Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1174/24.0PVLSB-A.L1-5
Relator: ALEXANDRA VEIGA
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
INIMPUTABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1.A decisão de requerer a abertura da instrução, quando provenha do arguido, só pode ter este escopo: a sua não sujeição a julgamento, ou a sua não sujeição a julgamento por algum ou alguns dos crimes que lhe são imputados na acusação.
2.O sujeito processual arguido não tem um direito fundamental a não ser sujeito a julgamento.
3.O arguido não afasta, em concreto, o desacerto da decisão de acusar tomada com base nos elementos que existiam no inquérito nesse momento, ou seja, aceita os factos, mas pretende demonstrar que a sua atuação está a coberto de uma inimputabilidade ou imputabilidade diminuída causada pela doença e pela medicação.
4.Sucede, porém, que na fase de inquérito foi realizada perícia médico legal com as conclusões nesta vertidas que não apontam para a inimputabilidade, não obstante reconhecerem a patologia de que o arguido padece, bem como, a medicação a que está sujeito e os efeitos destes fármacos.
O fim pretendido pelo arguido só poderia ser alcançado com pedido de esclarecimento da perícia, invocando razões não suficientemente dilucidadas, ou com o pedido de nova perícia, o que deveria ter sido feito logo que foi notificado da perícia.
E não o tendo feito atempadamente, como devia, pode ainda solicitá-lo em audiência de julgamento.
5. As provas indicadas pelo arguido visam a apreciação da culpa, em sentido jurídico- penal, designadamente, a influência dos fármacos e da patologia de que padece -reconhecida na perícia - no comportamento, com relevância jurídico-penal, que indiciariamente adotou para lhe retirar ou diminuir a culpa na prática dos factos (diminuição já reconhecida na perícia).

6. Tendo sido sujeito a perícia médico legal, com as conclusões apontadas, não poderia o juiz de instrução criminal contrariar a perícia com base nos elementos de prova sugeridos pelo arguido - testemunhas e restantes meios de prova oferecidos, porquanto O juízo científico inerente a prova pericial presume-se subtraído a livre apreciação do Tribunal.
7. A instrução, nos moldes requeridos, com os factos indiciários não impugnados e sem nova prova pericial requerida não evitaria a introdução do feito em juízo e como tal seria inútil para defesa do arguido e como tal foi rejeitada por inadmissível
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
No Processo nº 1174/24.0PVLSB-A do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Tribunal Central Instrução Criminal TCIC - Juiz 9 - foi proferida decisão instrutória, com o seguinte dispositivo:
«Assim, e pelos fundamentos expostos, entende-se que o requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado é legalmente inadmissível.
Em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado nestes autos pelo arguido com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 286º, n.º1 e 287º, n.º1, al. a), nº 2 e nº 3, ambos do Código de Processo Penal».
Sem custas por não serem devidas.
Notifique.»
*
Inconformado, recorreu o arguido AA formulando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso de despacho judicial que limita os direitos do arguido que regularmente requereu a abertura da fase de instrução (RAI), cumprindo todos os requisitos materiais e formais e, especificamente, vem o presente recurso de despacho judicial de dia 5- 06-2025 (Ref.ª 9403932), só notificado mais tarde, que conclui ser legalmente inadmissível a instrução requerida pelo arguido, rejeitando o requerimento de abertura de instrução por este apresentado.
2. Visa o presente recurso repor a legalidade, concretamente através da revogação da decisão recorrida e da sua substituição por outra que declare a abertura desta fase processual, legalmente requerida pelo arguido, ora recorrente, seguindo o processo os seus ulteriores termos.
3. Constituiu erro que exige reparação jurídica, a preclusão dos direitos do arguido, por via da prolação de um despacho judicial por parte do Tribunal a quo que erradamente e sem o fundamentar devidamente, entende que o RAI apresentado pelo arguido não cumpre os critérios legais definidos nos arts. 286.º, 287.º, n.º 1 al. a), n.º 2 e n.º 3 do CPP.
4. Tudo o que a decisão recorrida elenca como necessário para um admissível RAI de arguido, o específico RAI apresentado pelo arguido AA cumpriu, o que torna a conclusão da decisão recorrida absolutamente incompatível com a sua premissa legal.
5. Resulta claro da decisão recorrida que o Tribunal a quo confunde a situação de um RAI apresentado por arguido (que é o caso), com a de um RAI apresentado por assistente (o que, evidentemente, não é o caso), ao referir erradamente que: "(. . .) sendo ainda aplicável ao requerimento o disposto no artigo 283°, n. º 3, alíneas b) e e), do Código de Processo Penal." quando, tais comandos legais são apenas aplicáveis ex. vi. art. 287.º, n.º 2 do CPP (sublinhados nossos): "sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b)e d) do n.º 3 do artigo 283. º.
6. A decisão recorrida atinge, em seguida, o cúmulo da desadequação ao caso concreto, referindo erradamente que (sublinhados nossos): "O requerimento de abertura de instrução deve ser mais que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento do Ministério Público (para o qual existe a reclamação hierárquica) consubstanciando uma verdadeira acusação em sentido material, que é dada a conhecer ao arguido, delimitando, por isso, o objeto do processo.
Mais se diga que tal requerimento, conforme apresentado, nunca podia servir de base a um despacho de pronúncia, pois não se projeta como uma acusação alternativa." ( cfr. decisão recorrida)
7. Nem houve despacho de arquivamento. nem se aplicam ao arguido e ao caso concreto os requisitos do art. 278.º do CPP referente à intervenção hierárquica, nem está em causa no RAI do arguido consubstanciar-se uma acusação em sentido material. Nem deve. muito menos. o RAI do arguido poder servir de base a um despacho de pronúncia (está em causa exatamente o contrário, isto é, a não pronúncia).
8. A decisão recorrida, ao arrepio do real conteúdo do RAI do arguido e dos requisitos legais efetivamente aplicáveis. decide erradamente, incorrendo em violação manifesta do disposto nos arts. 286.º, 287.º n.º 1 al. a). n.º 2 e n.º 3 do CPP.
9. Em evidente violação de um dever de fundamentação da sua decisão (cfr. art. 97.º, n.º 5 do CPP), o Tribunal a quo não diz concretamente porquê e o quê se encontra alegadamente em falta no RAI apresentado pelo arguido.
10. Contrariamente ao que defende a decisão recorrida:
i. Nos pontos 1) a 21), 25), 28) e 30) (neste último caso referindo-se concretamente aos "pontos 10, 18 e 42 da acusação') da secção "I. DAS RAZÕES DE DISCORDÂNCIA COM A ACUSAÇÃO" do RAI, o arguido elencou especificamente razões de facto de discordância relativamente à acusação e discutiu e discordou, especificamente, à luz das razões de facto apresentadas, da decisão de acusação (cfr. n.º 2 do art. 287.º do CPP).
ii. Nos pontos 22) a 24), 26) a 27), 29), 31) e 32) da secção "I. DAS RAZÕES DE DISCORDÂNCIA COM A ACUSAÇÃO" do RAI, o arguido elencou especificamente razões de direito de discordância relativamente à acusação e discordou de tal decisão (cfr. n.º 2 do art. 287.º do CPP).
iii. No ponto 33) da secção "I. DAS RAZÕES DE DISCORDÂNCIA COM A ACUSAÇÃO" do RAI, o arguido concluiu "Motivo pelo qual não deve o jovem AA ser pronunciado pelos crimes pelos quais vem acusado." (cfr. n.º 2 do art. 287.º do CPP)
iv. Na secção "//. PROVA DOCUMENTAL" do RAI, o arguido indicou como prova documental toda a dos autos e na secção "///. DILIGÊNCIAS INSTRUTÓRIAS A REALIZAR" do RAI, o arguido indicou os actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, mais indicando os meios de prova que entende não foram devidamente considerados no inquérito, designadamente requerendo a instrução de diversas testemunhas, a reinquirição fundamentada de testemunhas já inquiridas, bem como a tomada de declarações da perita interveniente nos autos, à luz de Relatório produzido durante a fase de inquérito. (cfr. n.º 2 do art. 287.º do CPP)
11. Resulta evidente da leitura do RAI, que queda clara, na forma e substância legalmente exigíveis, a discordância, bem como as razões da mesma, da decisão de acusação, deixando evidente por que razões, de facto e direito, não deve o arguido ser pronunciado pelos crimes que o MP infundadamente lhe imputa.
