Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28241/19.0T8LSB.L1-8
Relator: RUI OLIVEIRA
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
INTERESSE EM AGIR
PRECLUSÃO DO DIREITO DE ACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário: (da responsabilidade do relator):
I – A legitimidade, enquanto pressuposto processual, representa a posição da parte em relação à relação material controvertida ou ao objecto do processo em concreto (pedido e causa de pedir), aferindo-se pela forma como o autor conforma a acção e conduzindo à absolvição da instância, caso não se verifique;
II - A legitimidade substancial, substantiva ou material respeita à efectividade da relação material ou à efectiva titularidade do direito que o autor pretende fazer valer e prende-se com o mérito da causa, sendo que a sua falta conduz à absolvição do pedido;
III – A preclusão do direito de acção, sendo uma excepção peremptória, conduz à absolvição do pedido e a sua apreciação pressupõe a demonstração dos factos em que assenta, quando estes estejam controvertidos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. PARVALOREM, S.A., intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra AA, BB, CC, DD e EE (representado pelos seus herdeiros habilitados no apenso A: FF, GG, HH e II), pedindo que estes sejam, solidariamente, condenados a pagar-lhe o montante de € 4.330.562,19, acrescido de juros, à taxa legal, contados desde a data da propositura da acção e até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- a presente ação enquadra-se no universo do, entretanto, extinto BPN, S.A., e bem assim do ressarcimento dos prejuízos causados àquela instituição bancária por diversos intervenientes;
- os RR., com excepção do R. EE, exerceram funções em sociedades do Grupo SLN, incluindo, no BPN;
- no exercício das suas funções, os RR. levaram a cabo ou ordenaram, em conjugação de esforços, um conjunto de operações/negócios e assumiram compromissos perante terceiros, muito para além dos seus normais poderes de direcção ou administração e em prejuízo do BPN, sem que com a referida conduta se pretendesse alcançar ou se tenha alcançado um benefício para qualquer das sociedades pertencentes ao grupo, com o intuito de gerar proveitos de proveniência ilegítima na esfera do R. EE;
- as situações detectadas foram participadas criminalmente e deram origem ao Proc. n.º ..../08, que correu termos no Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 9, onde os RR. foram condenados pela prática, nomeadamente, do crime de burla qualificada;
- a A. foi criada na sequência da nacionalização do BPN e destinou-se à detenção, gestão e expurgo dos activos tóxicos do BPN;
- por contrato de cessão de créditos celebrado entre o BPN e a A. em 23.12.2010, foram-lhe cedidos diversos créditos sobre vários devedores, entre os quais se encontram os créditos invocados nesta acção;
- tais créditos de que agora a A. é titular haviam sido cedidos pelo BPN Cayman e pelo BPN (IFI), S.A., ao BPN, por contratos de cessão de créditos outorgados em 13.03.2009, e haviam sido adquiridos pelo BPN Cayman e pelo BPN (IFI), S.A., ao Banco Insular, por contrapartida da extinção das dívidas que o mesmo tinha perante aquelas duas entidades;
- os créditos sucessivamente cedidos, de que era formalmente titular o Banco Insular, encontram-se descritos na acusação formulada no processo criminal referido, e os seus montantes e origem são a causa de pedir nestes autos, designadamente, os créditos decorrentes dos financiamentos concedidos às sociedades offshore KINASOL ASSETS e SOLRAC FINANCE, utilizadas pelos RR. para realização de negócios ruinosos, de entre os quais aqueles que estão em causa nos presentes autos;
- os actos ruinosos que deram origem aos créditos peticionados, de que a A. se considera titular, são: o negócio da sociedade VALIDUS; a preparação da venda da sociedade VALIDUS pela SLN INVESTIMENTO; a utilização da sociedade VALIDUS para a aquisição de acções da SLN SGPS, S.A.; o financiamento da sociedade GROUNDSEL para comprar a VALIDUS; o financiamento da sociedade VALIDUS para proceder à liquidação financeira das acções da SLN SGPS, S.A.;
- o pedido de indemnização cível deduzido pelo BPN no processo crime referido foi remetido para os meios comuns;
- a condenação criminal definitiva constitui presunção ilidível quanto aos factos que integram os pressupostos da punição na presente acção cível.
1.2. Por decisão de 06.01.2021, foi a instância julgada extinta, por impossibilidade superveniente da lide, quanto ao R. AA.
1.3. Os demais RR. CC, FF (em representação do R. EE) e BB contestaram e, para o que ora releva, arguiram as excepções da ilegitimidade substantiva/material activa e da preclusão do direito de acção perante os tribunais civis.
No que respeita à primeira excepção, defenderam, sucintamente, que:
- não ocorreu uma transmissão da posição contratual do BPN para a A., nem a mesma sucedeu ao BPN em direitos de acção decorrentes de responsabilidade civil por actos praticados por clientes ou legais representantes;
- os RR. não figuram como devedores no contrato de cessão de créditos de 23.12.2010, pelo que a A. não detém qualquer crédito sobre si;
- desse contrato também não consta que o BPN tenha cedido à A. os direitos indemnizatórios que pudessem vir a ser apurados no processo crime;
- a A. nunca poderia ser lesada por não ter existência jurídica à data dos alegados factos danosos.
E, em relação à segunda excepção mencionada, advogaram, em linhas gerais, que:
- o pedido de indemnização cível remetido para os meios comuns foi deduzido no processo criminal (em 09.12.2009) após o prazo de que o BPN dispunha para o efeito, pelo que era intempestivo;
- embora tal não tenha sido declarado pela instância criminal, por não ter apreciado o pedido de indemnização cível, nada impede que os tribunais civis apreciem essa intempestividade;
- por ter formulado o pedido de indemnização cível extemporaneamente, o lesado BPN - e a A., caso se admitisse que sucedeu na posição processual do BPN - não mais pode exercer tal direito de acção por danos decorrentes do ilícito criminal, mesmo que em separado nos tribunais cíveis.
