lhe disse “peço desculpa, não fiz nada de mal”;
Ele mandou mensagem para ela sair à rua para falarem, mas disse que não porque tinha medo que ele lhe batesse, ao que ele responde para ela sair, senão ia busca-la e ele não queria acordar os meninos; depois de tanta insistência saiu à rua e o arguido estava lá com um amigo chamado HH; o arguido deu-lhe duas chapadas, socos nas costas e puxou-a pelos cabelos (foi só com as mãos, não lhe tendo dado pontapés);
Ela só gritava, ao que o arguido lhe disse “escusas de gritar que ninguém te vem acudir”; sentia a cara muito quente, já havia sangue, mas não sabia de onde;
Quando o arguido a larga, ela vai para casa, o seu vizinho vem à janela e pergunta se quem lhe tinha feito isso, se tinha sido o AA, tendo a mesma respondido afirmativamente;
Entrou em casa a chorar e foi à casa de banho e viu sangue no nariz, os olhos inchados, hematoma na testa e a boca rebentada;
Quando entrou não tinha fechado a porta e a vizinha KK e o filho dela (LL) disseram para ela ir para o hospital e ela foi com eles, pois estes levaram-na;
Quando estava a sair para ir para o hospital, o arguido estava a voltar para casa e disse-lhe “ai de ti que vás dar parte de mim”;
Foi ao H... e foi lá assistida;
Nesse dia falou com a polícia lá;
A polícia acompanhou-a a casa para ir buscar as suas coisas, o que fez e acabou por ir para casa da sua irmã GG;
Ficou toda negra na zona da cara e das costas; teve dores; pôs pomadas; ficou cerca de um mês com as marcas, mas foi trabalhar no dia a seguir; tirou fotografias das marcas com que ficou tendo juntado as mesmas ao processo – as fotos foram tiradas em casa da irmã;
Enquanto esteve em casa da irmã o arguido ligou-lhe quando recebeu uma carta da CPCJ e disse que se ficasse sem os miúdos que lhe cortava o pescoço;
Esteve em casa da sua irmã cerca de 2 ou 3 meses e depois voltou para casa;
Depois de irem os dois à CPCJ, voltou para casa com os filhos;
O arguido prometeu-lhe que não lhe faria mal e para tentarem ter uma vida melhor; Frisou que quando ela não queria ter relações sexuais, ele dizia-lhe que ela já devia estar satisfeita porque já tinha arranjado fora e chamava-a de puta e de vaca;
No dia ... faz anos e fez a sua festa de aniversário no dia .....2019, no restaurante ..., tendo convidado familiares e amigos;
O arguido já foi contrariado para a festa porque no dia anterior não tinha havido relações sexuais;
No restaurante ela estava ao balcão a pedir bebidas com a sua sogra e o arguido disse-lhe qualquer coisa ao ouvido, agarrando-lhe na parte de lado do pescoço e apertando, sendo que a sua sogra até disse “hoje já vai haver confusão”;
Depois foram para casa e começou uma discussão no quarto por causa de ciúmes;
Estava deitada e ele agarrou-a pelas orelhas e pelos cabelos e abanava-a enquanto dizia “é assim que eles te fazem? Sua puta, sua vaca! É assim que gostas que eles te façam? Tu gostas que os homens te olhem, te comam com os olhos!”;
O arguido também lhe deu várias chapadas na cara;
Teve dores;
A II não acordou, mas o DD acordou e foi lá pedir para o pai parar, sendo que o arguido se virou para o filho e disse para ir para a cama senão batia-lhe; o filho com medo acabou por r para o quarto;
A sua sogra depois apareceu lá em casa porque o menino tinha mandado mensagem para a avó;
A sua sogra levou o menino porque ele estava com medo de estar lá em casa;
Nesse dia ficou em casa; não foi para o hospital;
Ficou com marcas: faltas de cabelo e orelhas negras;
Que ficou em casa sábado e domingo, mas na 2f de manhã ligou para a sua mãe a pedir para ela lhe comprar os bilhetes para a camioneta;
Havia bilhetes para o dia ... às 9h, pelo que nesse dia chamou um táxi e foi embora de casa com os filhos;
Deixou uma carta escrita a dizer que não aguentava mais e que ia embora com os filhos;
Desde esse dia ... nunca mais falou com ele ao telemóvel;
Frisou que gostava muito do arguido e que pensava que ia ficar com ele para sempre, mas não tinha paz e não era feliz;
Teve medo do arguido e ainda tem medo que ele lhe faça mal;
Sentiu-se magoada com tudo por que passou e ficou com baixa auto-estima enquanto mãe e mulher;
Estava sempre nervosa e muito magra;
Sempre tentou ao máximo proteger os seus filhos, mas o seu filho assistia sempre a tudo;
Actualmente está em ... e consegue ter paz;
O arguido vai a ... ver a filha, mas nunca se encontra com ele;
Confrontada com as fotografias de fls. 117 a 120, confirma que aquele foi o estado em que ficou após ter sido agredida pelo arguido;
Depois de estar em ..., nas videochamadas que o arguido fazia para os filhos ele dizia que ela lhe tinha raptado os filhos e que “a puta da tua mãe vai pagar”; ele também dizia isto nas mensagens que enviava para o filho;
As pessoas tinham medo do arguido;
- DD ofendido nos presentes autos, relatou, em suma:
É filho do arguido;
Está de relações cortadas com o pai já vai fazer dois anos;
Tem duas irmãs, a II com 7 anos e a NN com 17 anos (esta é irmã só da parte do pai);
Enquanto viveu com o pai e com a mãe residiam no Bairro ..., em ...;
A relação entre os pais tinha altos e baixos, mas era uma relação instável e violenta;
Ouviu o seu pai a injuriar a sua mãe, apodando-a de puta, vaca, filha da puta, és uma grande merda;
Ouviu o pai a ameaçar a sua mãe, dizendo: aperto-te esse pescoço todo;
Viu o pai agredir a mãe, desferindo chapadas, socos, pontapés, atirava-lhe objectos;
Antes de ir para ... com a mãe, tinham uma frequência de mais do que uma vez por semana;
Entre os seus 5 e 6 anos também acontecia com muita frequência;
Entre os seus 8 e 10 anos não assistiu a nada;
A partir dos seus 10 anos até aos seus 15 anos nunca mais parou, sendo que dependia muito de quando o seu pai bebia;
Saiu de casa com a sua mãe por duas vezes: 1.º foi para uma casa abrigo mais a mãe, teria 5 ou 6 anos e da 2.º vez foi para casa da tia materna;
Numa ocasião, cerca das 21h/22h estava no quarto com a sua irmã II e ouviram o pai a discutir com a mãe;
Os pais vieram para o corredor e continuaram a discutir;
Ele mais a irmã saiu do quarto e vieram para o corredor;
Viu o pai a pegar na mão da sua mãe e a pôr esta fora da porta de casa e após fechou a porta, ficando a mãe fora de casa;
A irmã na altura tinha dois anos e chorava, sendo que ele também chorava.
Como a irmã estava a chorar muito, cerca de 30 segundos depois o pai abriu a porta à mãe e esta voltou para casa;
Quanto à situação de ... de ... de 2019 referiu que estava a dormir e que acordou porque ouviu a sua mãe a chorar, mas não foi ter com ela porque ela acabou por sair de casa;
Que já de madrugada, quando a sua mãe voltou para casa, viu-a toda desfigurada, toda negra nos olhos, orelhas, bochechas, costas (com sangue pisado já);
A mãe estava a chorar, triste e frustrada;
Foi a vizinha que a levou ao hospital;
A mãe voltou do hospital com a polícia e os agentes ficaram à porta à espera que recolhessem as coisas para saírem de casa;
Depois foram para casa da tia GG (ele, mãe e irmã II);
As marcas que a mãe tinha ainda demoraram algumas semanas a desaparecer e ficar normal;
Estiveram cerca de 2 meses em casa da tia e depois voltaram para casa;
A única conversa telefónica que ouviu entre o pai e a mãe nesse período em que esteve em casa da tia, foi o pai a pedir à mãe para se reconciliarem;
Quando voltaram para casa o seu pai sonhava que a mãe tinha outro homem e mal acordava começava a discutir;
O pai gritava com a mãe a dizer que ela o tinha traído;
No dia 30 ou ... de ... de 2019 o jantar de aniversário da sua mãe foi no restaurante 7.ª arte;
No final do jantar o seu pai já estava bêbado e viu que o pai falou qualquer coisa no ouvido da mãe com uma cara estranha, mas não ouviu o que ele disse;
Não viu o pai a agarrar a mãe por nenhuma parte do corpo;
Depois do jantar foram para casa, sendo que ele e a mãe foram para casa e o pai ficou na rua;
Em casa acabou por adormecer e quando acordou a meio da noite ouviu sons de estalos e ouviu o pai dizer à mãe que ela o tinha traído e chamou-a de puta;
Levantou-se e foi ao quarto deles e disse para pararem pois já eram muitos anos nisto já estava cansado, sendo que o pai tinha um copo de licor beirão na mão e pousou-o e respondeu
“vai-te deitar já senão parto-te essas perninhas todas; pensas que por teres 15 anos não te parto todo?”;
Que ficou com medo e foi-se deitar e mandou uma mensagem à sua avó a pedir para ela o ir buscar;
Esta foi a única situação em que o pai foi agressivo consigo;
O pai não o agrediu fisicamente;
A avó chegou cerca de 20 ou 30 minutos depois e foi com ela, sendo que a mãe e a II ficaram lá em casa;
Voltou para casa no dia seguinte porque a mãe o foi buscar;
No dia ... de ... de 2019 chegaram a ...;
Desde que foi para ... fez uma videochamada com o pai, mas depois cortaram contacto;
Confrontado com as mensagens juntas aos autos a fls. 121, confirmou que trocou essas mensagens com o pai;
Cortou relações com o pai por medo;
Sentiu-se magoado, frustrado, angustiado em relação a si;
Em relação à mãe sentiu dó dela e frustrado por ver o que acontecia;
Confrontado com as fotografias de fls. 117 a 120, confirma que aquele foi o estado em que viu a sua mãe no dia ..., sendo que tirou as fotos na sala de estar da sua tia;
- FF, agente da PSP, relatou, em suma:
No dia ........2019 foi chamado pelo serviço hospitalar do ...;
Dirigiram-se ao ... e a vítima ainda estava a receber tratamento;
Quando chegaram à fala com a vítima, a mesma relatou o que se havia passado, pois havia sido agredida pelo companheiro;
Não se recorda se viu a vítima com alguma contusão;
A vítima estava chorosa e manifestou receio de voltar para casa com medo de ser agredida;
A vítima disse que iria pernoitar na casa de uma amiga;
- OO agente da PSP, relatou, em suma:
Foram chamados ao ... devido a uma situação de violência doméstica.