12. Contrariamente ao que a decisão recorrida indica, o arguido ora recorrente arguiu no seu RAI, em total respeito pelos requisitos definidos no art. 286.º n.º 1 e no art. 287.º, n.º 2, ambos do CPP, o não preenchimento do elemento subjectivo dos tipos criminais em causa (concretamente coacção sexual. p. e p. pelo art. 163.º do Código Penal e violação, p. e p. 164.0 n.º 2, ais. a) e b) também do Código Penal), o que permite a comprovação judicial da errada decisão de acusar e, realizadas as diligências instrutórias e o debate instrutório, permite sustentar uma justa e adequada decisão de não pronúncia.
13. O arguido recorrente expôs no seu RAI que, contrariamente ao alegado pelo Ministério Público (ponto 62 da acusação), não agiu "de modo livre, deliberado e consciente", sendo tal conclusão (a do arguido, constante do RAI) sustentada por prova pessoal, documental e pericial constante dos autos.
14. Foi expressamente referido no RAI do arguido que, como resulta da prova dos autos que a acusação erradamente não valorizou, este, com apenas 16 anos, é acompanhado psicologicamente desde ... de 2021, tendo sido diagnosticado com Perturbação do Espetro do Autismo e Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção - cf. Informação Pedopsiquiátrica e Declaração Médica (fls. 208-209) e Resumo de Internamento no ... (fls. 324).
15. Refere expressamente o RAI que o arguido esteve sujeito durante todo o ano de 2024 a medicação forte, designadamente Aripiprazol e Metilfenidato (fls. 215 a 221), sendo a toma diária do primeiro fármaco contraindicada em crianças e adolescentes, como consta da bula do medicamento Arpixor (fls. 222 a 225), onde se referem efeitos como "interesse sexual alterado", "sensação de agressividade" e "incapacidade para resistir ao impulso", efeitos estes que terão influenciado directa e exclusivamente os comportamentos em causa.
16. Deixou o arguido recorrente expressamente referido no RAI que é um jovem adolescente, primário (fls. 128), com "problemática de saúde mental" (fls. 2765), que foi afectado por um conjunto de factores clínicos e farmacológicos que lhe retiraram, à data dos factos, a capacidade de se autodeterminar.
17. Destacou também que a acusação desvalorizou erradamente que expressões específicas utilizadas pelas vítimas, como "parecia tipo lunático" ou "completamente descontrolado" (fls. 260), e os próprios pedidos de desculpa do recorrente ("Desculpa! Desculpa!" -fls. 13 e pontos 10, 18 e 41 da acusação), que evidenciam momentos de momentânea lucidez interrompida pela incapacidade de controlar os impulsos.
18. O RAI sublinha que a medicação, administrada indevidamente, agravou o quadro clínico preexistente do arguido recorrente, criando um estado de impulsividade, desinibição e alteração da vontade que impediu o arguido de se autodeterminar e de agir conforme os seus princípios morais e sociais, não conseguindo avaliar a ilicitude dos factos nem conformar a sua conduta de acordo com essa avaliação (cfr. Relatório Pericial de fls. 320 a 337).
19. O arguido recorrente invocou, no seu RAI, expressamente a inimputabilidade penal ao abrigo do artigo 20.º 1 n.º1 do Código Penal, invocando fundadamente a existência de anomalia psíquica e uma relação causal entre esta e a prática do facto ilícito.
Tal relação causal é, segundo o que consta do RAl, inequívoca, atendendo à conjugação entre o diagnóstico clínico e os efeitos adversos da medicação administrada em sobredosagem e não adequada a uma criança adolescente.
20. Concluiu-se no RAI, que a ausência de dolo, e até de mera culpa, impede a imputação penal do comportamento descrito na acusação e ao contrário do que refere a decisão recorrida, o arguido recorrente expôs no seu RAI. De forma clara e articulada. As razões de facto e de direito pelas quais discorda da acusação deduzida pelo Ministério Público, cumprindo integralmente o disposto nos arts. 286, º; 287, º n, º 1 al. a); n, º 2 do CPP.
21. Sendo o elemento subjetivo um elemento do tipo e sendo o seu preenchimento fundamental para a decisão de acusar (e para realizar o juízo de prognose que preside à instrução que se requereu) e permitindo, como permite, o RAI, de forma informada, dirigida e suficiente, sindicar o preenchimento deste elemento é manifestamente incompreensível e inaceitável que se não admita esse mesmo RAI, com base numa putativa insuficiência não especificada como fez a decisão recorrida.
22. Em estrito cumprimento do disposto nos arts. 286.º, 287.º, n.º 1 al. a), n.º 2 do CPP, o arguido recorrente identificou no RAI os actos de instrução que pretende ver levados a cabo e as provas incorretamente valoradas durante o inquérito, consubstanciando, legitima e suficientemente para efeitos de derrotar a acusação e de julgar manifestamente insuficiente os indícios de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena (cfr. art. 308.º, n.º 1 do CPP).
23. O RAI do arguido delimita claramente o objecto da instrução, permitindo ao Juiz de Instrução aferir da insuficiência da prova recolhida em inquérito e da plausibilidade da versão dos factos apresentada pela defesa, em respeito pelos princípios da legalidade e do contraditório e cumprindo integralmente a sua função legal de mecanismo de garantia da defesa do arguido, legitimando a instrução como mecanismo de controlo judicial da acusação.
24. Ao não admitir o RAI, em evidente violação do disposto nos arts. 286.º 287.º, n.º 1 al. a). n.º 2 e n.º 3 do CPP, a decisão recorrida comprimiu de forma intolerável as garantias de defesa, resultando, além da violação das normas citadas, numa clara violação do disposto no art. 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
25. Tal como sintetiza a seguinte jurisprudência, citando a doutrina relevante e a jurisprudência adequada dos Tribunais superiores: lnexistem quaisquer dúvidas sobre o facto do direito à instrução incorporar as garantias de defesa do arguido em processo penal.
Escrevem, a propósito, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, notas ao art. 32°: "Tem-se entendido que "as normas do artigo 32°, n. ºs 1 (…) assegurando ao arguido todas as garantias de defesa e referindo a existência de uma instrução da competência de um juiz, impõem, não só que o processo criminal preveja, em princípio, a faculdade de o arguido provocar a comprovação judicial da acusação, como que os termos em que tal faculdade pode ser exercida não lhe retirem na prática consistência.
A atribuição ao arguido, em regra, do direito de requerer a abertura de uma fase processual (…) deve, pois, incluir-se nas garantias de defesa em processo penal constitucionalmente impostas.
(…)
Mas, sendo facultativa a realização de instrução, facultativa não poderá ser, porém, a atribuição ao arguido do direito de decidir se pretende ou não requerê-la".
(…)
O nº2 do art. 287º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução.
(…)
A garantia constitucional esvaziar-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados.
( ... )
Sempre que for possivel extrair do requerimento, uma discordância que se reporte à acusação, mesmo que considerada no seu conjunto, então estaria preenchido o pressuposto da legitimidade do arguido. O JIC disporia neste caso, apesar de tudo, dum campo delimitado de factos de que partir, e que seriam os factos da acusação ...
