Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3560/24.7T8ALM.L1-4
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: HORÁRIO FLEXÍVEL
DIAS DE DESCANSO SEMANAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O horário flexível é, antes de mais, um horário de trabalho (artigo 200.º do CT), pelo que o trabalhador, no seu pedido, pode precisar que os seus dias de descanso sejam o sábado e o domingo.
II – Esta perspectiva é conforme com uma interpretação teleológica do regime jurídico do artigo 56.º do Código do Trabalho e com a Constituição, porquanto só assim se consegue o desiderato da conciliação entre a atividade profissional e a vida privada dos trabalhadores com responsabilidades familiares, em todas as situações em que as necessidades familiares a acautelar determinam a necessidade de não trabalhar aos fins de semana (artigos 69.º, n.º 1, alínea b), 67.º, n.º 1 e 68.º, n.º s 1 e 4 da CRP), sempre sem prejuízo da possibilidade de recusa do empregador, com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável (artigo 57.º, n.º 2 do CT).
III – A interpretação do artigo 56.º, n.º 2, do Código do Trabalho nos termos assinalados não viola os princípios constitucionais da legalidade e da protecção da confiança.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
П
1. Relatório
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1.1. DIA Portugal-Supermercados, S.A. intentou a presente ação declarativa, sob a forma do processo comum, contra AA, peticionando que seja a) declarada licita a sua decisão de indeferir o pedido de trabalho da ré em regime de flexibilidade de horário; b) caso assim não se entenda, declarada a existência de colisão de direitos entre horários flexíveis da Ré e suas colegas e declarar que nessa conformidade a Autora poderá restringir, de forma proporcional, justa e adequada – permitindo que a loja funcione com o quadro de pessoal necessário –, o horário flexível da Ré.
Para tanto alegou, em síntese: que a trabalhadora foi admitida ao seu serviço no dia 4 de Outubro de 2010 para exercer, mediante o pagamento de retribuição, as funções inerentes à categoria profissional de operadora ajudante de 1.º ano; que desde 4 de Outubro de 2018, detém a categoria profissional de operadora especializada; que exerce atualmente funções na loja da DIA da Cruz de Pau, freguesia do concelho do Seixal; que no dia 26 de Janeiro de 2024, a trabalhadora solicitou a atribuição de horário flexível, pedido que foi recusado; que a A. em 21 de Fevereiro de 2024 remeteu o processo à CITE e que esta entidade emitiu parecer desfavorável à intenção de recusa relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível em 15 de Março de 2024; que a prestação de trabalho em regime de horário flexível prevista nos artigos 56.º e 57.º do CT apenas diz respeito aos limites diários, o que resulta de forma literal do preceito e que o STJ, quando afirma que o texto dos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho não exclui a inclusão do descanso semanal, incluindo o sábado e o domingo, no regime de flexibilidade do horário de trabalho, não aplica o que a lei dita mas o que a lei não impossibilita que se faça, violando o princípio da legalidade enquanto princípio mais estruturante do Estado de Direito (artigo 3.º, n.º 2, da CRP) e o princípio da protecção da confiança, na medida em que a convicção legítima de que as coisas se passarão de determinado modo, conforme prevê a lei, não é respeitada, pondo em causa esta trave-mestra em que assenta o Estado de Direito; que a R. não indicou no seu pedido o prazo pelo qual pretendia a aplicação do regime de horário flexível; que o deferimento do pedido da R. para trabalhar excluindo a prática laboral aos sábados e domingos implicaria fazer um horário que nunca lhe possibilitaria prestar trabalho ao fim-de-semana, o que significa que um dos seus colegas teria de abdicar de descansar ao fim-de-semana, para que a loja não tenha de praticar um horário reduzido nesses dias; que com o horário proposto a R. nunca conseguiria assegurar a abertura e o fecho de loja, o que tem de ser feito, no mínimo, por dois trabalhadores, com os inerentes constrangimentos aos horários dos restantes colaboradores, e que a loja tem o constrangimento adicional de ter já três funcionários que beneficiam do regime de flexibilidade de horário, sendo que num dos casos foi atribuído o direito a gozo de folgas fixas, pelo que a atribuição de mais um pedido de folgas fixas, impossibilitaria o regular funcionamento da loja.
Realizada a audiência de partes, a R. trabalhadora apresentou contestação na qual alegou, em suma: que, desde 18 de Março de 2024 já faz o horário pretendido (entre as 08h00 e as 17h00, com uma hora de intervalo para almoço e folgas fixas ao fim de semana) na sequência de pedido de horário flexível que efetuou e, até ao presente, não verificou que algum dos colegas tenha de abdicar de descansar ao fim de semana ou que a loja tenha tido de aplicar um horário reduzido; que, pelo menos desde finais de 2018, início de 2019, já cumpria um horário flexível entre as 8h00-12h00 e as 14h00-18h00, pelo que já não faz abertura nem fecho de loja desde essa altura, e tal não trouxe constrangimentos aos horários dos restantes colaboradores; que continua a ter o mesmo horário de entrada e apenas pede para lhe ser reduzida a hora de almoço para 1 hora, para sair as 17h00 para conseguir ir buscar os dois filhos à creche e escola, o que faz de transportes públicos, sendo que apanha um transporte publico as 6h28 à porta de casa e depois vai deixar o filho BB à pré-escola na Amora, apanha aí novo transporte as 7h20h para ir deixar a filha EE, nascida a 17 de Agosto de 2022, na Creche familiar nas Paivas, Fogueteiro, e depois tenta apanhar o autocarro das 7h24 , mas nem sempre consegue, o que a obriga a ir a pé até uma artéria principal da Amora para apanhar outro autocarro; que ao fim do dia, continua a ter de apanhar 3 autocarros para ir buscar os seus filhos, sendo que a creche da EE fecha as 18h30 e a partir das 16h00 o transito intensifica-se muito na zona, o que causa muitas vezes atrasos nos transportes; que os horários rotativos são feitos pelos colegas CC, DD, EE, FF e GG e a loja continua aberta e funciona devidamente, até porque é uma loja pequena e a entrada às 7h00 é apenas para assegurar a padaria; que o pai dos seus filhos não consegue neste momento cumprir com o regime de vistas dos menores, pois encontra-se num situação de "sem abrigo" e não tem casa própria ou sequer onde residir com familiares; que a R. não tem também com quem deixar os filhos, pois não tem apoio familiar e apenas tem algum apoio esporádico de uma amiga, que por vezes a ajuda com os menores por estar de baixa médica, mas que esta amiga, além de também ter filhos, prevê o seu regresso ao trabalho dentro em breve, pelo que não poderá continuar a ajudá-la. Pede, a final, a sua absolvição dos pedidos.
Foi proferido despacho saneador e fixado o objeto do litígio do seguinte modo: “analisar a existência de motivo justificado para a recusa do pedido efetuado pela ré à autora de flexibilidade de horário de trabalho entre as 08h e as 13h e das 14h às 17h de segunda a sexta e com folga fixa ao fim-de-semana (em virtude de ser uma família monoparental com dois filhos menores de 5 anos e 2 meses, que necessitam da sua assistência) e a existência de colisão de direitos entre horários flexíveis da Ré e suas colegas e consequentemente o direito de a autora restringir, de forma proporcional, justa e adequada – permitindo que a loja funcione com o quadro de pessoal necessário –, o horário flexível da ré”. Foi dispensada a enunciação dos temas da prova.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que conheceu do mérito da acção e terminou com o seguinte dispositivo:
«Face a tudo o exposto, decide-se julgar a presente ação totalmente improcedente e, consequentemente, considerar não existir motivo justificativo para a autora recusar a atribuição de horário flexível solicitada pela ré, nem para restringir o horário flexível da Ré. pelo que se absolve a mesma de ambos os pedidos.