Era o condutor do veículo da PSP, pelo que conduziu o seu colega ao hospital;
Não chegou à fala com a vítima.
- PP, relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Primo direito do arguido
Ia a casa do arguido e da ofendida cerca de 2 vezes por semana e também costumava sair com o casal, sendo que teve vários jantares com eles
Esteve no jantar de aniversário da CC e não viu ou ouviu nada
Nunca viu marcas de agressões na CC
Não sabe quando a CC faz anos
Não sabe a morada da casa do arguido e da ofendida
- QQ, relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Tia do arguido
Frequentou a casa deles
Nunca viu a CC com marcas de agressões
Nunca viu a CC triste
Via sempre o arguido e a CC felizes
A CC trabalhava a dias
Se houve guerras em casa, não sabe
O arguido sempre apoiou o filho
- BB, relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Mãe do arguido
Convivia com o casal
Ao domingo havia sempre almoço de família
O arguido e a ofendida estiveram juntos cerca de 20 anos, sendo que a relação teve altos e baixos.
Nunca viu a CC com sinais de agressão
Nunca tiveram nenhuma discussão à sua frente
Nunca teve problemas com a orientação sexual do neto.
Foi a um jantar de anos da CC e o jantar correu muito bem
Nessa noite o seu neto ligou para ela e disse “vem-me buscar que estes dois estão a discutir”. Foi lá a casa, entrou e o arguido e a ofendida estavam sentados na cama. Trouxe o menino consigo. Não viu a CC a chorar
No dia a seguir a CC foi buscar o filho e não vi marcas
Nos dias a seguir eles foram comer a sua casa
Há uns anos atrás a CC foi para uma instituição qualquer, pois acha que eles se desentenderam.
Os seus netos (filhos do arguido e da ofendida) têm 7 (II) e 19 anos (DD), tem outra neta com 17 anos, filha só do arguido.
Não tem conhecimento de outra separação do casal
A CC e o neto nunca se queixaram de nada a si.
- RR relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Irmã do arguido
Às vezes aos fins-de semana o meu irmão e a CC iam jantar a casa dos meus pais e ela estava lá com eles.
Às vezes também ia a casa do irmão e da CC
Acha que eles nunca tiveram separados
Houve um período que esteve mais afastada
Não esteve no jantar de aniversário
Desde que a CC e os meninos foram embora nunca mais falou com ela, nem com o sobrinho, sendo que apenas falou com a II.
- SS relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Primo do arguido
Convivia com o casal diariamente
Frequentava a casa deles e ia lá jantar ás vezes
Nunca viu a CC com sinais de agressões
Eles eram um casal normal
Há 3 ou 4 anos atrás foi a um jantar de aniversário da CC e o casal esteve sempre ao seu lado e ela estava normal, feliz. Depois deste jantar nunca mais viu a CC
O arguido não era ciumento
Nunca mais teve contacto com os meninos
A irmã do AA esteve no jantar de aniversário
- TT relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Amigo do arguido há mais de 10 anos
Só conhece a CC e os filhos de vista
Trabalha num bar e o casal costuma lá ir 2 ou 3 vezes por mês
Parecia-lhe um casal normal
Nunca conviveu com eles como casal
- HH relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Amigo do arguido desde que nasceu
Frequentava a casa do casal
Esteve num jantar no ... com o arguido e com outro amigo, sendo que o UU foi lá ter, cumprimentou-os e sentou-se na mesa ao lado; nunca viu o arguido mandar mensagens ao UU
Nesse dia o arguido deixou-me em ... e foi para sua casa na ...
Nunca viu nada entre o arguido e a ofendida
Esteve no jantar de aniversário da CC e não viu nada entre eles
- EE relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Amigo do arguido desde criança
No dia ... à noite, ele dormia em casa dos pais no sótão e aquilo tem um pátio e ouviu alguém a chorar. Estava a dormir e acordou com o choro; vai à janela e vê que era a CC que estava a chorar
A sua mãe também deu conta e vieram os dois cá fora e a CC estava sentada no pátio e pediu-lhe para a levar ao hospital.
Foi buscar o carro e levaram a CC ao hospital
No dia seguinte não viu a CC
Não perguntou nada ao arguido porque é a vida pessoal das pessoas e não tem que se meter
No carro ela não ia a chorar
- VV relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Amigo do arguido há 15 anos
Chegou a fazer as obras na casa onde eles moravam
Nunca assistiu a nada
Nunca viu nada entre eles
Pareciam um casal normal
Em Março de 2018 foi para a ...
Começou a lidar mais com o casal tinha o miúdo 4 ou 5 anos
- GG relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Amiga do arguido há 12 anos
Em Março de 2018 foi para a ...
Dava-se com o casal
Nos finais de 2019 ainda fez uma saída com o casal (jantar em casa deles)
O AA não era uma criança que se abrisse muito
- GG relatou, em suma:
Testemunha arrolada pelo arguido
Irmã da ofendida
Foi confrontada com os documentos que têm mensagens (juntos com o RAI) e disse não se recordar, mas foi com o arguido que trocou estas mensagens
Foi ela que pôs a sua irmã na instituição APAV porque ela sofria de violência doméstica. Foi ela que ajudou a sua irmã a ir para ...
Recorda-se de estar com a sua irmã à porta da sua casa no Bairro ..., em ... e o arguido chegou, saiu e começou a bater na CC (estalos na cara), sendo que empurrou-o contra o carro e ele depois foi embora (isto foi antes do sobrinho nascer, em 2002/2003).
Em 2004 eles foram morar para casa da sua mãe, sendo que também lá morava.
Que uma vez eles estavam no quarto e ouvia a sua irmã gritar “pára, pára” e ouvia barulhos de estalos; que foi à cozinha buscar uma faca e ameaçou-o, sendo que o arguido ainda foi atrás de si, mas trancou-se;
Em 2009/2010 recorda-se de ter visto o arguido a levar a CC de rastos para casa (Agarrou-a num braço e levou-a à força), sendo que depois o arguido lhe mandou uma mensagem a dizer se ela tivesse a sorte de chamar a polícia, que lhe ia tratar dos seus problemas de saúde.
O arguido mandava mensagens à CC a dizer “vou-te matar, vou acabar contigo”.
No dia em que foi buscar a irmã para a levar à polícia, 10 minutos antes o arguido manda uma mensagem à CC a dizer “eu vou-te regar toda com óleo e vou-te matar”; depois a CC foi para uma instituição; depois saiu da instituição e foi para ... para sua casa, mas a seguir voltou para o arguido
Esteve no jantar no 7.ª arte em ... e viu uma troca de olhares entre o arguido e a CC e ele sempre muito nervoso
Sempre que o arguido bebia, era complicado
Como pai não tem nada a apontar ao arguido
Chegou a ver a irmã com as orelhas negras atrás.
Também viu a irmã com marcas nas costas (zona das costelas), cara inchada, olhos vermelhos e depois foi descendo e ficando negro; ela foi ao hospital; punha a pomada na sua irmã
Confrontada com as fotografias de fls. 117 confirma que foi aquele o estado em que viu a sua irmã.
Viu a sua irmã muito abalada, apática, não falava, chorava muito (passava o dia a chorar).
Prova Pericial: nomeadamente relatório de fls. 34.
Prova documental: nomeadamente:
• auto de notícia de fls. 2-8;
• documentação clínica de fls. 36;
• requerimento de fls. 70-76;
• cópias de decisões judiciais francesas de fls. 109-115, 221-230;
• declaração de fls. 116;
• fotogramas de fls. 117-131;
• cópias extraídas do processo judicial id. fls. 173-176, 181-187;
• assentos de nascimento de fls. 177-178, 179;
• Documentos de fls. 371 a 374;
• relatório social junto aos autos
• certificado de Registo Criminal junto aos autos;
Mediante o recurso ás regras de experiência comum.
Para alcançar a convicção plasmada na matéria de facto acima elencada, o Tribunal conjugou todos estes meios de prova em concreto, relativamente aos factos integrantes dos ilícitos objecto da acusação.
Vejamos, pois, de forma mais detalhada a convicção do Tribunal quanto à factualidade dada como provada:
Quanto ao facto provado em 3) valorou o Tribunal o teor dos assentos de nascimento de fls. 177-178, 179, que comprovam a referida factualidade.
Quanto à demais factualidade, relativa ao início do relacionamento, período de namoro, momento em que passaram a coabitar, o período de coabitação, separações, e toda a envolvência do relacionamento entre o arguido e a ofendida, valorou o Tribunal o depoimento da ofendida CC, em conjugação com os depoimentos das testemunhas DD, FF, OO e GG e com o teor da prova pericial e documental junta aos autos, mormente: relatório de fls. 34, auto de notícia de fls. 2-8, documentação clínica de fls. 36, requerimento de fls. 70-76, cópias de decisões judiciais francesas de fls. 109-115, 221­230, declaração de fls. 116, fotogramas de fls. 117-131, cópias extraídas do processo judicial id. fls. 173-176, 181-187; e ainda mediante o recurso ás regras de experiência comum.
Senão vejamos:
Atenta a conjugação e valoração, na sua globalidade, dos elementos probatórios referidos, a versão apresentada pelos ofendidos mereceu a total credibilidade deste Tribunal.
Na verdade, basta proceder a uma audição atenta dos depoimentos dos ofendidos para perceber a forma sincera, genuína, coincidente, clara e coerente com que prestaram tais depoimentos, logrando convencer o Tribunal da veracidade do que relataram.
Em todas as situações de que se recordavam (sendo que em relação à ofendida CC, recordava-se de todas as situações e com pormenor), os ofendidos apresentaram um relato que se afigurou genuíno, sincero, credível e coerente, não se tendo denotado no seu discurso qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido.
Pelo contrário, a postura dos ofendidos foi de evidente naturalidade e humildade, procurando explicar em juízo as circunstâncias da actuação do arguido.
Em momento algum os ofendidos entraram em contradição, apresentando depoimentos extremamente isentos e credíveis.
Ademais, sempre se dirá que o depoimento dos dois ofendidos se complementou entre si, pela que nada conseguiu abalar a sua credibilidade.
A ofendida CC chegou a emocionar-se ao longo do seu depoimento, quando teve que relembrar todas as provações que passou com o arguido.