(. .. )
Finalmente, é certo que o próprio STJ (Ac. STJ 7-2005, DR 4-11-2005, Fix. Jur. Crime) já teve oportunidade de se debruçar sobre o conceito de "inadmissibilidade legal da instrução" ali incluindo, naturalmente, as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução:
"i) quando requerida no âmbito de processo especial - sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal];
ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito - pessoas diversas do arguido ou o assistente,
iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n. º 1 do artigo 287. º do Código de Processo Penal;
iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;
v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP) e,
vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública ( artigo 284. 0 do CPP)".
(. ...) não podendo o intérprete ou o julgador, improvisar com meros motivos de cariz logístico, distanciados de uma interpretação sistemática que tenha o texto da CRP à cabeça, criando a seu belo prazer novo causas de inadmissibilidade, para além daquelas que resultam directamente da lei.
26. Discorda-se em absoluto da conclusão da decisão recorrida, quando aí se diz que "a ausência, quer de fundamentação, quer de utilidade, da instrução, reconduzem-se a causas de inadmissibilidade da mesma. Um requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido não serve as finalidades da instrução" sendo ainda que não diz a decisão recorrida o que esta(ria) em falta.
27. É artificial a conclusão pela omissão do essencial no RAI que, pelo contrário, elenca de forma clara e precisa o essencial do não preenchimento do elemento subjetivo do tipo criminal em causa, possibilitando a comprovação judicial da acusação e a não pronúncia do arguido, na medida em que analisado o RAI apresentado pelo arguido nestes autos, não pode senão concluir-se pelo cumprimento dos requisitos legais e pela consequente incorreção da decisão recorrida.
28. Não se pode ser muito formalista a ponto de rejeitar liminarmente uma peça processual e ser, simultaneamente, muito pouco formalista ao não indicar, por referência aos elementos do tipo criminal em causa, que informação estaria eventualmente em falta no RAI rejeitado, sendo que tal arbitrariedade é manifestamente violadora do princípio da legalidade e ademais viola a decisão recorrida o disposto no n.º 5 do art. 97.º do CPP, que determina que: "Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
29. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade da norma constante no art. 97.º n.º 5 do CPP. Na dimensão interpretativa que permita ao juiz de instrução criminal recusar a comprovação judicial da acusação com base em apreciação meramente genérica do requerimento de abertura de instrução, sem fundamentar a decisão com base em apreciação, formal e material deste requerimento de abertura de instrução, por violação da exigência de fundamentação das decisões dos tribunais e das garantias constitucionais de defesa estabelecidos nos artigos 205.º, n.º 1 e 32.º 1 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
30. No limite, a decisão recorrida tem por consequência o prosseguimento dos autos para julgamento sem que se tenha cumprido a lei, sob qualquer perspetiva, formal ou material.
Isto porque não se concedeu ao arguido o exercício do contraditório que apenas a (devidamente aberta conduzida e concluída) fase de instrução poderia permitir violando-se também o princípio penal de igualdade de armas ou isonomia processual.
31. Tendo sido vedada ao arguido a realização de uma instrução, foi-lhe vedada uma decisão material da causa, ficando uma decisão de acusar por escrutinar de forma imparcial.
32. Resulta evidente do art. 286.º, n.º 1 do CPP que "a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" são finalidades e âmbitos da instrução e, a contrario, não do inquérito. Resulta, portanto, claro que a decisão recorrida violou este preceito legal.
33. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade da norma constante no art. 286.º, n.º 1 do CPP, na dimensão interpretativa que permita ao Juiz de Instrução recusar a comprovação judicial da acusação com base em apreciação meramente genérica do requerimento de abertura de instrução, sem apreciar, formal, material e fundadamente este requerimento de abertura de instrução, por violação dos princípios do acesso à justiça, ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva estabelecidos nos artigos 20.º 32.º da Constituição da República Portuguesa.
34. A abertura da instrução foi legalmente requerida pelo recorrente, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 287.º do CPP, o que equivale a dizer que a decisão recorrida operou uma rejeição liminar e ilegal do RAI legalmente apresentado, sem estarem preenchidos os pressupostos para essa decisão, tal como dispõem os n.ºs 2 e 3 do art. 287.ºdo CPP, que se encontram também violados.
35. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade das normas constantes no art. 287.º n.ºs 2 e 3 do CPP na dimensão interpretativa que permita ao Juiz de Instrução recusar a comprovação judicial da acusação sem apreciar material, formal e fundadamente o requerimento de abertura de instrução, por violação dos princípios do acesso à justiça, ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, estabelecidos nos artigos 20.º , 32.º da Constituição da República Portuguesa.
36. A decisão recorrida nada refere quanto às eventuais lacunas específicas do RAI apresentado pelo arguido, apenas se referindo a uma alegada inadmissibilidade genérica e tal é inaceitável, porquanto: “a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Assim, não configura a previsão de inadmissibilidade legal da instrução o requerimento de abertura desta fase processual apresentado pelo arguido que não contenha a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, prevista no art.º 287. º, n. º 2, do CPP. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2023, Proc. N.º 6/22.9GDCTXC.L 1-9, sublinhados nossos
37. Não estando verificados os casos previstos na lei para rejeição do RAI, quando muito, deveria o JIC, detetando alguma irregularidade específica, ter convidado o arguido a corrigir o seu RAI, ou, no limite, apresentar novo RAI, nos termos do art. 123.º, n.º 2 do CPP.
38. O que a decisão recorrida fez foi defender que o RAI do arguido é um RAI "sem factos" e "sem direito" que não permite realizar a "comprovação judicial de acusar", o que é errado e desconsidera olimpicamente o RAI apresentado, em manifesta violação dos arts. 286.º, n.º 1 e 287.º, n.ºs 2 e 3 do CPP.
39. E não é apenas a base da decisão que está em causa, são os próprios poderes do Juiz de Instrução Criminal, como resulta da seguinte jurisprudência:
"II. Na perspetiva da jurisdição, a estrutura acusatória do processo penal é sobretudo assumida na sua dimensão orgânica, pelo que a diferenciação e a autonomia de papéis entre a entidade investigadora e acusadora, por um lado, e a entidade que julga; por outro, impõem o carater absolutamente imparcial do julgador.
40. O inquérito é uma fase processual, cujo domínio pertence ao MP e que visa, essencialmente, a recolha de provas de ter o arguido cometido ou não cometido o(s) crime(s) e, neste último caso, terminando esta fase processual com despacho de acusação (cfr. arts. 53.º, n.º 2 ai. b), 283.º do CPP). Nesta fase processual o Juiz de instrução tem as competências definidas nos arts. 268.º e 269.º do CPP, não se encontrando entre as mesmas qualquer competência para, sem fundamento atendível, deixar de admitir a sindicância judicial da decisão do titular da fase de inquérito.
41. Já a instrução, é uma fase facultativa, cujo domínio pertence ao Juiz de Instrução Criminal, que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (Cfr. arts. 286.º 1 n.ºs 1 e 2, 288.º e 290.º do CPP). Ora, o que o Tribunal a quo levou a cabo através da decisão ora sindicadas foi também uma violação destes preceitos, uma vez que não cumpriu e observou as normas obrigatórias para a fase de instrução, em consequência de, ao contrário do que devia ter feito (ou, pelo menos, fundamentar especificamente porque o não fez), não declarar formalmente aberta esta fase processual.
42. Apenas uma fase de instrução devidamente conduzida e realizada teria possibilitado a garantia do exercício dos direitos do arguido, sendo que o que ocorreu foi uma negação do contraditório e uma infundada preterição do debate instrutório legalmente obrigatório.
43. A posição e as garantias processuais do arguido encontram-se definidas nos arts. 57.º e seguintes do CPC. Interessam. em particular in casu. uma vez que os julgamos violados, os arts. 60.º, 61.º, n.º 1 ais. b), g) e i) e 289.º, n.º2, onde se dispõe que o arguido pode ser ouvido pelo tribunal ou pelo JIC, intervir no processo, designadamente intervindo no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias.