1.3. A A. respondeu (24.05.2024), pronunciando-se pela improcedência das referidas excepções, defendendo, em suma, que:
- o pedido indemnizatório formulado tem por base a responsabilidade extracontratual dos RR. pelos prejuízos decorrentes da sua conduta criminal, sendo que não tinha que constar dos contratos de cessão créditos a identificação de quaisquer créditos do BPN decorrentes de responsabilidade civil sobre os RR.;
- o pedido de indemnização civil foi tempestivamente apresentado no âmbito do processo crime, mas, ainda que tivesse aí sido rejeitado por extemporaneidade, a A. poderia intentar a presente acção, por força do disposto no art. 72.º, n.º 1, als. a) e e) do CPP.
1.4. Foi realizada a audiência prévia, após o que foi proferida decisão que julgou procedentes as excepções de ilegitimidade activa da A. e de preclusão do direito de acção da A. e absolveu os RR. da instância.
1.5. Inconformada, apelou a A., pedindo que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que julgue improcedente as excepções de ilegitimidade ativa e de preclusão do direito de acção, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«I- O presente recurso é interposto da sentença que julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Autora, ora Recorrente Parvalorem, e a exceção de preclusão do direito de ação e, em consequência, absolveu os Réus, ora Recorridos, da instância.
II- A Recorrente não se conforma com tal decisão e demonstrará que, com a prolação da sentença recorrida, o Tribunal a quo incorreu num manifesto erro na interpretação e aplicação do Direito.
III- Relativamente à exceção de ilegitimidade ativa, o art.º 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) consagra o conceito de legitimidade, dispondo no n.º 1 que “O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.”, no n.º 2 que “O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.” e, por último, no n.º 3 que “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
IV- Pelo que, para o apuramento da legitimidade processual, releva o concreto pedido formulado pelo autor e causa de pedir em que o mesmo se alicerça.
V- Por sua vez, a legitimidade material ou substantiva, reporta-se não à relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, mas antes à sua efetiva titularidade pelo que, a ilegitimidade ativa substantiva prende-se com o mérito da própria causa.
VI- Consubstanciando, por isso, um requisito de procedência do pedido, cuja não observância acarreta a absolvição do réu do pedido contra si formulado.
VII- Portanto, apenas se verificará uma situação de ilegitimidade ativa material caso o autor não seja titular do direito a que se arrogue. (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04.10.2021, proferido no processo n.º 1910/20.4T8PNF.P1, cuja relatora é Eugénia Cunha e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 18.10.2018, proferido no processo n.º 5297/12.0TBMTS.P1.S2, cujo relator é Bernardo Domingos, disponíveis em www.dgsi.pt).
VIII- Ora, nos presentes autos resulta de forma evidente – conforme adiante se demonstrará - que a Recorrente e Autora Parvalorem é parte legítima na ação subjacente ao presente recurso, quer no prisma da legitimidade processual, quer no prisma da legitimidade substantiva.
IX- Em primeiro lugar, debrucemo-nos sobre a constituição do BPN como assistente, a dedução de acusação pelo assistente e do pedido de indemnização civil deduzido pelo BPN.
X- No Procº. n.º ..../08, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal, Juiz 9, foram os aqui Recorridos condenados pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo art.º 218.º do Código Penal, conforme acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e junto como Doc.º n.º 1 da petição inicial.
XI- À prática daquele ilícito criminal correspondeu, igualmente, um ilícito civil, tendo-se verificado simultaneamente os demais requisitos de que depende a responsabilidade civil, a saber, a culpa, os danos e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, nos termos do disposto no art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil.
XII- No âmbito do processo-crime, o art.º 71.º do Código de Processo Penal (doravante designado abreviadamente por CPP), consagra o princípio de adesão, de acordo com o qual “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”
XIII- E, relativamente à legitimidade, o art.º 74.º, n.º 1 do CPP, estabelece que “o pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que não se tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.”
XIV- Em conformidade com as disposições legais elencadas, o BPN – Banco Português de Negócios, S.A. (doravante designado abreviadamente por BPN), na qualidade de lesado, foi admitido a constituir-se como assistente e, como tal, deduziu pedido de indemnização civil pelos danos emergentes dos factos constantes da acusação do Ministério Público, tendo igualmente deduzido acusação, a qual foi igualmente admitida, conforme ata da audiência de debate instrutório do Processo n.º ..../08, na qual o BPN é identificado na qualidade de assistente – o que significa que a constituição de assistente foi admitida - junta como Doc.º n.º 7 no requerimento de 2024.05.24, com a ref.ª Citius 39471252.
XV- Sucede que, tal como na situação em discussão nos presentes autos, o crédito indemnizatório que fundamentou a qualidade de lesado do BPN naquele processo-crime e, consequentemente, legitimou o BPN a constituir-se assistente e a deduzir o pedido de indemnização civil, não era originariamente da titularidade do BPN.
XVI- E, em momento algum do processo foi suscitada, quer pelas partes, quer pelo Tribunal, a qualidade do BPN de lesado, nem a sua legitimidade para, enquanto tal, se constituir assistente e para deduzir o respetivo pedido de indemnização civil.
XVII- Com efeito, os créditos que legitimaram a qualidade de assistente do BPN naquele processo-crime (e o pedido de indemnização cível deduzido) foram cedidos pelo BPN Cayman e pelo Banco Português de Negócios (IFI), S.A. (doravante designado abreviadamente por BPN IFI) ao BPN, mediante contratos de cessão de créditos celebrados em 13 de março de 2009, conforme Doc.º n.º 8 junto com a petição inicial.
XVIII- Por sua vez, os mesmos créditos haviam antes sido adquiridos pelo BPN Cayman e BPN IFI mediante dação em pagamento por contrapartida da extinção das dívidas que o Banco Insuflar (IFI), SARL (doravante designado abreviadamente por BI) tinha perante o BPN Cayman e o BPN IFI por descobertos bancários concedidos por estes àquele, conforme Doc.º n.º 9 junto com a petição inicial.
XIX- Pelo que o BI, de modo a pagar ao BPN IFI e ao BPN Cayman esses descobertos, entregou a totalidade do seu ativo aos últimos, correspondente aos créditos sobre os seus clientes.