Ora, estas declarações (emocionadas) da ofendida, traduzem aquele que é, à luz daquelas que são as regras da experiência comum neste específico contexto, o comportamento típico de uma vítima de violência doméstica, dividida entre os sentimentos de medo, esperança e amor. Medo, em virtude da violência de que é alvo; esperança, porque acredita nos pedidos de desculpa e nas promessas de mudança que têm lugar depois da violência; amor, porque apesar da violência, terão existido, momentos positivos ao longo do relacionamento (note-se que o arguido e a ofendida tiveram dois filhos em comum, pelo que terá sido um momento de felicidade entre ambos).
Ademais, sempre se dirá que as declarações da ofendida foram corroboradas por algumas das testemunhas inquiridas, mormente a testemunha DD e GG.
Note-se que a testemunha DD, filho do arguido e da ofendida, ouviu o pai a injuriar a mãe (apodando-a de puta, vaca, filha da puta, és uma grande merda), bem como a ameaça-la (aperto-te esse pescoço todo) e a agredi-la (chapadas, socos pontapés e atirava-lhe objectos). Soube precisar a situação em que viu o pai a colocar a mãe na rua; recordou-se de forma muito clara da situação ocorrida em ... de ... de 2019, em que acordou com a sua mãe a chorar e depois já de madrugada, depois de ela ter vindo do hospital, viu-a toda desfigurada, toda negra nos olhos, orelhas, bochechas, costas, com sangue pisado. Igualmente se recordou com estreito rigor a situação ocorrida após o jantar de aniversário da mãe, já em casa, em que acordou e ouviu sons de estalos, ouviu o pai a dizer à mãe que esta o tinha traído e apodou-a de puta. Que nesse dia foi ao quarto dos pais e pediu para o pai parar porque “já eram muitos anos nisto e já estava cansado”, mas o pai ameaçou-o que lhe partia as pernas caso não se fosse deitar já, o que fez por medo.
Note-se que esta testemunha numa troca de mensagens com o seu pai (quando o filho já estava em ...) referiu o seguinte “Eu te bater? Eu não sou como tu, só estava saturado porque tenho 15 anos e esses 15 anos da minha vida assisti a minha mãe a levar porrada” (fls. 122); “HAHAHAHA bom pai e marido? Se bater na mulher, ser extremamente agressivo na tua cabeça é ser bom pai e marido, acho que não tens quaisquer prioridades na tua cabeça” (fls. 129). Ora, aqui é bem evidente a revolta da testemunha que passou toda a sua vida a ver a mãe a ser agredida pelo próprio pai, sendo muito provavelmente por esse motivo que actualmente o filho nem sequer fala com o pai.
Já a testemunha GG, irmã da ofendida, igualmente assistiu ao arguido a agredir a ofendida (estalos na cara, empurra-la contra o carro; agarrava-a pelo braço e arrastava-a à força), ouviu o arguido a ameaçar a ofendida (“vou-te matar, vou acabar contigo”; “eu vou-te regar toda com óleo e vou-te matar”), bem como viu o corpo da sua irmã com marcas (oorelhas negras atrás, marcas nas costas (zona das costelas), cara inchada, olhos vermelhos e depois foi descendo e ficando negro). Confirmou ter visto a irmã com as lesões constantes das fotografias de fls. 117 e ss, sendo que a irmã depois de ter sido agredida pelo arguido ficou com aquelas marcas e foi viver para sua casa, sendo que viu a irmã muito abalada, apática, não falava, chorava muito (passava o dia a chorar). Mais explicou que foi ela que pôs a sua irmã na instituição APAV porque ela sofria de violência doméstica, bem como foi ela que ajudou a sua irmã a fugir para ....
Assim, parece evidente que as agressões, injúrias e ameaças relatadas pela ofendida, acabaram por ser confirmadas pelo depoimento destas duas testemunhas.
Mais se adiante que a maior parte dos factos ocorreram no interior da residência comum do casal, pelo que apenas os dois estavam no interior da casa. Assim, o Tribunal teria de analisar a versão dos factos apresentada pelo arguido (que negou apenas alguns factos de agressões, e depois recusou-se a prestar mais declarações) e pela ofendida e verificar aquela que se nos afigura mais credível e, sem margem para qualquer dúvida, a versão da ofendida foi aquela que mais convenceu o Tribunal, tal não foi a sinceridade e isenção do seu depoimento, que acabou por ser corroborado em alguns pontos pelo depoimento das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento. Tudo isto demonstra bem, que a versão dos factos relatada pela ofendida é verdadeira, porquanto mereceu a total credibilidade do Tribunal.
Também a sua assistência médica no ..., em ..., no dia ........2019, encontra-se confirmada pela documentação médica junta aos autos a fls. 35 e 36, sendo que este Tribunal não pode deixar de fazer menção que a fls. 35 consta expressamente que a ofendida “recorre ao SU aós quadro de agressão no contexto de violência doméstica há cerca de 3 h (...) Segundo a mesma trata-se de uma situação frequente, com início há 10 anos, já tendo permanecido em instituição de apoio à vítima (...)”; bem como consta de forma expressa que a ofendida, no hospital, apresentava “Face: equimoses na região periórbitária bilateralmente mas mais exuberantes à direita, com extensão à região auricular e retroauricular direita. Hematoma com cerca de 5 cm de maior eixo na região supraciliar direita que condiciona ptose palpebral homolateral. Doloroso à apalpação (...) Equimose na região infra escapular esquerda (...)”.
Ora, as lesões que a arguida apresentava quando foi assistida no Hospital são compatíveis com o relato efectuado pela ofendida relativamente ás agressões que disse ter sido vítima, aquando do seu depoimento em julgamento.
Ademais, mais se saliente que o depoimento da ofendida, quanto à situação ocorrida em ........2019, encontra igualmente suporte nas fotografias juntas aos autos a fls. 117 a 120, de onde ressalta as lesões que a mesma sofreu na sequência da agressão de que foi vítima por parte do arguido. Note-se que tanto a testemunha DD, como a testemunha GG, foram peremptórios em referir que viram a ofendida com estas lesões, tendo ambos confirmado, quando confrontados com as fotografias de fls. 117 a 120, que foram aquelas as marcas que viram na ofendida.
Já quanto ás lesões que a ofendida sofreu na sequência das agressões de que foi vítima por banda do arguido, mais valorou o Tribunal o teor do exame médico junto aos autos a fls. 34.
Quanto às declarações prestadas pelo arguido, importa referir também que, para além do que acima já se deixou dito a propósito da valoração dos depoimentos dos ofendidos, não merece credibilidade a tese de que os factos foram inventados pelos próprios ofendidos (pois se o arguido os nega, apenas poderiam resultar de invenção dos ofendidos). Note-se que caso a ofendida não tivesse ido ao Hospital, talvez nem sequer o presente processo se tivesse iniciado, uma vez que é o próprio hospital que desencadeia a chamada da PSP em situação de agressões em caso de violência doméstica. Assim, parece evidente que a ofendida andou anos e anos a esconder tudo aquilo por que passava, sempre na esperança que o arguido mudasse o seu comportamento (a típica acção da vítima de violência doméstica).
Todo o discurso do arguido foi de desresponsabilização, nunca assumindo os factos graves que praticou, nem demonstrou qualquer arrependimento. Muito pelo contrário, visto que falou de forma desprovida de sentimentos e sem qualquer empatia pela vítima, tentando responsabilizar a mesma por não ver os filhos. Foi evidente a forma como o arguido apenas estava preocupado com o facto de a ofendida ter fugido com os filhos para ..., sendo que nunca mostrou qualquer sentimento de arrependimento por todo o mal que fez à sua companheira e mãe dos seus filhos durante anos a fio.
Foi patente a ausência de interiorização do mal cometido e de arrependimento pelos factos praticados e pelas consequências daí decorrentes. Com efeito, ao longo das sessões de julgamento, o arguido nunca assumiu a prática dos factos, demonstrando bem a completa falta de juízo crítico sobre os actos graves que praticou. Aliás, a postura do arguido em julgamento é bem reveladora da sua personalidade e carácter, sem qualquer respeito pelo Tribunal, gritando, esbracejando, proferindo expressões inconvenientes contra o próprio funcionamento dos tribunais, pondo em causa o decorrer dos trabalhos, tendo havido necessidade de colocar o arguido no exterior da sala (mais do que uma vez conforme se pode atestar das actas e gravações das sessões da audiência de discussão e julgamento), onde continuou a gritar sem qualquer respeito pelo Tribunal e pelos seus utentes.
E não se venha alegar que “o facto de o arguido estar afastado dos seus filhos o faz estar revoltado e por isso a postura dele em audiência”. Na verdade, o arguido não estava no Tribunal de Família e Menores, sendo que aí é poderia mostrar o seu desagrado por qualquer decisão com a qual não concordasse em relação aos seus filhos. Ademais, sempre se diga, que a forma como o arguido se comportou em audiência é completamente reprovável e sem qualquer possibilidade de justificação, uma vez que caso o arguido não concorde com decisões do Tribunal, deverá recorrer dessas decisões e não gritar, esbracejar, ser agressivo e dizer expressões inadequadas e impróprias.
O comportamento do arguido é bem demonstrativo que lida muito mal com a autoridade e com a contrariedade, não conseguindo obedecer a ordens que lhe são dirigidas, sendo que tudo tem que ser do modo que pretende, e quando tudo foge do seu controlo, reage mal, de forma agressiva e imprópria.
Quando o comportamento do arguido foi este numa sala de audiências, como seria entre quatro paredes com a ofendida. Claramente como a ofendida nos relatou.
Mais se acrescente que as declarações do arguido também não foram confirmadas por nenhuma das testemunhas por si arroladas.
Diga-se, desde já, que a maior parte das testemunhas arroladas são família do arguido, sendo que apresentaram depoimentos extremamente parciais, talvez pela ligação familiar que os une, o que não deixa de ser compreensível.
Na verdade, as testemunhas arroladas pelo arguido não assistiram aos factos, pelo que pouco ou nada adiantaram quanto aos factos. Ainda assim, o pouco que relataram ao Tribunal não teve qualquer rigor, sendo que o Tribunal considerou os seus depoimentos parciais, pelo que em nada foram valorados pelo Tribunal.