Custas pela autora - art.º 527.º, ns. 1 e 2, do Código de Processo Civil.»
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1.2. Inconformada, a A. interpôs recurso de apelação da sentença e terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“A. A Recorrente não se conforma com a Douta Sentença a quo que julgou improcedente a presente Acção de Processo Comum;
B. Esta decisão é ilegal por incorrecta aplicação do disposto nos artigos 56.º, n.º 1 e 2, 57.º, n.º 8 e 200.º, n.º 1 do Código do Trabalho;
C. A Douta Sentença a quo errou na interpretação que fez do disposto no artigo 56.º, n.º 1 e 2 e 200.º, n.º 1 do CT;
D. Errou porque entendeu, sem ter qualquer suporte interpretativo para o fazer, que por o regime previsto no artigo 200.º do CT abarca também os dias de descanso, que tal se deveria transpor, por osmose, para o regime previsto no artigo 56.º, n.º 1 e 2 do CT;
E. Por outras palavras, porque ambos os regimes contêm na sua epígrafe o termo “horário”, o Digníssimo Tribunal a quo decidiu fazer tábua rasa da totalidade da letra da norma e das mais elementares regras de interpretação jurídica (com especial enfoque no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil);
F. E assim concluir que onde está escrito na definição legal de “horário flexível: “(...) aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário”, se deve ler que poderá também escolher os dias de descanso semanal;
G. Salvo o devido respeito, a posição recentemente adoptada pelo STJ – “não exclui a inclusão do descanso semanal no regime de flexibilidade de horário” – constitui uma violação do princípio da legalidade – pois que a interpretação em causa mais não é que a criação de lei por via de “interpretação” por parte dos tribunais – e do princípio da protecção de confiança, sendo inconstitucional.
H. A Recorrente levantou a questão da inconstitucionalidade da interpretação em que assenta a possibilidade de o trabalhador, ao abrigo do horário flexível, escolher os dias de descanso semanal, junto do Douto Tribunal a quo, que foi omisso na sua sentença, pelo que a referida sentença é nula por omissão de pronúncia - nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do CPT;
I. Nestes termos e nos melhores de Direito que V.Exas. Doutamente suprirão, requer-se mui respeitosamente que a Douta Sentença a quo seja integralmente revogada, declarando-se procedente por provada a acção intentada pela Recorrente.”
1.3. A R. não respondeu à alegação da recorrente.
1.4. O recurso foi admitido.
1.5. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, em douto Parecer que não mereceu resposta das partes, no sentido de ser negada a apelação.
Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
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Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal consistem em saber:
1.ª – se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada na petição inicial;
2.ª – se a interpretação do artigo 56.º, n.º 1 e 2 do Código do Trabalho, no sentido de que o horário flexível nele previsto inclui os dias de descanso semanal, viola os princípios constitucionais da legalidade e da proteção da confiança;
3.ª – se sentença errou na interpretação que fez do disposto nos artigos 56.º, n.º 1 e 2 e 200.º, n.º 1 do Código do Trabalho, ao entender que o regime previsto no artigo 200º haveria também de aplicar-se ao regime horário flexível previsto no artigo 56.º, por este não incluir o direito de escolher os dias de descanso semanal.
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É de notar que a recorrente não coloca em causa na apelação, tal como a delimita nas conclusões acima enunciadas, o decidido na sentença quanto à inexistência de motivo justificativo para a empregadora recusar o pedido de aplicação do horário flexível previsto no artigo 56.º do CT, feito pela recorrente – não questionando que os factos provados não revelem a existência de qualquer um dos fundamentos de recusa previstos, em alternativa, no artigo 57.º n.º 2 do CT, a saber, exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou impossibilidade de substituir a trabalhadora se esta for indispensável.
O mesmo se diga quanto à inexistência de colisão de direitos entre horários flexíveis da recorrida e suas colegas e quanto à inicialmente alegada inobservância do requisito formal consistente na falta de indicação do prazo previsto, tal como exigido no artigo 57.º, n.º 1, alínea a) do Código do Trabalho,
Estas questões estão fora da nossa apreciação uma vez que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados – cf. artigo 635.º n.ºs 2, 4 e 5 do CPC.
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3. Fundamentação de facto
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A sentença da 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade comercial cujo objeto abrange: (i) todas as operações inerentes à exploração de supermercados e outros estabelecimentos comerciais, incluindo restauração e bebidas, take-away e medicamentos não sujeitos a receita médica; (ii) a produção, distribuição e comércio de produtos alimentares, não alimentares e de consumo; (iii) atividades de importação e exportação.
2. Possui, atualmente, apenas uma insígnia afeta aos seus supermercados, a insígnia “Minipreço”.
3. Dedica-se à venda a retalho, maioritariamente de produtos de primeira necessidade, tais como alimentos, produtos de higiene, produtos de limpeza, etc.
4. Com exceção de algumas lojas apelidadas de “Family”, os estabelecimentos são caracterizados por terem uma área comercial reduzida e situada em zonas urbanizadas de acesso pedonal fácil por parte dos consumidores.
5. A autora e a ré celebraram um contrato de trabalho em 4 de Outubro de 2010, por via do qual se obrigou a última a prestar trabalho à primeira, com a categoria profissional de Operadora Ajudante do 2.º ano, sob as suas ordens e direção, contra o pagamento de uma retribuição mensal, tendo em tal convénio estabelecido na sua cláusula 5.ª, sob a epígrafe “Período normal de trabalho” que:
«1. O período normal de trabalho da SEGUNDA CONTRAENTE será, em média, de 40 horas semanais e 8 horas diárias, a cumprir de acordo com o horário de trabalho a elaborar e a alterar unilateralmente pela PRIMEIRA CONTRAENTE.
2. O período normal de trabalho diário pode ser aumentado até ao máximo de 2 horas, sem que a duração do trabalho semanal exceda as 50 horas.
3. O acréscimo do período normal de trabalho previsto no número anterior não conta para efeitos de trabalho suplementar e será compensado num período máximo de 8 semanas.
4. A SEGUNDA CONTRAENTE terá direito a um dia de descanso semanal complementar e um dia de descanso semanal obrigatório a definir pela PRIMEIRA CONTRAENTE, nos termos da Cláusula 10ª do Contrato Colectivo de Trabalho aplicável.
5. A SEGUNDA CONTRAENTE desde já presta o seu acordo a que a PRIMEIRA CONTRAENTE possa alterar os dias de descanso semanal complementar e obrigatório, no regime fixo ou rotativo, caso exista conveniência de serviço em tal alteração, de acordo com o horário de trabalho que, estabelecido pela PRIMEIRA CONTRAENTE, vigorar em cada momento.
6. Em casos imprescindíveis e justificados, poderá haver lugar à prestação de trabalho suplementar, que a SEGUNDA CONTRAENTE se compromete desde já a efectuar e que a PRIMEIRA CONTRAENTE remunerará nos termos da Cláusula 12° do Contrato Colectivo de Trabalho aplicável.
7. A SEGUNDA CONTRAENTE obriga-se a prestar trabalho em horário nocturno, se tal lhe for determinado pela PRIMEIRA CONTRAENTE. (…)»
– cfr. doc. junto com a p.i. como doc. 1, cujo teor aqui no mais se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais1.
6. A ré tem vindo a ser promovida automaticamente dentro da organização da autora, tendo, desde em 4 de Outubro de 2018, a categoria profissional de Operadora Especializada.