XX- Portanto, os créditos indemnizatórios objeto do pedido de indemnização civil deduzido pelo BPN eram originariamente da titularidade do BI e nem por isso foi colocada em causa a qualidade de lesado do BPN, nem a sua legitimidade para se constituir assistente (como constituiu) e deduzir o pedido de indemnização civil (como também deduziu), nem mesmo a sua eventual legitimidade para ser autor naqueles autos: antes foi expressamente afirmada nuns e noutros autos, conforme se retira da sentença recorrida, quando aí se afirma, por exemplo, que o BPN “é o lesad[o] nos autos criminais”
XXI- Assim, se o Tribunal a quo não teve dúvidas da legitimidade do BPN naqueloutro processo-crime, também a não poderia ter relativamente à Recorrente, pois esta, pela cessão de créditos, assumiu apenas a posição que antes era do BPN e, antes deste, do BPN Cayman, do BPN IFI e, ainda antes, do BI.
XXII- Sendo, assim, a fonte da legitimidade da Recorrente Parvalorem, processual e substantiva, é a mesma da do BPN e já está definitivamente afirmada, enquanto lesado, no processos-crime relativamente ao cedente BPN.
XXIII- Na verdade a legitimidade substantiva, relativamente a todas aquelas entidades – BPN e antes deste, o BPN Cayman, o BPN IFI e o BI -, sempre e só poderia decorrer da transmissão de créditos operada por via do instituto da cessão de créditos e da circunstância e do entendimento de que essa transmissão importou igualmente a transmissão do direito de indemnização pelos danos emergentes da concessão e não pagamento desses mesmos créditos, pelo que, dúvidas não restam de que a Recorrente e Autora Parvalorem é parte legítima na ação subjacente ao presente recurso.
XXIV- Em segundo lugar, importa sublinhar o tema da autoridade do caso julgado como fundamento adicional para a conclusão quanto à legitimidade processual e substantiva da Parvalorem.
XXV- A decisão que admitiu a constituição do BPN como assistente e o juízo dela constante de que o BPN tinha a qualidade de lesado, que lhe conferia a legitimidade para ter deduzido o pedido de indemnização civil, ganhou força de caso julgado e como tal deve ser respeitada nestes autos.
XXVI- É o que expressamente decorre do art.º 619.º, n.º 1, do CPC, de acordo com o qual transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, e do art.º 621.º do CPC, segundo o qual a sentença constituiu caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.
XXVII- Estes preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada em julgado (art.º 628.º, do CPC) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial.
XXVIII- O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (art.º 580.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
XXIX- A autoridade de caso julgado de decisão transitada em julgado e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica (cfr. José de Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª ed., p. 354.
XXX- Assim, o caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da exceção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada em julgado e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas (no mesmo sentido Miguel Teixeira de Sousa, O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 49 e ss.). Tem-se entendido que a autoridade de caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 580.º do CPC, pressupondo, porém, que a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida (Acs. Do TRC de 06-09-2011/Proc. 816/09.2TBAGD.C1 (Judite Pires), do TRG de 17-12-2013/Proc. 3490/08.0TBBCL.G1 (Manuel Bargado), entre outros).
XXXI- Acresce ser entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da decisão, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva da decisão – vd., por todos, Ac. do STJ de 12.07.2011, processo n.º 129/07.4TBPST.S1,
XXXII- Desta forma, ainda que se não verifique, no caso em apreço, o concurso dos requisitos ou pressupostos para que se afirme exceção de caso julgado (exceptio rei judicatae), está em causa o prestígio dos tribunais e a certeza ou segurança jurídica de uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com as mesmas partes, se se vier a dispor em sentido diverso sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.
XXXIII- A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda ação, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma decisão possa ser validamente definida de modo diverso por outra decisão, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 580.º do CPC – cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 21.03.2013, disponível in http://www.dgsi.pt.
XXXIV- Posto isto, em primeiro lugar, reitera-se que o pedido e a causa de pedir do pedido de indemnização civil deduzido no âmbito do Proc.º n.º ..../08 BPN coincide com o pedido deduzido no âmbito da ação subjacente aos presentes autos.
XXXV- Isto é, em ambas as ações as partes peticionam uma indemnização pelos danos emergentes dos créditos cedidos que configuram financiamentos concedidos no âmbito dos atos ilícitos apreciados nos autos criminais.
XXXVI- Créditos que, como se disse e se reitera, foram cedidos ao BPN através de contrato de cessão de créditos celebrado entre o BPN, por um lado, e o BPN Cayman e o BPN IFI, por outro, os quais, por sua vez, haviam recebido em dação em cumprimento do BI os créditos que este BI detinha sobre as sociedades Kinasol Assets Ltd. e Solrac Finance Inc.;
XXXVII- E que são exatamente os mesmos créditos objeto do contrato de cessão de créditos celebrado entre a Recorrente Parvalorem e o BPN, constando daquele mesmo contrato de cessão de créditos que o BPN cedeu à Autora e Recorrente Parvalorem os créditos de € 4.458.119,00 e € 9.800.000, referente à sociedade Kinasol Assets Ltd. (conforme página 29 de 48 do contrato de cessão de créditos junto sob o Doc.º n.º 7 da petição inicial) e de € 99.951.218,00 Solrac Finance Inc. (conforme página 34 de 48 do contrato de cessão de créditos junto sob o Doc.º n.º 7 da petição inicial).
XXXVIII- Em segundo lugar, no âmbito do Proc.º n.º ..../08, foi admitida a constituição do BPN como assistente, na medida em que nos termos do art.º 68.º, n.º 1, alínea a) do CPC era o ofendido / lesado pelos crimes praticados.
XXXIX- Por sua vez, enquanto lesado, ou seja, pessoa que sofreu os danos ocasionados pelo crime, o BPN deduziu pedido de indemnização civil naquele processo-crime.
XL- Como tal, o Tribunal, ao admitir a constituição do BPN enquanto assistente naquele Proc.º n.º ..../08 conferiu legitimidade ao BPN para deduzir o pedido de indemnização civil.