Note-se que a mãe do arguido quase quis fazer crer o Tribunal que a relação do arguido com a ofendida era um verdadeiro mar de rosas, que era um casal feliz. É certo que a mãe iria sempre defender o filho, mas daí a dizer que o arguido e a ofendida eram um casal muito feliz vai uma grande distância. Note-se que a ofendida chegou a estar numa instituição da APAV com os filhos porque era vítima de violência doméstica; saiu de casa uma outra vez com a face toda negra e cheia de marcas no corpo, porque tinha sido agredida pelo arguido e foi para casa da irmã (........2019); o arguido teve uma filha fora do casamento (retratando assim que o arguido traiu a ofendida com outra mulher; note-se que o filho DD tem 19 anos, a II tem 7 anos, mas o arguido tem uma filha com 17 anos e que não é filha da ofendida); a ofendida viu-se obrigada a fugir para ... tal não era o medo e receio que tinha do arguido; era injuriada, ameaçada e agredida pelo arguido...onde está aqui o casal feliz? Como é evidente, não existia!
Mais se saliente que o facto de as testemunhas arroladas pelo arguido (à excepção da testemunha GG) não terem visto a ofendida com marcas no corpo, não quer dizer que a ofendida não tenha sido agredida pelo arguido. A verdade, é que o momento em que a ofendida ficou com marcas extremamente visíveis acabou por ir para casa da irmã e por isso não conviveu com as pessoas próximas do arguido, motivo pelo qual as mesmas não tenham visto quaisquer marcas.
Ademais, sempre se diga, que resulta das regras de experiência comum, que as vítimas de violência doméstica tentam ao máximo disfarças as marcas da agressão e dizem sempre que foi quedas, ou qualquer outra coisa, mas nunca que foi o marido/companheiro que as agrediu.
Assim, o depoimento destas testemunhas (testemunhas arroladas pelo arguido, à excepção da testemunha GG), por demasiado parcial, não logrou convencer o Tribunal, sendo ainda certo que as testemunhas também não assistiram a quaisquer factos.
Por fim, não pode este Tribunal deixar de fazer uma breve referência a algo que foi abordado em sede de audiência de discussão e julgamento. A defesa tentou fazer crer o Tribunal que o arguido sempre apoiou a orientação sexual do filho. Contudo, também neste ponto, o Tribunal não ficou convicto de tal, uma vez que como resulta do teor das mensagens juntas aos autos com o RAI, o arguido nessa troca de mensagens a dado passo diz o seguinte “Fds esse miúdo quer a mãe? Msm pra ser essa bixa k sempre sonhou E nunca o permiti.” (fls. 387). Ora esta mensagem é de um teor claramente homofóbico, pelo que não crê este Tribunal que o arguido apoiasse a homossexualidade do seu filho.
Assim, valorando e ponderando em conjunto tudo o que fica dito à luz das regras da experiência comum, é a versão apresentada pelos ofendidos, corroborada pela prova acima indicada, que ganha maior consistência e credibilidade face às declarações do arguido, não existindo quaisquer elementos probatórios que abalem a sua sustentabilidade, motivo pelo qual o Tribunal teria de dar os factos de 1. a 39. como provados.
Cumpre, ainda, salientar que os factos provados de 37. a 39. (facto atinente ao dolo), porquanto insusceptível de prova directa, decorre dos factos objectivos provados, o que, considerando as regras da experiência comum e através de presunções naturais, permite de forma segura inferir tais conclusões.
Na verdade, é do conhecimento geral que as condutas adoptadas pelo arguido, que constituem ilícitos com uma carga axiológica intrínseca, é punida por lei, sendo certo que com as notícias que têm existido nos últimos anos quanto ao crime de violência doméstica, qualquer pessoa sabe que agredir física e psicologicamente uma companheira é crime. Pelo que dúvidas não restam que o arguido bem sabia que estava a actuar contrariamente à lei.
Com relação à ausência de antecedentes criminais do arguido provado em 40., fundou-se a mesma na ponderação do seu Certificado do Registo Criminal junto aos autos.
No que concerne à prova da situação pessoal, familiar, social e condições de vida do arguido, enumeradas de 41. a 68., foi valorado o teor do relatório social que se mostra juntos aos autos.
Já quanto ao facto provado em 69., relativo ao pedido de indemnização civil, valorou o Tribunal o teor dos documentos juntos aos autos a fls. 371 a 374, em conjugação com o depoimento da ofendida CC, que confirmou que recebeu assistência médica no ....
No que concerne aos factos não provados (factos a. a bb.) da acusação pública, o Tribunal fundou a sua decisão na ausência de prova acerca dos mesmos, não tendo sido relatada nos seus precisos termos por nenhuma das testemunhas ouvidas em julgamento, nem pelo arguido aquando das suas declarações, motivo pelo qual o Tribunal teria necessariamente que dar tais factos como não provados.
*
Analisando
Questão prévia
O arguido e demandado AA, foi condenado nos presentes autos, nos termos do artigo 12º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar à ofendida CC, a título de indemnização pelos danos morais, a quantia de € 1.000,00 (mil euros), fixada oficiosamente pelo Tribunal de 1ª instância, acrescida de juros de mora vencidos desde a presente data e vincendos até integral pagamento.
Foi igualmente julgado procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Hospital e, em consequência, condenado o arguido AA a pagar ao demandante «HOSPITAL DE ..., EPE» o montante de € 106,41 (cento e seis euros e quarenta e um cêntimo), correspondente ao total indemnizatório devido a título de danos patrimoniais por si originados na esfera jurídica do demandante Hospital, a que acresce juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação para contestação do pedido cível até integral pagamento.
O arguido/demandado apenas se veio insurgir no seu recurso, quanto à condenação no pagamento de €1.000,00 (mil euros) à vítima, a título de indemnização civil, definida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12º, nº 2 da Lei 112/2009, de 16 de setembro, e no artigo 82º - A do CPP.
Alega para o efeito que face à factualidade dada como provada, verifica-se que este atuou à margem da ilicitude, não tendo praticado qualquer crime, não estando por isso incurso em responsabilidade civil delitual, inexistindo a correlativa obrigação de indemnizar os danos causados, por não verificados os pressupostos da responsabilidade civil previstos no artigo 483º do Código Civil.
E que não tendo o arguido praticado qualquer crime, não existe lugar ao pagamento de qualquer indemnização.
Mais acrescenta que o Tribunal a quo violou o Princípio da igualdade, consagrado no nº 1 e 2º do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, porquanto terá imposto ao recorrente o pagamento de €1.000,00 (mil euros) a título de danos não patrimoniais bem sabendo que, o Recorrente não dispõe de meios financeiros para fazer face a tamanha indemnização.
Entende-se que não lhe pode ser imposto um dever de cumprimento de uma obrigação, sem que exista viabilidade económica no seu cumprimento.
Termina assim, pedindo que se for para manter essa condenação, deverá proceder-se à especial redução da indemnização imposta, nunca podendo o valor ser superior a €200,00 (duzentos euros).
Todavia, no Tribunal de 1ª instância, foi em 9.9.2024 proferido despacho no sentido de apenas se admitir parcialmente o recurso do arguido, isto é, na parte respeitante à sua condenação no crime, não admitindo esse recurso, na parte em que o mesmo impugnou a sua condenação no pagamento da quantia de 1.000,00 euros arbitrada à vítima, nos termos supra expostos – considerando o Tribunal a quo, no mencionado despacho, que a sua decisão nesta parte, é irrecorrível nos termos do art.º 400º/2 do CPP.
Contra esta decisão de não admissão do seu recurso na parte respeitante à sua condenação no pagamento da quantia de 1.000,00 euros arbitrada à vítima, o arguido não se insurgiu pelos meios legais que tinha ao seu dispor (nomeadamente reclamando para o Sr. Presidente da Relação de Lisboa), podendo fazê-lo.
Desta forma, a condenação do arguido, no que respeita ao pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros), fixada oficiosamente pelo Tribunal de 1ª instância, e também a sua condenação a pagar ao demandante «HOSPITAL DE ..., EPE» o montante de € 106,41 (cento e seis euros e quarenta e um cêntimos) – em relação à qual nem sequer foi interposto qualquer recuso - já se mostra transitada em julgado.
Por tudo o acima exposto, a análise deste Tribunal de recurso, apenas irá incidir sobre a impugnação da sentença condenatória, na parte criminal.
A) Da impugnação da matéria de facto
Veio o arguido em sede de recurso, nas suas conclusões, negar a prática dos factos que lhe foram imputados, tal como os mesmos se encontram descritos na sentença condenatória, impugnando concretamente a factualidade descrita na matéria de facto provada, insurgindo-se especificadamente contra os factos provados descritos nos pontos1,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15,16,17,18,19,20,21,22,23,24,25,26,27,28,29,31,32,33,34,35,36,37,38 e 39.
O arguido, alega que o Tribunal errou na apreciação da prova e invoca a violação do princípio do in dúbio pro reo.
Segundo o recorrente existe contradição entre a decisão proferida e a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, ao abrigo do artigo 412º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
Requer assim, que esses factos sejam julgados não provados e seja proferida decisão jurídica em conformidade, absolvendo-o da prática do crime de violência doméstica p.p no art.º 152º/1 b) e nº 2 a) do C.P.
Alega que nunca houve da sua parte, agressões físicas sobre a sua companheira, a ofendida CC e de que não existe prova que habilitasse o Tribunal a julgar provados tais factos (à excepção de uma chapada na cara, com base nas declarações da mesma) - ou porque ninguém presenciou os factos em questão, porque respeitantes à esfera íntima do casal ou porque dos depoimentos prestados, não resulta que os factos tivessem ocorrido exactamente do modo descrito na sentença – cfr conclusões 18 a 29.
Acrescenta ainda que o Tribunal a quo, durante a condução do julgamento pautou a sua conduta pela arrogância prepotência, desrespeitando o arguido na forma como conduziu o interrogatório do mesmo e não explica qual a prova constante dos autos, que lhe permite dar como provados esses factos e que por isso não podem os mesmos ser dados como provados.
Conclui assim que a convicção do Tribunal de 1ª instância, no sentido da condenação do arguido sucedeu apenas, porque o Tribunal de julgamento considerou e validou somente a versão dos factos que a ofendida relatou, mesmo não tendo os mesmos sido confirmados por nenhuma outra testemunha presencial, pelo que o Tribunal a quo não fez um verdadeiro exame crítico das provas.
Termina, pois, pedindo a sua absolvição da prática do crime que a sentença recorrida seja alterada no que respeita a esta factualidade supra mencionada por ele impugnada.