7. A ré exerce atualmente as suas funções na loja DIA n.º 9779 (Cruz de Pau), sita na referida freguesia do Seixal.
8. A Autora recebeu uma carta que lhe foi dirigida pela ré, que a recebeu em 26/01/2024, sendo o seguinte o seu teor:
«Eu AA, da loja 9779, com o número de colaboradora 45158, venho por este meio solicitar que seja alterado o meu horário flexível, para ter só 1 h de almoço.
Sendo o meu horário das 8:00 às 12:00 e das 14:00 às 18:00. Sendo que na altura que o pedi só tinha 1 filho. Neste momento tive uma bebé, onde frequentam locais diferentes de escola e de ama, o que me deixa impossibilitada em 1 hora conseguir apanhar os dois em sítios diferentes. Sendo que a escola fecha às 19:00, e eu saiu às 18:00. Por esse motivo eu peço que me seja dado 1h de almoço. Sendo assim o horário seria alterado se possível das 8:00h às 13:00h e das 14:00h às 17:00h. E venho também solicitar que me seja dado os fins de semana, sendo que na altura não pedi porque tinha ajuda da parte da minha mãe, que neste momento não tem condições de saúde para me continuar a ajudar e sendo que agora são dois bebés e não um. Sou mãe monoparental. Já tendo entregue o papel da creche do meu filho quando coloquei o horário fixo e os papéis do poder patronal, irei enviar tudo novamente atualizado com a da minha bebé. Sendo que estou a ser acompanhada pela psicologia e psiquiatria precisamente por todas as dificuldades que estou a passar na minha vida pessoal. Desde já agradeço.
Cumprimentos
AA».
9. A Ré fez acompanhar esta sua carta de uma “Declaração do Centro de Assistência Paroquial de Amora”, “Regulação das responsabilidades parentais”
10. A Autora respondeu à Ré, via email, a 15/02/2024 – cfr. doc. junto com a p. i. como doc. 3, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
11. A Ré por sua vez respondeu à Autora, via email, a 16/02/2024 – cfr. doc. junto com a p. i. como doc. 4, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
12. No dia 21 de Fevereiro de 2024, a autora remeteu à CITE o processo contendo o pedido da trabalhadora e os fundamentos da intenção de o recusar por parte da autora.
13. Na sequência do envio do processo referido em 12., a CITE emitiu o Parecer n.º 320/CITE/2024 que, em conclusão e por maioria dos membros presentes na Reunião da CITE de 13 de Março de 2024, expôs como segue:
«(…) Face ao exposto:
3.1. Face ao exposto e sem prejuízo de acordo entre as partes, A CITE emite parecer desfavorável à intenção de recusa da entidade empregadora Dia Portugal Supermercados, Lda., relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível, apresentado pela trabalhadora com responsabilidades familiares AA.
3.2. O empregador deve proporcionar à trabalhadora condições de trabalho que favoreçam a conciliação da actividade profissional com a vida familiar e pessoal, e, na elaboração dos horários de trabalho, deve facilitar aos trabalhadores essa mesma conciliação, nos termos, respectivamente, do n.º 3 do artigo 127.º, da alínea b) do n.º 2 do artigo 212.º e n.º 2 do artigo 221.º todos do Código do Trabalho(…)».
14. O parecer referido em 13. foi recebido via correio pela Autora em de 15/03/2024.
15. A Autora notificou a Ré do referido parecer via email, a 18/03/2024 - cfr. doc. junto como Doc. 7.
16. A loja na qual a ré desempenha funções tem o horário de funcionamento diário, de segunda a domingo, das 07h00 às 21h30, sendo que às quartas feiras, dias de “mudança de preços”, o horário do fecho é às 22h00.
17. A ré já faz o horário pretendido com folgas fixas ao fim de semana desde Janeiro de 2024.
18. A chefia de loja antes folgava sempre aos fins de semana e agora já trabalha em alguns deles.
19. A ré, desde finais de 2018/inícios de 2019, cumpre um horário entre as 8.00-12.00 e as 14.00-18.00, não assegurando, desde essa altura, o horário de abertura ou de fecho de loja.
20. O quadro de trabalhadores da loja a que a ré está afeta é composto por 11 trabalhadores, pese embora estejam lá 9 pessoas.
21. A loja da autora, a que a ré está afeta, funciona com, pelo menos, dois trabalhadores no horário de abertura e com dois trabalhadores no horário de fecho.
22. Por regra e por dia, laboram na loja a que a ré está afeta 7 trabalhadores, ou então, considerando férias e folgas, são no mínimo 5 ou 4 trabalhadores.
23. O pai dos filhos da ré encontra-se num situação de "sem abrigo", tendo a sua morada fiscal numa instituição de solidariedade social a “Criar-t”– cfr. doc. junto com a contestação como doc. 5, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos -, devido a sua atual condição de vida, por não ter casa própria ou sequer onde residir com familiares, não cumprindo o regime dos convívios fixado nos acordos de regulação das responsabilidades parentais.
24. A ré não tem com quem deixar os filhos, pois não tem apoio familiar, apenas teve algum apoio esporádico da amiga HH, que, por ter estado de baixa médica, por vezes a ajudava com os menores, mas esta amiga, além de também ter filhos, entretanto já regressou ao trabalho, pelo que não poderá continuar a ajudar a Ré.
25. Teor das declarações, juntas com a contestação da ré como docs. 2 e 3 do “Centro de Assistência Paroquial de Amora”, datadas de 5 de Junho de 2024, subscritas pela Direção:
- «A pedido de AA (…) se declara que o utente BB frequenta o centro de assistência Paroquial de amora com o número do Utente 3645, na Valença de pré-escolar na ... Amora. A Valência tem como horário das 7:00 às 19:00. Em virtude da transição para o 1.º ciclo, o utente não irá frequentar a instituição no ano letivo 2024-2025. (…)»;
- «A pedido de AA (…) se declara que a utente EE frequenta o centro de assistência Paroquial de Amora com o número de utente 3902. na Valencia da Creche Familiar nas Paivas- Fogueteiro. A Valência tem como horário das 7:30 às 18:30 (…)»,
que no mais aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos.
26. Teor do doc. 4 junto pela Ré com a contestação, relativo ao acordo de regulação das responsabilidades parentais subscrito pela Ré e pelo pai da menor, filha de ambos, EE, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos.
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4. Fundamentação de direito
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4.1. Da omissão de pronúncia
Invoca a recorrente que a sentença da 1.ª instância é nula por omissão de pronúncia nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, uma vez que é omissa quanto à questão da inconstitucionalidade da interpretação em que assenta a possibilidade de o trabalhador, ao abrigo do horário flexível, escolher os dias de descanso semanal, que levantou junto do tribunal a quo.
Estabelece o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, ser nula a sentença sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Contém esta previsão legal a consequência jurídica pela infracção do dever imposto ao tribunal, na primeira parte do n.º 2 do artigo 608.º do mesmo Código, de “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra”.
As questões a decidir reconduzem-se aos concretos problemas jurídicos que o tribunal tem que necessariamente solver em função da causa de pedir e do pedido formulado, das excepções e contra-excepções invocadas2.
No decurso da petição inicial a recorrente invocou efectivamente que a posição recentemente adoptada pelo STJ – “não exclui a inclusão do descanso semanal no regime de flexibilidade de horário” – constitui uma violação do princípio da legalidade – pois que a interpretação em causa mais não é que a criação de lei por via de “interpretação” por parte dos tribunais – e do princípio da protecção de confiança, sendo inconstitucional, argumentação que reitera na apelação.
