Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6182/18.8T9CSC.L1-9
Relator: ANA MARISA ARNÊDO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
EXAME CRÍTICO DA PROVA
PROVA INDICIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULAÇÃO
Sumário: Sumário: (da responsabilidade da Relatora)
I. «As nulidades da sentença, por via da sua natureza específica em relação ao regime geral das nulidades, devem ser conhecidas oficiosamente pelo Tribunal de recurso, se constatadas, ainda que possam ser invocadas por qualquer dos sujeitos processuais. Estão em causa omissões essenciais e estruturais da sentença que por isso não podem deixar de ser apreciadas, quando ocorram».
II. «A alteração legislativa decorrente da L 20/2013, que levou à introdução do n.º 3 implicou a caducidade da interpretação efetuado pelo Assento n.º 9/92, 6.5.1992 (LUCENA e VALE) ao dizer que "não é insanável a nulidade da alínea a) do artigo 379.° do Código de Processo Penal de 198, consistente na falta de indicação, na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo artigo 374.°, n.º 2, parte final, do mesmo Código, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119.° daquele diploma legal", tendo em conta que à data da prolação daquele assento, inexistia tal norma».
III. Revisitada a sentença recorrida na parte da motivação, constata-se que da mesma, relativamente ao arguido, ora recorrente, não consta o exigido exame crítico da prova.
IV. Com efeito, a Sra. Juíza do Tribunal a quo quedou-se por uma súmula das declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento (aliás, rigorosamente, dispensável) e ao elenco da prova documental, quando, verdadeiramente, o que importa e se impunha é que tivesse procedido à explicitação do iter lógico e racional que presidiu à triagem da facticidade em assente e não assente, o que relativamente ao ora recorrente notoriamente não ocorreu.
V. In casu, é possível extrair da motivação que a Sra. Juíza concluiu pela prova dos factos com base na denominada prova indirecta ou indiciária. E, inolvidavelmente, para além da prova directa do facto, a apreciação do tribunal pode assentar em prova indirecta ou indiciária, a qual se faz valer através de presunções. No recurso a presunções simples ou naturais (art. 349º do Cód. Civil), parte-se de um facto conhecido (base da presunção), para concluir presuntivamente pela existência de um facto desconhecido (facto presumido), servindo-se para o efeito dos conhecimentos e das regras da experiência da vida, dos juízos correntes de probabilidade, e dos princípios da lógica.
VI. Todavia, na situação em crise, a Sra. Juíza do Tribunal a quo, no que respeita ao ora recorrente, limitou-se à singela alusão às regras da normalidade e da experiência, sem proceder à objectivação dos putativos indícios e muito menos a qualquer explicitação do raciocínio de verificação, precisão e avaliação dos mesmos. Ou seja, à mingua de prova directa quanto aos factos, ficaram inteiramente por explicar os motivos pelos quais se depreendeu a participação do ora recorrente na factualidade assente.
VII. Vale tudo por dizer que, a sentença revidenda é, no que ao recorrente concerne, completamente omissa quanto ao exame crítico da prova, o que, ademais, impossibilita a sindicância que se reclama a este Tribunal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, precedendo audiência de julgamento, a Senhora Juíza do Tribunal a quo, por sentença de ... de ... de 2025, para o que agora importa, decidiu condenar o arguido/demandado A:
«Como coautor de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. a) ambos do Código Penal, na pena de vinte meses de prisão;
Suspender a execução da pena de prisão imposta ao arguido pelo período de três anos na condição de, nesse prazo, proceder ao pagamento à demandante da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), por conta da quantia em que vier a ser condenado no pedido de indemnização cível e disso fazer prova nos autos;
A pagar à demandante ... a quantia de € 19.581,93 (dezanove mil quinhentos e oitenta e um euro e noventa e três cêntimos) a que acresce juros de mora, à taxa legal, desde ........2021».
2. O arguido A interpôs recurso da sentença condenatória. Após aperfeiçoamento, aparta da motivação as seguintes conclusões:
«1º As questões que o recorrente vem colocar à apreciação deste Venerando Tribunal são as seguintes:
1ª) se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto,
2ª) se estão preenchidos, quanto ao ora recorrente, os elementos objectivos do crime de furto qualificado,
3ª) se deve ser procedente o pedido de indemnização civil.
2ª) O recurso incide na impugnação da matéria de facto julgada provada e não provada, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 412º, nº 3, 428º e 431º, alíneas a) e b), do CPP, por se considerar que foram dados como provados factos que não o deveriam ter sido, ou não o deveriam ter sido com o sentido e amplitude que lhes foram dados, e, bem assim, por dever ser aditada factualidade provada com interesse para a decisão da causa.
3ª) O Tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto dada como provada sob os nºs 1, 12, 14 (com referência ao nº 13), 15 e 18 a 20 e 22, por inexistir prova testemunhal ou documental suficiente que permita com segurança concluir que o recorrente praticou os factos que lhe são imputados naqueles pontos ou por deficiente interpretação da prova existente – e, ao invés, por existir prova que contraria ou, pelo menos, suscita dúvida razoável sobre essa factualidade, impondo, por conseguinte, decisão diversa.
4ª) Nenhuma testemunha viu o arguido praticar os actos que a sentença deu como assentes e que agora se colocam em crise.
5ª) A testemunha A referiu que o carro que vinha na guia de transporte era da empresa em que trabalhava o ora recorrente e que achava que havia assinaturas de levantamento de mercadorias por parte dele (depoimento a ...-...-2024, manhã, de ........01 a ........46, cf. acta; na gravação áudio, com início às 10:43 e fim às 12:12), e a testemunha BB (depoimento de ...-...-2024, tarde, entre as 15:51:13 e as 16:24:38 horas, cf. acta; na gravação áudio, início às 15:51 e fim às 16:24), afirmou que o A era quem assinava algumas guias de transporte e que, nos dias das retros, havia alguns dias em que este arguido fazia transporte.
6ª) Apesar da afirmação de que toda a documentação era arquivada, de que foi feito levantamento exaustivo das retros e das guias de transporte e que estas estariam assinadas pelo transportador (cf. depoimentos de A, gravação áudio de 25:42 a 25:52 e de 38:40 a 39:41, e de CC, sessão de ...-...-2024, tarde, de ........01 a ........29, cf. acta; na gravação áudio, início às 14:02 e fim às 15:39 – passagens de 10:26 a 10:43 e de 31:44 a 31:47), não existem nos autos quaisquer guias de transporte em relação às quais o recorrente possa exercer o contraditório (impugnando a sua genuinidade ou a assinatura), pelo que, na sua ausência, não pode concluir-se que o recorrente tenha efectuado transportes em todos os dias que correspondem às retrocessões (“retros”) em causa, ou se em alguns, em quais, ou que tenha assinado alguma guia de transporte nesses dias.
7ª) Ainda que o recorrente tivesse feito transporte de mercadorias da assistente nas datas atribuídas às retros “falsas” – o que não se provou -, isso não implicaria que tivesse sido ele a transportar as mercadorias alegadamente subtraídas: ninguém declarou que os bens a que se refere a pronúncia tivessem sido retiradas das instalações da assistente nas datas da elaboração das retros respectivas.
8º) A testemunha CC expressamente afirmou que “nunca chegámos a concluir quem é que fazia o transporte” (gravação referida, passagem de 1:27:40 a 1:27:42).
9ª) O documento de fls. 42, do qual a testemunha AA “disse tratar-se de uma retro criada pelo arguido DD onde escreveu que o EE (o arguido A) iria buscar o bem” (pág. 12 da sentença), não é nenhuma das retros referidas no nº 13 dos factos provados e a frase nele manuscrita (”não coube na carrinha e o EE foi buscar depois”) nada permite concluir sobre a ocorrência de outros transportes nessa data – nem sequer se o artigo em causa foi transportado no mesmo dia da retro ou mais tarde.
10ª) O Tribunal recorrido atribuiu uma decisiva importância às fotos e à relação dos bens apreendidos ao ora recorrente (“artigos ainda embalados, alguns dos quais onde consta o nome ... e outros com os códigos das lojas da assistente”), apoiando-se ainda nos depoimentos das testemunhas FF e GG (ouvidos na sessão de ...-...-2024, manhã, entre as 10:19:04 e as 10:59:31 horas e entre as 11:00:34 e as 11:18:28 horas, respectivamente, cf. acta), que foram confrontados com os documentos que a acta identifica.
11ª) Sucede que FF não fez qualquer correspondência entre os artigos da pronúncia e os apreendidos e não pôde confirmar que estes fossem novos, tendo identificado os códigos 628 e 621, apostos em várias embalagens, como sendo os códigos dos armazéns da assistente de ... e de ..., respectivamente, e o código 623, por exclusão de partes, “provavelmente” da ... (passagens na gravação áudio, de 9:52 a 12:38, de 22:05 a 22:24 e de 26:48 a 27:26 (cfr. também o anexo ao auto de busca e apreensão de fls. 311 a 313).
12ª) Por seu lado, GG não esclareceu se se tratava de artigos novos ou de artigos novos, mas danificados (na gravação áudio, de 5:36 a 13:12): disse, portanto mais e algo de diferente do que vem exarado na sentença.
13ª) Por outro lado, a Mmª Juiz a quo não cuidou de verificar a desconformidade entre os artigos descritos na pronúncia e os artigos descritos no auto de busca domiciliária e apreensão de ...-...-2019, a fls. 308-310 (e que o respectivo anexo, elaborado pelo OPC, a fls. 311-313, ajuda a compreender).