De tudo o acima exposto se vê, que o recurso do arguido, na parte respeitante à impugnação da matéria de facto, assenta pois essencialmente, numa discordância entre aquilo que o Tribunal a quo deu como provado e aquilo que o recorrente entende ter resultado das suas próprias declarações de arguido e dos depoimentos prestados pela ofendida CC e pelas testemunhas ouvidas em juízo.
O MP na sua resposta, veio contrariar esta concreta pretensão do arguido, sustentando que uma mera discordância subjetiva quanto a factualidade dada como provada, com base numa diferente análise e valoração da prova, face àquela que foi efetuada pelo Tribunal “a quo”, para daí partindo, se chegar inexoravelmente a uma conclusão diferente, não basta para colocar em crise o fundadamente decidido no caso em apreço.
Para o efeito argumentou o seguinte (transcrição com sublinhados nossos):
“(…) Entendemos que o tribunal a quo apreciou de forma correcta e precisa o comportamento do recorrente, de acordo com a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pelo que não assiste razão ao recorrente. As testemunhas de acusação foram credíveis e os depoimentos colocaram o arguido no local dos factos descrevendo as condutas do mesmo, sem prejuízo dos lapsos de memória, que são normais face às circunstâncias, ao tempo decorrido e à abundância de episódios relatados no libelo acusatório. Simplesmente o recorrente não aceita a fundamentação do Tribunal para o condenar.
Para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu ao exame crítico e conexo da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos dos artigos 97º, nº 5 e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, ponderou os juízos retirados da experiência comum e aplicou critérios de razoabilidade, em consonância com os depoimentos prestados em audiência de julgamento e resultantes da prova documental.
O Tribunal a quo fundamentou devidamente os motivos pelos quais as declarações de determinadas testemunhas mereceram credibilidade em detrimento de outras, nomeadamente pelo facto de terem estado presentes no momento dos factos e de serem condicentes quanto ao relato dos acontecimentos (…) Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, afigura-se-nos que a sua discordância assenta na valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
Efectivamente, a mera discordância da posição assumida pelo Tribunal quanto à valoração da matéria de facto, por não se conformar com o valor atribuído pelo julgador relativamente a provas que vão em sentido divergente, não constitui fundamento legal de reexame da matéria de facto que, enquanto tal, é insindicável, já que, no nosso entender, não ocorre nenhum dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal. Não se verifica em momento algum, uma falha grosseira ou erro na apreciação da prova, conforme alegado pelo recorrente, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
Como fica patente da análise da motivação de facto supra transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência, nos termos do artigo 127º, do Código de Processo Penal e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, e os raciocínios aí expendidos merecem concordância. Na realidade, o tribunal superior pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, mas, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1ª instância que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio da livre apreciação da prova (…)” – conclusões 5) a 9) e 20) a 23).
Conclui assim, que no caso em apreço o Tribunal “a quo” explicou fundamentadamente a razão pela qual julgou provados os factos impugnados pelo arguido, conjugando toda a prova produzida, designadamente a testemunhal e demais prova documental, tendo motivado a sua convicção através de uma ponderação crítica racional e razoável de todos os elementos probatórios, pelo que a decisão da Srª Juiza a quo não lhe merece, quanto a esta parte, qualquer censura e portanto deve o recurso improceder tendo este seu entendimento sido perfilhado pelo M.P na Relação de Lisboa.
Quid júris?
Como se sabe, o apelidado “erro de julgamento” pode suscitar dois tipos de recurso:
- um com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art.º 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido estrito);
- e outro que visa a reapreciação da prova produzida em julgamento, ao abrigo do art.º 412º/3 do C.P.P (impugnação em sentido lato).
Ora sendo formulado um pedido de impugnação da matéria de facto nos termos do art.º 412º/3 do C.P.P, o mesmo tem de obedecer a determinados pressupostos legais para poder proceder. Isto é, no caso de impugnação alargada, a reapreciação da matéria de facto por este Tribunal da Relação, depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece os condicionantes e limites fixados nos termos do nº 3 e 4 do art.º 412º do C.P.P.
No que respeita a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto, tem que dar cumprimento a um duplo ónus a saber:
- indicar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento deste ónus, a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- indicar as provas, que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe.
Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do art.º 412º do C.P.P).
O que se pretende, pois, é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos que o recorrente se propõe.
Isto é, impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões sobre o objecto do recurso, especificando o que no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas (art.º 412º/3/c) do C.P.P).
E tal sucede assim, porque o recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial.
Por outras palavras, não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento na primeira instância não tivesse existido. É antes um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente descriminados pelas partes.
Ou seja, a intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica” no sentido de delimitada, restrita à indagação ponto por ponto da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
Não basta que se diga que determinado facto está mal julgado, sendo necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e concluir-se que às mesmas o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o art.º 412º nº 3, al. b), do C.P.P. fala em provas que imponham decisão diversa e nessa medida tal como o acima referido, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ora no caso presente, o recorrente embora venha impugnar de forma especificada na sua motivação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados (os factos provados descritos sob os pontos 1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39), não indica quaisquer provas que imponham decisão diversa da recorrida – sendo certo que as declarações do arguido pela especificidade própria do seu estatuto processual (não está sujeito a juramento e se decidir falar, não está sujeito ao dever de falar com verdade sobre os factos objecto do processo), não podem neste caso ser encaradas como meio de prova que imponha uma decisão diversa e das declarações da ofendida CC e das demais testemunhas ouvidas em julgamento (cfr o que ficou expresso na motivação da sentença), é evidente que delas não resulta corroborada a versão do arguido, quanto aos factos que lhe foram concretamente imputados na acusação.
Por outro lado, o arguido, na sua motivação de recurso, não faz qualquer referência às provas que devem ser renovadas, nem expressa formalmente um pedido de renovação da prova, ao abrigo do art.º 412º do C.P.P.
Assim sendo, impõe-se a conclusão que, não obstante a sua pretensão de querer impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente não deu integral cumprimento ao art.º 412º/3 e 4 do C.P.P.
Neste termos, não tendo o arguido dado cumprimento aos ónus resultantes do preceituado no art.º 412º nºs 3 e 4 do C. P. Penal e não padecendo a sentença recorrida de qualquer dos vícios a que alude o nº 2 do art.º 410º do C. P. Penal, está este Tribunal de Relação impossibilitado de proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo Tribunal a quo (art.º 431º do CPP).
Com efeito, numa averiguação oficiosa acerca da existência dos vícios que se encontram previstos no art.º 410º/2 do C.P.P, constata-se a partir da leitura atenta do texto da sentença recorrida, que a mesma não padece de qualquer desses vícios aí previstos, nomeadamente de um qualquer erro e muito menos de erro notório sobre a apreciação da prova, nos termos alegados pelo arguido.
No fundo, com tais alegações, pretende o recorrente afinal é pôr em causa o processo de valoração da prova efectuado pelo Tribunal a quo, querendo na realidade que a mesma prova seja valorada de acordo com a sua própria apreciação, esquecendo-se contudo, que a prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade que julga – art.º 127º do C. P. Penal – e não de acordo com a apreciação que dela fazem os destinatários da decisão.
Livre apreciação essa repete-se, que não significa livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objectivos, expressos através da motivação.
Nestes termos, não assiste razão ao arguido neste segmento do recurso e ao impugnar a matéria de facto da forma supra referida, parece esquecer a pormenorizada fundamentação elaborada pelo Tribunal de 1ª Instância na sentença ora recorrida, que constitui a motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Aí foram expressamente indicados os meios de prova tomados em consideração, deu-se conta da relevância que foi atribuída a cada um deles e explicou-se nomeadamente os motivos pelos quais não foi atribuída credibilidade à versão apresentada pelo arguido, quanto à autoria e ao circunstancialismo em que são relatados os diversos episódios de agressão perpetrados sobre a ofendida CC, não sendo verdade que a convição do Tribunal a quo tivesse assentado apenas nas declarações prestadas por esta vítima, ao contrário do que foi sustentado pelo arguido.
Assim como surgem claramente indicadas na sentença, as razões pelas quais se atribuiu credibilidade ao depoimento da ofendida CC e às declarações prestadas por algumas testemunhas ouvidas em juízo (as quais se considerou que depuseram todas de forma coerente e isenta, tendo por isso merecido credibilidade), FF, OO, EE, GG) e se ponderaram ainda as declarações do filho do casal (DD), não tendo as declarações das demais testemunhas arroladas pelo arguido, apresentado especial relevo para a convicção do Tribunal, pois não presenciaram qualquer dos factos ilícitos objecto da acusação, nem demonstraram um convívio assíduo com o casal desavindo, tendo prestados depoimentos parciais, tudo conforme melhor ficou dito, na passagem a seguir transcrita em súmula (com sublinhados nossos):
Em momento algum os ofendidos entraram em contradição, apresentando depoimentos extremamente isentos e credíveis.
Ademais, sempre se dirá que o depoimento dos dois ofendidos se complementou entre si, pela que nada conseguiu abalar a sua credibilidade.
A ofendida CC chegou a emocionar-se ao longo do seu depoimento, quando teve que relembrar todas as provações que passou com o arguido.
Ora, estas declarações (emocionadas) da ofendida, traduzem aquele que é, à luz daquelas que são as regras da experiência comum neste específico contexto, o comportamento típico de uma vítima de violência doméstica, dividida entre os sentimentos de medo, esperança e amor. Medo, em virtude da violência de que é alvo; esperança, porque acredita nos pedidos de desculpa e nas promessas de mudança que têm lugar depois da violência; amor, porque apesar da violência, terão existido, momentos positivos ao longo do relacionamento (note-se que o arguido e a ofendida tiveram dois filhos em comum, pelo que terá sido um momento de felicidade entre ambos).
Ademais, sempre se dirá que as declarações da ofendida foram corroboradas por algumas das testemunhas inquiridas, mormente a testemunha DD e GG.
Note-se que a testemunha DD, filho do arguido e da ofendida, ouviu o pai a injuriar a mãe (apodando-a de puta, vaca, filha da puta, és uma grande merda), bem como a ameaça-la (aperto-te esse pescoço todo) e a agredi-la (chapadas, socos pontapés e atirava-lhe objectos). Soube precisar a situação em que viu o pai a colocar a mãe na rua; recordou-se de forma muito clara da situação ocorrida em ... de ... de 2019, em que acordou com a sua mãe a chorar e depois já de madrugada, depois de ela ter vindo do hospital, viu-a toda desfigurada, toda negra nos olhos, orelhas, bochechas, costas, com sangue pisado. Igualmente se recordou com estreito rigor a situação ocorrida após o jantar de aniversário da mãe, já em casa, em que acordou e ouviu sons de estalos, ouviu o pai a dizer à mãe que esta o tinha traído e apodou-a de puta. Que nesse dia foi ao quarto dos pais e pediu para o pai parar porque “já eram muitos anos nisto e já estava cansado”, mas o pai ameaçou-o que lhe partia as pernas caso não se fosse deitar já, o que fez por medo.