Analisada a sentença, inexiste qualquer dúvida de que a mesma não emitiu pronúncia expressa quanto a esta questão da constitucionalidade pois que nenhuma referência faz a tal problema, na perspectiva suscitada pela recorrente.
A única referência que na sentença é feita ao texto constitucional nada tem a ver com o princípio constitucional da legalidade ou da protecção da confiança, mas com o facto de “o artigo 56º do Código do Trabalho materializar os princípios constitucionais de proteção dos direitos dos trabalhadores, da família, da paternidade e da maternidade, consagrados nos artigos 59º, nº 1, alínea b), 67º, nº 1 e 68º, nºs 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP)” e de os mesmos se sobreporem aos “direitos ao livre exercício da iniciativa económica privada e à liberdade de organização empresarial, encontram-se consagrados nos artigos 61º e 82º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa”, apenas cedendo os primeiros perante os últimos “quando em presença de interesses imperiosos”, nos termos do n.º 2, do artigo 57.º do Código do Trabalho.
O que constitui a ponderação de distintos valores constitucionais.
Simplesmente, aplicando a sentença ao caso em análise o artigo 56.º do Código do Trabalho na interpretação segundo a qual o horário flexível nele previsto possibilita ao trabalhador escolher os dias de descanso semanal, e uma vez sabido que os tribunais têm o dever constitucional de, nos feitos submetidos a julgamento, não aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (cfr. o artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa), entendemos que resulta tacitamente da sentença constituir seu entendimento o de que a norma em causa na indicada interpretação que ultimamente dela tem feito o Supremo Tribunal de Justiça, é conforme com a Constituição.
Deste modo não podendo assacar-se à sentença o vício de omissão de pronúncia.
Seja como fôr, e atendendo a que a mesma questão de constitucionalidade foi reiterada pela recorrente perante esta instância, será a mesma de imediato objecto da nossa apreciação.
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4.2. Da constitucionalidade
4.2.1. Alega a recorrente que a interpretação do artigo 56.º, n.º 1 e 2 do Código do Trabalho no sentido de que inclui no horário flexível os dias de descanso semanal, viola os princípios constitucionais da legalidade e da proteção da confiança.
Na sua perspectiva, a posição assumida pelo STJ e Relações, a que a sentença aderiu, viola a legalidade constitucional (artigo 3.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) pois, segundo aduz, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2022, processo n.º 423/20.9T8BRR.L1.S1, ao referir que “o texto dos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho não exclui a inclusão do descanso semanal, incluindo o sábado e o domingo, no regime de flexibilidade do horário de trabalho, a pedido do trabalhador com responsabilidades familiares”, define uma posição de delimitação negativa do regime legal, não aplicando o que a lei dita, mas o que a lei não impossibilita que se faça, restringindo-se desse modo o direito da livre iniciativa económica sem a respectiva base legal, sacrificando integralmente o princípio da legalidade constitucional.
Acrescenta que esta posição configura um atentado ao princípio da protecção da confiança, trave-mestra em que assenta o Estado de Direito, na medida em que a convicção legítima de que as coisas se passarão de determinado modo, conforme prevê a lei, não é respeitada, e a interpretação da lei a que procede tem uma descolagem da realidade e absoluto desencontro com a letra da lei, criando desconfiança entre cidadãos e empresas e passando a admitir que qualquer interpretação da lei é admissível.
4.2.2. Vejamos, então, se a norma do artigo 56.º do Código do Trabalho, na indicada interpretação que a sentença acolheu, colide com o texto constitucional nas perspectivas indicadas pela recorrente.
4.2.2.1. O artigo 3.º da Constituição da República Portuguesa, no seu n.º 2, define que “[o] Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.”
A expressão “legalidade democrática” que aparece em várias outras disposições constitucionais (arts. 199°, alínea f), 202°, n.º 2 e 272°, n.º1) abrange não apenas as regras do Estado de direito democrático a que se refere o n° 2 ,mas também a ideia da submissão das autoridades públicas à lei em geral, de acordo com o princípio da legalidade ou, mais amplamente, o princípio da juridicidade (cfr. o art.º 266º)3.
Mais rigorosamente, deve convocar-se a este propósito o artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “[o]s tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”. Estar sujeito à lei, ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, significa que os órgãos jurisdicionais («os órgãos que dizem o direito») estão vinculados, nas suas decisões, às normas e princípios da ordem jurídico-constitucional, na qual se incluem as normas de direito internacional (art.º 8°, n.ºs 1, 2 e 3) e as normas da União Europeia (art.º 8.°, n.º 4). A vinculação do juiz à lei, tal como se consagra neste preceito constitucional, tem ainda o sentido de estabelecer a diferença de planos entre normação e obtenção e aplicação do direito já que o juiz não é um «autómato subsuntivo»4. A observância do princípio da legalidade no exercício da função jurisdicional não pode reduzir o juiz à «boca que pronuncia as palavras da lei», naturalmente sem descurar que a interpretação e o desenvolvimento do direito deve ser feita através de esquemas metodológicos rigorosos (de analogia, redução teleológica, integração de lacunas), movendo-se o juiz sempre nos quadros normativos (regras e princípios) da ordem jurídico-constitucional.
Ora analisando os arestos do Supremo Tribunal de Justiça que a recorrente cita, deve dizer-se que em ambos o Supremo procede a uma interpretação do texto legal do artigo 56.º do Código do Trabalho alicerçado em regras interpretativas que o artigo 9.º do Código Civil acolhe e tendo como pano de fundo normas e princípios da ordem jurídico-constitucional.
Assim, o Acórdão de 17 de Março de 2022 tem absoluto respaldo no quadro jurídico-constitucional e em normas da União Europeia, bem como da lei ordinária nacional (com a convocação de elementos interpretativos de natureza sistemática e teleológica), ao dizer-se que:
«Decorre do artigo 59.º n.º 1 alínea b) da Constituição da República Portuguesa o direito de todos os trabalhadores a uma organização de trabalho que permita a conciliação da atividade profissional com a vida familiar, sendo que o artigo 33.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê igualmente a proteção da família “nos planos jurídico, económico e social”. Em conformidade com este escopo o artigo 56.º n.º 1 do CT prevê o direito de os trabalhadores com filhos com idade inferior a 12 anos ou independentemente da idade se tiverem deficiência ou doença crónica que vivam com o trabalhador em comunhão de mesa e habitação a trabalharem em regime de horário de trabalho flexível, sendo que o artigo 57.º do CT regula o procedimento a adotar para obter a autorização pelo empregador, bem como os fundamentos de uma possível recusa (n.º 2 do artigo 57.º).
No caso dos autos a trabalhadora apresentou a sua solicitação nos termos que constam do facto provado n.º 7: “ (…) pretendo trabalhar no regime de horário flexível para prestar assistência na educação e formação da minha filha menor de 3 anos, BB, ate os 12 anos da mesma como consta na lei do artigo 56º, horário que não dificulte levar e buscar a mesma na escola (das 7:30 e as 19) como consta no anexo, com o descanso semanal no sábado e domingo, visto que já venho a exercer o mesmo horário nos passados 3 anos, horário esse que me foi concedido pelos recursos humanos da Primark, devido a falta de condições financeiras para arranjar uma ama para os fins de semana, e por ser Mãe solteira e não ter nenhum familiar disponível para ficar com a minha filha” (tal pedido foi depois retificado, como consta do facto 10).