14ª) São 58 os bens identificados na pronúncia (que a sentença reproduz na íntegra no nº 13. dos factos provados), dos quais só 4, no máximo, poderiam confundir-se com os bens apreendidos ao ora recorrente (vd. informação da ... no final do inquérito, de fls. 395-397):
- um sommier (vd. nºs 13.6., 13.08 ou 13.10. da pronúncia e item E1 do auto de busca domiciliária e apreensão – doravante, apenas “auto”),
- um sofá de 3 lugares (nº 13.10. da pronúncia e item A2 do auto), - um televisor ... (nº 13.12. da pronúncia e item D1 do auto),
- um televisor LG (nºs 13.12. ou 13.13. da pronúncia e item A4 do auto).
15ª) São 26 os artigos arrolados no auto de apreensão e não ficou demonstrado que algum deles corresponda aos bens elencados na pronúncia; mais, ficou claro que a esmagadora maioria dos bens apreendidos ao recorrente nada tem a ver com a pronúncia!
16ª) Os armazéns/lojas da assistente têm os códigos 621 (...), 623 (...) e 628 (...), como decorre expressamente dos “mali” e “boni” juntos por esta aos autos (os quais, pela sua profusão, demonstram ainda que milhares de artigos eram abatidos ao stock por motivos variados), para além da prova testemunhal.
17ª) Muitos dos bens apreendidos têm o código de loja da ... (623): cfr. fls. 335, 337, 338, 344 (este menciona o nº de uma retro, mas que não consta da pronúncia), 345, 346, 348 (que contém inclusive o nome de um cliente), 349, 351 e 353; e os artigos referidos pelas testemunhas FF e GG como sendo ou podendo ser novos, bem como os que identificaram como danificados, também não constam da pronúncia: vd. fls. 330 (Nº 27 -F1), 339 (Nº 43 - F3), 347 (Nº 54 – F3), 349 (Nºs 57 e 58 – F3), 350 (Nº 59 - F3) e 355 (Nº 66 – F3).
18ª) Quanto aos quatro bens acima referidos em relação aos quais poderia estar indiciada a sua identidade entre a pronúncia e a apreensão - um sommier (item E1), um sofá de 3 lugares (item A2), um televisor ... (item D1) e um televisor LG (item A4) -, não dispomos nos autos de dimensões, de cores, de modelos ou de outros referências que permitam estabelecer, para lá de toda a dúvida razoável, que se trata dos mesmos artigos.
19ª) Por outro lado, a Mmª Juiz a quo fundamentou a sua decisão também na apreensão ao recorrente de “uma máquina de roupa whirlpool (retro 57604), um sofá chaise long cinza (retro 61187)” – o que constitui um equívoco evidente, manifesto, notório.
20ª) Ao recorrente não foi apreendida qualquer chaise longue, nem qualquer máquina de roupa de marca ...: foi-lhe apreendida uma máquina de lavar roupa de marca ... (item C1), que não é a mesma que vem descrita no nº 13.1. da pronúncia (e da sentença), e uma máquina de lavar loiça (não roupa) marca ... (item B1), que não se confunde com a máquina de lavar loiça da pronúncia (13.1.).
21ª) O arguido veio pronunciado e veio a ser condenado pela subtracção dos concretos bens identificados no nº 13 dos factos dados como provados – esses e não outros -, do armazém da ... (nºs 13.1. a ...., entre ...-...-2017 e ...-...-2018) e do armazém da loja de ...(nºs13.12.a13.14.,...-...-2018); não veio pronunciado pela subtracção de quaisquer artigos do armazém da loja da ....
22ª) Não pode sustentar uma decisão condenatória a circunstância de poderem pertencer à assistente alguns ou mesmo todos os artigos apreendidos ao recorrente, se estes artigos não são os mesmos por cujo furto aquela apresentou queixa e o arguido vinha pronunciado e se não se apura por que modo ele entrou na sua detenção - constituiria uma manifesta e grosseira alteração substancial dos factos, geradora de nulidade da sentença, condenar o arguido pelo furto de bens diferentes e em circunstâncias diversas daquelas que vinham descritas na pronúncia (cf. arts. 359º, nº 1, e 379º, nº 1, al. b), do CPP).
23ª) Por outro lado, a decisão a quo assenta, em parte, na presunção judicial ou natural de que se o arguido está na posse de bens da (ou, pelo menos, com origem na) assistente, é porque os furtou (“o facto de alguns dos objetos apreendidos terem aposto o nome ..., outros terem o código das lojas da assistente e o facto de alguns bens encontrarem-se ainda embalados, leva-nos a crer, tendo em atenção as regras da normalidade, que tais bens pertencem à assistente.”).
24ª) “A presunção judicial intervém quando as máximas da experiência e da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar, sem margem para dúvidas, que certo facto é a consequência típica de outros” (Acórdão da Relação de Évora de 03-12-2024, processo 500/22.1JAFAR.E1).
25ª) Porém, nos termos da pronúncia (e da sentença), decorreram mais de 15 meses entre a data da última retro / do último furto e a data da apreensão de bens ao arguido ora recorrente (e já demonstrámos, com toda a certeza, que pelo menos 24 dos 28 artigos apreendidos não são os mesmos da pronúncia).
26ª) Quando o intervalo temporal entre os dois factos (subtracção / apreensão) é desta dimensão, deixa de ser possível inferir um facto a partir do outro, constituindo-se uma dúvida óbvia sobre a forma como os bens apreendidos vieram à posse do arguido, não se podendo excluir que eles houvessem entrado na sua posse por outra via (nomeadamente por meio de receptação: isto é que o recorrente os tivesse recebido ou adquirido através de terceira pessoa (cf. art. 231º, nºs 1 e 2, do Código Penal), pelo que a presunção judicial não pode operar.
27ª) Acresce que existe outra explicação plausível – e sobre a qual terá ficado, pelo menos a dúvida - para a posse dos bens pelo recorrente e que alegou na sua contestação (cf. artigos 7º e 8º): a sua retirada dos contentores que a assistente mantinha no exterior dos seus armazéns e lojas, nos quais eram colocados artigos com defeito que não vendia e dos quais assim se desfazia.
28ª) A factualidade vertida nos nºs 20 e 21 dos factos provados, não é, em rigor, ou não é exactamente a que resulta da produção de prova, que impõe decisão diversa, porque nem todos os electrodomésticos avariados “eram colocados à parte no interior do armazém para posterior recolha”: cf. depoimentos de AA, que expressamente referiu que os electrodomésticos com avaria eram colocados no contentor para recolha pela ... (passagem na gravação áudio de 44:35 a 45:31), e de GG (passagem na gravação áudio de 4:12 a 4:50) que declarou que, na loja de ..., os electrodomésticos (entenda-se, os avariados) eram colocados em contentor.
29ª) Por outro lado, não suscita dúvidas que os artigos colocados nos contentores estariam danificados ou com outro tipo de defeito; o que não se pode aceitar, por não corresponder à prova feita, é que eles fossem (ou fossem sempre) previamente destruídos e ou inutilizados.
30ª) Neste sentido, os depoimentos de AA (de 44:35 a 45:31 na gravação áudio), de HH (sessão de ...-...-2024, tarde, de ........01 a ........35, cf. acta; na gravação áudio, o depoimento tem início às 16:14 e fim às 16:29 - vd. em especial passagem de 12:00 a 12:43), de DD (mesma sessão, de ........01 a ........01 de acordo com a acta; no áudio a gravação tem início às 16:30 e fim às 16:42 – vd. em especial segmento do minuto 9:35 a 10:00) e, com particular ênfase, de FF (depoimento de ...-...-2024, na gravação áudio de 7:57 a 9:01), que declarou que “as instruções eram de destruição dos produtos mas ninguém o fazia”.
31ª) Ora, as regras da experiência comum permitem concluir que muitos artigos não se partiriam e se conservariam intactos (para além dos defeitos que já apresentavam), em especial quando o contentor se encontrasse já cheio ou próximo de o estar (na medida em que o impacto seria muito inferior ao que se registava quando o contentor estivesse vazio ou perto disso).
32ª) Por fim, a testemunha AA (sessão de ...-...-2024, na gravação áudio de 46:37 a 47:50) reconheceu que podia haver artigos no contentor de que não tivesse sido dada baixa no stock, pelo que não estariam no “mali” (por conseguinte, o facto provado sob o nº 22 não pode ter o alcance peremptório que lhe foi dado).
33ª) Por fim, nenhuma prova foi feita de que haja existido qualquer “plano” ou “comunhão de esforços” entre os arguidos no sentido que ficou dado como provado nos nºs 1 e 15 ou que o(s) arguido(s) tenha(m) vendido qualquer artigo a terceiros – tal conclusão não resulta das regras de experiência comum e, de resto, perde sentido ao não ficar provada a imputada subtração.
34ª) Consequentemente, este Venerando Tribunal da Relação há-de julgar não provados os factos que a primeira instância deu como provados sob os nºs 1, 11 (no que se refere ao arguido A), 12, 14, 15, 18 e 19.
35ª) No que respeita aos factos nºs 20 e 22 dados como provados, há-de ser modificada a resposta dada pelo Tribunal a quo, decidindo-se dar como provado que:
“20. Com exceção dos eletrodomésticos avariados, que tanto eram colocados à parte no interior do armazém, como eram colocados no contentor para posterior recolha para reciclagem, a assistente mantinha contentores no exterior dos seus armazéns e das lojas, nos quais eram colocados, artigos com defeito não passíveis de serem vendidos mesmo com desconto, artigos que por vezes eram destruídos/inutilizados antes de irem para os referidos contentores.
