Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PEDRO JOSÉ ESTEVES DE BRITO | ||
Descritores: | DENÚNCIA CALUNIOSA ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA MEDIDA CONCRETA DA PENA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/06/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I. O crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do C.P., é um crime de perigo concreto, pelo que a sua verificação e consumação não depende da efetiva instauração de um procedimento persecutório contra o visado; II. A falsidade da imputação, elemento objetivo do tipo legal do crime de denúncia caluniosa (cfr. art.º 365.º do C.P.), e a falsidade da declaração, elemento objetivo do tipo legal crime de falsidade de testemunho (cfr. art.º 360.º do C.P.), são juízos conclusivos que terão que decorrer dos factos provados; III. A sentença recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova (cfr. art.º 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P.) quando, apesar de descrever nos factos provados a informação que foi prestada ao arguido por parte da polícia municipal antes de aquele efetuar uma das denúncias, a atuação do próprio arguido e o que na realidade ocorreu, tudo absolutamente compatível com o conhecimento, da sua parte, da falsidade do por si imputado e declarado em relação ao assistente, do ponto de vista subjetivo, chega ao resultado probatório oposto, considerando não provado que o arguido soubesse que a imputação e declaração eram falsas; IV. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016, de 21-01-2016, para fixação de jurisprudência, segundo o qual “em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal”, não abrange a situação de o tribunal da relação proferir decisão condenatória revogando a decisão absolutória de 1.ª instância quando esta não tenha apurado os factos necessários para a determinação da sanção, por não ser tal hipótese abrangida pela oposição de julgados em que assentou a fixação de jurisprudência (cfr. art.º 437.º, n.º 1, do C.P.P.), não integrando o objeto desta o posicionamento de cariz meramente doutrinário referido na sua fundamentação de acordo com o qual caberia ao tribunal da relação apurar os factos necessários para a determinação da sanção quando os mesmos não constam da decisão absolutória de 1.ª instância que foi por aquele revogada; V. Na falta de factos essenciais para a determinação da sanção, ao abrigo do disposto no art.º 426.º, n.º 1, do C.P.P. impõe-se determinar o reenvio do processo para novo julgamento restrito precisamente à determinação da sanção, seja porque a decisão recorrida padece do vício previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P., o que foi determinante para que não contivesse os factos relativos à dita operação em face ao modelo de cisão ou césure mitigada acolhido nos arts. 369.º, 370.º e 371.º do C.P.P., bem como para que esta instância ficasse impedida de decidir na plenitude que, em princípio, se impunha, seja por aplicação analógica do referido art.º 426.º, n.º 1, do C.P.P., por ser tal regime o particularmente adequado ao apuramento de factos cuja falta ou insuficiência se detete em 2.ª instância, por força do art.º 4.º do C.P.P. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | I. Relatório: I.1. Da decisão recorrida: No âmbito do processo comum singular n.º 6067/19.0T9CSC, que corre termos no Juízo Local Criminal de Cascais – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em 25-09-2024 foi proferida e depositada sentença pela qual AA foi absolvido da prática de 2 crimes de denúncia caluniosa, ps. e ps., art.º 365.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (C.P.), e de 1 crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360.º, n.º 1, do C.P., cuja prática lhe vinha imputada como autor material, sob a forma consumada e em concurso efetivo, bem como do pedido de indemnização civil contra si deduzido por BB e pelo qual peticionou a condenação no pagamento daquele a este da quantia de EUR 15.544,11, acrescida de juros de mora desde a notificação e até efetivo e integral pagamento. I.2. Do recurso: Inconformado com a decisão, o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões: “1. O presente recurso vem interposto da a sentença proferida nos presentes autos, no dia 25 de setembro de 2024, a qual absolveu o arguido AA, pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo de dois crimes de denúncia caluniosa, previstos e punidos, respetivamente, pelos n.º 1 e 2, do artigo 365.º, do Código Penal, e um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo disposto no artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal. 2. O presente recurso cinge-se à decisão absolutória dos crimes imputados ao arguido de denúncia caluniosa que deu origem ao processo de inquérito n.º 345/19.6PFCSC e de falsidade do seu testemunho prestado no âmbito desse processo. 3. Entendeu o Tribunal a quo que a acusação era omissa quanto ao elemento objetivo dos tipos legais de crime em causa, qual não seja o da falsidade dos factos que o arguido denunciou e relatou, circunstância que determinou ao Tribunal a quo julgar não provados os factos relativos ao elemento subjetivo. 4. Entendeu, ainda, o Tribunal a quo que a circunstância de no inquérito onde se investigaram os factos (falsamente) denunciados, não terem sido recolhidos indícios suficientes para aí ser proferido despacho de acusação (por esses factos), impedia que nos presentes autos pudesse ser deduzida uma acusação por denuncia caluniosa. 5. A acusação não é omissa quanto ao elemento objetivo dos tipos legais de crime em causa, qual não seja o da falsidade dos factos que o arguido denunciou. 6. A omissão de elementos objetivos do tipo de crime leva a que a factualidade descrita não seja subsumível no tipo legal de crime em questão, circunstância que sempre motivaria a rejeição da acusação, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e 3, alíneas b) e d), do Código de Processo Penal. 7. No caso concreto, a acusação foi recebida, por despacho datado de 4 de outubro de 2022 no qual se considerou inexistirem quaisquer nulidades, questões prévias ou incidentais que cumprisse conhecer, e pelos factos e com a qualificação jurídico-penal dela constante, os quais aí se dera, por integralmente reproduzidos. 8. Da leitura conjugada dos factos 1, 4 e 5, da acusação, resulta, de forma clara e evidente, o elemento objetivo da falsidade dos factos denunciados e relatados. 9. Se dos factos resulta que o arguido denunciou que o assistente, no dia ... de ... de 2019, pelas 09h30m, o abordou na ... e o ameaçou, e resulta, simultaneamente, também desses factos, que o assistente, nesse mesmo dia ... de ... de 2019 entre as 09h00m e as 10h30m se encontrava na ..., sita na ... (cerca de 9 quilómetros de distância), a conclusão que se retira é a de que aquilo que foi denunciado não corresponde à verdade. 10. Dizer, na acusação, que “O facto denunciado pelo arguido é falso”, como parece pretender o Tribunal a quo, não é um facto, mas uma conclusão, o que se encontra vedado ao Ministério Público na acusação, a qual deve narrar factos (e não conclusões) e indicar as normas legais aplicáveis (cf. artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal). 11. E essa conclusão é a terceira fase do silogismo judiciário que se impõe ao julgador na sentença. 12. O facto que conduz e representa a falsidade da denúncia é aquele que consta do ponto 5., do laudo acusatório, ou seja, o que confirma que no dia dos factos denunciados pelo arguido o assistente não se encontrava no local onde o arguido lhe imputa os factos falsamente denunciados. 13. A própria sentença recorrida deu como provado que o assistente não se encontrava no local onde o arguido lhe imputa os factos falsamente denunciados (cf. factos 1, 4. e 5., da factualidade provada). E deu como provado tal facto com base na informação prestada pela .... 14. Provou-se, portanto, neste processo – como não podia deixar de ser, porque foi aqui que se investigou e julgou o arguido pela prática do crime de denúncia caluniosa – que os factos que denunciou não correspondem à verdade e são falsos. 15. Caso o Tribunal a quo tivesse dúvidas sobre a factualidade em causa – que não teve, porquanto a deu como provada – impunha-se que analisasse as declarações do assistente e da de mais prova testemunhal (e o fizesse criticamente) porquanto as mesmas constituem elemento de prova. 16. No entanto, e percorrida a decisão proferida, tal análise e apreciação não foi feita nada sendo dito quanto às declarações do assistente e testemunhas. 17. Se é certo que tem que ser comprovada a falsidade dos factos denunciados para efeitos de verificação do crime de denúncia caluniosa, é também certo que não era no processo de inquérito n.º 345/19.6PFCSC que essa comprovação tinha que ser feita, pois o objeto desse inquérito não era a prática de um crime de denúncia caluniosa, mas apenas e só a investigação dos factos denunciados pelo arguido, os quais eram suscetíveis de integrar a prática de um crime de ameaça. 18. Essa comprovação deve ser feita no processo onde se investiga e julga a prática do crime de denúncia caluniosa e não no processo onde os factos falsamente denunciados o foram, porquanto nesse processo, apenas os factos falsamente denunciados são investigados. 19. De outro modo, de nada serviria um inquérito tendente a investigar a prática de crimes de denúncia caluniosa. 20. E a falsidade, comprovou-se nos presentes autos, onde tinha que ser comprovada, conforme resulta da matéria de facto provada na sentença, donde resulta que arguido denunciou que o assistente, no dia ... de ... de 2019, pelas 09h30m, o abordou na ... e o ameaçou, e donde resulta, simultaneamente, que o assistente, nesse mesmo dia a essa hora se encontrava na ..., sita na ..., a 9 quilómetros de distância. 21. Em face do que antecede, a decisão recorrida incorre em erro de julgamento, porquanto resulta uma distorção da realidade factual e da aplicação do direito, que faz com que o decidido não corresponda à realidade ontológica e normativa, traduzindo-se antes numa apreciação da questão em desconformidade com a lei. 22. Em face disso, deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que suprima o erro de julgamento em causa, o qual levou (de acordo com o raciocínio lógico-dedutivo resultante da leitura da decisão) a dar como não provados todos os factos respeitantes ao elemento subjetivo dos tipos de crime imputados ao arguido (os quais foram os únicos da acusação que resultaram não provados). 