44. No caso presente, o arguido, ora recorrente, viu serem-lhe negadas as suas garantias processuais, uma vez que não lhe foi permitido discutir os indícios, oferecer e analisar provas e. concretamente, ver realizada, de forma legal e processualmente regular, a fase instrutória que legalmente requereu com a realização de uma diligência obrigatória: o debate instrutório.
*
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
1- O Ministério Público deduziu acusação em virtude de ter conseguido recolhidos indícios suficientes em como existiu crime e foi o arguido AA o seu autor.
2- Por discordar desta decisão, o arguido requereu a abertura de instrução, no qual cingiu-se a requerer a sua não pronúncia pela prática dos 3 crimes de coação sexual, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 163º, nº. 1 e 2 do Código Penal e um crime de violação, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, nº. 1 e 2, alínea c) e 164º, nº. 2, alínea a) e b) todos do Código Penal.
3 - Para tal, cingiu-se a evidenciar sua discordância dos indícios recolhidos e afirmar que a prática dos factos foi realizada sob efeito de um fármaco que toma que o impossibilita de resistir ao impulso agindo em virtude de anomalia psíquica e com falta de consciência da ilicitude.
4- Todavia, em momento algum, frisou factos que infirmem os narrados do libelo acusatório.
5- Face a isto, a Mmª Juiz de Instrução rejeitou tal requerimento por entender que o mesmo manifesta apenas uma discordância do despacho de acusação.
6- O requerimento de abertura de instrução, apresentado pelo ora arguido apenas contém conclusões e conceitos de direito.
7- Pese embora, tal requerimento de abertura de instrução não se encontre adstrito a formalidades essenciais, o certo é que carece da narração dos factos que infirmem a factualidade vertida no libelo acusatório, tendo o arguido cingindo-se, apenas, a discordar da acusação proferida e a pugnar pela sua inimputabilidade, nos termos do artigo 20º do Código Penal.
8 - Aliás, quanto à questão da inimputabilidade a Digna magistrada do Ministério Público signatária da acusação ordenou a realização de perícia médico-legal que concluiu pela imputabilidade do arguido, pelo que não vislumbramos a utilidade no caso, em concreto, de realizar debate instrutório.
9- Pelo exposto, o Despacho recorrido deverá ser mantido e o recurso interposto julgado totalmente improcedente.
*
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, sustentando:
«A instrução tem natureza facultativa e a sua finalidade é a de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286.º do Código de Processo penal (CPP)).
Em qualquer dos casos essa verificação da suficiência de indícios não implica a apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, mas apenas se julga da verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento, evitando os efeitos da submissão do arguido a julgamento ante uma acusação cuja verosimilhança e sustento não permite perspetivar o seu sucesso.
No caso concreto a instrução foi requerida pelo arguido que está acusado da prática dos crimes de coação sexual e de violação na forma tentada, invoca a sua inimputabilidade por anomalia psíquica e pede a não pronúncia, pese embora não impugne a factualidade enunciada no libelo acusatório.
Juntou documentos e indicou testemunhas pugnando também pela audição das vítimas, mesmo de quem prestou declarações para memória futura.
Assim sendo, não está em causa a consistência indiciária da acusação deduzida, ou a qualificação jurídica a dispensar a tais factos, mas, tão só, a questão da imputabilidade do arguido.
Nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal, «é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
A inimputabilidade traduz, assim, uma incapacidade de culpa, dependente de dois elementos fundamentais e cumulativos, um biológico e outro psicológico: quanto ao elemento biológico, exige-se a verificação de uma anomalia psíquica por parte do agente, o que, além do mais, implica o recurso à qualificação médica das doenças do foro psiquiátrico que integram aquele conceito; quanto ao elemento psicológico, exige-se a comprovação de que a anomalia psíquica provocou no agente a incapacidade para compreender a ilicitude do seu ato ou para atuar conforme essa mesma compreensão.
Dispõe o artigo 1.º, n.º 2, do Código Penal, que a medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior ao do seu preenchimento, sendo certo que, nos termos do artigo 40.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, a aplicação de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, apenas podendo ser aplicadas se forem proporcionais à gravidade do facto e à perigosidade do agente.
Por sua vez, dispõe o artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal, que «quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável...é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.».
A aplicação da medida de segurança de internamento de inimputáveis exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a prática de um facto ilícito típico e a perigosidade do agente, no sentido em que a sua anomalia psíquica e a gravidade do facto praticado indiciem a probabilidade de que o agente venha a cometer factos idênticos.
Descendo ao caso dos autos, na eventualidade do RAI ser admitido e, finda a instrução, se concluísse pela inimputabilidade e pela perigosidade do arguido (conclusão a que eventualmente se chegaria após o exercício do contraditório), o arguido teria de ser pronunciado, com o acrescento dos necessários factos pela Mmª. JIC. Ou seja, o Despacho não seria de não pronúncia como almeja o Recorrente.
Acontece que, no caso concreto*, é referido que a Digna Magistrada do MP signatária da acusação, ordenou, a realização de perícia médico-legal que concluiu pela imputabilidade do arguido.
A ser assim, não se vislumbra utilidade na abertura da instrução devendo improceder o recurso e manter-se o douto Despacho recorrido.»
*
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer no sentido de manter no essencial as motivações de recurso.
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se devia ou não ter sido aceite o requerimento da abertura de instrução ou se foi legalmente rejeitado.
*
Da decisão recorrida consta a seguinte fundamentação:
« Regularmente notificado do despacho de acusação do Ministério Público veio o arguido requerer a abertura de instrução, com os fundamentos constantes de fls. 465 a 470 dos autos, que aqui se dão por reproduzidos e, em síntese, que acusação ignorou os elementos médicos juntos aos autos e que actuou influenciado pelo fármaco foi-lhe impossível resistir ao impulso de praticar, tal como indicado na bula do fármaco, condutas que o poderiam prejudicar a si ou a outros, não lhe foi possível vencer o obstáculo do impulso e em virtude da anomalia psíquica que o afecta não agiu com culpa e muito menos com dolo.
O Tribunal é competente e o arguido têm legitimidade processual para requerer a abertura de instrução sendo o seu requerimento tempestivo e estando o mesmo dispensado do pagamento prévio de taxa de justiça.
Estabelece o artigo 287º, nº1, al. a) do Código de Processo Penal que “a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação.”.
Refere o nº 2 do citado preceito que o “requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º.”.
A instrução é uma fase facultativa de algumas formas de processo criminal, cuja abertura depende de requerimento que pode ser formulado apenas por determinados sujeitos processuais e nas circunstâncias legalmente previstas.
Conforme refere o artigo 286º do Código de Processo Penal a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito.
O âmbito desta discussão é, assim, limitado pelo objectivo que a lei estabelece para esta discussão.
Na fase de instrução está em causa, a comprovação da objectiva legalidade da decisão do M.P., pela verificação da reunião de material probatório demonstrativo da existência de crime e do seu autor e pela formulação do juízo de prognose de forte probabilidade de condenação do arguido suspeito.
Trata-se, assim, de verificar se se confirma o acerto da decisão se a acusação é a decorrência lógica dos elementos recolhidos no inquérito e aí analisados pelo Ministério Público.
Tal comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão, ou não, da causa, ou uma sua parte a julgamento – neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Janeiro de 2014, Juíza Desembargadora Relatora, Maria do Carmo Silva Dias, processo nº 1878/11.8TAMAI.P1, espelhando o entendimento de Pedro Anjos Frias, na Revista Julgar n.º 19 (Janeiro – Abril de 2013) no artigo intitulado “Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução”.