22. Os artigos com defeito e não passíveis de serem vendidos passavam em regra a integrar um documento/listagem denominada “mali”, após o que eram colocados nos contentores para serem recolhidos pela operadora contratada.”
36ª) Foi considerada não provada por ausência de prova a factualidade alegada no artigo 10º da contestação do ora recorrente, de que a maioria dos bens que lhe foram apreendidos foi por ele retirada dos contentores da assistente, mas a prova produzida evidenciou que havia bens efectivamente retirados dos referidos contentores e por diferentes pessoas – portanto, também potencialmente pelo ora recorrente.
37ª) A este respeito, há que reter os depoimentos prestados pelas testemunhas CC (sessão de ...-...-2024, tarde; gravação áudio, passagem de 1:06:58 a 1:07:22), que via muitas pessoas de etnia cigana a acederem ao contentor e a levarem bens, II (mesma sessão, depoimento de ........01 a ........35, segundo a acta; na gravação áudio de 15:40 a 16:08), o qual perguntado se a ... tinha política para os colaboradores levarem produtos, declarou que não, mas que “havia colaboradores que ficavam com produtos que iam para o lixo”, JJ (sessão de ...-...-2024, manhã, de acordo com a acta, depoimento entre 11:57:13 e 12:02:14; na gravação áudio de 11:57 a 12:02), que deu conta de que uma vez estava um sofá no lixo e o arguido DD pediu-lhe ajuda para o carregar e o levar, FF (sessão referida, passagens na gravação áudio de 5:05 a 6:29 e de 6:59 a 7:08), que reconheceu que levou produtos para casa e que “podia um ou outro levar coisas do lixo”, KK (sessão de27-09-2024,tarde,de acordo com a acta, início da gravação pelas 16:36:02 e termo pelas 16:24:38, o que constitui lapso de escrita manifesto; na gravação áudio o depoimento encontra-se do minuto 16:36 a 16:49), que declarou que a loja da ..., única que mostrou conhecer bem, tinha dois contentores abertos, um para cartões e outro para “sofás quebrados” e que viu pessoas externas à ... a retirar coisas, talvez dez vezes (passagem de 3:43 a 7:10), e, bem assim, HH (sessão já referida, passagens de 9:19 a 10:14 e de 13:48 a 13:52), que afirmou que sabia que havia pessoas que levavam coisas do contentor e dele sobressai a frase “os portões depois de fechados ia lá quem fosse”.
38ª) Deste modo, analisada a prova testemunhal, forçoso é concluir que, apesar de a assistente não autorizar a retirada de bens dos contentores do lixo, essa prática existia, apesar se as pessoas com funções de direcção (por exemplo, a testemunhas AA), não conhecerem essa realidade porque não a presenciavam.
39ª) O recorrente reconhece que não fez prova directa do facto que foi dado como não provado sob o nº 2; porém, o Tribunal recorrido podia e deveria ter extraído da prova testemunhal mais do que a mera resposta negativa que enunciou, pelo que haverá de ser dado como provado, pelo menos, porque com interesse da boa decisão da causa, que “Eram retirados bens dos contentores existentes no exterior dos armazéns da assistente, designadamente por colaboradores seus.”
40ª) A alteração da factualidade provada, que ora se propugna, sendo considerados não provados os factos dados como provados sob os nºs 1, 11, 12, 14, 15, 18 e 19, modificada a redacção dos factos nºs 20 e 22 e aditado um novo facto provado, faz desaparecer o substracto factual da conclusão do Tribunal a quo sobre os elementos objectivos do tipo do crime de furto, p. e p. pelo nº 1 do art. 203º do Código Penal, que não se mostram, deste modo, preenchidos por não se ter provado nem a intenção de apropriação, nem a subtracção de coisa móvel alheia.
41ª) A esta luz, a pronúncia revela-se improcedente, por não provada, pelo que deve ser revogada a decisão condenatória do ora recorrente e este ser absolvido na íntegra do crime pelo qual foi condenado em primeira instância, pelo que não se coloca a questão da qualificação em valor elevado da coisa, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 204º do mesmo código.
42ª) Deste modo, sendo o recorrente absolvido do crime de furto qualificado (depois da alteração da qualificação jurídica operada pelo Tribunal em sede de audiência de julgamento) e não se verificando qualquer ilícito civil, forçosamente terá também de ser absolvido do pedido de indemnização civil (cf. Assento 7/99 do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-06-1999, processo 993/98, publicado no Diário da República, I Série-A de 03-08-1999)».
3. O recurso foi admitido, por despacho de ... de ... de 2025, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. O Ex.mo Magistrado do Ministério Público em primeira instância respondeu ao recurso interposto, propugnando pela confirmação do julgado. Extrai da motivação as seguintes conclusões:
«1. Perante a prova produzida e analisada em julgamento, e avaliada essa prova de modo global e complexivo, andou bem o tribunal a quo ao condenar o arguido ora recorrente pela prática do furto qualificado, nos exatos termos constantes da sentença recorrida.
2. Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, verifica-se que a sua discordância assenta na valoração da prova efetuada pelo tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida e das regras do normal acontecer, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
3. No caso em apreço, não existem dúvidas de que a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127.º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, pelo que bem andou o tribunal a quo ao dar como provados os factos constantes da matéria de facto provada.
4. Deverá, pois, ser mantida a sentença recorrida».
5. Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, louvada na resposta, é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.
6. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P., não houve resposta.
7. Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos e realizada a conferência, cumprindo, agora, decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, importa fazer exame da questão atinente ao invocado erro do Tribunal a quo no julgamento da matéria de facto.
2. A decisão trazida da instância sobre a matéria de facto é do seguinte teor:
«De relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. Em data não concretamente apurada, mas certamente a partir de meados do ano de ..., os arguidos, agindo em comunhão de esforços e intentos, e mediante um plano previamente elaborado, decidiram aproveitar-se da sua condição de funcionário e prestador de serviços da sociedade ofendida ... (doravante ...), para, através de um estratagema, se apoderarem de bens pertença desta.
2. À data dos factos, o arguido DD exercia as funções correspondentes ao cargo de chefe adjunto dos armazéns de ... e de ..., de apoio à loja da ofendida, sita no ..., na ....
3. Assim, ao arguido DD, de entre as suas funções, cabia-lhe organizar a distribuição de mercadorias, efetuando, por via de acesso ao sistema informático ali existente, registos dos movimentos de entrada e saída de armazém, no que se incluía, a troca de bens entre as várias lojas da ofendida, denominadas vendas em “retrocessão” (doravante “retro”).
4. Por seu lado, à data dos factos, o arguido A exercia funções de motorista na sociedade ..., empresa essa contratada pela ..., para efetuar o transporte de bens entre as lojas de ... e os seus respetivos armazéns.
5. A ... possui um procedimento interno de transferência de mercadorias entre as várias lojas existentes em território nacional, denominado de “vendas em retrocessão”, quando, face a um pedido de um cliente numa loja, se verifica que o bem consta do inventário de outra.
6. O procedimento a nível informático decorre do modo que se descreve de seguida:
a) A loja que pretende o bem envia um pedido por email à loja que possui o produto;
b) O chefe de armazém ou quem atue como seu adjunto receciona o pedido, inicia no sistema informático a “retro”, elaborando um registo com os códigos e quantidades do bem solicitado;
c) De seguida, ao validar a inserção desses códigos, a “retro” gera um número que a identifica, deixando os bens de constar do inventário desta loja;
d) Depois, o chefe de armazém, ou quem atua como seu adjunto, na posse desse número identificativo da “retro”, dá depois dele conhecimento via email à loja que pediu o bem;
e) Esta por sua vez, após confirmação de receção da mercadoria, insere o número identificativo da “retro” no seu sistema informático, passando os bens a constar física e informaticamente do seu inventário;
f) Elaborados estes passos, a “retro” considera-se concluída.
7. O procedimento a nível físico decorre do modo que se descreve de seguida:
a) Com a elaboração da “retro” é emitido um documento em papel onde consta a descrição dos bens e as respetivas quantidades resultante do registo informático efetuado, que é assinado pelo chefe de armazém e pelo transportador;
b) Juntamente a este documento é anexada uma guia de transporte igualmente elaborada pelo chefe de armazém que, sendo entregues ao transportador, receciona a mercadoria e procede à sua movimentação de uma loja para a outra.
8. No período que medeia entre a elaboração da “retro” na loja que fornece os bens e o momento da sua confirmação na loja que os receciona, ou seja, entre a sua movimentação física, os bens deixam de constar do inventário da primeira sem que constem do inventário da outra loja.
9. Apercebendo-se desta fragilidade do procedimento interno da ..., o arguido DD, e sem que existisse qualquer pedido de bens por parte de outra loja, iniciou vários procedimentos de vendas a “retro”, para tanto inserindo no sistema informático da ofendida, vários registos de bens e respetivas quantidades que lhes interessassem.
10. Efetuados e validados esses registos de “retro”, os bens deixaram automaticamente de constar do inventário da loja, logrando o arguido DD com este estratagema manter em engano o sistema informático da ofendida, e consequentemente a sua entidade patronal, fazendo-lhe crer que os referidos bens não existiam.