(…)
Importa, contudo, ter presente que a montante da definição de horário flexível está a definição do que seja um horário de trabalho. Ora, nos termos do artigo 200.º n.º 1 do CT “entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal”, sendo que, como esclarece o n.º 2 do artigo 200.º do CT, “o horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal”. O horário flexível é um horário de trabalho pelo que bem pode a trabalhadora, no seu pedido, precisar que pretende que os seus dias de descanso sejam, como aliás afirma que vinham sendo há três anos, o sábado e o domingo. As questões estão evidentemente imbrincadas e conexas, ao contrário do que sucederia no exemplo proposto pelo Recorrente de um pedido de aumento salarial (Conclusão D) que nada tem a ver com o tempo de trabalho. Acresce que também uma interpretação teleológica do regime de horário flexível aponta no mesmo sentido, porquanto só assim se consegue o desiderato da conciliação entre atividade profissional e vida familiar. Como a trabalhadora referiu no seu pedido a alteração dos seus dias de descanso acabava por lhe acarretar um grave prejuízo económico, que em grande medida comprometeria o escopo legal do regime de horário flexível.»
E no Acórdão de 12 de Outubro de 2022, além de se invocar o quadro legislativo que ao intérprete cabe aplicar (os artigos 59.º, 67.º e 68.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o artigo 33.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, os artigos 56.º, 57.º, 127.º, 200.º e 212.º, do Código do Trabalho), exarou-se, além do mais, que:
«No dizer de Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho. Parte I, 5.ª ed., págs. 328 e segs., “Especificamente no que toca a interpretação das normas laborais, são de aplicar as regras gerais do art.º 9.º do Código Civil, mas levanta-se a questão da admissibilidade do princípio do tratamento mais favorável como recurso genérico e de interpretação dessas normas. A admitir-se como regra geral, este princípio teria duas aplicações:
- uma aplicação interpretativa pura, que permitisse que, em caso de dúvida sobre o sentido a atribuir à norma, prevalecesse o sentido mais favorável ao trabalhador;
- uma aplicação interpretativo-aplicativa (portanto, ao nível de um con­flito de fontes ou da relação entre as fontes e o contrato de trabalho), na qual o princípio do favor laboratoris teria a função de criar no intérprete a presunção de que as normas laborais seriam imperativas apenas quanto às condições mínimas que estabelecessem, podendo, por isso, ser afastadas, desde que em sentido mais favorável ao trabalhador e tanto pelas fontes inferiores como pelo contrato de trabalho.
(N)a operação de pura interpretação das normas laborais, entendemos que, perante o actual grau de maturidade do Direito do Trabalho e designadamente, perante o reconhecimento do seu carácter compromissório (que faz prevalecer ora os interesses dos trabalhadores ora os interesses de gestão dos empregadores nas normas e nos regimes que estabelece), não faz sentido reconhecer a existência de um prius geral de interpretação das fontes laborais em favor do trabalhador. Assim, em caso de dúvida sobre o sentido a atribuir à norma, apenas será de adaptar o sentido que mais favoreça o trabalhador se, no caso concreto, se observar a necessidade de protecção do trabalhador como parte mais fraca.”.
Neste particular, Joana Nunes Vicente escreve, in Breves Notas sobre Fixação e Modificação do horário de trabalho, in Para Jorge Leite, Escritos Jurídico-Laborais, I, págs. 1051 e segs., “o problema delicado que se coloca é o de saber se o exercício desta faculdade está ou não vinculado à observância de certos limites materiais, se o ordenamento jurídico português faz depender a licitude do exercício do comando patronal do cumprimento de certas exigências substanciais, designadamente a necessidade de alicerçar a referida alteração [do HT] num fundamento objectivo da empresa, mas e sobretudo, a necessidade de atender à/ponderar a esfera de interesses do trabalhador”....
E quanto à necessidade de o empregador dever “facilitar ao trabalhador a conciliação da actividade profissional e a vida familiar”, afirma: “é difícil reconhecer a esta indicação normativa um preciso e intencional valor significante”.
Com todo o respeito, o intérprete não pode, não deve ignorar que a prescrição constitucional “permitir e promover a conciliação da actividade profissional com a vida familiar” consta em dois normativos da CRP: o artigo 59.º, n.º 1, alínea b) e o artigo 67.º, n.º 2, alínea h), ao ponto de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in obra citada, afirmarem: “A conciliação da actividade profissional com a vida familiar impõe a concertação de várias políticas sectoriais e a possibilidade, se não mesmo a obrigação, de discriminações positivas a favor da família, (…), com a institucionalização de horários de trabalho flexíveis”.
E, nesse sentido, o texto dos artigos 56.º e 57.º do CT não exclui a inclusão do descanso semanal no regime de flexibilidade do horário de trabalho.
No entanto, importa afirmar que as supracitadas normas constitucionais, sendo programáticas, podem ser reguladas pela lei ordinária no sentido de limitar ou excepcionar o exercício daqueles direitos, como ocorre com o citado n.º 2 do artigo 57.º.
O que permite concluir que a sobreposição dos supra referenciados direitos de ordem e interesse públicos não tem natureza absoluta, dado que o empregador pode justificar porque é que a empresa não tem condições de aceitar o pedido de um determinado trabalhador, inclusive com certos dias de descanso semanal.»
Assim alicerçando a conclusão de que no regime de flexibilidade do horário de trabalho, previsto nos artigos 56.º e 57.º do CT, podem incluir-se os dias de descanso semanal, a não ser que o empregador justifique que a empresa não tem condições de aceitar o pedido.
É, pois, de concluir que esta perspectiva jurídica observa o princípio da legalidade, interpretando o artigo 56.º do Código do Trabalho no âmbito do quadro normativo traçado na Constituição da República Portuguesa e na lei civil.
Nesta linha, não podemos deixar de destacar que, além da jurisprudência, também no âmbito da doutrina, se defende que, à luz do sistema jurídico vigente – que, citando Castanheira Neves, é “necessariamente aberto (problematicamente aberto), não pleno (não intencionalmente auto--suficiente) e autopoiético (de racionalidade pratico-normativa autónoma)”, há argumentos teleológicos, valorativos e normativos para sustentar terem os trabalhadores com responsabilidades familiares sujeitos a turnos rotativos o direito de solicitar a prestação de trabalho em turno fixo como forma de atender às suas responsabilidades familiares.
Assim, Joana Nunes Vicente, no seu estudo, “Trabalho por turnos, horário flexível e direitos fundamentais – breves notas a respeito de uma nova controvérsia jurisprudencial5, invoca argumentos metodológicos para sustentar que a tutela da conciliação entre a vida privada e profissional desses trabalhadores seja feita por mediação directa da norma do artigo 56º, considerando o pedido de turno fixo (o que, naturalmente, abarca a possibilidade de desse turno se excluírem os dias de fim de semana) ainda como uma forma de regime de horário flexível.
A autora sustenta esta sua perspectiva numa interpretação do artigo 56.º do Código do Trabalho conforme com a Constituição, que protege o direito fundamental à conciliação entre a vida profissional e a vida familiar do trabalhador e permite considerar incluído no conceito de "horário flexível” não apenas as situações de horário flexível hoc sensu, mas também a pretensão formulada pelos trabalhadores que, trabalhando em regime de turnos, pedem a atribuição de um turno fixo para poderem cumprir as suas obrigações familiares, ficando salvaguardada a posição patronal através da possibilidade de recusa fundada em exigências imperiosas de funcionamento da empresa).