23. A decisão recorrida violou, de resto, o disposto nos artigos 360.º, n.º 1 e 365.º, n.º 1, ambos do Código Penal, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e d), do Código de Processo Penal.” Terminou pedindo que a decisão recorrida fosse substituída por outra que suprima o erro de julgamento em que aquela incorre, o qual levou (de acordo com o raciocínio lógico-dedutivo resultante da sua leitura) a dar como não provados todos os factos respeitantes ao elemento subjetivo dos tipos de crime imputados ao arguido. O referido recurso foi admitido por despacho de 05-11-2024. I.3. Da resposta: A este recurso respondeu o arguido AA pugnando que aquele deveria improceder, mantendo-se a decisão proferida nos seus exatos termos, sem formular conclusões. Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação. I.4. Do parecer: Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer através do qual propugnou pela improcedência do recurso, subscrevendo e aderindo à resposta do Ministério Público em 1.ª instância, acrescentando: “(…) Afigura-se-nos que o tribunal a quo incorreu no vício do art.º410.º, n.º2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, resultando tal vício do próprio texto da decisão recorrida, conjugado com as regras da experiência comum, ao dar como provados os factos 1.a. e b., 2., 3., 4.a. e b., e o facto provado 5, deveria necessariamente ter concluído pela falsidade das imputações feitas através daqueles e ter dado como provados os factos 2., 3., 4. e 6., que incompreensivelmente deu como não provados (estes últimos atinentes ao elemento subjetivo do crime).” I.5. Da tramitação subsequente: Tendo sido dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C.P.P., foi apresentada resposta ao dito parecer, pelo assistente BB que, em síntese, concordou com aquele. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir. II. Fundamentação: II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso: Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-1995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, de 28-12-1995, págs. 8211 e segs.3). Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidas, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar. II.2. Das questões a decidir: A esta luz, são as seguintes as questões a conhecer, pela ordem da prevalência processual sucessiva que revestem: A. Se a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.º 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P., ao dar como não provados os pontos 2. a 6. (cfr. II.4.A.); B. Na eventualidade de se considerarem provados a totalidade ou parte de tais factos, efetuar o enquadramento jurídico-penal dos factos apurados (cfr. II.4.B.); e C. Concluindo que o recorrente praticou a totalidade ou parte dos crimes imputados, escolher e determinar as penas parcelares e única (cfr. II.4.C.). II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar as questões objeto do recurso: Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte: II.3.A. Da matéria de facto considerada na sentença recorrida (cfr. ref.ª 153098082 de 25-09-2024): É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1.ª instância: “1- MATÉRIA DE FACTO PROVADA De relevante para a discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto: 1. No dia ... de ... de 2019, o arguido dirigiu-se à ...Esquadra da Polícia de Segurança Pública, em ..., pelas 10h33m, onde, perante o agente que o atendeu, relatou que: a. Nesse dia, foi abordado por BB, seu vizinho, residente na ..., que seguia na sua viatura na ..., o qual parou junto de si e disse: “Eu desfaço-te todo, escavaco-te a ti e à tua família”; “Não gozas comigo”; e “Um dia ainda te mato, desfaço-te a vida”; b. Em ato contínuo, BB saiu da viatura e dirigiu-se a si com intuito de o agredir, pelo que teve que fugir, sendo perseguido por cerca de 20 metros, até ser auxiliado por CC. 2. Naquela ocasião, o arguido manifestou desejar procedimento criminal contra BB. 3. O arguido assinou o Auto de Denúncia elaborado pelo agente da Polícia de Segurança Pública onde foi descrita tal factualidade. 4. O referido Auto de Denúncia deu origem a inquérito 345/19.6PFCSC instaurado pelo Ministério Público, no decurso do qual a Polícia de Segurança Pública, em quem fora delegada pelo Ministério Público a competência para tal, procedeu, no dia 14 de janeiro de 2020, pelas 15h59m, à inquirição do aqui arguido como testemunha, na Esquadra de Investigação Criminal de ..., tendo este declarado, perante agente, para além do mais, que: a. Confirmava na íntegra o teor do narrado na denúncia por si apresentada por corresponder à verdade; b. No dia ... de ... de 2019, pelas 09h30m, foi abordado por BB, que seguia na sua viatura na ..., o qual parou junto de si e disse: “Eu desfaço-te todo, escavaco-te a ti e à tua família”; “Não gozas comigo”; e “Um dia ainda te mato, desfaço-te a vida”; c. Em ato contínuo, BB saiu da viatura e dirigiu-se a si com intuito de o agredir, pelo que teve que fugir, sendo perseguido por cerca de 20 metros, até ser auxiliado por CC. 5. No dia ... de ... de 2019 entre as 09h30m e as 10h00m BB encontrava-se na ... sita na .... 6. Nos supra referidos autos de inquérito foi proferido despacho de arquivamento com o seguinte teor “…Realizadas diligências de investigação, os autos não coligiram indícios da prática dos factos. Com efeito, nenhuma das testemunhas arroladas e inquiridas escutou tais palavras, tendo o arguido negado tê-las proferido. O arguido apresentou uma declaração que dá conta que, no dia dos factos, se encontrou, entre as 9.30 h e as 10.00 h na “...”, sita em .... Constata-se, assim, que ou o denunciante se terá equivocado na indicação da concreta hora da prática dos factos, ou, tem que se admitir isso em tese, os factos não ocorreram, tal como defende o arguido. Destarte, nesta parte os autos serão arquivados por carência de indícios...” 7. No dia ... de ... de 2019, pelas 18h50m, o arguido remeteu uma mensagem de correio eletrónico através do seu endereço ..., para o endereço do domínio da Câmara Municipal de ...... com o assunto “saúde pública, pedimos intervenção urgente”, onde, além do mais, referiu que: _ “Somos residentes do bairro de … Neste bairro existe o lote n.º ...da ..., este lote está ocupado com capoeiros e respetivos habitantes, estrume melgas, vargeiras, ratazanas, um cão preso a uma corrente, madeiras e uma pequena horta. As pessoas trabalham e os habitantes do capoeiro não tem horário, cheiro e bicharada. Não podemos abrir as janelas. A abundância de comida atraiu rolas turcas que fazem uma agradável sinfonia, durante o dia tolera-se à noite torna-se complicado. Agradecemos intervenção urgente.”. 8. No dia ... de ... de 2019, pelas 14h44m, o arguido remeteu uma mensagem de correio eletrónico através do seu endereço ..., para o endereço do domínio da Câmara Municipal de ... ..., com o assunto “RE: saúde pública, pedimos intervenção urgente”, onde, além do mais, referiu que: _ “Afinal tudo o que estava no lote … foi mudado na íntegra para o lote … da ... do mesmo bairro, ou seja, continua tudo na mesma, agora 30 metros ao lado. O dono do cão e das galinhas é o Sr, BB residente ma ... O problema não foi resolvido. Este Se. É agente da GNR deve saber que esta situação não deve ser tolerada. Isto só numa zona rural e sem prejudicar terceiros.”. 9. No mesmo dia ... de ... de 2019, pelas 15h18m, o arguido remeteu uma mensagem de correio eletrónico através do seu endereço ..., para o endereço de correio eletrónico de DD, Chefe de Divisão de Polícia, do Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização da Câmara Municipal de ..., com o assunto “Caso de saúde pública.”, onde, além do mais, referiu o seguinte: _ “No dia ...deste ano fizemos a mesma denúncia e houve intervenção da vossa parte o que agradecemos, mas tudo o que estava no lote ... da ... do ... em ... passou a integra par o lote n.º … da ... do mesmo Bairro. ou seja: foi tudo deslocado 30 metro. O problema não foi eliminado. - o cão a ladrar noite e dia. - as galinhas a cantar quando lhes apetece. - o cheiro, a bicharada inerente ao capoeiro, além disso as ratazanas. Se o Sr. BB que é o proprietário do galinheiro e do lote, gosta de conviver com animais que os leve para o lote n.º … da ... onde reside e não para a porta dos outros, caso seja permitido. Este email é em nome de vários vizinhos, agradeço o anonimato para não haver mais mau estar do que aquele que já existe com o dono do capoeiro.”. 10. As referidas comunicações do arguido foram registadas com o n.º ..., e encaminhadas ao Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização da Câmara Municipal de .... 11. No dia ... de ... de 2019, membros do Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização deslocou-se ao lote n.º ..., da ..., do ..., tendo constatado a existência de um canídeo, o qual não produziu qualquer ruído. 12. No dia ... de ... de 2019, membros do Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização deslocou-se ao lote n.º ... da ..., do ..., tendo verificado a presença de seis galinhas e um canídeo, encontrando-se o local limpo e sem qualquer mau cheiro. 13. No dia ... de ... de 2019, o arguido recebeu na sua conta de correio eletrónico com o endereço ..., uma mensagem do Departamento de Polícia Municipal e Fiscalização da Câmara Municipal de ..., informando do resultado das referidas deslocações. 14. No dia ... de ... de 2019 pelas 09h36m, foi registada uma participação de ocorrência através do SIIOP – Sistema Integrado de Informações Operacionais Policiais da Guarda Nacional Republicana, à qual foi atribuído o n.º ..., que teve origem em comunicação apresentada pelo arguido, através do seu endereço de correio eletrónico ..., e na qual é feita a seguinte descrição sumária: _ “Os residentes agradecem o empenho da GNR, mas qual o espanto quando o Sr. BB muda o galinheiro para o lote ... da ..., ou seja, uns metros ao lado. Todos nós sabemos o que um galinheiro traz, desde a desvalorização do bairro, (lotes e moradias) ratos, cheiros, diversa bicharada, etc. etc. O mesmo galinheiro nunca foi desmantelado, mudou só de sítio.”. 