XLI- Dito de outro modo, talvez mais claro, a decisão do Tribunal naquele Proc.º n.º ..../08, sobre a constituição de assistente e a consequente legitimidade do BPN enquanto tal e para deduzir pedido de indemnização civil tem autoridade de caso julgado, na medida em que definiu a relação jurídica entre as partes.
XLII- Logo, aquele entendimento constante do Proc.º n.º ..../08 e a decisão de admitir o BPN enquanto assistente (que na sentença recorrida é acolhido também, quando o Tribunal a quo refere que o BPN “é o lesad[o] nos autos criminais”) tem o efeito positivo de ser imposta como pressuposto indiscutível da ação subjacente ao presente recurso.
XLIII- Portanto, uma vez que a Recorrente e Autora Parvalorem, por via da cessão de créditos celebrada com o BPN, ocupa exatamente a posição do BPN quanto aos créditos que fundamentaram a admissão da constituição de assistente deste naqueloutro Proc.º n.º ..../08, na qualidade de lesado, e, por sua vez, a legitimidade para ali deduzir pedido de indemnização civil.
XLIV- Então, a Recorrente e Autora Parvalorem teria legitimidade para deduzir pedido de indemnização civil naqueles autos e, consequentemente, tem legitimidade para os termos dos presentes autos, o que se impõe por via do argumento de autoridade de caso julgado.
XLV- Em terceiro lugar, importa atender à cessão de créditos enquanto contrato que abrange créditos indemnizatórios
XLVI- Sem prejuízo do exposto, se é certo que à data da instauração do processo-crime o lesado era o BPN, a verdade é que, como se disse e se reitera, conforme decorre do Doc.º n.º 7 junto com a petição inicial, por contrato de cessão de créditos celebrado entre o BPN e a Recorrente Parvalorem, em 2010.12.23, foram cedidos por aquele a esta diversos créditos sobre vários devedores, entre os quais se encontram os créditos cujo pagamento é reclamado pela Recorrente Parvalorem na presente ação, e de que foi titular o BI.
XLVII- Entre os créditos cedidos pelo BPN à Recorrente Parvalorem encontram-se os financiamentos, nos montantes globais de € 13.558.118,83 e € 99.951.218,00, concedidos às sociedades Kinasol Assets Ltd. e Solrac Finance Inc., duas sociedades offshore utilizadas pelos Recorridos para a realização de negócios ilegais, conforme resultou provado no referido Proc.º n.º ..../08 e por conta dos quais, entre outros, os Recorridos foram condenados na prática de um crime de burla qualificada.
XLVIII- Note-se que, apesar de o contrato de cessão de créditos apenas fazer referência àqueles créditos, certo é que a transmissão abrange os créditos indemnizatórios, conforme foi já definitivamente reconhecido pelas instâncias criminais.
XLIX- E a intenção das partes foi precisamente a de transmitir não só os créditos de fonte contratual, mas também todos os direitos de indemnização de que o BPN era titular sobre os Recorridos decorrentes dos factos objeto do Procº. nº. ..../08,
L- O que apenas não ficou a constar do aludido contrato por ser considerado redundante, visto, à data – 2010.12.23 -, ter sido já estabelecida a qualidade de lesado do BPN e a sua legitimidade para se constituir assistente e, consequentemente, para deduzir o competente pedido de indemnização civil, sendo os créditos em questão financiamentos que foram concedidos no âmbito dos atos ilícitos apreciados nos referidos autos criminais.
LI- Quer isto dizer que os créditos cedidos pelo BPN à Parvalorem, correspondentes aos que emergem da concessão dos financiamentos às entidades Kinasol Assets Ltd. e Solrac Finance Inc., não são apenas os de fonte contratual, mas também os de fonte extracontratual, pelo que se afigurava irrelevante a sua expressa menção no contrato de cessão de créditos em questão.
LII- Vale isto por dizer que, na sequência da cessão de todos os referidos créditos, os prejuízos patrimoniais decorrentes da prática do ilícito criminal transferiram-se para a esfera jurídica da cessionária, a Recorrente Parvalorem e, por isso, a Recorrente Parvalorem, enquanto lesada, tem legitimidade para o deduzir pedido de indemnização civil e, consequentemente, tem legitimidade ativa na presente ação.
LIII- Essa mesma ilegitimidade ativa substantiva foi suscitada no Procº. n.º 137/09.0TELSB, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 14, nos exatos termos que foi afirmada nestes autos, concluindo aquele Tribunal que, por força da cessão de créditos, o prejuízo patrimonial emergente da conduta criminosa se repercutiu na esfera do cessionário, tal como decorre do seguinte excerto que se transcreve: “Ora, tal crédito é precisamente um daqueles que em 23-12-2010 o B.P.N. cedeu à aqui demandante (cfr. fls. 1832 do Volume V). Acresce que JJ, diretor de operações do B.P.N. até 2012 e que desempenha atualmente tais funções para a demandante, inquirido em audiência de julgamento, referiu de forma perentória que tal crédito continuava por regularizar. Convém ter presente que não obstante esta última cessão ter ocorrido em data em que não havia sido ainda deduzida nestes autos a acusação pública, o certo é que o referido crédito é constituído, em parte, por quantia disponibilizada ou assegurada pelo B.P.N. por força da conduta ilícita do demandando KK, e da qual o mesmo ilegitimamente se apropriou, correspondente ao valor do prejuízo patrimonial que causou ao B.P.N. e ao do benefício patrimonial que adveio para o próprio demandado KK e que o demandado LL permitiu manter, consolidar e perpetuar” (negritos e sublinhados nossos).
LIV- Em igual sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2024.03.13, proferido naqueles mesmos autos (de que foi relatora a Desembargadora Maria Dolores da Silva e Sousa), disponível em www.dgsi.pt, salienta que: “Portanto, parece-nos inexistir dúvidas que o BPN cedeu à Parvalorem créditos onde se inclui o crédito no montante indevidamente sacado pelos arguido – dito de outro modo – o prejuízo causado pelos factos praticados pelos arguidos ao BNP, assumindo atualmente a Assistente Parvalorem a posição jurídica de lesada, uma vez que uma parte dos créditos que lhe foram cedidos integram o prejuízo causado pela prática de factos destes autos, na quantia de 1.250.000,00 € de que o arguido recorrente se locupletou ilicitamente. Portanto, não há qualquer dúvida que os Demandados são devedores de uma parte dos créditos cedido, por via dos factos provados e no montante de 1.250.000,00 €.” (negrito e sublinhado nossos).