Note-se que esta testemunha numa troca de mensagens com o seu pai (quando o filho já estava em ...) referiu o seguinte “Eu te bater? Eu não sou como tu, só estava saturado porque tenho 15 anos e esses 15 anos da minha vida assisti a minha mãe a levar porrada” (fls. 122); “HAHAHAHA bom pai e marido? Se bater na mulher, ser extremamente agressivo na tua cabeça é ser bom pai e marido, acho que não tens quaisquer prioridades na tua cabeça” (fls. 129). Ora, aqui é bem evidente a revolta da testemunha que passou toda a sua vida a ver a mãe a ser agredida pelo próprio pai, sendo muito provavelmente por esse motivo que actualmente o filho nem sequer fala com o pai.
Já a testemunha GG, irmã da ofendida, igualmente assistiu ao arguido a agredir a ofendida (estalos na cara, empurra-la contra o carro; agarrava-a pelo braço e arrastava-a à força), ouviu o arguido a ameaçar a ofendida (“vou-te matar, vou acabar contigo”; “eu vou-te regar toda com óleo e vou-te matar”), bem como viu o corpo da sua irmã com marcas (oorelhas negras atrás, marcas nas costas (zona das costelas), cara inchada, olhos vermelhos e depois foi descendo e ficando negro). Confirmou ter visto a irmã com as lesões constantes das fotografias de fls. 117 e ss, sendo que a irmã depois de ter sido agredida pelo arguido ficou com aquelas marcas e foi viver para sua casa, sendo que viu a irmã muito abalada, apática, não falava, chorava muito (passava o dia a chorar). Mais explicou que foi ela que pôs a sua irmã na instituição APAV porque ela sofria de violência doméstica, bem como foi ela que ajudou a sua irmã a fugir para ....
Assim, parece evidente que as agressões, injúrias e ameaças relatadas pela ofendida, acabaram por ser confirmadas pelo depoimento destas duas testemunhas.
Mais se adiante que a maior parte dos factos ocorreram no interior da residência comum do casal, pelo que apenas os dois estavam no interior da casa. Assim, o Tribunal teria de analisar a versão dos factos apresentada pelo arguido (que negou apenas alguns factos de agressões, e depois recusou-se a prestar mais declarações) e pela ofendida e verificar aquela que se nos afigura mais credível e, sem margem para qualquer dúvida, a versão da ofendida foi aquela que mais convenceu o Tribunal, tal não foi a sinceridade e isenção do seu depoimento, que acabou por ser corroborado em alguns pontos pelo depoimento das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento. Tudo isto demonstra bem, que a versão dos factos relatada pela ofendida é verdadeira, porquanto mereceu a total credibilidade do Tribunal.
Também a sua assistência médica no ..., em ..., no dia ........2019, encontra-se confirmada pela documentação médica junta aos autos a fls. 35 e 36, sendo que este Tribunal não pode deixar de fazer menção que a fls. 35 consta expressamente que a ofendida “recorre ao SU aós quadro de agressão no contexto de violência doméstica há cerca de 3 h (...) Segundo a mesma trata-se de uma situação frequente, com início há 10 anos, já tendo permanecido em instituição de apoio à vítima (...)”; bem como consta de forma expressa que a ofendida, no hospital, apresentava “Face: equimoses na região periórbitária bilateralmente mas mais exuberantes àdireita, com extensão à região auricular e retroauricular direita. Hematoma com cerca de 5 cm de maior eixo na região supraciliar direita que condiciona ptose palpebral homolateral. Doloroso à apalpação (...) Equimose na região infra escapular esquerda (...)”.
Ora, as lesões que a arguida apresentava quando foi assistida no Hospital são compatíveis com o relato efectuado pela ofendida relativamente ás agressões que disse ter sido vítima, aquando do seu depoimento em julgamento.
Ademais, mais se saliente que o depoimento da ofendida, quanto à situação ocorrida em ........2019, encontra igualmente suporte nas fotografias juntas aos autos a fls. 117 a 120, de onde ressalta as lesões que a mesma sofreu na sequência da agressão de que foi vítima por parte do arguido. Note-se que tanto a testemunha DD, como a testemunha GG, foram peremptórios em referir que viram a ofendida com estas lesões, tendo ambos confirmado, quando confrontados com as fotografias de fls. 117 a 120, que foram aquelas as marcas que viram na ofendida.
Já quanto ás lesões que a ofendida sofreu na sequência das agressões de que foi vítima por banda do arguido, mais valorou o Tribunal o teor do exame médico junto aos autos a fls. 34.
Quanto às declarações prestadas pelo arguido, importa referir também que, para além do que acima já se deixou dito a propósito da valoração dos depoimentos dos ofendidos, não merece credibilidade a tese de que os factos foram inventados pelos próprios ofendidos (pois se o arguido os nega, apenas poderiam resultar de invenção dos ofendidos). Note-se que caso a ofendida não tivesse ido ao Hospital, talvez nem sequer o presente processo se tivesse iniciado, uma vez que é o próprio hospital que desencadeia a chamada da PSP em situação de agressões em caso de violência doméstica. Assim, parece evidente que a ofendida andou anos e anos a esconder tudo aquilo por que passava, sempre na esperança que o arguido mudasse o seu comportamento (a típica acção da vítima de violência doméstica).
Todo o discurso do arguido foi de desresponsabilização, nunca assumindo os factos graves que praticou, nem demonstrou qualquer arrependimento. Muito pelo contrário, visto que falou de forma desprovida de sentimentos e sem qualquer empatia pela vítima, tentando responsabilizar a mesma por não ver os filhos. Foi evidente a forma como o arguido apenas estava preocupado com o facto de a ofendida ter fugido com os filhos para ..., sendo que nunca mostrou qualquer sentimento de arrependimento por todo o mal que fez à sua companheira e mãe dos seus filhos durante anos a fio.
Foi patente a ausência de interiorização do mal cometido e de arrependimento pelos factos praticados e pelas consequências daí decorrentes. Com efeito, ao longo das sessões de julgamento, o arguido nunca assumiu a prática dos factos, demonstrando bem a completa falta de juízo crítico sobre os actos graves que praticou. Aliás, a postura do arguido em julgamento é bem reveladora da sua personalidade e carácter, sem qualquer respeito pelo Tribunal, gritando, esbracejando, proferindo expressões inconvenientes contra o próprio funcionamento dos tribunais, pondo em causa o decorrer dos trabalhos, tendo havido necessidade de colocar o arguido no exterior da sala (mais do que uma vez conforme se pode atestar das actas e gravações das sessões da audiência de discussão e julgamento), onde continuou a gritar sem qualquer respeito pelo Tribunal e pelos seus utentes.
E não se venha alegar que “o facto de o arguido estar afastado dos seus filhos o faz estar revoltado e por isso a postura dele em audiência”. Na verdade, o arguido não estava no Tribunal de Família e Menores, sendo que aí é poderia mostrar o seu desagrado por qualquer decisão com a qual não concordasse em relação aos seus filhos. Ademais, sempre se diga, que a forma como o arguido se comportou em audiência é completamente reprovável e sem qualquer possibilidade de justificação, uma vez que caso o arguido não concorde com decisões do Tribunal, deverá recorrer dessas decisões e não gritar, esbracejar, ser agressivo e dizer expressões inadequadas e impróprias.
O comportamento do arguido é bem demonstrativo que lida muito mal com a autoridade e com a contrariedade, não conseguindo obedecer a ordens que lhe são dirigidas, sendo que tudo tem que ser do modo que pretende, e quando tudo foge do seu controlo, reage mal, de forma agressiva e imprópria.
Quando o comportamento do arguido foi este numa sala de audiências, como seria entre quatro paredes com a ofendida. Claramente como a ofendida nos relatou.
Mais se acrescente que as declarações do arguido também não foram confirmadas por nenhuma das testemunhas por si arroladas.
Diga-se, desde já, que a maior parte das testemunhas arroladas são família do arguido, sendo que apresentaram depoimentos extremamente parciais, talvez pela ligação familiar que os une, o que não deixa de ser compreensível.
Na verdade, as testemunhas arroladas pelo arguido não assistiram aos factos, pelo que pouco ou nada adiantaram quanto aos factos. Ainda assim, o pouco que relataram ao Tribunal não teve qualquer rigor, sendo que o Tribunal considerou os seus depoimentos parciais, pelo que em nada foram valorados pelo Tribunal.
Note-se que a mãe do arguido quase quis fazer crer o Tribunal que a relação do arguido com a ofendida era um verdadeiro mar de rosas, que era um casal feliz. É certo que a mãe iria sempre defender o filho, mas daí a dizer que o arguido e a ofendida eram um casal muito feliz vai uma grande distância. Note-se que a ofendida chegou a estar numa instituição da APAV com os filhos porque era vítima de violência doméstica; saiu de casa uma outra vez com a face toda negra e cheia de marcas no corpo, porque tinha sido agredida pelo arguido e foi para casa da irmã (........2019); o arguido teve uma filha fora do casamento (retratando assim que o arguido traiu a ofendida com outra mulher; note-se que o filho DD tem 19 anos, a II tem 7 anos, mas o arguido tem uma filha com 17 anos e que não é filha da ofendida); a ofendida viu-se obrigada a fugir para ... tal não era o medo e receio que tinha do arguido; era injuriada, ameaçada e agredida pelo arguido...onde está aqui o casal feliz? Como é evidente, não existia!
Mais se saliente que o facto de as testemunhas arroladas pelo arguido (à excepção da testemunha GG) não terem visto a ofendida com marcas no corpo, não quer dizer que a ofendida não tenha sido agredida pelo arguido. A verdade, é que o momento em que a ofendida ficou com marcas extremamente visíveis acabou por ir para casa da irmã e por isso não conviveu com as pessoas próximas do arguido, motivo pelo qual as mesmas não tenham visto quaisquer marcas.
Ademais, sempre se diga, que resulta das regras de experiência comum, que as vítimas de violência doméstica tentam ao máximo disfarças as marcas da agressão e dizem sempre que foi quedas, ou qualquer outra coisa, mas nunca que foi o marido/companheiro que as agrediu.