15. Ainda no mês de ...de 2019, membros do Núcleo de Proteção Ambiental do Destacamento Territorial de ..., da Guarda Nacional Republicana deslocaram-se ao lote ..., da ..., do ..., tendo concluído que: _ “No local não foram constatados os factos indicados na denúncia, nomeadamente a ilegalidade da detenção dos animais naquele local, bem como os factos relativos à higiene e salubridade do local. O mesmo encontrava-se devidamente organizado e limpo para os parâmetros dos animais ali presentes, não sendo percetível qualquer cheiro ou presença de qualquer tipo de animal por norma associados à falta de condições de limpeza e higiene. Em virtude da não constatação por parte desta equipa dos factos denunciados, foram interpelados vizinhos que indicaram que o local se encontra sempre naquelas condições de limpeza e afirmaram que nunca se sente qualquer tipo de mau cheiro proveniente daquele local, bem como nunca verificaram a presença de qualquer animal associado á falta de limpeza.”. 16. No dia ... de ... de 2019, pelas 15h28m, o arguido remeteu uma mensagem de correio eletrónico através do seu endereço ..., para o endereço do domínio da Guarda Nacional Republicana geral@gnr.pt, com o assunto “denuncia ambiental”, onde, além do mais, referiu que: _ “Ex,mos Srs. ontem dia 21 pelas 11,00 horas o Sr. BB residente na ... n.º ..., ...iniciou umas obras de construção no lote ... da ... que diz ser proprietário. Por não haver qualquer aviso de licenciamento exposto e ser domingo a retro escavadora fazia bastante barulho foi chamada a intervir a Polícia Municipal de .... Esta mandou parar imediatamente as obras. Quando um GNR não respeita algo vai mal. Hoje pela manha as obras foram reiniciadas abriram caboucos utilizaram um veículo pesado de matrícula UX-..-.. de cor branca e marca Iveco. Para bem do ambiente O Sr. BB que é guarda Principal em ... (divisão de trânsito) qual o aterro legalizado onde foi depositar o que tirou das valas. A quantidade é simples saber porque medindo as valas vezes 1.6. Se o camião que fez o trabalho tem condições para o fazer, tais como seguro de inspeção, tacógrafo etc.etc. e se a empresa que fez os trabalhos os furtou (para não haver fuga aos impostos. Sendo um agente da GNR este começar uma obra ao domingo, não tem aviso de licenciamento identificado na obra. Aqui na zona que eu saiba não há nenhum vazadouro legalizado e a terra desapareceu. Os Srs deviam averiguar este tipo de comportamento.”. 17. Na sequência dessa comunicação foi registada pela Guarda Nacional Republicana uma participação de ocorrência à qual foi atribuído o n.º …. 18. No dia ... de ... de 2020, pelas 11h00m, e após ser contactado pela Guarda Nacional Republicana, BB compareceu no Comando Territorial de ... daquele Órgão de Polícia Criminal, tendo aí apresentado toda a documentação relacionada com a situação participada. 19. Ainda nesse mesmo dia ... de ... de 2020, a Guarda Nacional Republicana contactou o Departamento de Fiscalização Ambiental, da Polícia Municipal de ..., tendo sido que esta Polícia se encontrava a acompanhar a situação, no entanto, não tinha sido apurada qualquer infração por parte de BB, razão pela qual não tinha sido levantado qualquer auto. 20. O arguido sabia que os factos por si denunciados à PSP eram suscetíveis de integrarem a prática de crime e que manifestando o propósito de que fosse desencadeado procedimento criminal, tal conduta era apta a que fosse instaurado procedimento criminal contra BB. 21. Com tal conduta, o arguido logrou que fosse instaurado inquérito crime com o número 345/19.6PFCSC contra BB o qual veio a ser constituído e interrogado como arguido nesse processo. 22. O arguido sabia que ao relatar os factos à Polícia Municipal, que os mesmos eram suscetíveis de integrar a prática de contraordenações e, bem assim, que tal conduta era apta a desencadear os respetivos procedimentos de contraordenação, o que quis e conseguiu. 23. De igual modo, ao relatar os factos à Guarda Nacional Republicana e imputando-os a BB, fazendo expressa menção da qualidade de militar da GNR do visado e sabendo que tais factos eram suscetíveis de integrar a prática de contraordenações e infrações disciplinares, sabia o arguido que tal conduta era apta a desencadear os respetivos procedimentos contraordenacionais e disciplinares, o que quis e conseguiu. 24. O assistente levou a cabo obras no seu terreno, tendo pedido, em ........2020, autorização para construir um muro de 1,80 m de altura, obra de escassa relevância urbanística e, por isso, isenta de controlo prévio, informando que as obras iriam decorrer durante 10 dias e com início a ........2020. 25. Em ........2020 constatou-se que a obra levada a cabo pelo denunciado não se enquadra no pedido de obras isentos de controle prévio, uma vez que o muro, numa zona, ultrapassa o 1,80 m de altura. 26. Foi, por isso, instaurado processo por contraordenação contra o denunciado, processo que veio a ser arquivado porquanto o denunciado voluntariamente repôs a legalidade urbanística. 2- MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA De relevante para a discussão da causa, não se logrou provar a seguinte matéria de facto: 1. No dia ... de ... de 2019, BB esteve desde as 9.00h na ..., sita na ..., e que ali permaneceu até às 10.30 h. 2. Através das condutas descritas, o arguido sabia que relatava às autoridades policiais, mormente PSP, factos que não eram verdadeiros, imputando-os a BB, e que assim manipulava a realização da justiça e atentava contra a honra de BB, o que quis e conseguiu. 3. Ao prestar depoimento no processo de inquérito crime 345/19.6PFCSC, o arguido sabia que prestava depoimento que não era verdadeiro e que, assim, manipulava a realização da justiça, o que quis e conseguiu. 4. Do mesmo modo, com a conduta supra descrita, o arguido sabia que relatava à Polícia Municipal factos que não eram verdadeiros, e que, desse modo, manipulava a realização da justiça e atentava contra a honra de BB, o que quis e conseguiu. 5. De igual modo, ao relatar à Guarda Nacional Republicana factos que não eram verdadeiros, sabia ao arguido que assim manipulava a realização da justiça e atentava contra a honra de BB, o que quis e conseguiu. 6. AA agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida. 7. Que em consequência da conduta do arguido, o demandante necessitou de tratamento psicológico e psiquiátrico, tendo despendido € 480 para se deslocar a consultas semanais de psicologia e despendeu € 64,11 na aquisição de medicamentos. 8. Que em consequência da conduta do arguido, o demandante tem vivido numa enorme angústia, sofrendo de ansiedade que carece de apoio médico, e passou a necessitar de medicação para dormir, sente-se deprimido, angustiado e com medo do próximo passo do arguido. 9. Que em consequência da conduta do arguido, o demandante sente vergonha junto dos colegas, por se ver constituído arguido e alvo de processo disciplinar, viu o seu nome “manchado” e sente-se discriminado. 10. Que em consequência da conduta do arguido, o demandante deixou de ser uma pessoa alegre no meio familiar, deixou de participar e colaborar com as tarefas em casa e convívio com a família, uma vez que quando chegava a casa só falava no assunto e isolava-se no quarto, deixando de conviver com a família. 11. Que em consequência da conduta do arguido, o demandante encontra-se diariamente medicado com Brintellix, para combater os episódios depressivos que enfrenta, Lorazepam para os transtornos de ansiedade e insónias Cloxazolam para combater o distúrbio emocional, medo, fobia, tensão inquietude e sintomas depressivos causados pela conduta do arguido.” II.3.B. Dos motivos de facto, indicação e exame crítico das provas exarados na sentença recorrida (cfr. ref.ª 153098082 de 25-09-2024): É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo tribunal de 1.ª Instância: “A convicção do Tribunal relativamente aos factos provados de índole criminal fundou-se na análise crítica e conjugada da prova. Assim, o arguido admitiu ter sido o autor da queixa crime bem como dos emails e mensagens que lhe são imputadas, afirmando que o teor das queixas que apresentou, corresponde à verdade. Esclareceu que, por ter sido membro da ... as pessoas o conhecem e denunciam-lhe muitas situações e até lhe pedem para apresentar as queixas às entidades competentes. Acrescentou que só surgiram os problemas com o aqui ofendido após este lhe ter pedido uma declaração em como o lote que adquiriu não tinha dívidas, o que recusou por já não pertencer à comissão e porque tal certidão só é emitida quando é solicitada pela Câmara Municipal de ... Conjugadas as suas declarações, em que admitiu a autoria das queixas e denúncias com os documentos juntos aos autos, o Tribunal deu os factos como assentes. Assim, teve-se em atenção os documentos de fls.: - 7 e referente a ao processo de atendimento da Unidade de Polícia Ambiental; - 117 a 124 verso processo da ... referente à comunicação de obras com isenção de controlo prévio. - 13 e 14 Ficha de fiscalização; - 16 a 20 Informação de Serviço relativa à deslocação ao local na sequência da queixa da existência do canídeo e galinhas, com fotos do local; - 27 informação da ... onde consta que o assistente esteve nessa unidade de saúde desde as 9.30 h até às 10.00h, motivo pelo qual se deu como provado tal facto e como não provado que esteve na clínica desde as 9.00 h e aí permaneceu até às 10.30 h. - 102 verso a 115, informação recebida da Polícia Municipal de Cascais com os emails enviados pelo arguido; - 125 a 128 Informação da Direção do Serviço de Proteção da Natureza e Ambiente e relatório de ocorrência; - 174 e seguintes - cópia do processo 345/19.6PFCSC onde consta a denuncia, “auto de declarações” e despacho de arquivamento. - documentos juntos com a contestação e relativos ao processo da ... onde consta o pedido de obras de isentas de controle prévio, constatação que a obra levada a cabo não se enquadra no pedido de obras isentas de controle prévio, com descrição da altura do muro e arquivamento por ter sido reposta voluntariamente reposta a legalidade urbanística. No que concerne ao facto dado como assente que o arguido foi ouvido como testemunha no processo crime, pese embora o OPC tenha intitulado o auto de inquirição do aqui arguido e aí ofendido, como “Auto de declarações”, trata-se de uma verdadeira inquirição de testemunha, motivo pelo qual se deu como assente tal facto, não colhendo a tese da defesa que o mesmo não foi ouvido como testemunha, mas sim como declarante, pelo que não pode incorrer no crime de falsidade de testemunho. Quanto ao facto dado como assente que o arguido sabia que ao denunciar os factos que denunciou referentes à existência de animais, mau-cheiro, ruído de obras a decorrer, os mesmos eram aptos a ser considerados contraordenações o que conduziria a que fossem instaurados processos de contraordenação, e que a menção que o denunciado era milita da GNR o fazia incorrer em processo disciplinar, resulta das regras de experiência