LV- O caso subjacente ao acórdão que se vem de citar é em tudo idêntico ao caso em apreço nos presentes autos, porquanto, na sequência de uma condenação pela prática de factos ilícitos e de um contrato de cessão de créditos entre o BPN e a Parvalorem, a última deduziu pedido de indemnização civil contra os condenados no processo-crime.
LVI- No caso sub judice, a Recorrente Parvalorem, na sequência da condenação dos Recorridos na prática de um crime de burla qualificada, instaurou a presente ação de condenação (lesada que é e como o era o BPN, antes de ceder os respetivos créditos e direitos indemnizatórios à Parvalorem).
LVII- Enquanto lesada, é, pois, a Recorrente titular do direito à indemnização com fundamento no instituto da responsabilidade civil, porquanto a cessão de créditos – em qualquer caso – comporta (e implica) a cessão dos direitos indemnizatórios decorrentes dos créditos objeto de cessão.
LVIII- Face ao exposto, não poderá retirar-se outra conclusão se não a de que a Recorrente e Autora Parvalorem é parte legítima na ação de condenação que fundamenta o presente recurso, pelo que deverá ser considerada improcedente a exceção de ilegitimidade.
LIX- Por último e sem prejuízo do exposto, sempre se diga que, consubstanciando a exceção de ilegitimidade ativa de uma exceção perentória, o Tribunal apenas poderia tomar uma decisão quanto à sua verificação, ou não, se estivesse munido dos elementos de prova suficientes para afirmar que a Recorrente e Autora Parvalorem não era titular do direito que invoca.
LX- Portanto, para que pudesse ser procedente a exceção de ilegitimidade ativa substantiva, sempre se teria de concluir que os danos decorrentes da atuação dos Recorridos e que foram objeto do Procº. nº. ..../08, pura e simplesmente, em caso algum se poderiam ter repercutido na esfera patrimonial da Recorrente Parvalorem.
LXI- Todavia, o Tribunal a quo não dispunha desses elementos, pelo que decidiu erradamente ao julgar procedente a exceção de ilegitimidade substantiva sem os elementos necessários.
LXII- Por fim, o Tribunal a quo decidiu julgar igualmente procedente a exceção de preclusão do direito de ação com fundamento, por um lado, no facto de a Recorrente e Autora Parvalorem não ser a lesada nos autos criminais e, por outro lado, no facto de o pedido de indemnização civil ter de ser exercido no âmbito do processo-crime, sob pena de preclusão.
LXIII- Tal como demonstrado anteriormente, por via do contrato de cessão de créditos entre o BPN e a Recorrente Parvalorem, esta ficou constituída na posição jurídica de lesada, nela se repercutindo os prejuízos patrimoniais decorrentes da prática do crime de burla qualificada praticado pelos Recorridos.
LXIV- Logo, a Recorrente substituiu o BPN na legitimidade para deduzir e/ou fazer seguir o pedido de indemnização civil e, tendo as partes sido remetidas para os meios comuns, para aí deduzir a correspondente pretensão nos tribunais cíveis, como fez.
LXV- Por outro lado, é evidente que o Tribunal a quo desconsiderou a aplicação do art.º 72.º do CPP, o qual consagra os casos em que o pedido de indemnização pode ser deduzido em separado.
LXVI- O inquérito que deu origem ao Procº. nº. ..../08, processo-crime que condenou os Recorridos por crime de burla qualificada, teve início, como o seu número indica, em 2008.
LXVII- No entanto, o despacho de acusação apenas foi proferido em 2009.11.21, e expedido por carta registada em 2009.11.23, conforme Doc.º n.º 3 junto por requerimento de 24.05.2024, com a ref.ª Citius 39471252, considerando-se notificados em 2009.11.26.
LXVIII- O pedido de indemnização civil, por sua vez, foi deduzido em 2009.12.07, conforme Doc.º n.º 4 junto com o requerimento de dia 24.05.2024, com a ref.ª Citius 394712, e as partes remetidas para os meios comuns por despacho de 2010.11.08.
LXIX- Ora, como se disse, o contrato de cessão de créditos do BPN à Recorrente foi celebrado em 2010.12.23, pelo que nunca a Recorrente poderia, no tempo, ter deduzido o pedido de indemnização civil, como se insinua na sentença recorrida dever ter feito.
LXX- Mas se o pudesse ter feito, também não o tinha de o fazer no processo-crime, podendo usar da faculdade prevista de o fazer nos meios comuns, ao abrigo do citado art.º 72.º, n.º 1, alíneas a) e e), do CPP.
LXXI- A este propósito veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, 17.12.2018, proferido no Procº. n.º 1286/18.0T8VCT-A.G1, de que foi relator o Desembargador António Sobrinho, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual:
“O artº 71º, do Código de Processo Penal (CPP), consagra o princípio da adesão. Este consiste em o pedido de indemnização civil decorrente da prática de um crime dever ser deduzido no processo penal. Tal normativo, conjugado com o artº 72º seguinte, prevê exceções a esse princípio da adesão, entre as quais as situações comtempladas nas alíneas c) e g), do seu nº1: o procedimento depender de queixa ou de acusação particular [al. c)]; o valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular [al. g)].Quanto a este último, inexistindo agora a intervenção do tribunal coletivo no julgamento no âmbito do CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06, esvaziou-se o conteúdo da citada alínea g), ante o disposto nos artºs 546º, 548º e 599º. E não prevê nesta situação, do citado artº 72º, qualquer impossibilidade de dedução em separado quando não tenha sido conhecido o mérito de tal pedido na acção penal, nomeadamente com base em indeferimento por razões de extemporaneidade. A interpretação deste preceito tem de se confinar aos estritos termos que dele defluem, sendo formalmente permitido, em sede de tramitação processual, quanto nele não esteja proibido. O que resulta da apontada alínea c) é que é facultada a dedução em separado do pedido de indemnização civil perante o tribunal civil, sem quaisquer entraves, quando o procedimento depender de queixa, como ocorre com o ilícito penal subsumível em ofensa à integridade física simples.” (negrito e sublinhado nossos)
LXXII- Deste modo, é manifesto que a Recorrente Parvalorem poderia – e apenas poderia - ter intentado a ação no foro civil e que em nenhum caso viu precludido o seu direito, devendo ser revogada a sentença recorrida e, como tal, julgada improcedente a exceção de preclusão do direito de ação.