Além disso, reconhecendo que este argumento da interpretação conforme, isoladamente considerado, pode revelar-se insuficiente para suportar aquele resultado interpretativo, atento o teor literal do artigo 56º, conjuga-o com um outro expediente metodológico ponderando que “se, numa óptica patronal, a figura do horário flexivel hoc sensu, quando aplicável à categoría dos trabalhadores por turnos, se revela uma medida particularamente perturbadora da organização empresarial, configurando a fixação de turnos fixos uma medida menos onerosa do ponto de vista patronal”, poderá o intérprete deduzir que “no campo de aplicação da norma em questão – o artigo 56º do Código do Trabalho – deve poder incluir-se, numa espécie de argumento a maiori ad minus, a hipótese do pedido de horário em turno fixo para os trabalhadores por turnos rotativos com responsabilidades familiares6.
E conclui: “tendo por base estes dois argumentos metodológicos, propendemos para considerar que é possível sustentar uma releitura do artigo 56º do Código do Trabalho que permita incluir e acomodar os pedidos desta categoria de trabalhadores, leia-se, a atribuição de turnos fixos. Isto, naturalmente, sem descurar a cláusula de salvaguarda dos interesses da empresa, isto é, a possibilidade de recusa fundada em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, até porque nos parece que a densificação deste conceito indeterminado, no contexto de horários organizados por turnos, pode implicar outro tipo de valorações que não estão presentes no pedido de horário flexível học sensu. Poder-se-ia dizer que haveria aqui lugar a uma extensão teleológica da norma do artigo 56.º, convocando a sua aplicação aos casos em discussão, em ordem a obter a plena realização do fim por essa norma visado, considerando o pedido de horário em turno fixo ainda como uma forma de regime de horário flexível7.
A autora põe ainda a hipótese de essa realização do direito se fazer através de uma autónoma constituição normativa para o caso, com recurso à analogia, nos termos do artigo 10.º do Código Civil8.
Assim, apesar do teor literal do artigo 56.º do Código do Trabalho, é de considerar que a sua interpretação pelos citados arestos do Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que se mostra alicerçada em regras interpretativas que o artigo 9.º do Código Civil acolhe e tem como pano de fundo normas e princípios da ordem jurídico-constitucional, de modo algum contende com o princípio da legalidade constitucional que emerge dos artigos 3.º e 203.º da Lei Fundamental.
4.2.2.2. E o mesmo deve dizer-se quanto ao princípio da proteção da confiança, que está intrinsecamente ligado aos princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito, plasmado no artigo 2.º da Lei Fundamental, nos termos do qual "[a] República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 303/909, afirmou que no princípio do Estado de direito democrático “está, entre o mais, postulada uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”.
Por outro lado, no Acórdão nº 237/9810, considerou que “uma norma jurídica apenas violará o princípio da proteção da confiança do cidadão, ínsito no princípio do Estado de direito, se ela postergar de forma intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada aquelas exigências de confiança, certeza e segurança que são dimensões essenciais do princípio do Estado de direito”. Nesse aresto, afirmou se ainda que o “princípio do Estado de direito democrático (...) é um princípio cujos contornos são fluidos (...), pelo que tem um conteúdo relativamente indeterminado”, concluindo que tais características “sempre inspirarão prudência ao intérprete e convidá-lo-ão a não multiplicar, com apoio nesse princípio, as ilações de inconstitucionalidade”.
Resulta da jurisprudência citada que o Tribunal Constitucional tem entendido que a tutela constitucional da confiança não abrange todo e qualquer juízo de previsibilidade que o sujeito possa fazer em face de determinado quadro normativo vigente. Com efeito, “apenas colidirá com a tutela da confiança a afectação infundada e arbitrária de expectativas legítimas objetivamente consolidadas11.
No caso dos autos, perante o que se vem de afirmar, a interpretação normativa adoptada pelo tribunal a quo para fundar o seu juízo decisório, em conformidade com a citada jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – ao proceder a uma interpretação teleológica do regime jurídico artigo 56.º do Código do Trabalho no sentido de o trabalhador, no pedido de horário flexível, poder precisar que pretende que os seus dias de descanso sejam o sábado e o domingo, porquanto só assim se consegue o desiderato da conciliação entre atividade profissional e vida familiar –, sendo admissível à luz das regras da interpretação da lei plasmadas no Código Civil e movendo-se nos quadros normativos da ordem jurídico-constitucional, não pode ter-se como violadora do princípio da segurança jurídica, corolário do Estado de direito democrático, plasmado no artigo 2.º da Lei Fundamental.
Recorde-se que, apenas a afectação infundada e arbitrária de expectativas legítimas objetivamente consolidadas é susceptível de colidir com a tutela constitucional da confiança.
Sendo admissível a interpretação normativa em causa, não pode considerar-se haver uma expectativa juridicamente relevante de que a mesma não seria acolhida pelos tribunais, para o efeito de merecer a tutela dispensada pelo princípio constitucional da tutela da confiança.
Não se acompanha a afirmação da recorrente de que a actuação do STJ – que nos não incumbe sindicar a se, mas, apenas, na medida em que foi sufragada pelo tribunal a quo – põe em causa a trave-mestra em que assenta o Estado de Direito, ou cria desconfiança entre cidadãos e empresas.
Improcedem as inconstitucionalidades suscitadas.
*
4.3. Da inclusão dos dias de descanso semanal no regime horário flexível
Aqui chegados, cabe enfrentar a questão essencial de saber se sentença errou na interpretação que fez do disposto nos artigos 56.º, n.º 1 e 2 e 200.º, n.º 1 do Código do Trabalho, ao entender que o regime previsto no artigo 200º haveria também de aplicar-se ao regime horário flexível previsto no artigo 56.º por este não incluir o direito de escolher os dias de descanso semanal.
A presente acção versa sobre um pedido de alteração de horário de trabalho efectuado em 26 de Janeiro de 2024 pela trabalhadora ora recorrida à recorrente, sua empregadora.
Em termos procedimentais, a R. dirigiu à A. um pedido de horário flexível, que se traduziria em ser o horário “alterado se possível das 8:00h às 13:00h e das 14:00h às 17:00h”, com folgas aos “fins de semana”, invocando que pretendia prestar assistência aos seus filhos menores e só assim conseguiria ir levar, e buscar, os seus dois filhos menores de 12 anos à creche e à escola, bem como dar-lhes assistência aos fim de semana (facto 8.).
Perante o pedido, a A. manifestou a sua intenção de o recusar sustentando, em suma, que a trabalhadora “não procedeu à indicação do prazo previsto para a duração do regime a vigorar”, que “o pedido apresentado não poderia merecer acolhimento em virtude do facto da franja horário solicitada não ter correspondência com os turnos praticados na loja”, que a loja “pressupõe a laboração de segunda a domingo e os colaboradores estão organizados em grupos de folgas rotativos, pelo que a tal atribuição de folgas fixas iria comprometer gravemente o normal funcionamento da loja” e que “devido a exigências imperiosas do funcionamento da empresa, não pode permitir ter a loja em funcionamento com menos do número mínimo exigível para assegurar o funcionamento da loja (facto 10. e o documento para que remete).
No prazo que a A. lhe concedeu, em resposta, a ré manteve o pedido, reiterando que não tem mesmo onde deixar os filhos (facto 11.).
A A. manteve a sua intenção de recusa e, nessa sequência, remeteu à CITE o processo contendo o pedido da trabalhadora e os fundamentos da intenção de o recusar por parte da A., vindo a CITE a emitir o Parecer n.º 320/CITE/2024 que, em conclusão e por maioria dos membros presentes na Reunião da CITE de 13 de Março de 2024, foi desfavorável à intenção de recusa da empregadora (factos 12. e 13.).
O que motivou a instauração da presente acção pela ora recorrente.