Assim, no requerimento de abertura de instrução, terá de ser exposto um conjunto de razões que espelhe o desacerto do juízo indiciário que foi consequente na decisão de deduzir acusação, isto é, “as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (…), bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (…)”, de harmonia com o disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Conforme referido no supra citado Acórdão a apresentar, v.g., uma mera versão ou contraversão factual – ainda que espelho de uma intenção verosímil alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar cuja materialidade é conformada pelo disposto no artigo 288º, n.º4 do Código de Processo Penal que, justamente, remete para o supra citado n.º 2 do artigo 287º do mesmo diploma legal.
Assim, em resumo, terá que, para provar que a decisão de acusar/arquivar foi errada, pôr em causa o juízo indiciário. Não basta, nesta fase, contestar a acusação, como fez o arguido avançando que agiu influenciado por fármaco que lhe impediu resistir ao impulso de praticar as condutas em causa e que em virtude de anomalia psíquica que o afectava não tinha capacidade para avaliar a ilicitude dos factos, sendo necessário atacar os elementos factuais recolhidos no inquérito que fundaram a acusação/arquivamento, ou atacar a validade de tais meios de prova ou a análise que o Ministério Público fez de tais meios de prova.
O requerimento, como já referido, não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento o disposto no artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/01/2014, relatora Maria do Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt., (embora em transcrição da decisão recorrida): “não valem como repositórios de razões de discordância aqueles requerimentos oferecidos pelo arguido cujo conteúdo consista ou se limite:
— A apresentar uma mera versão ou contraversão factual — ainda que espelho de uma intenção verosímil — totalmente alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou (contestação motivada);
— A repetir ou a completar o inquérito;
— A negar os factos vertidos na acusação pública, como a sua autoria, participação,
etc. (simples contestação);
— A invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do
requerimento para a instrução (aliás, em flagrante violação do principio da lealdade sempre e quando: se garantiu ao arguido a sua audição e este nada disse nesse momento ou posteriormente (i); ou sempre que a existência ou possibilidade de constatação de tal factualidade ”‘nova” fosse notória a todas as luzes para qualquer decisor no momento do encerramento do inquérito, ou seja, que com ela pudesse e devesse contar (ii);
— A pretender antecipar a fase do julgamento, isto é, a pretender realizar na instrução tudo o que é típico (próprio) do julgamento, transformando-a num simulacro de julgamento;
— A pretender substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento do arguido por toda uma outra ideia que se concretize em apreciar se o arguido deve ou não ser condenado pelo crime que lhe é imputado.
O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do nº2 do artigo 287° com o nº 4 do artigo 288º ambos do Código de Processo Penal.
Assim, (…) sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar.”
No caso vertente, e após análise do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido requerente de instrução e constante de fls. 465 a 470 dos autos considera-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto o que o referido requerimento evidencia é a discordância do despacho do Ministério Público por entender que o arguido praticou os crimes influenciado por fármaco que toma que o impossibilita de resistir ao impulso agindo em virtude de anomalia psíquica e com falta de consciência da ilicitude.
Ora, a instrução visa a comprovação da decisão de acusar em ordem a submeter ou não
a causa a julgamento e não se confunde, por isso, mesmo com a fase de julgamento nem com a contestação a deduzir em tal fase.
Ademais a fase de instrução tem de proporcionar de acordo com o artigo 286º do Código de Processo Penal uma verdadeira alternativa ao Juiz de instrução, ou seja, a alternativa de acordo com as regras legais de submeter ou não a causa a julgamento sendo essa a consequência da comprovação judicial a efectuar.
Não sendo esta fase uma antecipação de julgamento, impugnar/contestar a acusação não é uma discordância crítica que se subsuma ao disposto no nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal, não reclamando, por isso, a prossecução da actividade judicial de comprovação da decisão.
“A instrução não é um julgamento ´antecipado`, com o mesmo nível de garantias e direitos de defesa, com a mesma intensidade de produção e apreciação da prova. A instrução visa apenas a comprovação da acusação, isto é, saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento, que é a fase central e paradigmática do processo penal, segundo o modelo garantista herdado do iluminismo.” – Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1000.
Tal como se refere no Ac. da Relação de Évora de 08/10/2019 proferido nos autos de processo 1003/17.1GBABF-A.E1: “A instrução tem de se pautar pela finalidade de culminar, alternativamente, em que o processo siga, ou não, para julgamento, sob pena de redundar em fase sem virtualidade para atingir o desiderato que lhe está subjacente.
A ausência, quer de fundamentação, quer de utilidade, da instrução, reconduzem-se a causas de inadmissibilidade da mesma.
Um requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido não serve as finalidades da instrução.
O requerimento de abertura de instrução deve ser mais que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento do Ministério Público (para o qual existe a reclamação hierárquica) consubstanciando uma verdadeira acusação em sentido material, que é dada a conhecer ao arguido, delimitando, por isso, o objeto do processo.
Mais se diga que tal requerimento, conforme apresentado, nunca podia servir de base um despacho de pronúncia, pois não se projeta como uma acusação alternativa.
Recorre-se mais uma vez à decisão recorrida e objecto do referido Acórdão da Relação do Porto de 29/01/2014, e com a qual se concorda: “Assim, se o RAI apresentado (…) não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar à instrução e esta é legalmente inadmissível (…) Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase de instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto responsabilização do sujeito processual. »
2. Fundamentação:
1. Do processado:
a. No decurso do inquérito, foi elaborado relatório pericial pelo IML- perícia psiquiátrica forense - do qual consta:
O arguido é portador de uma perturbação do neuro desenvolvimento, mais concretamente Perturbação do Espetro do Autismo (PEA), comórbida com Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA).
2) Em caso afirmativo, de que tipo e desde quando?
Perturbação do Espetro do Autismo, de grau ligeiro, com manifestações de défice na reciprocidade social, dificuldades na comunicação e padrões restritos e repetitivos de comportamento; comóbida com Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção, com sintomas de impulsividade, desatenção e hiperatividade.
Segundo a informação recolhida, estes sintomas estavam presentes desde a infância precoce, tendo-se tornado mais evidentes aquando da entrada na escola primária (cerca dos 6–7 anos de idade) 3) Tal anomalia psíquica, a existir, produzia o efeito psicológico, à data da
prática dos factos destes autos entre os dias ... e ... de ... de 2024 , de tornar o arguido incapaz de avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação?
À data da prática dos factos, não se verificam indícios de que o jovem estivesse incapaz de avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação (não se apuraram sintomas maníacos ou psicóticos, descreveu os factos de forma organizada e coerente, com capacidade para antecipar os seus atos, antecipar o risco de ser apanhado e evitar ser descoberto; demonstrou também consciência de tais factos serem reprováveis, ao não contar a ninguém por receio do julgamento e rejeição).
4) Ou, pelo menos, diminuía-lhe fortemente tal capacidade de avaliação ou determinação?
Admite-se que a PEA possa ter diminuído, parcialmente e de forma ligeira, a capacidade de avaliação e de autodeterminação, tendo em conta os traços associados de rigidez cognitiva, défices de empatia/socialização, impulsividade e desinibição comportamental (potencialmente exacerbadas por ajustamentos farmacológicos) e interesses restritos ou enviesados em torno da temática relacional ou sexual, associados a imaturidade social e relacional/amorosa.
5) Tal anomalia, a existir e a produzir tais efeitos, faz crer que existe forte probabilidade de o arguido voltar a praticar outros factos da mesma espécie dos destes autos suscetíveis de configurar a prática de crimes de coação sexual e violação, na forma tentada?
Prejudicado.
Caso se pretenda uma avaliação dos traços de personalidade e aspetos relacionados com a sua sexualidade, deverá ser solicitada avaliação pericial de psicologia a incidir nesses aspetos.