Assim, o depoimento destas testemunhas (testemunhas arroladas pelo arguido, à excepção da testemunha GG), por demasiado parcial, não logrou convencer o Tribunal, sendo ainda certo que as testemunhas também não assistiram a quaisquer factos (…)”.
O Tribunal recorrido não violou assim, as regras da experiência comum ao valorar os referidos depoimentos, nos termos em que o fez.
A convicção assim formada pelo Tribunal a quo não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída na base da imediação e da oralidade.
Ou seja, entendemos que esta valoração da prova feita pelo Tribunal a quo é perfeitamente legítima, não sendo violadora das regras da experiência comum nem da lógica e evidencia aliás ter sido devidamente ponderado, as especificidades próprias do tipo legal de crime em análise (crime de violência doméstica).
A versão relatada pelo arguido em audiência, é que não foi considerada idónea para abalar a convicção do Tribunal a quo formada sobre a matéria de facto, no sentido da procedência da acusação.
Não podemos deixar de sublinhar, repetimos, que o valor das declarações do arguido em julgamento, não pode ser igual ao de qualquer outra testemunha, pelas razões já acima enunciadas - o arguido não é obrigado a falar sobre os factos que o incriminam e quando fala, não o faz sob juramento, pelo que querendo, pode sempre faltar à verdade ou omitir pormenores que o incriminem, sem que tal conduta seja penalizada.
É também sabido, que nos delitos de violência doméstica, precisamente porque versam situações ocorridas no seio da intimidade das vidas das pessoas, a prova é muitas vezes difícil de fazer, porque para além dos intervenientes directos e de algum vestígio físico que perdure no tempo (marcas físicas das agressões nos corpos das vítimas), raramente existem testemunhas oculares.
Assim neste circunstancialismo, frequentemente o Tribunal a quo tem de decidir, valorando de forma especial as declarações das vítimas, em conjugação com outros elementos de prova que eventualmente possam existir.
E em nosso entender, tal sucedeu no caso sub Júdice, face à motivação da decisão de facto, expressa na sentença final condenatória, onde o Tribunal a quo se reportou expressa e detalhadamente à ponderação de toda a prova produzida - prova testemunhal, prova documental (nomeadamente auto de notícia de fls. 2-8, documentação clínica de fls. 36, requerimento de fls. 70-76, cópias de decisões judiciais francesas de fls. 109-115, 221-230, declaração de fls. 116, fotogramas de fls. 117-131, cópias extraídas do processo judicial id. fls. 173-176, 181-187, assentos de nascimento de fls. 177-178, 179, Documentos de fls. 371 a 374, relatório social junto aos autos e certificado de Registo Criminal junto aos autos, e bem assim a prova pericial (nomeadamente relatório de fls. 34) - num raciocínio lógico e bastante inteligível, donde resulta terem sido examinadas criticamente todas as provas que serviram para formar a sua convicção.
Por todas as considerações acima referidas, o Tribunal a quo logrou concluir, da análise crítica de toda a prova produzida em audiência, que o arguido preencheu com a sua conduta, objectiva e subjectivamente todos os elementos do tipo de ilícito que lhe foi imputado na acusação, que vitimou a CC e pelo qual foi condenado.
Nestes termos, face a tudo o acima exposto, o que no fundo transparece do recurso do arguido e da sua fundamentação, é como acima já ficou dito, que este discorda da leitura ou apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo e como é sabido, essa simples discordância não pode servir de fundamento para motivar um recurso.
Estamos assim nesta parte, no domínio da pura discordância de opiniões, em que aquilo que o recorrente invoca não é mais do que a expressão de uma divergência em relação ao decidido, divergência essa meramente intelectual que não se prende com qualquer vício da decisão, que inexiste.
Para isso socorre-se, não do texto da decisão, mas de considerações acerca daquilo que entende ter sido a prova produzida, alegando ter existido por parte do Tribunal a quo, uma “valoração deturpada” dessa prova.
Como é do conhecimento geral e acima já ficou dito, a prova é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consignado no art.º 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Estamos, pois, em sede de um certo poder discricionário do Juiz, que “só pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente se verifica não existirem.
Com efeito, citando a jurisprudência constante do Ac. da Relação de Coimbra de 6.3.2002 in C.J II, 44: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
E na realidade como acima já dissemos, a fundamentação da sentença recorrida mostra-se coerente, lógica e feita de acordo com as normas legais e as regras da experiência comum, estando, pois, estruturada de forma respeitadora dos diversos critérios legais e designadamente do art.º 127º do C.P.P, sendo isento de dúvidas a adequação dos factos provados à avaliação crítica das diversas provas produzidas.
Não se vislumbra assim repete-se, da matéria de facto dada como provada e da respectiva fundamentação acima reproduzidas, qualquer apreciação da prova que resulte ser manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, denunciando a existência de uma qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ou de um erro notório evidente para um cidadão comum ou um jurista com preparação normal.
A decisão recorrida faz uma análise crítica e objectiva dos meios de prova e não há qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados, entre uns e outros e a respectiva fundamentação, e entre esta e a decisão recorrida.
Isto é, os factos dados como provados estão, pois suficientemente fundamentados, com expressa referência aos meios de prova, às razões determinantes da convicção Tribunal, e sendo assim é esta que deve prevalecer.
Nomeadamente, na sentença recorrida ficou esclarecido de forma clara e coerente em sede de fundamentação, quais os motivos que o levaram a dar credibilidade ao depoimento da ofendida CC, em prejuízo da versão dos factos dada pelo arguido.
Em resumo, nada há a apontar ao processo de valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, mais concretamente no que se refere ao depoimento da ofendida CC.
Quanto aos factos de natureza pessoal, igualmente foi apurado pelo Tribunal a quo aquilo que se considerou ser essencial para caracterizar o seu passado criminal, as condições económicas e a personalidade do arguido (a partir das declarações prestadas pelo próprio, análise do seu CRC e do relatório social), tal como ficou descrito na sentença e consta dos pontos 41 a 59 da factualidade provada, nada havendo sido carreado para os autos pelo arguido que imponha julgar provados quaisquer outros factos.
Tal como bem foi sublinhado pelo M.P, na sua resposta ao recurso, em argumentação que de seguida transcrevemos e aqui fazemos nossa:“Ora, os factos dados como provados na sentença são conclusões lógicas da prova produzida em audiência e plausíveis face a essas provas.
A convicção assim formada pelo Tribunal a quo não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída na base da imediação e da oralidade.
O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
Como fica patente da análise da motivação de facto supra transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, e os raciocínios aí expendidos merecem concordância. Na realidade, o tribunal superior pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, mas, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1ª instância que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova. O art.º 127º do Código de Processo Penal, indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
Como se viu, a sentença proferida pelo tribunal a quo assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova.
Elementos que uma transcrição da prova produzida em julgamento, não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe.
Na ponderação da prova deste tipo de crimes, nos quais se integra o crime de violência doméstica, existe um especial dever de apreciação da postura dos intervenientes processuais no relato dos factos, dos sinais de veracidade e dos sinais de desvio dessa veracidade.
O crime de violência doméstica apresenta, as mais das vezes a dificuldade de prova decorrente de os factos ocorrerem tendencialmente no domínio das relações privadas do agressor e da vítima, longe dos olhares de terceiros, e de, não raras vezes, pelas mais diversas razões, desde a vergonha, ao medo, ao desejo de que seja uma situação isolada e de que a relação ainda possa subsistir, a vítima não relate imediatamente os factos, não recorra a serviços hospitalares e esconda até as marcas da agressão.
Como se tratam de factos ocorridos no seio familiar é praticamente impossível obter outros relatos para além daqueles que resultam das próprias vítimas. Não é incomum, outros familiares que tenham assistido a actos de violência adoptarem posturas reservadas em face dos factos, até mesmo omissivas invocando “lapsos de memória”, ou até mesmo, classificarem como “uma relação normal”, ou que “tudo estava bem”, apesar de, na realidade se tratar de um relacionamento disfuncional e marcado pela violência, não só pelas relações pessoais que mantêm com os intervenientes, ou de maior proximidade com algum dos intervenientes, mas também pelo temor do resultado que possa advir desses mesmos depoimentos.
Com efeito, a Mm.ª Juiz esclarece em sede de fundamentação os motivos que a levaram a atribuir credibilidade ao depoimento de determinadas testemunhas.
Motivo pelo qual, mostra-se, por conseguinte, justa e acertada a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, aderindo o Ministério Público, in totum à fundamentação respectiva e em consequência, encontram-se devidamente demonstrados os elementos subjectivos e objectivos do(s) crime(s) pelo(s) qual(quais) o arguido foi condenado (…)”.
Examinada a sentença recorrida e analisada a prova produzida, conclui-se que esta foi submetida ao exame crítico do tribunal a quo à luz das regras da experiência, tendo sido explicadas as razões porque foi valorada ou como foi valorada em determinado sentido, não se encontrando qualquer fundamento para afastar o juízo fáctico constante da decisão.
A prova produzida em audiência é livremente valorável pelo Tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereça.
Ora, no caso como já ficou dito, inexiste qualquer desconformidade insanável entre a prova produzida em julgamento, na qual o Tribunal recorrido fundamentou a sua convicção e os factos que, com base em tal prova, veio a considerar provados, sendo certo que no juízo alcançado pelo Tribunal não se vislumbra qualquer atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque a fundamentação do acórdão tem suporte na regra estabelecida no art.º 127º do C.P.P.
A convicção do Tribunal é formada com base na conjugação e articulação crítica dos dados objetivos fornecidos pela prova documental e testemunhal e outras provas constituídas de apreciação vinculada, como seja a prova pericial.
Prova essa, como sucede no caso em apreço, não constante do elenco das provas proibidas, submetida ao contraditório e à imediação probatória processual e produzida ou examinada em audiência ou constante dos autos com conhecimento dos sujeitos processuais sem impugnação da sua validade (cfr. art.º 355º do C.P.P.).
Por outro lado, importa lembrar que a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza prática, empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, Barcelona, p. 615.
Toda a decisão judicial constitui - precisamente - a superação não só da dúvida metódica, como da “dúvida razoável” sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do acusado.
Daí a submissão a um rígido controlo formal e material do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno.
No caso presente, entendemos que o Tribunal recorrido valorou de forma exaustiva, minuciosa e conjugada os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos.
Na verdade, como já acima ficou dito, resulta inequívoco do texto da decisão recorrida, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida, de acordo com as regras da experiência e da lógica, tendo em conta a prova produzida analisada segundo as regras de experiência comum e da normalidade das coisas, sobretudo face à tipologia habitual dos casos como o dos autos.