Debruçando-se sobre o pedido nela formulado, a sentença da 1.ª instância, depois de elencar os factos que entendeu assentes, considerou em suma:
- que a questão formal de a Ré não ter indicado no seu pedido o prazo pelo qual pretendia a aplicação do regime de horário flexível não acarreta qualquer consequência, , um vez que no nº 2 do art.º 57º, se prevê um único e exclusivo motivo de recusa, que não a falta de qualquer dos elementos enunciados no seu nº 1;
- que o STJ, em acórdãos recentes, se tem pronunciado sobre a noção de horário flexível no sentido de que “o horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal”, como esclarece o n.º 2 do artigo 200.º do CT, e “o horário flexível é um horário de trabalho pelo que bem pode a trabalhadora, no seu pedido, precisar que pretende que os seus dias de descanso sejam o sábado e o domingo”, que “uma interpretação teleológica do regime de horário flexível aponta no mesmo sentido, porquanto só assim se consegue o desiderato da conciliação entre actividade profissional e vida familiar” (Acórdão de 17 de Março de 2022) e que “[o] texto dos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho não exclui a inclusão do descanso semanal, incluindo o sábado e o domingo, no regime de flexibilidade do horário de trabalho, a pedido do trabalhador com responsabilidades familiares” (Acórdão de 12 de Outubro de 2022);
- que o artigo 57º do Código do Trabalho, ao regulamentar o exercício do direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, prevê que o empregador apenas se lhe pode opor invocando exigências imperiosas relacionadas com o funcionamento da empresa ou serviço ou a impossibilidade de substituir o trabalhador se este foi indispensável, conforme resulta do seu nº 2, estabelecendo-se assim uma limitação aos poderes diretivos daquele consagrados no artigo 97º do Código do Trabalho;
- que no caso não estão demonstrados factos que permitam aferir que o horário pretendido pela ré coloca em causa o funcionamento da empresa, ainda que sejam acrescidas as exigências de gestão por parte da autora perante a necessidade de tornar exequível horário flexível, com os reajustamentos que tal pode implicar, pois “[n]ão ficou demostrada a inexistência de turnos compatíveis com o horário flexível pretendido pela Ré, nada resultou “no sentido de a substituição da ré ser impossível, atenta a sua categoria profissional, nem de que, para o desempenho das funções daquela, sejam necessárias especiais características técnicas ou qualidades profissionais que só ela detém”, não se demonstrou “que a prática pela Ré do horário pretendido coloque em causa o funcionamento contínuo da A. mesmo durante o fim de semana” e, “pelo contrário, provou-se que a Ré pratica o horário flexível por ela pretendido desde Janeiro de 2024 e não só apenas desde 18/3/2024, não tendo sido sequer alegado que devido a isso o normal funcionamento da A. tivesse parado ou de algum modo afetado de modo gravoso”;
- que “no caso em apreço a ré solicitou que os seus dias de descanso semanal tivessem lugar ao fim-de-semana, por ser a única pessoa apta a, nesses dias, prestar cuidados aos seu filhos menores” argumentação que também esteve presente nos casos apreciados nos arestos do STJ que invoca;
- que também não se provou que houvesse colisão de direitos entre os horários flexíveis da trabalhadora e das colegas, pelo que inexiste fundamento para restringir o horário flexível solicitado pela ré e pela autora colocado em prática desde o início do ano;
fundamentos estes em que ancorou a improcedência da pretensão da empregadora.
Vindo a concluir que, “[a]nte o exposto, por se entender que a aqui autora não logrou demonstrar que existam exigências imperiosas de funcionamento da loja de Cruz de Pau a que a ré está afeta que impossibilitem a concessão do horário flexível que solicitou, com o horário que indicou e com folgas semanais aos sábados e domingos de que já beneficia desde o início do ano, mesmo sopesando que existe uma outra trabalhadora que beneficia de horário flexível, a ação terá de improceder”.
Vejamos.
O Código do Trabalho concretizou os princípios constitucionais de protecção dos direitos dos trabalhadores, da família, da paternidade e da maternidade, nas acepções constantes, respectivamente, dos artigos 59.º, n.º 1, alínea b), 67.º, n.º 1 e 68.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, ao consagrar no seu artigo 56.º, n.º 1, que “[o] trabalhador com filho menor de 12 anos, ou independentemente da idade, filho com deficiência ou doença crónica que com ele viva em comunhão de mesa e habitação, tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, podendo o direito ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos”.
O exercício de tal direito e correspondente obrigação, no que respeita à flexibilidade de horário, veio a ser regulamentado no artigo 57.º do mesmo Código que se reporta ao pedido do trabalhador com responsabilidades familiares que pretenda trabalhar a tempo parcial ou em regime de horário de trabalho flexível nos termos do preceituado nos seus artigos 55.º e 56.º, e à autorização do mesmo.
Resulta deste preceito que o empregador apenas se pode opor ao pedido do trabalhador invocando exigências imperiosas ligadas ao funcionamento da empresa ou serviço ou a impossibilidade de substituir o trabalhador se este foi indispensável (n.º 2, do artigo 57.º), o que é conforme com as razões que estão na base deste regime: o reconhecimento do direito à conciliação da actividade profissional com a vida familiar, que igualmente inspira os deveres estabelecidos no artigo 127.º, n.º 3 do Código do Trabalho de o empregador “proporcionar ao trabalhador condições de trabalho que favoreçam a conciliação da actividade profissional com a vida familiar e pessoal” e no artigo 212.º, n.º 2, alínea b), do mesmo código, de facilitar ao trabalhador a conciliação da actividade profissional com a vida familiar “na elaboração do horário de trabalho”.
O conceito de horário de trabalho flexível é definido no n.º 2, do artigo 56.º como “aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário”.
Por seu turno o artigo 200.º n.º 1 do Código do Trabalho estabelece que se entende por horário de trabalho “a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal”, sendo que, como esclarece o n.º 2 do artigo 200.º, “o horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal”.
Como resulta do acima exposto (vide 4.2.) e a sentença sob recurso assinala, não foi pacífica a jurisprudência no que concerne à questão de saber se se enquadram no conceito legal de horário flexível os casos em que os trabalhadores requerem que lhes seja fixado um horário que não tenha início antes de uma determinada hora e não termine depois de uma determinada hora, ou com limites fixos, e em que solicitem que o descanso semanal seja fixo e coincida com o sábado e domingo.
No sentido de que tais horários não integram a categoria do chamado horário flexível, por se entender que a previsão do artigo 56º não admite que seja o trabalhador a balizar ou impor ao empregador as horas do início e do termo do período normal de trabalho em que pretende que lhe seja fixado o horário flexível, ou a escolher os dias de descanso semanal, foram proferidos, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Outubro de 2019 (processo n.º 13543/19.3T8LSB), o Acórdão da Relação do Porto de 18 de Maio de 2020 (processo n.º 9430/18.0T8VNG.P1), o Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Novembro de 2020 (processo n.º 2748/19.7T8BRR.L1-4), o Acórdão da Relação de Lisboa de 29 de Janeiro de 2020 (processo n.º 3582/19.0T8LSB.L1-4) e o Acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 2021 (processo n.º 423/20.9T8BRR.L1-4, que a ora relatora subscreveu como adjunta)12.