comum. Tendo em atenção que o arguido pertenceu há muitos anos atrás à ..., da ..., à idade do arguido, que já não é um jovem, tendo a experiência de vida que a idade proporciona, e o nível de instrução que disse possuir (11º ano de escolaridade), só podemos concluir, por tal ser essa a regra da normalidade, que o mesmo ao denunciar tais factos sabia que os mesmos são aptos a constituírem contraordenação e que o fez para que fosse instaurado processo contraordenacional contra o assistente, pessoa com quem já tinha problema e contra quem já tinha até apresentado queixa crime. * Quanto à matéria não provada de natureza criminal e relativa ao período temporal que o assistente esteve na clínica, teve-se em atenção a declaração da clínica tal como atrás já se referiu. E no mais, conhecimento pelo arguido que denunciava factos crime e contraordenacionais falsos, na ausência de alegação na acusação que tais factos eram comprovadamente falsos e de prova nesse sentido, como melhor se explicará aquando do enquadramento jurídico dos factos. No que concerne à matéria cível, na ausência da prova dos factos crime em que se alicerçam os alegados danos, sendo certo que quer do pedido de indemnização cível, quer das próprias declarações do assistente resultou que, para além dos factos, constantes da acusação existiram outros queixas e condutas do arguido contra o assistente que também estão na origem desses danos, falando o Assistente em perseguição.” Na sentença recorrida, em sede de enquadramento jurídico-penal, consta ainda que: “(…) Acresce que resultou provado o facto invocado pela defesa, que o processo a que deu origem a queixa crime apresentada pelo arguido ter terminado com um despacho de arquivamento por insuficiência de indícios. O facto de, durante o inquérito, não terem sido recolhidos indícios suficientes para ser proferido despacho de acusação, não pode conduzir à conclusão que os fatos denunciados são falsos. A defender-se esta posição a consequência seria a de inibir os ofendidos de apresentar queixa crime imputando os factos a uma pessoa ou a alguém facilmente identificável, porquanto se o inquérito terminasse com despacho de arquivamento por falta de indícios, seriam perseguidos criminalmente por denúncia caluniosa. Assim, tem a jurisprudência entendido que só há crime de denúncia caluniosa se o denunciado como autor de factos suscetíveis de integrarem determinado crime, comprovadamente, os não praticou. E essa comprovação tem necessariamente que ser feita antes da dedução da acusação pela prática do crime de denúncia caluniosa, não servindo o processo crime instaurado pela prática do crime de denuncia caluniosa para fazer prova da falsidade dos factos denunciados. Uma vez que não só não se mostra alegado na acusação a falsidade objetiva dos fatos denunciados como foi até feita prova em sentido contrário, já que o inquérito instaurado na sequência da denúncia foi arquivado por “carência de indícios”, não se verifica um dos elementos objetivos do tipo de crime em apreço. (…)” E ainda: “(…) Da análise da acusação verifica-se que o arguido denunciou, à Polícia Municipal, à Câmara Municipal de ... e GNR fatos relativos a saúde pública - a existência no terreno do assistente de galinhas, ratazanas, um cão preso a uma corrente, estrume e mau cheiro-, e uma denúncia apresentada à GNR relativa a obras e ruídos dela provenientes. Mais uma vez não consta da acusação que os fatos denunciados eram falsos e que o eram à data da apresentação das queixas, não sendo suficiente afirmar que semanas ou meses depois das queixas em deslocação ao local os factos não foram presenciados pelas autoridades competentes. Começando por analisar a denuncia efetuada e relativa a saúde pública, ficou demonstrado que a queixa foi apresentada em ........2019 e “reforçada” em ........2019 e ........2019, quando o arguido informou que tudo o que estava no lote … foi mudado para o lote …. O facto de em ........2019 e ........2019 a polícia municipal se ter deslocado ao local e ter verificado num primeiro momento “um canídeo que não produzia ruído” e depois, “um canídeo e seis galinhas em local limpo e sem cheiro”, não significa que, em momento anterior, mais precisamente em ........2019 e ........2019 (datas das queixas), fosse essa a situação para se concluir pela falsidade da denúncia. Mais, e como bem alegou a defesa, retira-se do processo de fls. 108 e seguintes, a Polícia Municipal deixou aviso ao denunciado para esclarecer denúncia referente a galinhas e canídeo no dia 07 e a ação inspetiva só ocorreu no dia 08, pelo que o denunciado sempre poderia ter limpo o local antes da chegada da inspeção. E o mesmo se diga em relação à participação registada em ........2019 pela GNR, porquanto a o Núcleo de Proteção Ambiental da GNR, que concluiu, ainda no mês de Novembro, que não foram constatados os factos indicados na denúncia e que foram interpelados vizinhos que indicaram que o local se encontra sempre naquelas condições. No entanto não se refere desde que data se encontra assim. Acresce que, o arguido no seu email enviado à GNR em ........2019, limita-se a agradecer o empenho da GNR, a mostrar-se espantado pelo aqui assistente ter mudado o galinheiro de local e a fazer considerações sobre o que “um galinheiro traz”. O facto invocado pela defesa e que resulta dos documentos juntos que o canídeo só foi legalizado após a data da denúncia e que as galinhas só foram registadas após esta data não prova a veracidade da imputação efetuada pelo arguido, uma vez este não se queixou que o cão não tinha licença ou que as galinhas não estavam registadas, mas antes que faziam barulho e o cão estava preso, o que é bem diferente. Não resultando da acusação factos que permitam concluir que os factos denunciados pelo arguido eram comprovadamente falsos, pois o denunciado não os praticou, não se mostram reunidos todos os elementos objetivos do tipo de crime lhe é imputado. Finalmente vejamos a denúncia relativa a obras. Analisada a denúncia verifica-se que o arguido dá conta que o aqui assistente iniciou obras no seu terreno, que não existia qualquer aviso de licenciamento exposto (facto que corresponde à verdade já que o assistente efetuou pedido prévio de obras não sujeitas a licença e o próprio reconheceu tal facto em audiência), queixou-se do ruído da retroescavadora num Domingo e afirma que a polícia municipal se deslocou ao local e mandou parar as obras, as quais recomeçaram no dia seguinte, e tece considerações genéricas, levanta questões, como a de saber qual o aterro onde o aqui assistente levou a terra que tirou das valas e se o camião e a empresa que efetuou o transporte tem seguro, tacógrafo etc, e pede para a GNR investigar os factos. Não imputa qualquer facto ao aqui assistente. Assim, não tem relevo o facto de o assistente ter comparecido no Comando da GNR com toda a documentação relacionada com a situação participada. Mais, uma vez não está alegado no despacho de acusação, nem ficou demonstrado a falsidade dos factos denunciados, ou seja, que existia licença afixada e que a retroescavadora não fez ruído no Domingo de manhã. (…)” II.4. Da apreciação das questões objeto do recurso: Cumpre agora analisar as já elencadas questões suscitadas pelo recorrente (cfr. II.2.): II.4.A. Do erro notório na apreciação da prova: As relações conhecem de facto e de direito (cfr. art.º 428.º do C.P.P.). A decisão da matéria de facto pode ser sindicada em sede de recurso, desde logo, pela verificação dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, de resto, são de conhecimento oficioso, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-1995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, de 28-12-1995, págs. 8211 e segs.4). Tais vícios prendem-se com a matéria de facto que, no caso de verificação de algum deles, é ostensivamente insuficiente, assente em premissas contraditórias ou fundada em erro de apreciação, o que impede uma correta solução de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-10-2015, processo n.º 230/10.7JAAVR.P1.S15; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-10-2008, processo n.º 08P30686). Contudo, tratam-se de vícios que, nos termos da lei de processo (cfr. art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Assim, neste caso, a apreciação da matéria de facto circunscreve-se ao que consta do texto da decisão recorrida, por si só considerada ou em conjugação com as regras da experiência comum, que assim servem para interpretar aquela, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos àquela, mesmo que constem do processo (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-05-2009, processo n.º 1182/06.3...7; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-06-2008, processo n.º 07P43758). O erro notório na apreciação da prova ocorrerá, desde logo, quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo e evidente (cfr. TRIUNFANTE, Luís Lemos, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, págs. 199 a 204). Porém, sob pena ficarem encobertas situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum, impõe-se uma leitura mais abrangente de acordo com a qual ainda integrarão tal vício as situações de erro na apreciação da prova que, sem margem para dúvidas, ressaltam do texto da decisão recorrida, numa visão consequente e rigorosa no seu todo, nomeadamente da matéria de facto e da motivação da decisão de facto, ainda que nem sempre detetáveis por um simples homem médio sem conhecimentos jurídicos, mas que não escapam ao jurista com preparação normal (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-10-2020, processo n.