LXXIII- Face ao exposto, é absolutamente errada a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo quanto à procedência da exceção de legitimidade ativa e da exceção de preclusão do direito de ação da Recorrente Parvalorem, tendo a sentença necessariamente de ser revogada».
1.6. Os RR. CC e BB contra-alegaram, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida, sem, contudo, apresentarem conclusões.
1.7. Por decisão de 10.04.2025, foi homologada a desistência do pedido deduzido contra os herdeiros habilitados do R. EE e, em consequência, foi declarado extinto o direito que a A. pretendia fazer valer contra os mesmos.
1.8. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, as questões essenciais a decidir consistem em saber:
a) se a A. é parte (processualmente) legítima;
b) se o direito de acção se mostra precludido.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes a atender para efeitos de apreciação do objecto do presente recurso são os que dimanam do antecedente relatório (ponto I deste acórdão).
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Vejamos, então, se a A. é ou não parte legítima.
Conforme referimos no ponto I, os RR. contestantes defenderam que a A. não possui legitimidade substantiva/material, por não ser titular de qualquer direito sobre os RR.
A decisão recorrida considerou que «…nos termos em que a própria A. configura a ação a mesma não tem legitimidade. Não existe interesse em agir da sua parte pois o dano não é próprio, pelo que o direito à indemnização nunca lhe pode ser devido» e concluiu que a A. carece de legitimidade para demandar, absolvendo os RR. da instância.
Desta forma, embora sem citar ou referir qualquer disposição legal, o tribunal a quo entendeu estar-se perante uma excepção dilatória (arts. 278.º, n.º 1 al. d), 576.º, n.º 2, 577.º al. e) do CPC).
Tal entendimento foi fundamentado pelo tribunal recorrido na seguinte ordem de argumentos:
- a A. e o BPN são entidades distintas, sendo que a primeira não sucedeu ao segundo;
- os RR. não figuram na lista dos créditos cedidos pelo BPN à A.;
- da lista dos créditos cedidos não constam quaisquer direitos de indemnização decorrentes de responsabilidade extracontratual do RR.;
- a A. não sucedeu ao BPN no direito que este tinha contra os RR. para ressarcimento dos prejuízos para si decorrentes de ilícitos criminais por eles praticados;
- a sentença proferida no processo crime é posterior à cessão de créditos.
Sucede que tais argumentos nada têm que ver com a legitimidade adjectiva ou processual, enquanto excepção dilatória, mas sim com a legitimidade substantiva ou material.
Ou seja, salvo o devido respeito, a decisão recorrida confunde os conceitos de legitimidade processual e legitimidade substantiva.
Como é consabido, a primeira reporta-se à relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, enquanto que a segunda tem que ver com a efectiva titularidade dessa relação, consubstanciando um requisito de procedência do pedido, cuja não observância acarreta a absolvição do pedido e, portanto, tem que ver o mérito da própria causa.
Com efeito, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 30.º do C.P.C., o A. é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, advindo a legitimidade do R. do interesse directo em contradizer.
Tal interesse exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção ou pelo prejuízo decorrente da sua procedência (cfr. n.º 2 do artigo citado), sendo que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor (cfr. n.º 3 do artigo citado).
A conjugação das normas citadas permite, pois, concluir que a legitimidade das partes há-de ser apreciada e determinada pela utilidade que, da procedência da acção, possa advir para as mesmas, face aos termos em que o A. configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação material controvertida.
Verifica-se, assim, que a legitimidade representa uma posição da parte em relação a certo objecto do processo em concreto, sendo aferida pela forma como o A. conforma a acção, o que é hoje, unanimemente, aceite pela doutrina e jurisprudência.
No caso dos autos, é inequívoco que a A. pretende efectivar a responsabilidade civil dos RR. por facto ilícito, à luz do art. 483.º do CC.
Na petição inicial, a A. alega, para além de tudo o mais, que:
- por contrato de cessão de créditos celebrado entre o BPN e a A. em 23.12.2010, foram-lhe cedidos diversos créditos sobre vários devedores, entre os quais se encontram os créditos invocados nesta acção;
- tais créditos, de que agora a A. é titular, haviam sido cedidos pelo BPN Cayman e pelo BPN (IFI), S.A., ao BPN, por contratos de cessão de créditos outorgados em 13.03.2009, e haviam sido adquiridos pelo BPN Cayman e pelo BPN (IFI), S.A., ao Banco Insular, por contrapartida da extinção das dívidas que o mesmo tinha perante aquelas duas entidades;
- os créditos sucessivamente cedidos, de que era formalmente titular o Banco Insular, encontram-se descritos na acusação formulada no processo criminal referido, e os seus montantes e origem são a causa de pedir nestes autos, designadamente, os créditos decorrentes dos financiamentos concedidos às sociedades offshore KINASOL ASSETS e SOLRAC FINANCE, utilizadas pelos RR. para realização de negócios ruinosos, de entre os quais aqueles que estão em causa nos presentes autos.
Na tese da A., os factos subjacentes ao pedido de indemnização civil formulado no processo crime constituem a causa de pedir da presente acção, assentando a sua legitimidade para, em separado, prosseguir aquele pedido, no contrato de cessão de créditos celebrado entre si e o BPN.