Já no sentido de que estes pedidos se integram na categoria do horário flexível, entendido este como todo aquele que possibilite a conciliação da vida profissional com a vida familiar de trabalhador com filhos menores de doze anos, e que não obsta à referida qualificação a circunstância de o horário solicitado ser fixo, foram proferidos, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 2 de Março de 2017 (processo n.º 4261/23.9T8VLG.P1), o Acórdão da Relação de Évora de 11 de Julho de 2019 (processo n.º 24/18.9T8STB.E1), o Acórdão da Relação de Lisboa de 05 de Junho de 2024 (processo n.º 1993/23.5T8PDL.L1-4) e o Acórdão da Relação do Porto de 18 de Novembro de 2024 (Processo n.º 4261/23.9T8VLG.P1)13.
Esta última perspectiva tem sido ultimamente acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça sem que se conheçam discrepâncias, sendo de salientar os Acórdãos de 17 de Março de 2022 (processo n.º 17071/19.9T8SNT.L1.S1), de 22 de Junho de 2022 (processo n.º 3425/19.4T8VLG.P1.S1) e de 12 de Outubro de 2022 (processo n.º 423/20.9T8BRR.L1.S1)14, este último proferido em sede de revista excepcional e revogando o acima citado Acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 2021.
O primeiro dos indicados arestos do Supremo Tribunal de Justiça, em cujo processo o empregador defendia que o pedido de que os dias de semana fossem o sábado e o domingo não integraria o pedido de regime de horário flexível à luz da definição do n.º 2 do artigo 56.º do CT, ponderou que importa ter presente “que a montante da definição de horário flexível está a definição do que seja um horário de trabalho”, que nos termos do artigo 200.º n.º 1 do CT “entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal” e do seu n.º 2 “o horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal”; que o horário flexível é um horário de trabalho, pelo que bem pode a trabalhadora, no seu pedido, precisar que pretende que os seus dias de descanso sejam o sábado e o domingo; que estas questões estão evidentemente “imbrincadas e conexas” e que “uma interpretação teleológica do regime de horário flexível aponta no mesmo sentido, porquanto só assim se consegue o desiderato da conciliação entre atividade profissional e vida familiar”.
Face a este entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, tendo em consideração que se vislumbra no nosso mais alto tribunal uma uniformidade de posições a este propósito, sem qualquer voz dissonante, e tendo ainda presente o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil – segundo o qual “[n]as decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito” –, entendemos acolher a doutrina no mesmo expressa.
A qual, temos que o reconhecer, é a mais consentânea com uma interpretação do artigo 56.º do Código do Trabalho conforme com a Constituição em todas as situações em que as necessidades familiares a acautelar determinam a necessidade de não trabalhar aos fins de semana – que não serão despiciendas, pois constitui facto notório que, em tais dias, as creches, infantários e escolas, se encontram encerradas (artigos 5.º e 412.º do Código de Processo Civil) – permitindo a salvaguarda do direito do trabalhador à “organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida familiar” e a concretização da incumbência do Estado de promover “a conciliação da atividade profissional com a vida familiar”, respectivamente, nos artigos 59.º, n.º 1, alínea b) e 67.º, n.º 2, alínea h), da Constituição da República Portuguesa.
Sempre sem prejuízo, naturalmente, da possibilidade de recusa do empregador prevista no artigo 57.º, n.º 2 do Código do Trabalho, com fundamento em “exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável”, sempre que se verifiquem tais circunstâncias.
Alcança-se, assim, a resposta à terceira questão enunciada no recurso: a sentença não errou na interpretação que fez do disposto nos artigos 56.º, n.º 1 e 2 e 200.º, n.º 1 do Código do Trabalho, ao entender que o regime previsto no artigo 200º haveria também de aplicar-se ao regime horário flexível previsto no artigo 56.º e ao entender que este inclui o direito de escolher os dias de descanso semanal.
Não merece provimento o recurso.
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4.4. As custas do recurso interposto da sentença final deverão ser suportadas pela A. recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), restringindo-se às de parte, um vez que se mostra paga a taxa de justiça e não há encargos a contar.
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5. Decisão
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Em face do exposto, nega-se provimento à apelação e confirma-se a sentença da 1.ª instância.
Condena-se a recorrente nas custas de parte que eventualmente haja.

Lisboa, 14 de Maio de 2025
Maria José Costa Pinto
Francisca Mendes
Alves Duarte
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1. Reproduz-se esta parte do contrato de trabalho escrito, para melhor esclarecimento dos termos do contrato quanto aos contornos do horário de trabalho e por se tratar de facto plenamente provados por documento – em face do que dispõe o artigo 376.º do Código Civil –, tendo em consideração que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 663.º, n.º 2 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, ambos aplicáveis ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho, os factos relevantes plenamente provados por documento devem ser atendidos pelo Tribunal da Relação.
2. Vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2015.02.02, Processo: 5901/13.3YYPRT-B.P1, in www.dgsi.pt.
3. Vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pp. 216-217.
4. Vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4.ª edição revista, reimpressão, Coimbra, 2010, pp 514-515.
5. In Questões Laborais n.º 62, 2023, pp. 6 e ss.
6. In estudo citado, p. 30-31.
7. In ob. e loc. citados. A autora alude ainda à leitura ampla da norma em questão sustentada por Liberal Fernandes (in “O Tempo De Trabalho, Comentário aos artigos 197º a 236º do Código do Trabalho [revisto pela Lei nº23/2012, de 25 de Junho]”, Coimbra, 2012, p. 214) quando este professor defende que, não obstante a noção legal de horário flexível (aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário) e de a modalidade estar associada a um regime em que o trabalhador goza da faculdade de gerir, dentro de certos limites, o seu tempo de trabalho, “a noção compreende outros arranjos cuja previsão não só procura tutelar os trabalhadores com responsabilidades familiares e situações equiparadas (art.º 64°), como responder também às necessidades de produção", dando como exemplos, além do mais, o “horário por turnos, em que a atividade de trabalho tem lugar em, pelo menos, dois períodos diários e sucessivos, assegurados por equipas diferentes”.
8. No mesmo estudo já citado, p. 32.
9. In D.R., I Série, de 26 de Dezembro de 1990.
10. In D.R., II Série, de 17 de Junho de 1998.
11. Vide ainda o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 164/19, de 27 de Fevereiro de 2019, in www.tribunalconstitucional.pt.
12. Todos publicados in www.dgsi.pt. Apesar de mais restritos na interpretação do conceito previsto no artigo 56.º, n.º 2, do CT, é possível descortinar nestes arestos a ideia de que é razoável uma “assimetria de fundamentos” consoante as situações em causa. Segundo é dito no Acórdão da Relação de Lisboa de 29 de Janeiro de 2020, “exigir a um progenitor, em família monoparental, que carece necessariamente de sair a determinada hora, que o faça mais tarde, mais não leva do que à inutilização do direito em causa e à impossibilitação da conjugação da vida familiar com a prestação da atividade”. Quanto a outros casos, o aresto assinala que o empregador pode “determinar o horário, nos termos genéricos do art.º 212/1, do CT, não estando a sua margem de manobra tão comprimida pelas circunstâncias”. Ou seja, distingue as situações normais ou vulgares (“mediania de situações”) nas quais “há uma margem mínima de manobra da empregadora na determinação do horário, sob pena de esvaziamento dos seus poderes de direção” o que impõe que o trabalhador, ao indicar as horas de início e termo, mencionadas no art.º 56.º, n.º 2, deixe alguma margem ao empregador para concretizar o horário, das situações em que “prementes limitações do trabalhador assim o impõem (por ex., quando vive só com o filho e tem de comparecer até determinada hora no infantário, não havendo alternativa razoável)”, inferindo-se do texto do acórdão que nestas últimas pode o trabalhador indicar horas fixas de início e termo do horário no pedido que formular.
13. Todos in www.dgsi.pt.
14. Todos in www.dgsi.pt.