º 1551/19.9T9PRT.P1.S19; MADEIRA, António Pereira, in Código de Processo Penal comentado, Almedina, 2014, pág. 1359). No presente caso, apesar do o Ministério Público no recurso que interpôs se referir a um “erro de julgamento” e acabe por identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não por referência ao respetivo número que lhe é atribuído na sentença recorrida, mas sim ao seu concreto conteúdo, não indica as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, alicerçando a modificação na matéria de facto que propugna apenas e tão só com o que entende resultar do próprio texto da decisão recorrida, ainda que conjugado com as regras da experiência comum. Ora, o tribunal recorrido considerou provado que no dia 25-05-2019, pelas 10h33min, perante um órgão de polícia criminal, o arguido imputou ao assistente a prática, nesse mesmo dia, na ..., em ..., de uma conduta que abstratamente era suscetível de consubstanciar a prática de um crime, tendo agido com a intenção de que fosse instaurado procedimento criminal (cfr. factos provados sob os pontos 1., 2., 3., 20. e 21. – II.3.A.). Mais deu como provado que, no âmbito do inquérito que por força da referida conduta foi instaurado contra o assistente, o arguido efetuou uma declaração, na qualidade de testemunha, perante o órgão de polícia de polícia competente para a investigação, reafirmando e concretizando os factos que denunciara contra o assistente que, segundo então afirmou, teriam ocorrido pelas 09h30min do próprio dia 25-05-2019 (cfr. facto provado sob o ponto 4. – II.3.A.). Acresce que o tribunal recorrido deu também como provado que no dia 25-05-2019, às 09h30min e, assim, no circunstancialismo de tempo em que o assistente teria agido da forma que o arguido denunciou e depôs, o mesmo se encontrava numa clínica sita em ..., onde se manteve até às 10h (cfr. facto provado sob o ponto 5. – II.3.A.), resultando da motivação da decisão de facto que, para tal, se alicerçou em prova documental (cfr. II.3.B.). Não obstante, o tribunal recorrido deu como não provado que o arguido soubesse que os factos por ele imputados e relatados não eram verdadeiros (cfr. factos não provados sob os n.ºs 2. e 3. – II.3.A.), fundando-se na ausência de alegação na acusação de que tais factos fossem falsos e de prova nesse sentido (cfr. II.3.B.). Por outro lado, o tribunal recorrido deu também como provado que o arguido, junto de outros órgãos e autoridades competentes, imputou ao assistente a prática de condutas abstratamente suscetíveis de consubstanciar a prática de ilícitos contraordenacionais, comportamentos que também considerou idóneos a serem igualmente classificados como infrações disciplinares, tendo agido com a intenção de que fosse instaurado procedimento contraordenacional e disciplinar (cfr. factos provados sob os pontos 7., 8., 9., 10., 14., 16., 17., 22. e 23. – II.3.A.). Acresce que deu também como provado, desde logo, que nas fiscalizações que vieram a ser efetuadas se verificou não ocorrer a factualidade que havia sido reportada pelo arguido (cfr. factos provados sob os pontos 11., 12., 15., 18. e 19. – II.3.A.), bem como que o arguido foi informado do resultado de algumas delas em data anterior a uma das denúncias (cfr. factos provados sob os pontos 13. e 14. – II.3.A.), resultando da motivação da decisão de facto que, para tal, o tribunal recorrido se alicerçou em prova documental (cfr. II.3.B.). Não obstante, o tribunal recorrido deu como não provado que o arguido soubesse que os factos por ele imputados não eram verdadeiros (cfr. factos não provados sob os n.ºs 4. e 5. – II.3.A.), fundando-se na ausência de alegação na acusação de que tais factos fossem falsos e de prova nesse sentido (cfr. II.3.B.). Por fim, o tribunal recorrido deu ainda como não provado que o arguido tenha agido livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal (cfr. facto não provado sob o ponto 6. – II.3.A.). Ora, é elemento objetivo do tipo legal do crime de denúncia caluniosa a falsidade da imputação (cfr. art.º 365.º do C.P.), sendo também elemento objetivo do tipo legal crime de falsidade de testemunho a falsidade da declaração (cfr. art.º 360.º do C.P.). Ora, a falsidade da imputação verifica-se quando a pessoa denunciada não tiver cometido o facto por que o agente pretende vê-la perseguida ou porque tal facto pura e simplesmente não ocorreu (cfr. ANDRADE, Manuel da Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 536 a 542), sendo que a falsidade da declaração se afere pela sua conformidade com o acontecimento real a que esta se reporta (cfr. SEIÇA, A. Medina de, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 477 e 478). Por seu turno, constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis (cfr. art.º 124.º, n.º 1, do C.P.P.). Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, só estes se podem considerar provados (ou não provados), pelo que as conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas ser objeto de prova. Assim, só ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão (cfr. REIS, Alberto dos, in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição-reimpressão, Coimbra Editora, 1985, págs. 206 e207). Contudo, conforme decorre de tal jurisprudência, será de equiparar aos factos os conceitos conclusivos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem eles mesmos matéria que constitua o próprio objeto do processo (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-04-2012, processo n.º 30/80.4TTLSB.L1.S110; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-05-2012, processo n.º 240/10.4TTLMG.P1.S111; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-04-2015, processo n.º 306/12.6TTCVL.C1.S112; e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 14-01-2015, processo n.º 488/11.4TTVFR.P1.S113; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 14-01-2015, processo n.º 497/12.6TTVRL.P1.S114). Assim, a falsidade da imputação e declaração, tratando-se de um juízo conclusivo, terá que decorrer dos factos provados. É certo que o mero arquivamento do inquérito resultante da denúncia, aparentemente nos termos do art.º 277.º, n.º 2, do C.P.P. (cfr. facto provado sob o ponto 6. – II.3.A.), não é suficiente para se concluir pela falsidade da imputação e declaração que aí tenha sido prestada. Contudo, o crime de denúncia caluniosa é um crime de perigo concreto. Na verdade, o tipo estará preenchido, mas só estará preenchido em termos de consumação, quando em concreto se criar o perigo de a pessoa ofendida ver a sua liberdade posta em causa pela instauração de um procedimento persecutório. Ora, importa precisar o momento em que se atualiza aquele resultado de colocação em risco. Segundo o entendimento generalizado, tal dá-se quando, suposta a idoneidade da denúncia ou suspeita, estas chegam ao destinatário. É então que surge o perigo de a autoridade competente atualizar o seu “juízo de suspeita” e, consequentemente, instaurar o procedimento. Assim, a efetiva instauração do procedimento visado pela denúncia nem sequer pertence ao tipo, não sendo pressuposto necessário para a verificação e consumação do crime de denúncia caluniosa (cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos direitos do Homem, 2.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2010, nota 13, pág. 943; ANDRADE, Manuel da Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 529 e 530; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 04-06-2013, processo n.º 17/12.2TAMAC-A.E115). Seja como for, tendo em conta o dia e a hora a que foi efetuada a denúncia, a precisão do arguido quanto ao circunstancialismo de tempo e lugar em que teria ocorrido a conduta que imputou ao assistente, que afasta a verificação de qualquer equívoco, e ao local onde o assistente então se encontrava, sendo evidente que este não possui a capacidade de estar ao mesmo tempo em distintos locais, é evidente que resulta dos próprios factos provados que o assistente não praticou a conduta que lhe foi imputada pelo arguido e, assim, a falsidade da imputação e declaração. O tribunal recorrido deu como provado que o arguido, por duas vezes distintas, junto da Guarda Nacional Republicana, imputou ao assistente a prática de condutas abstratamente suscetíveis de consubstanciar a prática de ilícitos contraordenacionais (cfr. factos provados sob os pontos 14., 16. e 23. – II.3.A.). Deu também como provado que o arguido, junto da Guarda Nacional Republicana, mencionou que o assistente era militar de tal força de segurança (cfr. facto provado sob o ponto 23. – II.3.A.). No que concerne à segunda situação reportada à Guarda Nacional Republicana (cfr. facto provado sob o ponto 16. – II.3.A.), única em que o tribunal recorrido deu como provado que o arguido mencionou que o assistente era militar de tal força de segurança, resulta da factualidade provada que, de facto, não havia qualquer aviso de licenciamento (cfr. facto provado sob o ponto 24. – II.3.A.), resultando das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer que uma retroescavadora a funcionar provoca ruído e do Regulamento Geral do Ruído (cfr. arts. 2.º, n.º 1, als. a) e b), 3.º, al. b), 14.º, al. a), e 18.º, do dito diploma) que a sua produção a um domingo16 é proibida, sendo pois legítima a suspensão da atividade ruidosa por ordem da autoridade policial. Acresce que, no mais, o que o arguido reportou então à Guarda Nacional Republicana, referente ao destino da terra retirada, do próprio teor da mensagem resulta claro que tinha dúvidas sobre os factos, assim os tendo comunicado àquela força de segurança, pelo que estando em causa, nesta parte, uma denúncia para clarificação, não pode falar-se em falsidade da imputação (cfr. ANDRADE, Manuel da Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, § 51, pág. 542). Deste modo, e quanto a essa segunda situação reportada à Guarda Nacional Republicana não é incoerente ou ilógica a conclusão do tribunal recorrido de que não se demonstrou o arguido soubesse que os factos por ele imputados e relatados não eram verdadeiros (cfr. facto não provado sob o n.º 5. – II.3.A.). Contudo, relativamente às demais denúncias, o arguido imputou ao assistente um comportamento com relevância contraordenacional17 perante a Câmara Municipal de ..., a polícia municipal de Cascais e em ...-...