11. Em ato seguido, os arguidos procederam à separação física dos bens nos armazéns da loja da ofendida, que, depois de carregados em veículo de transporte a cargo do arguido A, foram transportados para as residências de ambos ou outros locais não apurados, levando-os consigo, e fazendo-os seus.
12. Os referidos bens eram depois colocados a uso dos arguidos ou vendidos a terceiros de identidade não apurada, repartindo entre si o produto da venda.
13. Na execução deste estratagema, o arguido DD elaborou as seguintes retros falsas:
...
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13.1. No dia ...-...-2017, emitiu a retro nº 57604, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 1.470,44€ (mil quatrocentos e setenta e quarenta e quatro cêntimos): - 1 (uma) máquina de lavar loiça ... 14 8P A+++;
- 1 (uma) máquina de lavar roupa ... +++Br 10kg;
- 1 (uma) máquina de lavar roupa Whhirlpool 9kg; - 1 (uma) máquina de secar roupa ... 8kg
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13.2. No dia ...-...-2017, emitiu a retro nº 7265, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 513,00€ (quinhentos e treze euros):
- 1 (um) sofá chaise longue com cama
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13.3. No dia ...-...-2017, emitiu as retros nº 58306, 7278, e 7279, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 2.290,26€ (dois mil duzentos e noventa euros e vinte e seis cêntimos):
- 1 (um) sommier 160x200 mm;
- 1 (um) colchão 160x200mm Pikolin
- 1 (um) colchão 160x200 mm Pikolin
- 1 (um) sofá de canto
- 1 (uma) máquina de secar roupa Indesit 7kg
- 1 (uma) máquina de lavar loiça ...
- 1 (um) frigorifico combinado ...
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13.4. No dia ...-...-2017, emitiu a retro nº 7370, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 726,53€ (setecentos e vinte e seis euros e cinquenta e três cêntimos):
-1 (uma) cama 140x190 mm
- 1 (um) colchão 140x190 Molaflex
- 1 (um) sofá chaise longue
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13.5. No dia ...-...-2017, emitiu a retro nº 739, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 607,27€ (seiscentos e sete euros e vinte e sete cêntimos):
- 1 (um) conjunto de mesa e 4 (quatro) cadeiras
- 1 (um) móvel de sala
- 1 (uma) cama
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13.6. No dia ...-...-2017, emitiu a retro nº 7397, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 990,39€ (novecentos e noventa euros e trinta e nove cêntimos):
- 1 (um) sommier 140x190 mm
- 1 (um) colchão 140x190 mm
- 1 (um) colchão 160x200 mm Pikolin
- 1 (um) colchão 140x190 mm
- 1 (uma) cabeceira capitonê 160mm
- 1 (uma) cabeceira capitonê 160mm
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13.7. No dia ...-...-2018, emitiu a retro nº 59851, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 1.562,90€ (mil quinhentos e sessenta e dois euros e noventa cêntimos): - 1 (um) frigorifico combinado ...
- 1 (uma) máquina de lavar loiça ...
- 1 (um) frigorifico combinado LG
- 1 (uma) máquina de lavar loiça ...
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13.8. No dia ...-...-2018, emitiu a retro nº 7488, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 982,02€ (novecentos e oitanta e dois euros e dois cêntimos):
- 1 (uma) cadeira
- 1 (um) sommier 160x200mm
- 1 (uma) cabeceira
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13.9. No dia ...-...-2018, emitiu a retro nº 60869, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 1.674,90€ (mil seiscentos e setenta e quatro euros e noventa cêntimos): - 1 (um) sofá chaise-longue com cama
- 1 (um) frigorifico side by side ...
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13.10. No dia ...-...-2018, emitiu as retros nº 7577 e 61187, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 2.701,28€ (dois mil setecentos e um euros e vinte e oito cêntimos):
- 1 (um) congelador vertical Confortec
- 1 (um) frigobar Confortec
- 1 (um) sofá de três lugares
- 1 (um) sofá chaise-longue
- 1 (um) sofá de canto com cama
- 1 (um) sommierv 160x200mm
- 1 (um) colchão 160x200mm Molaflex
- 1 (um) colchão 140x190mm Molaflex
- 1 (um) roupeiro
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.... No dia ...-...-2018, emitiu a retro nº 61351, para saída do armazém de ... dos bens seguintes no valor de 2.384,84€ (dois mil trezentos e oitenta e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos):
- 1 (uma) máquina de lavar loiça Indesit
- 1 (uma) máquina de lavar roupa LG
- 1 (uma) máquina de lavar loiça ...
- 1 (uma máquina de secar roupa LG
- 1 (um) sofá chaise-longue com cama
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...
13.12. No dia ...-...-2018, emitiu a retro nº 7534, para saída do armazém da loja de ... dos bens seguintes no valor de 2.529,18€ (dois mil quinhentos e vinte e nove euros e dezoito cêntimos):
- 1 (um) forno 45 L jocel
- 1 (uma) placa mais forno ...
- 1 (um) micro-ondas ...
- 1 (um) forno 70 L teka
- 1 (uma) televisão Led 49´´ Panasonic
- 1 (uma) televisão Led 43´´ ...
- 1 (uma) televisão Led 43´´ LG
- 1 (um) micro-ondas 39 L
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13.13. No dia ...-...-2018, emitiu a retro nº 7639, para saída do armazém da loja de ... dos bens seguintes no valor de 500,82€ (quinhentos euros e oitenta e dois cêntimos):
- 1 (uma) televisão Led 43´´ LG
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13.14. No dia ...-...-2018, emitiu a retro nº 745, para saída do armazém da loja de ... dos bens seguintes no valor de 648,00€ (seiscentos e quarenta e oito euros):
- 1 (uma) televisão Led 32´´ LG - 1 (uma) televisão led 43´´ ...
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14. Bens no total de 19.581,93€ (dezanove mil quinhentos e oitenta e um euros e noventa e três cêntimos), de que os arguidos se apoderaram, levaram consigo e fizeram seus.
15. Os arguidos, em comunhão de esforços e intentos, agiram com o propósito concretizado de fazer seus os bens da ..., cientes de que dispunham de coisas que não lhes pertenciam e que estavam a atuar contra a vontade da sua legítima dona.
16. O arguido DD sabia ainda que, ao efetuar os registos no sistema informático da ..., os dados por si introduzidos eram aptos a enganar a ofendida, levando-a a crer que os bens de sua propriedade já não constavam do inventário, facilitando a sua subtração e posterior apropriação por aqueles, e, bem assim, a ocultação dessa subtração ilícita.
17. Assim agindo, introduzindo dados informáticos não genuínos no sistema informático da ... com o intuito pré-determinado de alterar os dados do inventário, o arguido DD estava ainda ciente de que, com a sua conduta causava engano e punha em causa a credibilidade inerente aos registos informáticos e documentos emitidos pela ofendida com base neles, atenta a sua falta de genuinidade, o que quis.
18. Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas não eram permitidas e eram proibidas por lei.
19. Em consequência da conduta dos arguidos, a demandante sofreu um prejuízo de 19.581,93 €.
20. Com exceção dos eletrodomésticos avariados, que eram colocados à parte no interior do armazém para posterior recolha para reciclagem, a assistente mantinha contentores no exterior dos seus armazéns e das lojas, nos quais eram colocados, artigos com defeito não passíveis de serem vendidos mesmo com desconto, artigos que eram destruídos/inutilizados antes de irem para os referidos contentores.
21. Os referidos contentores não se encontravam fechados, pelo que eram acessíveis a qualquer pessoa.
22. Os artigos com defeito e não passíveis de serem vendidos passavam a integrar um documento/listagem denominada “mali”, após o que eram destruídos/inutilizados e só depois eram colocados nos contentores para serem recolhidos pela operadora contratada.
23. Existia um documento/listagem denominado “boni” onde eram listados todos os bens que não estavam no “stock” mas que existiam fisicamente, reportando situações em que o fornecedor, por lapso, havia enviado mais artigos do que os solicitados.
24. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
25. “…DD dispõe de enquadramento e apoio familiar gratificante, protagonizado pela família constituída e pela de origem, enquadramento que se constitui como fator de estabilidade pessoal. O arguido regista um percurso profissional que, não obstante a mobilidade, é pautado por hábitos de trabalho consistentes, encontrando-se inserido laboralmente, aparentemente com reconhecimento por parte dos seus pares, revelando satisfação, o que, a par de se revelar um individuo organizado, se avalia favoravelmente…”.
26. É motorista e aufere 1.100 euros líquidos mensais.
27. O arguido DD é solteiro e vive com uma companheira e dois filhos, um de cinco meses e um de 5 anos e dois filhos da companheira de 20 e 23 anos.
28. Tem mais dois filhos de 23 e 17 anos, contribuindo o arguido com € 135 euros mensais para o sustento do mais novo.
29. A companheira é cantoneira e aufere 820 euros de renda mensal.
30. Paga 80 euros de renda de casa.
31. Possui como habilitações literárias o 7º ano de escolaridade.
32. O arguido A trabalha como assistente de produção e aufere 700 euros líquidos mensais.
33. É casado e vive com a mulher e um filho de 10 anos.
34. A mulher é empregada de limpeza e aufere 820 euros líquidos mensais.
35. Vive em casa própria, que herdou e encontra-se paga.
36. “…Presentemente, A apresenta estabilidade profissional trabalhando desde há dois anos para as mesmas pessoas, tendo a mulher do arguido informado que a entidade patronal manteve o apoio ao arguido, mesmo depois de ter tomado conhecimento da existência do processo judicial em curso…”.