Por conseguinte, atendendo à relação material controvertida, tal como a A. a configura, parece impor-se a conclusão de que a A. é sujeito da relação material controvertida, por ser beneficiária da utilidade derivada da procedência da acção e, por conseguinte, titular do interesse directo em demandar, ainda que nos contratos de cessão créditos não sejam, expressamente, identificados quaisquer créditos do BPN sobre os RR. decorrente de responsabilidade civil.
Questão diversa é a de saber se a A. é ou não, efectivamente, titular do direito de que se arroga (nomeadamente, se dos contratos de cessão de créditos constam ou não créditos de que os RR. sejam devedores para com o BPN; se o direito de indemnização que o BPN pretendeu fazer valer no processo crime corresponde a créditos anteriormente existentes de que o mesmo fosse titular e que este pudesse ter cedido; se os danos decorrentes da actuação dos RR. se repercutiram ou não na esfera da A.; etc.), o que tem a ver com o mérito da acção e poderá conduzir à absolvição do pedido, se se demonstrar que, em face da matéria de facto já apurada em sede de articulados ou que vier a ser apurada após instrução da causa, tal direito não lhe assiste e, portanto, que ocorre ilegitimidade substantiva.
Veja-se, neste sentido, por exemplo:
- o acórdão do STJ de 18.03.2021, in www.dgsi.pt
«Há que distinguir a legitimidade enquanto pressuposto processual (art. 30.º do CPC), que se afere pelo modo como a relação controvertida é configurada pelo autor, da legitimidade substantiva ou material, que se prende com a titularidade de um direito, respeitando, assim, ao mérito da causa»;
- o acórdão da RP de 04.10.2021, in www.dgsi.pt:
«I - Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.
II - A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido.
III - Apesar de a Autora ser dotada de legitimidade ativa, pressuposto processual já considerado, pacificamente, verificado, em termos tabelares, no despacho saneador, bem decidida se mostra a questão diversa, da falta de legitimidade substantiva, dada a manifesta falta do direito que pretende fazer valer e a manifesta inviabilidade das pretensões, por resultar dos autos se não ter gerado o dano na sua esfera jurídica, mas na de terceiro, proprietário do imóvel objeto do incêndio, nada podendo obter para si relativamente a reparação/indemnização relativa a imóvel alheio».
- o acórdão da RE de 23.04.2024, in www.dgsi.pt:
«I – Ao apuramento da legitimidade processual – pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância – releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.
II – A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido.
III – Configurada nos termos como a autora a configura – factos que integram a causa de pedir e o pedido –, dúvidas não temos de que o réu pessoa singular é parte legítima processualmente, porquanto o seu interesse em contradizer e o prejuízo que lhe possa advir com a procedência da ação se exprime inequivocamente por esta procedência e pela sua condenação no montante peticionado.
IV – Saber se o direito invocado existe é, já o afirmamos, questão que está relacionada com o mérito do pedido, da ação; ou seja, saber se foi celebrada uma assunção de dívida (da ré sociedade) por parte do réu pessoa singular prende-se com o mérito da ação e não com a legitimidade processual.
Há, pois, que apurar se a autora e os réus tiveram conhecimento do negócio de confissão de dívida e acordo para pagamento, compreenderam o seu conteúdo e, de livre e consciente vontade, outorgaram o mesmo».
Ora, a decisão recorrida, com base em argumentos que se prendem e conduzem à ilegitimidade substantiva e sem elencar quaisquer factos provados (o que seria essencial para a apreciação dessa ilegitimidade substantiva e impede esta Relação de exercer, no âmbito das competências legais que lhe estão atribuídas, qualquer controlo sobre a bondade desses argumentos), declarou a ilegitimidade processual da A. e absolveu os RR. da instância, quando é certo que, como se disse, a ilegitimidade substantiva conduz à improcedência da acção e à absolvição do pedido.
Este entendimento foi, também, o perfilhado, em situação análoga à dos autos, pelo acórdão da RP, citado pelo acórdão do STJ de 04.07.2017, in www.dgsi.pt, ao considerar que: «(…) o contrato de cessão de créditos em que a autora estriba a sua legitimidade para a presente acção não abrange qualquer crédito de que os RR sejam devedores à cedente. A Autora vem demandar não um devedor da cedente pelo crédito objecto da cessão (…), mas terceiros contra quem a cedente reclama um direito de indemnizatório, direito este que, para que a autora o pudesse invocar, teria: 1º - de estar judicialmente reconhecido; 2° e de ter sido objecto do contrato da cessão de créditos em que figura como cessionária. Temos de concluir que não existe entre autora e RR uma relação material controvertida e, consequentemente, um interesse directo da autora em agir e um interesse directo dos RR em contradizer- artigo 30° do CPC. Vale dizer que se verifica a excepção dilatória da ilegitimidade das partes, nos temos do disposto nos artigos 576° n°s 1 e 2 e 577.° al. e) do CPC, o que implica a absolvição dos RR da instância».
Sucede que tal acórdão veio a ser revogado pelo acórdão do STJ de 04.07.2017 referido, que entendeu que: «A legitimidade processual tal como decorre do art. 30° do Código do Processo Civil afere-se pela configuração que o Autor faz da acção na sua petição inicial. (…) A legitimidade é um conceito de relação traduzindo a conexão entre o demandante e o objecto do processo. Numa primeira fase da sua construção a legitimidade apresenta-se como uma concepção complexa - abrangendo o conjunto de pressupostos subjectivos relativos às partes, e por vezes algumas condições da acção. Não enveredando pela explanação das teses já demasiado exauridas (que opuseram o Prof. Barbosa de Magalhães ao Prof. José Alberto dos Reis) temos como assente que a legitimidade processual, como os demais pressupostos processuais, é de averiguar em face da relação jurídica controvertida, tal como a desenha o autor. Da legitimidade processual distingue-se a legitimidade “ad actum”, que consiste no complexo que representa os pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que invoque ou que lhe seja atribuído. A lei, a doutrina e a linguagem corrente falam em legitimidade para designar essas condições subjectivas da titularidade do direito. A falta delas dará lugar, na mesma terminologia, a uma ilegitimidade. Esta, porém, é uma figura diferente da legitimidade “ad processum”. A legitimidade posta em crise no Acórdão recorrido, é-o em sentido material atinente ao mérito da causa. Aqui chegados, e atendendo à exegese feita quanto à cessão de créditos e à legitimidade, podemos concluir que a questão que se coloca e parece ser a perspectiva acolhida no aresto recorrido, é a da legitimidade substantiva. Porém não foi isso que afirmou em remate o acórdão da Relação, qualificando a legitimidade como processual e tirando daí a absolvição da instancia do R.».