-2019 à Guarda Nacional Republicana (cfr. factos provados sob os pontos 7., 8., 9., 10. e 14. – II.3.A.). É certo que a comprovação de que a situação reportada não se verificava não ocorreu nas datas em que as denúncias foram efetuadas pelo arguido (cfr. factos provados sob os pontos 11., 12. e 15.. – II.3.A.). Contudo, a última das referidas denúncias foi efetuada pelo arguido após ter sido informado que a situação que reportara não se verificava (cfr. facto provado sob o ponto 13. – II.3.A.). Acresce que, tendo em conta a dimensão da situação reportada, a proximidade temporal entre as denúncias e as fiscalizações, a ausência de vestígios daquela e a garantia dada por vizinhos de que o local se encontrou sempre nas condições constatadas aquando das fiscalizações, é evidente que resulta dos próprios factos provados que o assistente não praticou a conduta que lhe foi imputada pelo arguido e, assim, a falsidade da imputação. Deste modo, com exceção da situação a que alude o facto provado sob o ponto 16. – II.3.A., dos próprios factos considerados provados pelo tribunal recorrido resulta que o assistente não cometeu os factos que lhe foram imputados pelo arguido nas demais denúncias que efetuou e que a declaração efetuada pelo arguido no âmbito do inquérito instaurado por força de uma delas se afasta do que de facto ocorreu. Mostra a experiência que os atos interiores ou factos internos, que respeitam à vida psíquica, raramente se provam diretamente. Na ausência de confissão dos mesmos, como é o caso, a prova do dolo terá de ser feita por ilação de indícios ou factos exteriores. Ora, nesta parte, apesar de a sentença recorrida descrever a informação que foi prestada ao arguido por parte da polícia municipal de Cascais antes de aquele efetuar uma das denúncias, a atuação do próprio arguido e o que na realidade ocorreu, tudo absolutamente compatível com o conhecimento, da sua parte, da falsidade do por si imputado e declarado em relação ao assistente, chega ao resultado probatório oposto, considerando não provado que o arguido soubesse que a imputação e declaração eram falsas, o que não passaria despercebido a um jurista com preparação normal nem a um cidadão comum. É certo que resulta da motivação da decisão de facto que o arguido afirmou em audiência de julgamento que tudo o que denunciou e relatou correspondia à verdade. Contudo, tendo o tribunal recorrido concluído objetivamente o contrário (cfr. II.3.A.), bem como que o arguido é pessoa com instrução, com experiência de vida e dotado de normal capacidade percetiva (cfr. II.3.B.), impunha-se que os demais factos subjetivos fossem extraídos das condutas objetivas que deu como provadas, parte delas por adotadas pelo próprio arguido, de acordo com as mais elementares regras da experiência e da normalidade do acontecer, tendo em conta os padrões racionais de comportamento, os critérios de normalidade social e a consciência por parte da comunidade em geral do carácter ilícito e censurável de semelhantes comportamentos (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-04-2024, processo n.º 229/22.0GCTND.C218¸ acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04-03-2025, processo n.º 4/13.3TBSAT.C119; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19-12-2012, processo n.º 497/08.0GAMCN.P120). Assim sendo, com base no texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, verifica-se que a sentença recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova (cfr. art.º 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P.). A correção do dito vício pode ser efetuada por esta instância de recurso, modificando a matéria de facto “se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base” (cfr. art.º 431.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.). A modificação da matéria de facto tanto pode ocorrer com o acrescento de factos, como com a alteração de factos (em qualquer modalidade, designadamente, uma mudança de redação), como ainda com a eliminação de factos (cfr. DIAS, Maria do Carmo, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Almedina, 2024, pág. 353). Tudo ponderado, com base no texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, cumpre aqui fazer funcionar a possibilidade concedida a esta instância de recurso de alteração da matéria de facto nos termos do art.º 431.º, al. a), do C.P.P., eliminando do elenco dos factos não provados na sentença recorrida os aí constantes nos pontos 2 a 6 (cfr. II.3.A.), aditando-os ao elenco dos factos provados, passando a constituir os factos provados sob os pontos 21.A., 21.B, 22.A., 22.B. e 23.A., respetivamente. II.4.B. Do enquadramento jurídico-penal: Comete o crime de denúncia caluniosa quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento (cfr. art.º 365.º, n.º 1, do C.P.), sendo que tal crime igualmente se verificará se a conduta consistir na falsa imputação de contraordenação ou falta disciplinar (cfr. art.º 365.º, n.º 2, do C.P.). Com a referida incriminação visa proteger-se todo o indivíduo de uma injusta perseguição do poder punitivo, ou seja, a segurança da vítima face a injustificadas medidas de perseguição estadual, sendo ainda coenvolvida a proteção de todo um feixe de interesses como a honra, a autodeterminação e a liberdade de movimentos, ainda que reflexamente e complementar, se vise combater o uso indevido do aparelho da justiça e a sua eficácia, autoridade e legitimação (cfr. ANDRADE, Manuel da Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 519 e segs., que de perto se acompanha). Prevê a lei duas modalidades de ação: “denunciar” e “lançar suspeita”, embora a diferença seja mais aparente que real uma vez que o conceito “lançar suspeita” compreende, de forma total e esgotante, a modalidade específica “denunciar”. Deste modo, é necessário que ocorra uma comunicação, por qualquer meio, de factos idóneos a criar, reforçar ou desviar para outra pessoa a suspeita da prática de um ato ilícito contra o qual deva ser instaurado procedimento persecutório. Assim, a comunicação tem que ter factos por conteúdo ou formulações que assumam, no contexto em que são utilizadas, o significado de enunciado de factos concretos ou concretamente referenciáveis. Por outro lado, a falsidade da imputação pode concretizar-se tanto pela imputação de uma infração que o agente sabe que não foi praticada como, suposta a efetiva verificação da infração, pela atribuição da sua autoria ou participação a uma pessoa que o agente sabe não ter sido ela a praticá-la. Contudo, só ocorrerá a falsidade da imputação quando, comprovadamente, a pessoa denunciada não tiver cometido o facto por que o agente pretende vê-la perseguida ou porque tal facto pura e simplesmente não ocorreu. Acresce que a ação da denúncia ou suspeita tem de reportar-se a outra pessoa, que não o agente, sendo concretamente identificada ou, ao menos, identificável, bastando para tal que seja descrita em termos que permitam identificá-la e, como tal, suscetível de ser processada. A conduta, denunciar ou lançar suspeita, pode ter por objeto factos correspondentes a crimes, contraordenação ou falta disciplinar, embora o agente não tenha que qualificar os factos como tal. A denúncia terá de ser feita ou a suspeita lançada diretamente perante autoridade ou publicamente. Autoridade para este efeito serão, desde logo, os tribunais e as demais instâncias formais (Ministério Público e polícia criminal) a que cabe processar a criminalidade, como o serão todas as entidades a que lei comete a tarefa de investigar e sancionar as contraordenações. Sob o ponto de vista subjetivo exige-se o dolo (cfr. art.º 14.º do C.P.) que é qualificado já que o agente terá que atuar com a consciência da falsidade da imputação e terá que o fazer com a intenção de que contra outrem se instaure procedimento. Tendo em conta a matéria de facto considerada provada constata-se que o recorrente, perante um órgão de polícia criminal, reportou factos criminalmente relevantes21, cuja prática imputou ao assistente, e que eram idóneos a que fosse instaurado contra aquele procedimento criminal22, sendo os mesmos falsos (cfr. factos provados sob os pontos 1. a 3. e 5. – II.3.A.). Acresce que também resulta da matéria de facto provada que o recorrente agiu sabendo e querendo perante tal órgão de polícia criminal imputar ao dito assistente a prática de factos criminalmente relevantes, concretamente referenciáveis, com a consciência de que o mesmo não os havia praticado, tendo agido com a intenção de que contra o mesmo fosse instaurado procedimento criminal (cfr. factos provados sob os pontos 5., 20., 21., 21.A. e 23.A.– II.3.A. e II.4.A.), pelo que atuou com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.). Desta forma, é objetiva e subjetivamente imputável ao recorrente a prática em 25-05-2019, sob a forma consumada, de 1 crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, e 365.º, n.º 1, do C.P. Acresce que resulta da matéria de facto considerada provada que o recorrente, em outras ocasiões, também reportou à polícia municipal e em ...-...-2019 à Guarda Nacional Republicana, com competência fiscalizadora, bem como à Câmara Municipal, autoridade administrativa competente para o respetivo sancionamento23, factos distintos daqueles outros, mas com relevância contraordenacional24, cuja prática também imputou ao assistente, e que eram idóneos a que fosse instaurado contra aquele o competente procedimento, sendo os mesmos falsos (cfr. factos provados sob os pontos 7., 8., 9., 10., 11., 12, 13., 14. e 15.– II.3.A.). Acresce que também resulta da matéria de facto provada que o recorrente agiu sempre sabendo e querendo perante aquela polícia, a dita força de segurança e aquela autoridade administrativa imputar ao assistente a prática de factos com relevância contraordenacional, concretamente referenciáveis, com a consciência de que o mesmo não os havia praticado, tendo agido com a intenção de que contra o mesmo fosse instaurado o competente procedimento (cfr. factos provados sob os pontos 22., 22.A., 22.B., 23. e 23.A. – II.3.A. e II.4.A.), pelo que atuou com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.). Não obstante assim ter agido em diferentes ocasiões, reputando-se sempre à mesma situação fáctica, não se demonstrou que, nesta parte, tenha agido ao abrigo de tantas resoluções como as denúncias que efetuou. Assim, é também objetiva e subjetivamente imputável ao recorrente a prática, sob a forma consumada, de 1 único crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º e 365.º, n.ºs 1 e 2, do C.P., cujo último ato foi praticado em ...-...-2019. Finalmente, comete o crime de falsidade de testemunho quem, como testemunha, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, prestar depoimento falso (cfr. art.º 360.º, n.º 1, do C.P.). O bem jurídico que se visa tutelar reside na própria realização ou administração da justiça como função do Estado, isto é, o interesse público na obtenção de declarações conformes a verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão (cfr. SANTOS; Beleza dos, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 70.