Sendo assim, tudo ponderado, conclui-se que inexiste no caso em apreço qualquer erro de julgamento, tendo a matéria de facto sido corretamente julgada e fixada, tendo a fundamentação sido exaustiva e criteriosa, pois foram indicadas de forma exaustiva, minuciosa e conjugada em sede de exame crítico as provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sendo a matéria de facto provada suficiente para a decisão, sem qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e sem qualquer erro notório na apreciação da prova (a qual não consta do elenco das provas proibidas), submetida ao contraditório e à imediação probatória processual e produzida ou examinada em audiência ou constante dos autos com conhecimento dos sujeitos processuais sem impugnação da sua validade, não padecendo por isso a decisão recorrida de qualquer vício.
Nada a apontar, portanto quanto aos factos provados e não provados descritos na sentença recorrida, os quais se mostram bem julgados, de acordo com a prova produzida em audiência e como tal, a matéria de facto não pode ser alterada, considerando-se definitivamente fixada.
Improcede assim na íntegra, a impugnação feita pelo recorrente quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto.
B) Da (alegada) violação do princípio “in dubio pro reo
Veio invocar ainda o recorrente, que a decisão recorrida violou o princípio “in dubio pro reo”, na medida em que o Tribunal a quo não podia ter julgado provados os factos descritos na factualidade provada, devendo impor-se a sua não prova, em nome do princípio in dubio pro reo, com a consequente absolvição do arguido/recorrente quanto ao crime de violência doméstica, imputado pelo MP.
Fundamenta a sua pretensão, argumentando nas suas conclusões enunciadas sob os pontos 3. a 7. e 29. a 31. do seguinte modo: “Nos termos do artigo 202º da Constituição da República Portuguesa, os Tribunais, além de órgãos de soberania, administram a justiça em nome do povo. Daqui resulta, entre outros aspetos, que, nos termos do artigo 340º, nº 1 do CPP, o Juiz de Julgamento deve buscar a verdade material, a certeza processual, se quisermos, ou, de outra forma, o alicerce da decisão.
O mesmo é dizer, em sede de julgamento, que o Juiz só deva condenar se ficar efetivamente convencido quanto à culpa do arguido, convencido pela atividade probatória levada a cabo pelo Ministério Público ou pela investigação levada a cabo por si.9
A Constituição define os Tribunais e as funções da judicatura e atribui-lhes o dever de realização de Justiça em nome do Povo Soberano, sem deixar de lado princípios estruturantes tais como o da presunção da inocência, das decisões fundadas na Justiça e no Direito, na autoridade do Juiz, sem ser autoritária, e na prolação da decisão afastada dos pré-juízos, que, dito de outra forma, é a capacidade de o Juiz de Julgamento se abstrair do caso tal como ele é visto pela acusação10.
O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dúbio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os fatos decisivos para a solução da causa11 e significa que o arguido está isento do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação.(12)
Da conjugação do princípio da liberdade com o da presunção de inocência decorre o princípio in dúbio pro reo, que não se trata de uma regra de valoração da prova, como por vezes erradamente se pensa, mas apenas de um critério de valoração da dúvida sobre a prova e [...] como o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, a dúvida sobre os fatos que alegadamente provam a sua responsabilidade criminal só pode reforçar esse estatuto de inocência e não uma eventual condenação (…) O depoimento da suposta vítima pautou-se sempre pela falta de lembrança, quer a nível de datas, quer na forma como as coisas realmente aconteceram, designadamente, quando no dia ........2021 faltou à verdade ao dizer que as testemunhas entraram dentro de sua casa, ao não se recordar o que o arguido lhe terá dito em ........2019 quando supostamente lhe apertou o pescoço, quando em sede de denúncia refere que as agressões apenas tiveram início com a coabitação e perante o Tribunal relata uma situação anterior, entre outras. A função acometida aos Tribunais pela Constituição não se compadece com a ideia de autoritarismo, porque, se assim fosse, onde existiria liberdade não poderia sobrevir autoridade e, nessa medida, a autoridade do Juiz deve ter na génese, ao contrário do arbítrio, uma ideia clara de Justiça: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente. Porém, o Tribunal a quo desde muito cedo pautou a sua conduta pela arrogância e prepotência, desrespeitando o arguido. (…)”.
O M.P na sua resposta ao recurso, veio defender entendimento contrário, argumentando o seguinte: “É por demais evidente, na decorrência da audição das sessões de julgamento que se tratou de uma situação traumática para as vítimas, viva nas suas memórias. Esclareceram que, no período de coabitação o arguido adoptou condutas violentas dirigiras à vítima, com repercussões nos filhos do ex-casal, tendo os últimos vivenciado a violência a que a progenitora foi submetida às mãos do arguido, visionando ou ouvindo os golpes que o arguido desferiu e que atingiram a vítima ou observado as lesões provocadas por esses golpes e que ficaram marcadas na face da vítima.
Pelo que, com o devido respeito, as reservas do recorrente quanto aos factos provados, não são mais que uma tentativa desesperada de esgrimir argumentos contrários, aos adoptados pelo tribunal para o condenar pela prática do ilícito.
Não se colocaram dúvidas ao Tribunal de que efectivamente, o arguido praticou os factos, não há qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados, entre uns e outros e a respectiva fundamentação, e entre esta e a decisão recorrida. Isto é, os factos dados como provados estão, pois suficientemente fundamentados, com expressa referência aos meios de prova, às razões determinantes da convicção do Tribunal, e é esta que conta.”
Conclui assim que o Tribunal a quo não ficou em dúvida, quanto à prática pelo arguido dos factos ilícitos pelos quais este foi condenado, donde não se verifica qualquer violação do princípio "in dubio pro reo", conforme resulta expressamente das conclusões expressas nos pontos 30 a 37 da sua resposta.
Quid Juris?
Face à inadequação da argumentação do recorrente para sustentar a sua pretensão de impugnação da matéria de facto provada, nomeadamente nos pontos de facto descritos em 1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32,3 3, 34, 35, 36,3 7, 38 e 39, também se vê, que terá de improceder necessariamente a alegada violação pelo Tribunal, do princípio in dubio pro reo.
As dúvidas manifestadas pelo recorrente, não radicam no teor da versão dada como provada na sentença recorrida, mas antes resultam apenas da tese por ele construída.
Este princípio do in dubio tem aplicação na apreciação da prova, impondo que em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, o Tribunal de julgamento decida sempre a matéria de facto, no sentido que mais favorecer o arguido.
Mas por tudo o que acima ficou dito, podemos constatar, que aquilo que o recorrente acaba por fazer, ao longo de toda a sua motivação é mais uma apreciação subjectiva da prova produzida no Tribunal de 1ª Instância, com recurso a considerandos vários, nos quais inclui referências às declarações da ofendida e de algumas testemunhas, as quais entende não terem sido correctamente interpretadas, para chegar à conclusão de que o Tribunal a quo valorou mal a prova, por erro notório na sua apreciação, com violação do art.º 127º e 410º/2/ c) do C.P.P.
Todavia, o preceituado no art.º 127º/CPP deve ter-se por cumprido, sempre que a convicção a que o Tribunal de julgamento chegou, se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objecto da prova tanto inclui os factos probandos (prova directa) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes últimos (prova indirecta ou indiciária).
Ora, lendo a decisão recorrida, designadamente a fundamentação de facto e a indicação e exame crítico das provas em que se baseou a convicção do Tribunal de julgamento, não se vislumbra que este tivesse considerado provado qualquer um dos factos que como tal enumerou, tendo dúvidas sobre a sua verificação, nem se nos afigura que tais dúvidas devessem ter existido.
Melhor dizendo, o Tribunal a quo não evidenciou qualquer dúvida quanto à fixação da factualidade assente e por outro lado, a justificação da matéria de facto fixada, não suscita dúvidas quanto à adequação da prova produzida, à factualidade considerada assente, face às regras de experiência comum.
Com efeito, a simples existência de versões dispares e até contraditórias sobre factos relevantes, não implica que se aplique, sem mais, o princípio in dubio pro reo.
Tal princípio só deve ser aplicado, quando os elementos probatórios não foram suficientes para o julgador formar convicção num sentido ou noutro (cf. Acórdão da Relação do Porto de 24-03-2004 [in www.dgsi.pt]).”
Não houve, pois, no caso em apreço, da parte do Tribunal recorrido, qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”, pelo que improcede na conformidade esta outra concreta pretensão do recorrente.
Improcede, pois, na sua íntegra e nos termos acima expostos, o recurso do arguido.
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Lisboa, em:
A) Julgar não provido o recurso do arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
B) Custas a cargo do arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Lisboa, 7 de Maio de 2025
Ana Paula Grandvaux
Maria da Graça dos Santos Silva
Carlos Alexandre
_______________________________________________________
1. RUI PATRÍCIO, a presunção da inocência no julgamento em processo penal, Alguns Problemas, 2019, Almedina, p. 78.
2. Ora, é sabido que a acusação é uma antecipação da decisão final, um projeto de sentença, sendo certo que, se o primeiro contato do juiz com o caso é por via da acusação, o seu “pré-juízo” sobre o caso poderá ser um “pré-juízo” orientado no sentido do “caso da acusação” – Cfr. RUI PATRÍCIO, op. Cit, p.69.
3. Cfr. J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Almedina, 2007, p. 519.
4. Cfr. RUI PATRÍCIO, op. Cit, p.95.
5. Cfr. TERESA PIZARRO BELEZA/FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, op. Cit. P. 102, no mesmo sentido RUI PATRÍCIO, op.cit, p.96, ponto 5.º.
6. PAULO DE SOUSA MENDES, op. Cit. p.173.
7. Ou uma convicção o mais próxima possível da certeza, cfr. Patrícia Silva Pereira, p. 115.
8. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do processo n.º 799/18.8GBPNF.P1
9. RUI PATRÍCIO, a presunção da inocência no julgamento em processo penal, Alguns Problemas, 2019, Almedina, p. 78.
10. Ora, é sabido que a acusação é uma antecipação da decisão final, um projeto de sentença, sendo certo que, se o primeiro contato do juiz com o caso é por via da acusação, o seu “pré-juízo” sobre o caso poderá ser um “pré-juízo” orientado no sentido do “caso da acusação” – Cfr. RUI PATRÍCIO, op. Cit, p.69.
11. Cfr. J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Almedina, 2007, p. 519.
12. Cfr. RUI PATRÍCIO, op. Cit, p.95.