37. O arguido A é tido por aqueles que com ele privam como um bom pai de família, uma pessoa trabalhadora, prestativa e honesta.
38.Possui como habilitações literárias o 5º ano de escolaridade.
2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Com relevo para a discussão da causa não se logrou provar a seguinte matéria de facto:
1. Que o arguido A procedeu à separação física de bens nos armazéns da assistente.
2. Que a maioria dos bens apreendidos ao arguido A no âmbito da busca efetuada à sua residência, foi por ele retirada de contentores existentes no exterior dos armazéns da assistente, na ... e em ..., e das suas lojas de ....
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal relativamente aos factos de índole criminal fundou-se na análise crítica e conjugada da prova e as regras de experiência comum.
O arguido A no uso do direito que lhe assiste não quis prestar declarações.
O arguido DD optou por apenas prestar declarações após a produção de prova. O arguido negou a prática dos factos. Admitiu que trabalhou para a ofendida como chefe adjunto e depois passou a exercer as funções de chefe de armazém e o modo de funcionamento das “retros”, confessando os factos assentes sob os n.º 2, 3, e 5 a 8. Negou ter sido ele o autor das “retros” aqui em apreço, Disse que as retros podiam ser abertas num dia por um trabalhador e fechada noutro dia por outro trabalhador, sendo que apenas ficava registada a password e user name do colaborador que finalizava a retro; que todos os colaboradores da Assistente conheciam as passwords uns dos outros. Referiu que nunca lhe chamaram a atenção para estas retros e que saiu da ... porque queriam que fizesse funções de chefe de armazém mas não queriam pagar o salário correspondente a tais funções. Admitiu ter conhecimento da regra que os funcionários não estavam autorizados a levar o que quer que fosse dos contentores. Referiu que ficou com um sofá que lhe foi oferecido pelo CC, responsável de armazém, que se apropriou de uma máquina de lavar que estava a mais no stock e que levou para casa da mãe e que ficou com um sofá que estava no armazém e que se destinava ao contentor.
Por seu turno, AA, diretora de loja, que prestou um depoimento tranquilo, linear e isento, explicou as funções que o arguido exerceu e os armazéns onde trabalhou, o modo de funcionamento das retro tal como se deu como assente; que só os chefes de armazém e os adjuntos de chefe é que as podiam realizar, sendo os únicos funcionários com formação para o efeito; que todos os funcionários tinham passwords pessoais e intransmissíveis e username diferente e nunca teve conhecimento que um funcionário utilizasse a password de um colega; que num determinado momento a Assistente efetuou a verificação de todos os bens que constavam das retro e que não tinham chegado ao destino, que em ... CC, responsável de armazém ligou-lhe a dar conta disso mesmo e, quando voltou de férias, foi com o CC verificar o que se tinha passado, apercebendo-se que existiam inúmeros bens constantes de várias retros que nunca chegaram à loja de destino, lojas de ... ou ...; que verificaram que as retros haviam sido criadas em ..., e não existia e-mail a solicitar esses bens, facto que confirmou com as lojas de ... e de ...; que analisaram todas as retros, verificaram os “users” e constataram que quase todas haviam sido feitas pelo arguido DD, cujo username era “...”. Explicou algumas das retros continham um código de utilizador genérico, pelo que foram ver as datas e horas em que as mesmas haviam sido feitas e quem eram os chefes de armazém ou adjuntos que estavam ao serviço nesse dia e hora, tendo concluído que foi sempre o arguido DD. Foi confrontada com o documento de fls. 35, onde consta a listagem das retro em causa, explicando todos as colunas, códigos de loja que emite a retro, loja de destino, quantidade dos bens, descrição e valor dos bens, e username do autor da retro, no caso LL ou o user genérico X621. Mais, explicou o significado das listagens Mali e Boni, e do seu depoimento resulta que os artigos constantes das retros não integravam nenhuma destas listagens e que produtos com defeito mas passíveis de venda, também não integravam a listagem Mali. Foi confrontada com o email de fls. 37, email que a colaboradora MM enviou para todos os chefes com a listagem das retros em causa, que nessa data o arguido DD exercia funções de chefe de armazém pelo que também recebeu o email, tendo o mesmo apresentado carta de demissão (junta a fls. 39), no próprio dia que recebeu o email. Referiu, ainda, que o arguido A, era motorista da empresa que efetuava os transportes entre as lojas da ..., que o carro que constava na guia de transporte como sendo o veículo que ia levantar a mercadoria era o do arguido A e que em algumas até estavam assinadas deste confirmando o levantamento, e confrontada com fls. 42, disse tratar-se de uma retro criada pelo arguido DD onde escreveu que o EE (o arguido A) iria buscar o bem.
A testemunha prestou um depoimento exaustivo quanto aos factos aqui em apreço, sendo que o seu depoimento foi confirmado pelos depoimentos de CC, responsável de armazém, que ainda explicou que costumavam fazer a conciliação de retros mensalmente, mas neste período a central foi alterada em ... e estiveram cerca de seis meses sem receber as conciliações de retro; que antes de avisar a testemunha AA sobre esta situação ele próprio investigou e falou com os colegas das lojas de ... e ..., e que os objetos constantes das retro não constavam da listagem Mali, tratavam-se de bens para venda; e pelo depoimento de NN, diretor da loja da ..., que ainda acrescentou que os funcionários estavam proibidos de levar produtos que eram para o lixo e que tal era justa causa de despedimento, e pelo depoimento de BB, à data “controler” loja de ..., que ainda referiu que o motorista transportava os bens constantes das retro verdadeiras e das fictícias, que só tinham um transportador/motorista por dia e que confirmou que nesses dias o transportador era o arguido A, facto que o surpreendeu pois considerava-o um bom profissional; que não é normal os funcionários esquecerem-se do cartão da assistente, mas por vezes acontecia, nesses casos não podiam passar o cartão para controle das horas de trabalho e então entravam nas instalações e ligavam de lá para um funcionário que anotava o horário desse trabalhador nesse dia.
Todas estas testemunhas prestaram depoimentos tranquilos, lineares e isentos, demonstrando conhecimento dos factos.
As testemunhas OO, à data ajudante de armazém, confirmou só os chefes e adjuntos faziam as retros;
DD, ajudante de armazém disse não saber fazer retros e que os operadores de armazém não utilizam computador,
FF, operador de armazém confirmou que só os chefes e adjuntos faziam as retro, que não se podia retirar bens dos contentores, que uma vez retirou um sofá e ia sendo despedido por causa disso, viu fls. 330 (foto de um bem apreendido ao arguido A) e disse tratar-se de um eletrodoméstico novo pela forma como estava embalado, tendo ainda sido confrontado com outras fotos de bens aprendidos tendo identificado vários bens como sendo da assistente face aos códigos que apresentavam 621, 628;
GG, à data colaborador da Assistente, disse que só os chefes e adjuntos podiam fazer retros, que nunca usou o username o password de um colega, que sabia que não se podia levar nada do lixo; viu fls. 330 afirmou que se tratava de um produto novo mas que podia ser um produto novo danificado, viu fls. 350, 355, 339, 347, apenas conseguindo afirmar que o constante de fls. 350 é um produto danificado;
PP, à data operador de armazém, disse não saber o que é uma retrocessão, que nunca usou uma password de outra pessoa;
QQ, operador de armazém confirmou que só os chefes e os adjuntos podiam fazer retros, que à data não fazia retros, admitiu que já utilizou a password de um colega e confirmou que não podiam levar objetos do lixo;
RR, operador de armazém confirmou que não estão autorizados a retirar objetos do lixo;
SS, operador de armazém afirmou que nunca fez um retro nem mexeu no computador;
JJ referiu que só os chefes fazem retros, acha que não se pode levar produtos do lixo mas uma vez ajudou o DD a tirar um sofá do lixo;
TT, à data operador de armazém de ..., disse que nunca fez retros nem usou a pass de um colega e que não era normal acederem ao sistema com a password de outra pessoa.
Estas testemunhas depuseram de forma tranquila e isenta, sendo que a maior parte já não trabalha para a ofendida, pelo que não existe qualquer condicionamento no seu depoimento por serem seus colaboradores
A testemunha II, que conhece o arguido DD há cerca de 20 anos por este ser companheiro da sua irmã, e o arguido A há cerca de 10 anos por ter trabalhado na ... até ..., que trabalhou como chefe adjunto, afirmou que fazia retros e que o pedido para efetuar uma retro chegava por email ou por telefone e que quando era feito por telefone o pedido não ficava documentado, que as retro eram abertas e podiam ficar abertas durante uma semana; confirmou que todos os funcionários tinham password pessoal e intransmissível; que quando existiam produtos que se destinavam ao lixo pedia ao CC e ele uma vez deixou-o levar um sofá chaise long, escuro com pintinhas, desconhece se o cunhado levou algum objecto para o lixo. O depoimento desta testemunha não nos mereceu qualquer credibilidade, pois foi a pessoa que referiu que as retros podiam ser feitas com pedidos via telefone, facto que nem o próprio arguido DD referiu.
As declarações do arguido DD quanto ao facto de não ser o autor das retros e que os colaboradores da assistente utilizavam as passwords uns dos outros, não só não se coaduna com as regras de experiência comum, como foram contrariadas pela restante prova. Não só não existem emails a solicitar os bens constantes das retro, como a maioria das retros tem a password e user name do arguido, e as que contém um user genérico – foram todas criadas no horário em que quem estava ao serviço com capacidade e conhecimento para fazer as retros era o arguido.