Não podemos deixar de acompanhar este entendimento: a ilegitimidade a que alude a decisão recorrida é a ilegitimidade material, atinente ao mérito da causa, nada tendo que ver com a ilegitimidade processual.
A A. é, pois, parte legítima.
A decisão recorrida refere, também, que a A. não tem interesse em agir.
O conceito de interesse processual, como pressuposto do recurso a juízo, foi apurado pela doutrina a propósito, sobretudo, da admissibilidade de acções de simples apreciação e da necessidade de garantir que os tribunais tenham por função, apenas, dirimir litígios reais.
O recurso aos tribunais pressupõe a necessidade de intervenção judicial, pelo que se tem defendido que, entre os pressupostos referentes às partes, deve incluir-se o interesse processual, apesar de a lei não lhe fazer referência expressa (cfr., por exemplo, o Ac. da RL de 04.05.2010, in www.dgsi.pt).
O interesse em agir consiste, assim, na necessidade de tutela judiciária ou jurisdicional para um determinado direito subjectivo ou situação juridicamente tutelada, na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.
O A. tem interesse processual, quando a situação de carência, em que se encontre, necessite da intervenção do Tribunal. Exige-se uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção.
Assim, conforme ensina Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 179 e segs, «se ninguém contestou o direito do dono do terreno, nem violou por qualquer forma as suas faculdades de uso e fruição da coisa, é evidente a falta de interesse na acção que ele proponha para fazer reconhecer o seu direito de propriedade pelos proprietários vizinhos».
Desta forma, para haver interesse processual não basta a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. Tem de haver uma situação de dúvida ou incerteza para que haja interesse processual na acção.
Apesar de alguns defenderem que o interesse em agir deve ser reconduzido à legitimidade processual ou deve ser configurado como condição da acção ou até como simples causa de condenação em custas, a maioria da doutrina e da jurisprudência têm entendido que o mesmo constitui um pressuposto processual autónomo inominado, uma vez que com ele se pretende evitar que o Tribunal conheça do mérito de situações não carecidas de tutela judiciária (v.g., ac. do STJ de 10.12.1985, in BMJ 352, p. 291).
Ora, como pressuposto processual, também o interesse em agir deverá ser aferido pela relação material controvertida tal como é configurada pelo A.
No caso presente, em face, precisamente, da relação material controvertida, tal como vem configurada pela A., ressalta existir litígio sobre o alegado direito da A., já que os RR. colocam em causa esse direito, que a mesma pretende fazer valer na acção, sendo, também, patente o interesse em agir da A.
4.2. Vejamos, agora, se o direito de acção da A. se mostra precludido.
Recordemos que os RR. defenderam que o pedido de indemnização cível por danos decorrentes do ilícito criminal foi formulado no processo crime pelo BPN de modo extemporâneo, pelo que, ainda que se admita que a A. sucedeu na posição processual do BPN, a mesma não pode exercer tal direito de acção, mesmo que em separado nos tribunais cíveis.
A decisão recorrida, dando razão aos RR. contestantes quanto à preclusão do direito de acção da A. nos tribunais cíveis, fundamentou esse entendimento noutra ordem de argumentos.
Com efeito, considerou o tribunal a quo que o pedido de indemnização remetido para os meios comuns foi o deduzido pelo BPN, sendo que a A. não é lesada, nem deduziu pedido de indemnização cível no processo crime, o que deveria ter feito, por os factos cuja indemnização pretende decorrem desse processo.
Está, pois, subjacente a esta argumentação o entendimento de que a A. não é lesada, nem se transmitiu para si o direito de indemnização exercido pelo BPN, não podendo, por isso, a A. beneficiar da tramitação do processo criminal.
Sucede que esta argumentação do tribunal a quo assenta no entendimento de que, no caso dos autos, a A. não sofreu quaisquer prejuízos decorrentes da conduta dos RR., não sendo lesada, e que não houve qualquer transmissão para si dos direitos indemnizatórios dos RR., o que pressupõe, também, um juízo sobre a efectiva titularidade do direito que a A. pretende fazer valer e do próprio mérito da causa, que, como se viu, não pode ser feito em abstracto, sem a consideração e apuramento da relevante factualidade alegada.
Aliás, a excepção em causa, sendo peremptória (art. 576.º, n.º 3 do CPC), nunca conduziria à absolvição dos RR. da instância, como decidiu o tribunal a quo, mas à sua absolvição do pedido, o que não poderia ser declarado por esta Relação, sob pena de violação da proibição da reformatio in pejus.
De resto, se atentássemos ao fundamento invocado pelos RR. (extemporaneidade do pedido de indemnização civil deduzido no processo crime), sempre teríamos que da decisão recorrida não constam quaisquer factos que nos permitam concluir se o pedido de indemnização cível foi deduzido extemporaneamente ou não, sendo certo que se trata de matéria controvertida, por ter sido negada pelos RR, na resposta a essa excepção.
4.3. Aqui chegados, conclui-se pela procedência das conclusões da recorrente, impondo-se revogar a decisão recorrida.
Os recorridos suportarão as custas do recurso, por terem ficado vencidos (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se a A. parte legítima e relegando-se para momento posterior o conhecimento da excepção da preclusão do direito de acção, devendo os autos prosseguir os seus normais trâmites e o tribunal a quo apreciar, no momento processual que considere adequado, a legitimidade material da A. e as demais questões/excepções suscitadas nos articulados e que foram por si consideradas prejudicadas, bem como todas aquelas de que possa conhecer oficiosamente.
Custas pelos recorridos.
Notifique.
*
Lisboa, 09.10.2025
Rui Oliveira
Amélia Loupo
Rui Vultos