º, pág. 17 e segs.). O crime de falso testemunho constitui um crime de perigo abstrato. Na verdade, não é necessário que a declaração falsa prejudique efetivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão, nem sequer que, em concreto, o tenha colocado em perigo (cfr. SEIÇA, A. Medina de, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 462 e segs., que de perto se acompanha). De facto, a proteção da função estadual não é posta em causa apenas quando a declaração falsa é tida em consideração entre os fundamentos da decisão, mas mesmo nos casos em que essa influência não se verificou em concreto. Na verdade, o fundamento do ilícito é logo a própria declaração falsa, independentemente da consideração da sua efetiva influência na decisão. Por outro lado, trata-se de um crime de mera atividade, pois o comportamento ilícito esgota-se precisamente na efetivação da conduta proibida, ou seja, na prestação de depoimento falso, não exigindo a lei qualquer resultado decorrente dessa conduta e dela autonomizável. Sob o ponto de vista objetivo é necessário que o agente se encontre investido em uma particular e precisa função processual: a de testemunha. Por declaração deve entende-se toda a comunicação feita por uma pessoa com base no seu conhecimento, quer sobre factos exteriores, quer sobre realidades psíquicas. Contudo, sendo necessário que se verifique a falsidade da declaração, o certo é que nem toda e qualquer declaração falsa prestada preenche a tipicidade. Necessário se torna que o declarante se encontre sujeito a um dever processual de verdade e de completude, isto é, de declarar só a verdade e toda a verdade. O âmbito desse dever encontra-se limitado essencialmente por três fatores: a função processual do declarante, o objeto do interrogatório, as regras processuais relativas à prestação da declaração. Em primeiro lugar, o dever de verdade afere-se pela função processual do declarante. Assim, a testemunha tem o dever de declarar apenas factos de que possua conhecimento direto e, assim, que tenham sido objeto das suas perceções (cfr. art.º 128.º, n.º 1, do C.P.P.). A segunda importante limitação do dever de declarar e, em consequência, do ilícito-típico, diz respeito ao objeto do interrogatório. Na verdade, a exigência da verdade não se estende a toda e qualquer informação prestada pelo depoente, como se se tivesse de considerar a declaração um bloco indivisível em que mínima desconformidade com a verdade implicasse a realização do tipo. Ora, fora do objeto da produção de prova ninguém tem o dever de declarar. Esta limitação resulta não só da própria delimitação do bem jurídico protegido (não um absoluto ideal de verdade, mas apenas a tarefa de esclarecimento dos factos em litígio pressuposto indispensável à correta administração da justiça), como ainda do teor literal do preceito que exige que a declaração seja prestada como meio de prova, o que só tem sentido na pressuposição de um objeto de prova. Em processo penal esse âmbito é determinado pela regra do art.º 124.º, n.º 1, do C.P.P. segundo a qual “constituem objeto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”, acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito legal que “se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objeto de prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil. O dever de verdade da testemunha abrange, na narração positiva, toda a declaração que se reporte ao objeto do interrogatório, independentemente da sua relevância, isto é, de tocar circunstâncias que a final venham a considerar-se nos fundamentos da decisão ou antes circunstâncias hoc sensu não essenciais. Na verdade, a essencialidade do facto declarado não constitui elemento típico, pelo que a falsidade de uma declaração respeitante a uma circunstância considerada não essencial mas pertencente ao objeto do interrogatório realiza a tipicidade, embora constitua um fundamento de atenuação especial da pena ou mesmo de dispensa de pena, nos termos do disposto no art.º 364.º, al. a), do C.P. . Uma terceira limitação do âmbito da declaração tipicamente relevante pode decorrer da violação de disposições processuais relativas à tomada de declarações. A exclusão da tipicidade verifica-se, sem dúvida, sempre que da inobservância do requisito processual decorra a incompetência da entidade perante quem a declaração é prestada, uma vez que o elemento competência faz parte do tipo. Ora, no presente caso, conforme resulta da matéria de facto considerada assente (cfr. factos provados sob os pontos 1. a 4. – II.3.A.), o recorrente prestou depoimento como testemunha, respondendo sobre a matéria da denúncia do crime que havia apresentado, perante o órgão de polícia criminal competente para a sua investigação (cfr. arts. 262.º, 267.º e 270.º, n.º 1, do C.P.P.). O elemento típico central do crime em apreço reside na falsidade da declaração, o que se dirige, inevitavelmente, ao seu conteúdo. Pressupõe, contudo, um termo de comparação: uma declaração é falsa quando aquilo que se declara (conteúdo da declaração) diverge daquilo sobre o qual se declara (objeto da declaração). Não obstante, a determinação de qual seja este objeto, isto é, qual o padrão ou termo à luz do qual se há de medir a concreta declaração, em ordem ao juízo de conformidade ou desconformidade, constitui terreno de divergências. Para a teoria objetiva, a falsidade da declaração reside na contradição entre o declarado e a realidade, entre a palavra e a realidade ou verdade histórica. Por seu turno, para a teoria subjetiva, a falsidade da declaração reside na contradição entre o declarado com a representação, o conhecimento ou a recordação do declarante sobre a realidade objetiva no momento da declaração. Ora, a conceção objetiva é de sufragar. Assim, a falsidade da declaração afere-se pela sua conformidade com o acontecimento real a que ela se reporta. No presente caso, ficou demonstrado que o recorrente, no depoimento que prestou enquanto testemunha, relatou factos que não correspondiam à verdade (cfr. facto provado sob o ponto 5. – II.3.A.). Como elementos subjetivos, o crime em apreço o dolo, isto é, o conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo) por parte do agente de adotar a referida atitude, demonstrando, com a sua execução, uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal (elemento emocional) (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa, in Direito Penal, Lições da cadeira de Direito Penal (3.º ano), 1996, pág. 268/9). Ora, atenta a matéria de facto considerada provada ter-se-á que concluir ter o recorrente agido sabendo e querendo efetuar uma declaração, na qualidade de testemunha, perante órgão de polícia criminal, faltando à verdade (cfr. factos provados sob os pontos 5., 21.B. e 23.A. – II.3.A. e II.4.A.), tendo agido com a modalidade de dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.). Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável ao recorrente a prática em 14-01-2020, sob a forma consumada, de 1 crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360.º, n.º 1, do C.P. Acresce em todas aquelas situações o recorrente possuía o domínio da ação, na medida em que realizou ele próprio a ação típica, tomando assim a execução nas suas próprias mãos, de tal modo que dele dependeu decisivamente o se e o como da realização típica, sendo, pois, seu autor imediato (cfr. primeira alternativa do art.º 26.º do C.P.). Por fim, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (cfr. art.º 30.º, n.º 1, do C.P.). Assim, a lei equipara o concurso homogéneo (o número de crimes determina-se pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido) ao concurso heterogéneo (o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes cometidos), e não distingue o concurso ideal (um mesmo facto viola vários bens jurídicos protegidos por diversas incriminações) e o concurso real (vários factos violam vários bens jurídicos protegidos por diversas incriminações). Por outro lado, não só é admissível um efetivo concurso entre o crime de denúncia caluniosa e o crime de falsidade de testemunho, mesmo ideal (cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos direitos do Homem, 2.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2010, pág. 936; SEIÇA, A. Medina de, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 477 e 478), como, no presente caso, desde logo não resulta dos factos provados qualquer situação exterior ao recorrente que, de fora e de maneira considerável, tivesse tornado cada vez menos exigível que ele se comportasse de maneira diferente (cfr. art.º 30.º, n.º 2, do C.P.). Assim, o recorrente é condenado, como autor imediato, sob a forma consumada e em concurso efetivo, pela prática de 1 crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º e 365.º, n.º 1, do C.P., praticado em 25-05-2019, de 1 crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º e 365.º, n.ºs 1 e 2, do C.P., cujo último ato foi praticado em ...-...-2019, e de 1 crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 14.º, n.º 1, 26.º e 360.º, n.º 1, do C.P., praticado em 14-01-2020. II.4.C. Escolha e determinação da sanção: Interposto recurso pelo Ministério Público da sentença absolutória da 1.ª instância, esta instância, na sequência da alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, revogou essa sentença absolutória, concluindo pela condenação do recorrente (cfr. II.4.A. e II.4.B.). Em princípio, a decisão sobre a culpabilidade impõe que se lhe siga a decisão sobre a determinação da sanção. Na verdade, pese embora a limitação do recurso interposto à questão da culpabilidade, tal não prejudica o dever de esta instância retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida (cfr. art.º 403.º, n.ºs 1, 2, als. a) e d), e 3, do C.P.P.; SILVA, Germano Marques da, in Direito Processual Penal Português. Do procedimento (marcha do processo), Vol. III, Universidade Católica Portuguesa, 2014, pág. 320). Acresce que “em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal” (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016, de 21-01-2016, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 36, I Série, de 22-02-2026, págs. 532 e segs.25). Contudo, o referido acórdão para fixação de jurisprudência não abrange o caso de revogação pelo tribunal da relação de decisão absolutória proferida pela 1.ª instância que não tenha apurado os factos necessários para a determinação da sanção, por não ser tal hipótese abrangida pela oposição de julgados em que assentou a fixação de jurisprudência (cfr. art.º 437.º, n.º 1, do C.P.P.), não integrando o objeto da fixação de jurisprudência o posicionamento de cariz meramente doutrinário referido na fundamentação do mesmo ao apontar para que seja o tribunal da relação a apurar os factos necessários para a determinação da sanção quando a decisão absolutória de 1.ª instância não apurou tais factos (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05-07-2016, processo n.