Tentou a defesa mostrar que o registo do horário laboral não era absolutamente correto porque às vezes os funcionários esqueciam-se do cartão e de ligar no exato momento em que chegavam ao serviço por forma a registar corretamente a hora de entrada. Não colocamos em causa que possa haver uma ou outra situação em que o registo não coincida exatamente com a hora de entrada. Mas estamos a falar de minutos, o que em nada belisca o apuramento feito pelas testemunhas AA e CC.
Pelo exposto, com base no depoimento das testemunhas AA, CC, NN e BB, e ainda o depoimento da testemunha UU, no que concerne ao nome da empresa para quem o arguido A trabalhava, conjugados com os documentos juntos aos autos, a saber fls. 26 a 29, contrato de trabalho do arguido DD e respetivas adendas; fls. 32 listagem das retros, fls. 37 email de VV, de ........2018, com a listagem das retros não conciliadas e que o arguido DD recebeu, por estar a desempenhar funções de chefe de armazém; fls. 39 carta do arguido datada desse mesmo dia ........2018 a renunciar ao cargo de chefe de armazém; fls.40 carta enviada pelo arguido DD, datada do dia seguinte ........2019 informando a ... da sua intenção de rescindir o contrato, fls. 41 carta enviado pelo arguido DD em aditamento à rescisão por forma a dar os 60 dias de pré-aviso, fls. 42 retro criada pelo arguido DD onde apôs que o arguido A iria levar a mercadoria, fls. 44 retro 61124 de ........2018 criada a um Domingo, com registo de saída da mercadoria 19.13 h, quando não há transporte aos Domingos como afirmou a testemunha AA, fls. 284 a 302 auto de busca e apreensão na residência do arguido DD onde são apreendidas uma máquina de lavar Indesit (retro 58306, 7278 e 7279, um sofá chaiselong preto e um sofá chaise long cinza, e fls. 308 a 356 auto de busca e apreensão à residência do arguido A com fotos dos artigos ainda embalados, alguns dos quais onde consta o nome ... e outros com os códigos das lojas da assistente e onde foram apreendidos uma máquina de roupa whirlpool (retro 57604), um sofá chaise long cinza (retro 61187), o tribunal deu como assente os factos objetivos dos tipos de crime em causa.
Invoca a defesa que o facto de não constar o número de série dos eletrodomésticos e inexistindo n.º de série do mobiliário em causa ou qualquer outra marca distintiva não permite afirmar que os objetos encontrados nas residências dos arguidos correspondem aos objetos descritos nas retro em causa, por existirem milhares de eletrodomésticos da mesma marca e modelo e peças de mobiliário igual. No entanto, o facto de alguns dos objetos apreendidos terem aposto o nome ..., outros terem o código das lojas da Assistente e o facto de alguns bens encontrarem-se ainda embalados, leva-nos a crer, tendo em atenção as regras da normalidade, que tais bens pertencem à assistente.
Do comportamento objetivo dos arguidos, apurado nos termos supra, conjugado com as regras de experiência comum, inferiram-se os elementos subjetivos dados como assentes.
Relativamente ao arguido A, sempre se dirá que à luz das regras da normalidade, só podemos concluir que o arguido tinha conhecimento da atuação do arguido DD e aceitou participar nos factos com o mesmo intuito, sendo a sua participação como motorista que prestava serviços para a ofendida, importantíssima para que pudessem levar os bens para fora das instalações da ofendida sem levantar qualquer suspeita.
Relativamente, ainda, ao elemento subjetivo e à unidade ou pluralidade de resoluções criminosas dos arguidos, e como melhor adiante se explicará, tendo em atenção a homogeneidade da atuação, o período temporal em causa, conclui-se que os arguidos formaram desde o início uma única resolução criminosa de apropriarem-se dos bens que conseguissem.
No que respeita aos factos de natureza pessoal relativos aos arguidos, estes resultaram das declarações que prestaram quando ouvidos sobre as suas condições de vida, nos relatórios sociais e nos certificados de registo criminal juntos aos autos.
Mais, teve-se em atenção quanto à personalidade do arguido A, o depoimento das testemunhas KK, que o conhece há 10 anos, WW que o conhece há 25 anos, XX que o conhece desde ... e YY que o conhece há 30 anos, tendo todas as testemunhas prestado depoimentos claros e tranquilos.
No que respeita à matéria não provada sob o n.º 1 na total ausência de prova nesse sentido, tendo até sido produzida prova no sentido oposto, que os transportadores limitavam-se a ir recolher bens que já estavam previamente selecionados e colocados em lugar próprio e quanto ao facto sob o n.º 2 na ausência de prova que levasse o tribunal a concluir nesse sentido ou a admitir tal possibilidade, desde logo porque resultou provado que os eletrodomésticos avariados não iam para os contentores exteriores, e algumas das testemunhas reconheceram alguns dos bens como sendo novos como por exemplo FF quanto ao bem de fls. 330 e quanto a outros não ter a certeza se é novo porque a caixa está danificada, facto que pode ter ocorrido após ter saído das instalações da assistente».
3. Da questão prévia da nulidade da sentença por falta de fundamentação/apreciação crítica da prova
«As nulidades da sentença, por via da sua natureza específica em relação ao regime geral das nulidades, devem ser conhecidas oficiosamente pelo Tribunal de recurso, se constatadas, ainda que possam ser invocadas por qualquer dos sujeitos processuais. Estão em causa omissões essenciais e estruturais da sentença que por isso não podem deixar de ser apreciadas, quando ocorram. No mesmo sentido MADEIRA, 2021, p. 1158, sublinhando que «nem podia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio d acusatório e sem qualquer dispositivo».
Deve sublinhar-se que a alteração legislativa decorrente da L 20/2013, que levou à introdução do n.º 3 implicou a caducidade da interpretação efetuado pelo Assento n.º 9/92, 6.5.1992 (LUCENA e VALE) ao dizer que "não é insanável a nulidade da alínea a) do artigo 379.° do Código de Processo Penal de 198, consistente na falta de indicação, na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo artigo 374.°, n.º 2, parte final, do mesmo Código, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119.° daquele diploma legal", tendo em conta que à data da prolação daquele assento, inexistia tal norma»1.
Num Estado de Direito, os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão2.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva o objectivo de tal dever de fundamentação, imposto pelos sistemas democráticos, é permitir «a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina».
Como referia Alberto dos Reis, uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas.3
Concretamente, dispõe o art. 379º do C.P.P. que é nula a sentença:
«a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F».
Por seu turno, o art. 374º, n.º 2 do C.P.P. determina que: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
«A exigência de fundamentação consiste na imposição de que “as decisões sejam eficazmente motivadas em matéria de facto e de direito”. “Motivar, na sua aproximação mais óbvia, é justificar a decisão adoptada para que possa ser controlada do exterior (Perfecto Andrés Ibañez, loc. cit., p. 167).
O caminho percorrido desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 sedimentou o entendimento, que temos hoje por incontroverso, de que a motivação da matéria de facto exige exame crítico das provas, de todas as provas conducentes ao conjunto dos enunciados fácticos afirmados na sentença, no sentido de que não basta enumerar, mencionar, transcrever ou reproduzir provas, impondo-se exteriorizar em que medida a prova influenciou o julgador, convencendo-o em determinado sentido.
Logo nos primeiros trabalhos de interpretação e de elaboração dogmática realizados sobre o novo Código de Processo Penal, divulgados pelo Centro de estudos Judiciários em 1988, dizia Marques Ferreira: “A obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial na vigência do Código de Processo Penal de 1929 e não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores da convicção do tribunal (…). De facto, o problema da motivação está intimamente conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle o espírito de um determinado sistema processual (…). No futuro processo penal português, em consequência com os princípios informadores do Estado de Direito democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, exige-se não só a indicação das provas e dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão.
Estes motivos de facto (…) não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência” (Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, 229/30).
Ao motivar, o tribunal tem de dar a conhecer “as razões – necessariamente racionais e objectivas – da decisão (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3).
Abundante é, também, a jurisprudência do Tribunal Constitucional. No Acórdão n.º 198/2004, de 24.03.2004, por exemplo, chama-se a atenção para que “esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis)»4
«A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» - Ac. do STJ de 30/1/2002, proc. nº 3063/01-3ª; MAIA GONÇALVES in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 13ª ed., 2002, pp. 739-740).
Porém, «a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível» (Ac. do STJ de 30/6/1999 - proc. nº 285/99-3ª). Efectivamente, «a motivação da decisão de facto, seja qual for o conteúdo que se lhe dê, não pode ser um substituto do princípio da oralidade e da imediação no que tange à actividade de produção da prova, transformando-a em documentação da oralidade da audiência, nem se propõe reflectir nela exaustivamente todos os factores probatórios, argumentos, intuições, etc., que fundamentam a convicção ou resultado probatório» (Ibidem.). Daí que «a fundamentação a que se reporta o art. 374º, nº 2, do CPP, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de violar o princípio da oralidade que rege o julgamento feito pelo tribunal colectivo de juízes». De modo que, «não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo» (Ac. do STJ de 12/4/2000, proc. nº 141/2000-3ª)»5
Volvendo ao caso, revisitada a sentença recorrida na parte da motivação acima transcrita, constata-se que da mesma, relativamente ao arguido, ora recorrente, A, não consta o exigido exame crítico da prova.