6) A toma pelo arguido, adolescente de 16 anos, de aripiprazol que lhe foi medicamente prescrito (...) pode gerar (a) incapacidade de resistir ao impulso, apelo ou tentação de realizar certas atividades que o poderiam prejudicar a si e aos outros, concretamente (b) uma tendência para deambular, ou seja, para andar sem destino certo e (c) interesse sexual alterado ou aumentado e comportamentos de preocupação significativa para si ou para os outros?
a) Não. O aripiprazol (nome comercial Apixor) é um antipsicótico atípico, utilizado precisamente para ajudar no controlo dos impulsos, na regulação do comportamento e estabilização do humor, particularmente em quadros de autismo com irritabilidade e/ou alterações do comportamento.
b) Não. Não é conhecido que o aripiprazol induza deambulação/andar sem destino certo como efeito secundário.
c) Não. O aripiprazol não está associado ao aumento do interesse sexual — antes pelo contrário, pode, nalguns casos, reduzir a libido. Não há evidência de que este fármaco provoque comportamentos de risco nessa área.
7) a toma pelo arguido, adolescente de 16 anos, de apixor pode tornar o arguido incapaz de avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação Não. O aripiprazol não tem efeitos de desorganização mental nem de abolição do juízo crítico, que acarreta perda da capacidade de avaliação da ilicitude ou da autodeterminação.
8) ou, pelo menos, diminui-lhe fortemente tal capacidade de avaliação ou determinação?
Não.
9) a toma de (…) apixor (...) é adequada à sua idade, personalidade e estado de desenvolvimento?
Sim. O uso de aripiprazol é adequado para adolescentes com Perturbação do Espetro do Autismo com sintomas de irritabilidade ou comportamentos problemáticos. A dose prescrita está dentro dos parâmetros recomendados e é compatível com o diagnóstico, idade e perfil clínico do jovem.
10) retirado da medicação o fármaco apixor que foi dado ao arguido, adolescente de 16 anos, e que produziu efeitos, há risco de o arguido voltar a praticar outros factos da mesma espécie dos que estão a ser investigados nestes autos, designadamente, crimes de coação sexual e violação na forma tentada?
Sim, pode haver um risco acrescido. O aripiprazol desempenha um papel estabilizador importante no controlo da impulsividade e da irritabilidade. A retirada abrupta da medicação pode levar a descompensação, com maior desorganização, impulsividade e risco de reincidência de comportamentos desajustados. Tal risco pode ser maior na ausência de acompanhamento clínico adequado.»
b. O arguido AA foi acusado, em autoria material, nos termos do disposto no artigo 26.º do Código Penal, pela prática de:
- 3 (três) crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163º, nº. 1 e 2 do Código Penal, e sob a forma consumada na pessoa de BB, de CC e de DD, e - 1 (um) crime de violação, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, nº. 1 e 2, alínea c) e 164º, nº. 2, alínea a) e b) todos do Código Penal, na pessoa de EE.
c. O arguido apresentou o seguinte requerimento de abertura de instrução:
«AA, arguido nos autos supra referenciados, nos quais foi deduzida acusação com a qual se não conforma, não obstante não ter sido pessoalmente notificado da acusação, vem, muito respeitosamente, à cautela, e sem prescindir do prazo que ainda se não iniciou, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.o 1, al. a), e n.o 2 do CPP, requerer a abertura da fase de INSTRUÇÃO o que faz, dando como integralmente reproduzidos os factos constantes de fls. 204 a207 do presente processo e de acordo com os fundamentos seguintes:
I. DAS RAZÕES DA DTSCORDÂNCIA COM A ACUSAÇÃO:
1) Foi o jovem Arguido acusado da prática de 3 (três) crimes de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º do Código Penal, sob a forma consumada e de 1 (um) crime de violação, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º n.º 1 e 2 alínea c) e 164.º n.º 2, alínea a) e b) todos do Código Penal.
2) Ora, não pode concordar-se com tal libelo acusatório que ignora flagrantemente os elementos médicos juntos aos autos que tornam manifesto que o jovem Arguido agiu porque agiu não porque tenha uma personalidade malformada ou porque seja vicioso, desrespeitador ou violenta, ou sequer porque tenha realmente querido e pretendido as condutas que praticou.
A. Da ausência de dolo ou de mera culpa por incapacidade de discernimento e de conformação da sua vontade
3) É notório, face à prova pessoal, documental e pericial, junta aos autos, que o Arguido NÃO AGIU "de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei penal", contrariamente ao que considera indiciado o Ministério Público (ponto 62).
4) O jovem arguido é ainda uma criança, tendo apenas 16 anos de idade e vem a receber acompanhamento psicológico desde ... de 2021, com evolução do seu quadro clínico em 2022 - cfr. Informação Pedopsiquiátrica, fls. 209.
5) Variados exames realizados ao longo dos anos permitiram identificar no jovem arguido distúrbio de Défice de Atenção e Hiperactividade, bem como um "quadro clínico de perturbação do espetro do Autismo" (fls. 209).
6) Neste conspecto, o Resumo do internamento no ... é perentório: *Diagnóstico:
Perturbação do Neuro desenvolvimento, Perturbação do Espetro do Autismo" (fls. 324).
7) O diagnóstico do jovem revela ainda outros variados sintomas como "dificuldade em manter a atenção, dificuldade e alterações das funções executivas de organização e planeamento e impulsividade, nomeadamente reatividade emocional e irritabilidade perante frustração" com uma avaliação de "Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (DSM-S)" (cfr. Declaração Médica, fls.208).
8) Durante todo o ano de 2024 foi receitada ao jovem arguido a seguinte medicação (cfr. Guias de Tratamento para o Utente e manuscritos da médica psiquiátrica fls. 215 2221.)
- Aripriprazol, um antipsicótico para tratamento de doença caracterizada por diversos sintomas como apatia emocional e irritabilidade grave;
- Metilfedinato para tratamento do distúrbio de Défice de Atenção e Hiperatividade.
9) Ora, conforma consta expressamente na bula do fármaco Arpixor, ou aripriprazol, no caso concreto com posologia de toma diária, este não deve ser utilizado no tratamento de crianças e adolescentes, apontando desta forma para a sua forte dosagem (cfr. Folheto informativo Arpixor, fls. 222 a225.).
10) Esta informação torna patente que o jovem arguido, um adolescente de apenas l6 anos, estava - e não devia estar - sobre o efeito de forte medicação que, repete-se não lhe deveria ter sido administrada, isto durante todo o ano de 2024, ficando e estando assim sujeito aos seus expectáveis efeitos cumulativos e secundários, tão expectáveis e normais que são referidos na própria bula do medicamento.
1l) Consta ainda de expresso na mesma bula uma lista de efeitos secundários indesejáveis que foram aparentemente ignorados pela perícia, nomeadamente:
- "Interesse sexual alterado ou aumentado" (e não diminuído]
- "Sensação de agressividade"
- "Incapacidade para resistir ao impulso, apelo ou tentação de realizar certas atividades que o poderiam prejudicar a si ou a outros que podem incluir: interesse sexual alterado ou aumentado e comportamentos de preocupação significativa para si ou para outros, por exemplo, um aumento do impulso sexual; Tendência para deambular." (o que parece ignorar-se na perícia).
12) Tendo o jovem arguido actuado influenciado pelo fármaco foi-lhe impossível resistir ao de praticar- tal como indicado na bula do fármaco acima identificado, condutas que o poderiam prejudicar a si ou a outros.
13)Tal impossibilidade de resistir aos impulsos está hem demonstrada- nos pedidos de desculpa que ia dando às vítimas -"Desculpa! Desculpa" (ver fls. 13) 13 dos autos, bem como os pontos 10, l8 e 4L da acusação) e até nas expressões impactantes usadas por uma delas 'parecia tipo lunático" e "parecia completamente descontrolado" (ver fls. 260 dos autos).