º 145/13.7GAMCQ.E126; LATAS, António João, in O AFJ 4/2016 e a determinação da pena nos casos em que foi revogada a sentença absolutória proferida pelo tribunal recorrido, que não apurou e fixou factos relativos à vida pessoal e personalidade do arguido, 05-07-2016, págs. 1 a 727). Ora, no presente caso, não consta do elenco dos factos provados a factualidade necessária para a determinação da sanção, nomeadamente relativa à personalidade do recorrente, ao seu carácter, às suas condições pessoais, bem como à sua conduta anterior e posterior (cfr. II.3.A.). Acresce que nem sequer conta do processo qualquer relatório social sobre a sua inserção familiar e socioprofissional, sendo que apesar de constar um certificado do registo criminal (cfr. ref.ª 25657041 de 17-05-2024), o mesmo já perdeu validade (cfr. art.º 15.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25-08). Deste modo, na falta de factos essenciais para a determinação da sanção, ao abrigo do disposto no art.º 426.º, n.º 1, do C.P.P. impõe-se determinar o reenvio do processo para novo julgamento restrito precisamente à determinação da sanção e, assim, à reabertura da audiência de julgamento para apuramento e eventual discussão dos factos necessários, com subsequente escolha e determinação da medida das penas parcelares e única (cfr. arts. 369.º, 370.º e 371.º do C.P.P.; LATAS, António e ALBERGARIA, Pedro Soares de, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Almedina, 2024, pág. 281). Tal impõe-se, seja porque a decisão recorrida padece do vício previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P., o que foi determinante para que não contivesse os factos relativos à determinação da sanção em face ao modelo de cisão ou césure mitigada acolhido nos arts. 369.º, 370.º e 371.º do C.P.P., bem como para que esta instância ficasse impedida de decidir na plenitude que, em princípio, se impunha, seja por aplicação analógica do referido art.º 426.º, n.º 1, do C.P.P., por ser tal regime o particularmente adequado ao apuramento de factos cuja falta ou insuficiência se detete em 2.ª instância, por força do art.º 4.º do C.P.P., que começa por dispor que aos casos omissos se aplicam as disposições do código de processo penal que possam aplicar-se por analogia (cfr. MOURÃO, Helena, in “A revista penal em revista”, A Revista, n.º 2, ponto 228; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-01-2024, processo n.º 2063/18.3T9ALM.L1.S129). O novo julgamento, com aquele restrito objeto, deverá culminar com a prolação de uma nova sentença, na qual se incorpore o que resultar do reenvio determinado, ou seja, se acrescente à matéria de facto já considerada provada e não provada os factos que vierem a ser apurados em função da prova que venha a ser produzida e se acrescente à motivação da decisão facto e à fundamentação de direito a referente ao objeto do reenvio parcial (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06-11-2018, processo 201/09.6JELSB.E230). Acresce que o novo julgamento, com aquele restrito objeto, deverá ser efetuado pelo tribunal que efetuou o julgamento anterior (cfr. art.º 426.º-A, n.º 1, do C.P.P.), ou seja, no caso, a juiz que ocupa o lugar de provimento 3 do Juízo Local Criminal de Cascais, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, afigurando-se que inexiste o impedimento a que alude o art.º 40.º, n.º 1, al. c), do C.P.P. Na verdade, numa compreensão teleológica da norma que atenda à ratio de salvaguarda da imparcialidade que lhe deve estar subjacente e a compatibilize com a necessidade de garantir a harmonia dos atos do processo entre si correlacionados, parece-nos que o art.º 40.º, n.º 1, al. c), do C.P.P. deve ser interpretado restritivamente no sentido de apenas levar ao impedimento do juiz de 1.ª instância que depois de, em sentença, ter conhecido do mérito da causa seja confrontado com um cenário de repetição integral da audiência de julgamento (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo e BRANDÃO, Nuno, in Sujeitos processuais penais: o Tribunal, Texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016), 2015, págs. 22 e 23; LOPES, José Mouraz, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, pág. 481), o que não é o caso dos autos. II.5. Das custas: O Ministério Público está isento de custas (cfr. art.º 522.º, n.º 1, do C.P.P.). III. Decisão: Julga-se totalmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência: - Declara-se que a sentença recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova (cfr. art.º 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P.); - Ao abrigo do disposto no art.º 431.º, al. a), do C.P.P., elimina-se do elenco dos factos não provados os aí constantes sob os pontos 2. a 6. que se aditam à matéria de facto provada, passando a constituir, os factos provados sob os pontos 21.A., 21.B, 22.A., 22.B. e 23.A., respetivamente: 21.A. Através das condutas descritas, o arguido sabia que relatava às autoridades policiais, mormente PSP, factos que não eram verdadeiros, imputando-os a BB, e que assim manipulava a realização da justiça e atentava contra a honra de BB, o que quis e conseguiu. 21.B. Ao prestar depoimento no processo de inquérito crime 345/19.6PFCSC, o arguido sabia que prestava depoimento que não era verdadeiro e que, assim, manipulava a realização da justiça, o que quis e conseguiu. 22.A. Do mesmo modo, com a conduta supra descrita, o arguido sabia que relatava à Polícia Municipal factos que não eram verdadeiros, e que, desse modo, manipulava a realização da justiça e atentava contra a honra de BB, o que quis e conseguiu. 22.B. De igual modo, ao relatar à Guarda Nacional Republicana factos que não eram verdadeiros, sabia ao arguido que assim manipulava a realização da justiça e atentava contra a honra de BB, o que quis e conseguiu. 23.A. AA agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida. (cfr. II.4.A.); - Condena-se o arguido AA, como autor imediato, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de 1 crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º e 365.º, n.º 1, do C.P., praticado em 25-05-2019, de 1 crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º e 365.º, n.ºs 1 e 2, do C.P., cujo último ato foi praticado em ...-...-2019, e de 1 crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 14.º, n.º 1, 26.º e 360.º, n.º 1, do C.P., praticado em 14-01-2020 (cfr. II.4.B.). - Ao abrigo do disposto no art.º 426.º, n.º 1, do C.P.P., determina-se o reenvio do processo para novo julgamento restrito à determinação da sanção e, assim, à reabertura da audiência de julgamento para apuramento e eventual discussão dos factos necessários, com subsequente escolha e determinação da medida das penas parcelares e única a aplicar (cfr. arts. 369.º, 370.º e 371.º do C.P.P.), a efetuar pelo mesmo tribunal que efetuou o julgamento anterior (cfr. art.º 426.º-A, n.º 1, do C.P.P.), e que deverá culminar com a prolação de uma nova sentença, na qual se incorpore, a nível de facto e de direito, o que resultar do reenvio parcial (cfr. II.4.C.). Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público. Lisboa, 06-05-2025 Pedro José Esteves de Brito Rui Coelho Carlos Espírito Santo _______________________________________________________ 1. https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf 2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/458ff4110b557ba080258ac5002d2825?OpenDocument 3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf 4. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf 5. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bb0548fc65976b3780257f56003708fe?OpenDocument 6. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9299baa044ce77f8802574f10034758d?OpenDocument 7. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/dfe0c3bfcb71d086802575e10056f0dc?OpenDocument 8. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bd130c74d9153bf280257478005bb232?OpenDocument 9. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b598fde96a238c05802586550049aef9?OpenDocument 10. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/188637d890f6ea2d802579e60054c345?OpenDocument 11. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d8128c052f14e99280257a0f0045e3e7?OpenDocument 12. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3f132269445940fa80257e3700345db3?OpenDocument 13. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5fa7bd893a75149e80257dce0037ede2?OpenDocument 14. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d03257d45a18e54680257dce0037ccc0?OpenDocument 15. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/121d6aef271b718180257de10056fc1e?OpenDocument 16. A mensagem de correio eletrónico a que se refere o facto provado sob o ponto 16. – II.3.A. foi enviada não em 22-06-2019 mas em 22-06-2020 (cfr. ref.ª 18305143 de 12-02-2021 – 7.º anexo), pelo que o dia 21-06 aí referido se reporta não ao ano de 2019 que, de acordo com o calendário gregoriano, foi uma sexta, mas sim ao ano de 2020 que, de acordo com este, foi efetivamente um domingo. 17. Cfr., por exemplo, os arts. 21.º, n.º 1, e 87.º, n.º 2, al. d), do Regulamento Municipal de bem estar e saúde animal (cfr. https://www.cascais.pt/sites/default/files/anexos/gerais/edital_115-2011.pdf). 18. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/29ead76469b7dd2580258b230051dd22?OpenDocument 19. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b21b50009ad2a80380257e0600422332?OpenDocument 20. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/a4c4b27f8c7f93d180257af0003feb9a?OpenDocument 21. O crime de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do C.P., tendo em conta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2013, de 20-02-2013, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 56, I Série, de 20-03-2013, págs. 1776 e segs. (cfr. https://files.dre.pt/1s/2013/03/05600/0177601782.pdf). 22. Desde logo, face ao disposto nos arts. 241.º e segs., do C.P.P. 23. Cfr. arts. 83.º e 86.º do Regulamento Municipal de bem estar e saúde animal (cfr. https://www.cascais.pt/sites/default/files/anexos/gerais/edital_115-2011.pdf). 24. Cfr., por exemplo, os arts. 21.º, n.º 1, e 87.º, n.º 2, al. d), do Regulamento Municipal de bem estar e saúde animal (cfr. https://www.cascais.pt/sites/default/files/anexos/gerais/edital_115-2011.pdf). 25. https://files.diariodarepublica.pt/1s/2016/02/03600/0053200542.pdf 26. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/bd429c8daa7790e480258017003d09c7?OpenDocument 27. https://tre.tribunais.org.pt/fileadmin/user_upload/docs/criminal/AFJ_4-2016.pdf 28. https://arevista.stj.pt/edicoes/numero-2/a-revista-penal-em-revista 29. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b2a0887cc407044980258aa20033ad63?OpenDocument 30. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/5c9f4e2fd47a2663802583590057d2e2?OpenDocument |