Com efeito, a Sra. Juíza do Tribunal a quo quedou-se por uma súmula das declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento (aliás, rigorosamente, dispensável) e ao elenco da prova documental6, quando, verdadeiramente, o que importa e se impunha é que tivesse procedido à explicitação do iter lógico e racional que presidiu à triagem da facticidade em assente e não assente, o que relativamente ao ora recorrente notoriamente não ocorreu.
Como ficou consignado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/2/2022, processo n.º 203/20.1GAFAL.E1, in www.dgsi.pt. « O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte, permitindo o exame crítico das provas (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410º, nº 2 do CPP; o n° 2 do artigo 374° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal recorrido, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respetivo conteúdo decisório».
In casu, é possível extrair da motivação que a Sra. Juíza concluiu pela prova dos factos com base na denominada prova indirecta ou indiciária.
E, inolvidavelmente, para além da prova directa do facto, a apreciação do tribunal pode assentar em prova indirecta ou indiciária, a qual se faz valer através de presunções. No recurso a presunções simples ou naturais (art. 349º do Cód. Civil), parte-se de um facto conhecido (base da presunção), para concluir presuntivamente pela existência de um facto desconhecido (facto presumido), servindo-se para o efeito dos conhecimentos e das regras da experiência da vida, dos juízos correntes de probabilidade, e dos princípios da lógica.
Santos Cabral, Intervenção no Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Macau em 30 de Novembro de 2011, “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, refere a propósito que: «Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária.
O funcionamento, e creditação desta, está dependente da convicção do julgador a qual, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável nomeadamente em sede de sentença.
Por qualquer forma é incontornável a afirmação de que a gravidade do indício está directamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objecções e que tem uma elevada carga de persuasividade como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno é preciso o indício quando não é susceptível de outras interpretações. Mas sobretudo, o facto indiciante deve estar amplamente provado ou (…) corre-se o risco de construir um castelo de argumentação lógica que não está sustentado em bases sólidas.
Por fim os indícios devem ser concordantes, convergindo na direcção da mesma conclusão facto indiciante. Porém, uma perplexidade assalta o analista, esta árida matéria na enumeração dos requisitos deste tipo de prova, pelo menos em face da lógica. É que ultrapassando a questão da necessidade de vários indícios ou da suficiência de um indício, o certo é que, quando existe aquela pluralidade, coloca-se a questão do objecto em função dos quais se deve avaliar os requisitos enunciados. Nunca é demais sublinhar que é a compreensão global dos indícios existentes, estabelecendo correlações e lógica intrínsecas que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto probando.
(…) Pretendendo desenhar alguns dos princípios a que se refere a prova indiciária diremos que na mesma devem estar presentes condições relativas aos factos indiciadores; à combinação ou síntese dos indícios; à indiciária combinação das inferências indiciárias; e à conclusão das mesmas.
1) Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas directas imperfeitas, ou seja, insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena.
2)Os factos indiciadores devem ser objecto de análise crítica dirigida à sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, médios ou ligeiros. Porém, (…) não é pela circunstância de se inscreverem nesta última espécie que os indícios devem ser afastados pois que o pequeno indício conjugado com outros pode assumir uma importância fundamental.
3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo facto.
4) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respectiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstâncias.
(…) que os indícios se avaliam e não se contam, motivo pelo qual não basta somente a pluralidade já que é indispensável que, examinados em conjunto, produzam a certeza sobre o facto investigado e para que isto ocorra requer-se que sejam graves, que concorram harmonicamente a apontar o mesmo facto.
5) As inferências devem ser convergentes, ou seja, não podem conduzir a conclusões diversas e a ligação entre o facto base e a consequência que dele se extrai deve ajustar-se às regras da lógica e às máximas da experiência.
6) Por igual forma, deve estar afastada a existência de contra indícios pois que tal existência cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.
O contra-indicio destina-se a infirmar a força da presunção produzida e, caso não tenha capacidade para tanto, pela sua pouca credibilidade, mantém-se a presunção que se pretendia elidir.
Verificados os respectivos requisitos pode-se afirmar que o desenrolar da prova indiciária pressupõe três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência, ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
Assim:
Em primeiro lugar é necessário que os indícios sejam verificados, precisados e avaliados. Em seguida tem lugar a sua combinação ou síntese. Esta operação intelectual efectiva-se com a colocação respectiva de cada facto ou circunstância acessória, e a sua coordenação com as demais circunstâncias e factos, e dá lugar à reconstrução do facto principal. Esta síntese de factos indicadores constitui a pedra de toque para avaliar a exactidão e valor dos indícios assim como também releva para excluir a possibilidade de falsificação dos indícios.
Ao ocupar-se da prova por concurso de indícios e estabelecer que condições devem estes reunir para fazer prova plena os autores exigem, uniformemente, a concordância de todos os indícios pois que sendo estes factos acessórios de um facto principal, ou partes circunstancias de um único facto, de um drama humano devem necessariamente ligar-se na convergência das três unidades: o tempo, o lugar e acção por forma a que cada indicio está obrigado a combinar-se com os outros, ou seja, a tomar o seu lugar correspondente no tempo e espaço e todos a coordenar-se entre si segundo a sua natureza e carácter ou segundo relações de causa a efeito.
Em última análise, está presente no nosso espírito a improbabilidade de aquela série de indícios poder apontar noutro sentido que não o atingido.
O terceiro momento reside no exame da relação entre facto indiciante e facto probando, ou seja, o funcionamento da presunção. (…) a essência da prova indiciária reside na conexão entre o indício base e o facto presumido, fundamentada no princípio da normalidade conectado a uma máxima da experiência é a essência de toda a presunção. A máxima da experiência constitui a origem de toda a presunção, em combinação com o facto presumido que é o ponto de partida inverso e é o fundamento da mesma por aplicação do princípio da normalidade. A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade às formalidades legais e às garantias constitucionais.
As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização.
Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária».
Todavia, na situação em crise, a Sra. Juíza do Tribunal a quo, no que respeita ao ora recorrente, limitou-se à singela alusão às regras da normalidade e da experiência, sem proceder à objectivação dos putativos indícios e muito menos a qualquer explicitação do raciocínio de verificação, precisão e avaliação dos mesmos7. Ou seja, à mingua de prova directa quanto aos factos, ficaram inteiramente por explicar os motivos pelos quais se depreendeu a participação do ora recorrente na factualidade assente.
Vale tudo por dizer que, a sentença revidenda é, no que ao recorrente concerne, completamente omissa quanto ao exame crítico da prova, o que, ademais, impossibilita a sindicância que se reclama a este Tribunal.
Termos em que se conclui que a sentença padece de falta da fundamentação de facto e exame crítico da prova, o que, configurando desrespeito ao art. 374º, n.º 2 do C.P.P., constitui a nulidade insanável a que alude o art. 379º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal.
Mostra-se, por conseguinte, prejudicado o conhecimento da questão colocada nas conclusões da motivação do recurso interposto, isto é, do invocado erro de julgamento.
III. DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
Declarar nula a sentença recorrida na parte atinente ao arguido A e determinar que seja quanto a ele proferida nova sentença, suprindo-se o identificado vício da falta de fundamentação de facto e exame crítico da prova.
Notifique.

Lisboa, 9 de Outubro de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Ana Paula Guedes (vencida conforme declaração de voto infra)
*
Declaração de voto
Voto vencida, pelas seguintes razões:
Decidiu o acórdão “Declarar nula a sentença recorrida na parte atinente ao arguido A e determinar que seja quanto a ele proferida nova sentença, suprindo-se o identificado vício da falta de fundamentação de facto e exame crítico da prova”.
O Tribunal dá cumprimento ao artigo 374, nº2 quando “ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência de julgamento e ao expor as razões de forma objetiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e por que é que outras não serviram” ( Ex. Senhor Dr. Sérgio Poças na revista julgar , 3, pag.37).
Assim, “o Tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto provado ou não provado” (Teixeira de Sousa, in estudos, pág. 348).
No que aqui interessa, e relativamente ao arguido A, consta da sentença recorrida que:
A testemunha AA, diretora de loja, Referiu, ainda, que o arguido A, era motorista da empresa que efetuava os transportes entre as lojas da ..., que o carro que constava na guia de transporte como sendo o veículo que ia levantar a mercadoria era o do arguido A e que em algumas até estavam assinadas deste confirmando o levantamento, e confrontada com fls. 42, disse tratar-se de uma retro criada pelo arguido DD onde escreveu que o EE (o arguido A) iria buscar o bem”.
(…)
Esta testemunha prestou um depoimento tranquilo, linear e isento, bem como que tal depoimento foi exaustivo quanto aos factos aqui em apreço, sendo que o seu depoimento foi confirmado pelos depoimentos de CC”.
Alude também a sentença recorrida ao depoimento da testemunha BB, “à data “controler” loja de ..., que ainda referiu que o motorista transportava os bens constantes das retro verdadeiras e das fictícias, que só tinham um transportador/motorista por dia e que confirmou que nesses dias o transportador era o arguido A, facto que o surpreendeu pois considerava-o um bom profissional”.
Depois realça a sentença o facto de todas estas testemunhas terem prestado depoimentos tranquilos, lineares e isentos, demonstrando conhecimento dos factos.