14)Apesar destes pedidos de desculpa proferidos em síbilos momentos de alguma lucidez, mas de completa incapacidade para se conformar de acordo com os seus princípios morais. a verdade é que o jovem arguido não conseguiu mesmo nortear-se por esse seu sentimento de culpa e de que estava a fazer algo de errado. não do mesmo nârar e resistir a estes impulsos por forca da medicamentação que não lhe devia ter sido ministrada.
15) Mesmo sendo inerente ao ser humano a capacidade de desenvolver um comportamento livre, tal não significa que? em concreto, não haja, como houve in casu, variáveis ou obstáculos inultrapassáveis a que essa capacidade de querer e de entender e sobretudo de se conformar se tenha concretizado, havendo mesmo factos incontornáveis e provas concretas da incapacidade do agente se conformar de acordo com a Lei.
16) No nosso caso, o jovem arguido, primário (fls. 128 dos autos), que já tem "traços de elevada infantilidade" e uma "problemática de saúde mental" (fls. 2765 dos autos), estando sob o efeito de tal medicamento, é evidente que não lhe foi possível vencer o obstáculo do impulso, aumentado por medicação que não lhe devia ter sido receitada e ministrada, não lhe sendo possível compreender e sobretudo agir livremente mesmo perante o significado ilícito do seu comportamento, na medida em que não conseguiu conformar a sua vontade livremente.
17) A anomalia psíquica de que o arguido padeceu, no momento da prática dos factos, que à data dos factos estava fortemente agravada pelos efeitos secundários da toma continuada da medicação que lhe havia sido prescrita e administrada, impediu o Arguido de compreender, interpretar e, sobretudo, de agir de outro modo.
18) Tal conclusão é a única possível em face da prova produzida se for devidamente apreciada.
19) Na presente data, o Arguido tem consciência de que “temos de ter o consentimento da pessoa”, “pode haver consequências com a pessoa, ela pode ficar assustada, pode não querer sair de casa por ter medo que alguém lhe volte a fazer isso", "elas vão ficar assustadas e viver com isso toda a vida delas" (v. p. l8 Relatório Pericial - fls. 328).
20) No entanto, na data dos factos, em virtude da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática dos factos, o Arguido não teve a mínima capacidade de guiar a sua conduta com base nos valores e princípios que lhe foram incutidos pela família, e que ele próprio partilha, não tendo tido a capacidade para avaliar a ilicitude do facto e de se determinar de acordo com essa mesma avaliação.
21) A data da prática dos factos, não estando o jovem Arguido empossado das suas normais faculdades de entendimento, de avaliação e de conformação de conduta por incapacidade, no contexto concreto em que não se colocou voluntariamente, de conduzir uma vontade livre e esclarecida quando da realização dos factos, é manifesto que não lhe pode ser imputado o comportamento a título de dolo, assacada a capacidade de discernir controlar e conformar de forma livre e esclarecida a sua vontade.
22)Ora, o tipo legal dos crimes de violação e de coacção sexual pressupõe sempre o dolo, ou seja, o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
23)O tipo de culpa doloso verifica-se apenas quando, perante um ilícito típico e doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima, querida, livre e voluntária do agente.
24) conforme se expôs supra, o Arguido não agiu com culpa e, muito menos, com dolo, na medida em que estava sob o efeito de vis física absoluta por efeito de medicação a que fora sujeito e por virtude da sua condição de saúde mental e de infantilidade natural.
25) Inexistem quaisquer dúvidas que o jovem Arguido é portador de uma doença do foro psiquiátrico e que, à data dos factos, se encontrava fortemente diminuído na sua capacidade de discernimento, não só por força de tal condição, mas também, e essencialmente, pelos efeitos da medicação que lhe foi erradamente prescrita e administrada de forma errada e em sobredosagem.
26)Do nº1 do artigo 20º do Código Penal resulta então que a inimputabilidade se traduz na incapacidade do agente, no momento da prática do facto ilícito, de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de harmonia com essa avaliação.
27)Ora, citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de, 22-02-2023, proc. n 444|2|.4PBCTB.Cl:"Ao juízo de inimputabilidade não basta a comprovação da anomalia psíquica, sendo necessária a aquela e o acto do agente. em termos de este o ter praticado por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando esta incapacidade da anomalia psíquica que o afectava aquando da prática do facto."
28) A relação causal não poderia ser mais evidente no caso em apreço. Como supra se evidenciou, e bem assim resulta da prova produzida nos autos, o Arguido tomou medicamentos, em sobredosagem, cujas bulas enunciavam como efeitos secundários: o interesse sexual alterado ou aumentado", "sensação de agressividade" e "incapacidade para resistir ao impulso, apelo ou tentação de realizar certas actividades que o poderiam prejudicar a si ou a outros; que podem incluir: interesse sexual alterado ou aumentado e comportamentos de preocupação significativa para si ou para outros, por exemplo, um aumento do impulso sexual; Tendência para deambular".
29) No presente caso, a conjugação dos diagnosticados Défice de Atenção e Hiperactividade, Perturbação do Neurodesenvolvimento, Perturbação do Espetro do Autismo, e dos efeitos adversos da medicação criou um estado mental que anulou totalmente a capacidade do arguido de agir e de reagir no seio da compreensão da ilicitude dos seus actos e, sobretudo, de se determinar de acordo com essa compreensão.
30) O comportamento descrito na acusação, em particular a incapacidade de cessar as condutas apesar de o próprio proferir pedidos de desculpas (pontos 1 0, 1 8 e 42 da acusação), é consistente com a impulsividade e a desinibição comportamental induzidas pela medicação, pelo apetite sexual exacerbado pela toma continuada pelo medicamento e pelas perturbações diagnosticadas, evidenciando a ausência de uma vontade livre e esclarecida e, sobretudo, de intencionalidade livremente dirigida.
31) A prova documental produzida nos autos, incluindo os relatórios médicos e psiquiátricos, bem como a bula dos medicamentos ingeridos, demonstram que o arguido não dispunha, à data dos factos, de um nível de consciência ou autocontrolo suficiente para evitar as condutas imputadas, sendo estas diretamente influenciadas pelo seu estado clínico.
32)Tal falta de consciência - não dolosa, certamente, e até não culposa pela fundamentação supra - obstou à formação e obsta à imputação de culpa ao Requerente, nos termos do artigo 20.º n.º do código Penal, e, consequentemente, exclui a possibilidade da sua responsabilidade criminal.
33) Motivo pelo qual não deve o jovem AA ser pronunciado pelos crimes pelos quais vem acusado.
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Apreciando:
Refere o recorrente que o despacho recorrido confunde conceitos, misturando-se a instrução requerida pelo arguido com a instrução requerida pelo assistente.
Contudo, analisado o despacho, verifica-se apenas no penúltimo parágrafo uma referência despropositada ("Mais se diga que tal requerimento, conforme apresentado, nunca podia servir de base um despacho de pronúncia, pois não se projeta como uma acusação alternativa")
O que certamente constituiu um lapso, na medida em que não teve influência determinante na decisão de rejeitar a pronuncia.
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Como ponto de partida, vejamos a norma inserta no artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que, sob a epígrafe «Finalidade e âmbito da instrução», refere ( no que interessa ao arguido) — «… A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.»
Conforme refere Pedro Soares de Albergaria -Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 1194 - § 2. … “com ela não se visa o escrutínio de toda a atuação do MP ao longo do inquérito, mas apenas da decisão que o magistrado respetivo (ou o assistente, no caso de acusação particular) prolatar no final dele em ordem a submeter (acusação) ou não (arquivamento) o feito a juízo. (…) Em todo o caso, a sindicância da atuação do MP só é levada a efeito de modo mediato, indireto, na medida em que se projete na decisão (de acusação – do MP ou do assistente; ou de arquivamento – do MP) que puser termo ao inquérito: esta, a decisão, é que é o objeto imediato de apreciação e só dentro destes limites se mostra legítimo o controlo respetivo, em homenagem à autonomia constitucionalmente reconhecida à magistratura do MP (art. 219.º/2 CRP) e à estrutura acusatória do processo penal pátrio (art. 32.º/5 CRP).”