Acresce que a sentença recorrida analisa, ainda, os argumentos da defesa, afastando-os ao referir que a mesma tentou:
Mostrar que o registo do horário laboral não era absolutamente correto porque às vezes os funcionários esqueciam-se do cartão e de ligar no exato momento em que chegavam ao serviço por forma a registar corretamente a hora de entrada. Não colocamos em causa que possa haver uma ou outra situação em que o registo não coincida exatamente com a hora de entrada. Mas estamos a falar de minutos, o que em nada belisca o apuramento feito pelas testemunhas AA e CC”.
Conclui a sentença que:
Pelo exposto, com base no depoimento das testemunhas AA, CC, NN e BB, e ainda o depoimento da testemunha UU, no que concerne ao nome da empresa para quem o arguido A trabalhava, conjugados com os documentos juntos aos autos, a saber fls. 26 a 29, contrato de trabalho do arguido DD e respetivas adendas; fls. 32 listagem das retros, fls. 37 email de VV, de ........2018, com a listagem das retros não conciliadas e que o arguido DD recebeu, por estar a desempenhar funções de chefe de armazém; fls. 39 carta do arguido datada desse mesmo dia ........2018 a renunciar ao cargo de chefe de armazém; fls.40 carta enviada pelo arguido DD, datada do dia seguinte ........2019 informando a ... da sua intenção de rescindir o contrato, fls. 41 carta enviado pelo arguido DD em aditamento à rescisão por forma a dar os 60 dias de pré-aviso, fls. 42 retro criada pelo arguido DD onde apôs que o arguido A iria levar a mercadoria, fls. 44 retro 61124 de ........2018 criada a um Domingo, com registo de saída da mercadoria 19.13 h, quando não há transporte aos Domingos como afirmou a testemunha AA, fls. 284 a 302 auto de busca e apreensão na residência do arguido DD onde são apreendidas uma máquina de lavar Indesit (retro 58306, 7278 e 7279, um sofá chaiselong preto e um sofá chaise long cinza, e fls. 308 a 356 auto de busca e apreensão à residência do arguido A com fotos dos artigos ainda embalados, alguns dos quais onde consta o nome ... e outros com os códigos das lojas da assistente e onde foram apreendidos uma máquina de roupa whirlpool (retro 57604), um sofá chaise long cinza (retro 61187), o tribunal deu como assente os factos objetivos dos tipos de crime em causa.
Invoca a defesa que o facto de não constar o número de série dos eletrodomésticos e inexistindo n.º de série do mobiliário em causa ou qualquer outra marca distintiva não permite afirmar que os objetos encontrados nas residências dos arguidos correspondem aos objetos descritos nas retro em causa, por existirem milhares de eletrodomésticos da mesma marca e modelo e peças de mobiliário igual. No entanto, o facto de alguns dos objetos apreendidos terem aposto o nome ..., outros terem o código das lojas da Assistente e o facto de alguns bens encontrarem-se ainda embalados, leva-nos a crer, tendo em atenção as regras da normalidade, que tais bens pertencem à assistente.
(…)
Relativamente ao arguido A, sempre se dirá que à luz das regras da normalidade, só podemos concluir que o arguido tinha conhecimento da atuação do arguido DD e aceitou participar nos factos com o mesmo intuito, sendo a sua participação como motorista que prestava serviços para a ofendida, importantíssima para que pudessem levar os bens para fora das instalações da ofendida sem levantar qualquer suspeita”.
Fundamentar a matéria de facto dada como provada impõe que o Tribunal identifique os meios de prova que levaram a essa decisão e os motivos pelo quais tais meios de prova se mostram credíveis aos olhos do Tribunal, tendo em conta as regras da experiência.
Na situação concreta, na fundamentação da matéria de facto provada, o Tribunal a quo identificou os meios de prova que levaram à conclusão factual, os quais analisou criticamente, esclarecendo os motivos pelos quais se afiguraram credíveis, conjugando, entre si, toda a prova produzida, não só testemunhal mas, também, documental e apreensões.
A sentença recorrida, a nosso ver, e com todo o respeito, não se quedou “por uma súmula das declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento”, analisando criticamente os depoimentos e valorando outros meios de prova de acordo com as regras da experiência.
Na verdade, refere o acórdão que: “In casu, é possível extrair da motivação que a Sra. Juíza concluiu pela prova dos factos com base na denominada prova indirecta ou indiciária” e que “ limitou-se à singela alusão às regras da normalidade e da experiência, sem proceder à objectivação dos putativos indícios e muito menos a qualquer explicitação do raciocínio de verificação, precisão e avaliação dos mesmos . Ou seja, à mingua de prova directa quanto aos factos, ficou inteiramente por explicar os motivos pelos quais se depreendeu a participação do ora recorrente na factualidade assente”.
A prova por presunção é um meio de prova indireto, que permite ao julgador chegar a um facto desconhecido através de um facto conhecido, ou provado.
Assim, a prova direta é aquela que incide diretamente sobre o facto, demonstrando esse facto sem necessidade de recurso a raciocínios lógicos, o que acontece, nomeadamente quando uma testemunha relata um facto por si presenciado.
Já a prova indireta é aquela que se intui de outros factos por meio de um raciocínio lógico e com base nas regras da experiência.
É sabido que nada obsta à valoração da prova indireta desde que:
- Exista um facto base provado, que resultou de prova direta;
- Exista uma conexão lógica entre esse facto e o facto presumido, baseada nas regras da experiência,
- Seja a única explicação razoável para chegar à verdade do factos, sem que exista prova direta.
No caso em recurso, e sem entrarmos, sequer, na discussão sobre se determinados elementos de prova valorados, constituem, ou não, prova direta o certo é que:
- As testemunhas, com conhecimento direto, esclareceram que o arguido A, era o motorista da empresa que efetuava os transportes entre as lojas da ... e que o mesmo constava como o motorista que transportava os bens constantes das retro verdadeiras e das fictícias;
- Foram efetuadas buscas à residência do arguido A onde foram apreendidos artigos ainda embalados, alguns dos quais onde consta o nome ... e outros com os códigos das lojas da assistente, nomeadamente uma máquina de roupa whirlpool (retro 57604), um sofá chaise long cinza (retro 61187).
E, a tudo isto alude a sentença recorrido, concluindo que:
Relativamente ao arguido A, sempre se dirá que à luz das regras da normalidade, só podemos concluir que o arguido tinha conhecimento da atuação do arguido DD e aceitou participar nos factos com o mesmo intuito, sendo a sua participação como motorista que prestava serviços para a ofendida, importantíssima para que pudessem levar os bens para fora das instalações da ofendida sem levantar qualquer suspeita”.
Assim, e com todo o respeito por opinião contrária, consideramos que a sentença recorrida esclarece os motivos pelos quais conclui pela participação do recorrente na factualidade assente, conclusão essa que se encontra conforme as regras da experiência e da lógica.
Pelo exposto, voto vencida a fundamentação e a decisão do acórdão.
Ana Paula Guedes.
_______________________________________________________
1. José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, 2ª Edição, Tomo IV, p. 813/814.
2. O Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que: «A fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a transparência do processo e da decisão» cf. Acórdãos n.º 55/85, 135/99 e 408/2007.
3. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/3/2015, processo n.º 863/11.4GAFAF.G1, in www.dgsi.pt.
4. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6/11/2012, processo n.º 220/09.2GAGLG.E1, in www.dgsi.pt.
5. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2/10/2018, processo n.º 36/14.4JBLSB.L1-5, in www.dgsi.pt.
6. «Pelo exposto, com base no depoimento das testemunhas AA, CC, NN e BB, e ainda o depoimento da testemunha UU, no que concerne ao nome da empresa para quem o arguido A trabalhava, conjugados com os documentos juntos aos autos, a saber fls. 26 a 29, contrato de trabalho do arguido DD e respetivas adendas; fls. 32 listagem das retros, fls. 37 email de VV, de ........2018, com a listagem das retros não conciliadas e que o arguido DD recebeu, por estar a desempenhar funções de chefe de armazém; fls. 39 carta do arguido datada desse mesmo dia ........2018 a renunciar ao cargo de chefe de armazém; fls.40 carta enviada pelo arguido DD, datada do dia seguinte ........2019 informando a ... da sua intenção de rescindir o contrato, fls. 41 carta enviado pelo arguido DD em aditamento à rescisão por forma a dar os 60 dias de pré-aviso, fls. 42 retro criada pelo arguido DD onde apôs que o arguido A iria levar a mercadoria, fls. 44 retro 61124 de ........2018 criada a um Domingo, com registo de saída da mercadoria 19.13 h, quando não há transporte aos Domingos como afirmou a testemunha AA, fls. 284 a 302 auto de busca e apreensão na residência do arguido DD onde são apreendidas uma máquina de lavar Indesit (retro 58306, 7278 e 7279, um sofá chaiselong preto e um sofá chaise long cinza, e fls. 308 a 356 auto de busca e apreensão à residência do arguido A com fotos dos artigos ainda embalados, alguns dos quais onde consta o nome ... e outros com os códigos das lojas da assistente e onde foram apreendidos uma máquina de roupa whirlpool (retro 57604), um sofá chaise long cinza (retro 61187), o tribunal deu como assente os factos objetivos dos tipos de crime em causa.
7. «Relativamente ao arguido A, sempre se dirá que à luz das regras da normalidade, só podemos concluir que o arguido tinha conhecimento da atuação do arguido DD e aceitou participar nos factos com o mesmo intuito, sendo a sua participação como motorista que prestava serviços para a ofendida, importantíssima para que pudessem levar os bens para fora das instalações da ofendida sem levantar qualquer suspeita».