Na perspetiva das garantias de defesa, a abertura da instrução corresponde, assim, ao exercício de uma faculdade, tendente a obter uma averiguação jurisdicional sobre a existência de indícios suficientes para promover o julgamento (indícios de que resulte uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada pena ou medida de segurança), que fundamentam o despacho de acusação, nos termos do artigo 283º, nos 1 e 2, do Código de Processo Penal).
A atribuição da referida faculdade processual ao arguido pressupõe, por seu turno, que se tutela um interesse em não se ser submetido a julgamento.
Ou seja, no caso de requerida pelo arguido a introdução ou não do feito em juízo.»
A estrita vinculação temática do tribunal aos factos alegados, enquanto limitação da atividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Não pode, portanto, pretender-se, através da instrução, alcançar os objetivos próprios do inquérito, sendo outros os meios processuais adequados a esse efeito (veja-se, nomeadamente, as possibilidades permitidas pelos artigos 279º e 277º, nº 2, do Código de Processo Penal).
A admitir-se entendimento diverso, estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da ação penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória - cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.09.2010, processo nº 167/08.0TAETR-C1.P1, Relator: Desembargador Vasco Freitas, disponível em www.dgsi.pt.
(…) Daí que o requerimento de abertura de instrução seja a peça processual, mediante a qual o arguido ou o assistente, expressam as suas razões de divergência com o precedente despacho do Ministério Público, de acordo com o preceituado no artigo 287.º, n.º 1 do Código de Processo Penal- processo nº 11/09.0PKLSB.L1-9, Relatora: Desembargadora Maria do Carmo Ferreira – IGFEJ- Bases Jurídico documentais
Escreve PEDRO DANIEL DOS ANJOS FRIAS – (revista JULGAR - N.º 19 – 2013, pag 100 e seguintes) «(…) Por isso duvidamos da completude da posição que reduz o âmbito do conceito da inadmissibilidade legal a patologias de ordem meramente formal e posterga aquelas que têm as suas raízes no conteúdo do requerimento. Isto tanto mais que, como veremos, tal requerimento terá que ter aptidão para constituir uma das bases de apoio onde assentará a actividade que se solicita ao Juiz: a comprovação judicial do desacerto da decisão de acusar. E, onde não exista, ab initio, tal base de apoio não poderá, sequer, iniciar-se tal actividade. Daí que, quando assim seja, fique irremediavelmente comprometida a realização da comprovação judicial que não é, sublinhe-se, uma qualquer concretização de um juízo de inspecção sobre o labor do Ministério Público (…)
Assim, a comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão, ou não, da causa, ou uma sua parte, a julgamento, vd. os artigos 286.º, n.º 1, 287.º, n.ºs 1, al. b), e 2, 288.º, n.º 4, e 308.º, n.º 1. Trata-se, portanto, de uma actividade processual de natureza materialmente jurisdicional e não materialmente policial ou de averiguações (…)
A instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento, etc. Nenhuma destas realidades respeita o valor semântico do enunciado escolhido pelo legislador e, por sobre tudo, a realidade teleológica que lhe subjaz: comprovar (em face do que já existe). Segunda: Na instrução a única actividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecto, desde logo, o inquérito lato sensu.
Terceira: A comprovação judicial carece de ser despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público esgrimidas pelo arguido). Quarta: A instrução configura unicamente um momento de “controlo” da conformidade/legalidade da actividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais.
(…) Assim, a discordância relativamente à acusação terá que passar necessariamente e a título meramente exemplificativo por tópicos como estes: — O que é que não foi feito no inquérito e por causa disso foi deduzida acusação? — O que se fez no inquérito não basta para deduzir acusação e porquê? — O que é que foi desatendido no inquérito e por assim ter sido a actividade culminou na dedução de acusação? — Que meios de prova colhidos no inquérito não foram valorados de todo, ou foram mal valorados e por assim ter ocorrido está o despacho final inquinado? — Que diligências ou provas deveriam, à evidência, ter sido realizadas ou recolhidas, e por tal não ter sucedido, não espanta que a decisão final fosse de acusar? — Qual foi o erro de subsunção jurídico-penal da factualidade imputada e quais são as consequências que desse erro se projectam sobre a finalidade intrínseca da instrução requerida pelo arguido, isto é, a sua não submissão a julgamento? — Quais foram os elementos que o Ministério Público não considerou e de onde resultaria que isto e aquilo não corresponde à verdade? — Quais foram as diligências que se realizaram e que acabaram desconsideradas, apesar da sua relevância, sem se saber porquê, com a dedução do despacho de acusação?
(…) Daí que a nota fundamental que deverá caracterizar o requerimento do arguido será a de demonstrar, em concreto, o desacerto da decisão de acusar tomada com base nos elementos que existiam no inquérito nesse momento. E é na análise que faça desses elementos, seja ao nível do facto, seja ao nível do direito, seja das respectivas consequências a retirar (sempre, porém, numa análise comprometida com a revelação da insuficiência, da ineficácia ou da inoperância desses elementos para fundar a acusação), que o arguido deve assentar o conteúdo do seu requerimento para a abertura da instrução. Só assim poderá o arguido obter um despacho de não pronúncia, isto é, um despacho que tem por pressuposto não se corroborar (confirmar) a decisão de acusar então tomada, um despacho que impedirá a sua submissão a julgamento, um despacho que concretiza o controlo jurisdicional negativo da decisão de exercer a acção penal tomada pelo Ministério Público, a acusação.
As garantias de defesa quando positivadas devem ser actuadas de acordo com o figurino legal previsto para estas. Ou seja: o legislador não facultou ao arguido, à guisa de garantia de defesa, a possibilidade ilimitada de requerer a instrução, sem mais. Antes definiu de modo preciso as condições necessárias à actuação concreta da instrução vista esta, por sua vez, como garantia prática do exercício do direito de defesa. Impôs, pois, limites ao exercício desse direito compatibilizando-o com outros direitos e interesses, igualmente fundamentais, que gravitam no seio do processo penal. Perante um requerimento que não contém os elementos legalmente exigíveis à realização das finalidades legais da instrução (tal como definidas/positivadas pelo legislador) e que assim não pode endógena e inexoravelmente concretizar a garantia de defesa que a instrução, por sua vez, consubstancia, não deve ser admitido sob pena de irremediável contradição legal.
E conclui o mesmo autor: Por tudo o exposto, entendemos que o conteúdo do conceito de inadmissibilidade legal da instrução que permite a rejeição do requerimento apresentado, vd. o n.º 3 do artigo 287.º, não se deverá reduzir a patologias de génese meramente formal. A par delas e para se respeitar o fim, o fundamento e o limite da fase da instrução criminal, tal conceito tem que ser percebido materialmente e deverá abarcar, na nossa opinião, também as patologias relativas à (des) conformidade do conteúdo do requerimento nos termos que nos propusemos ensaiar. Poderíamos, em uma síntese muito apertada de tudo o exposto, recortar em uma frase a visão material do conceito de inadmissibilidade legal: Sempre e quando o requerimento apresentado pelo arguido não contenha um conjunto de razões vinculadas de discordância de facto e de direito, com raízes no inquérito e no que aí ocorreu ou devia ter ocorrido, fica irremediavelmente impossibilitada a concretização das finalidades legais da instrução e o requerimento deve ser rejeitado. (…)
Assim a decisão de requerer a abertura da instrução, quando provenha do arguido, só pode ter este escopo: a sua não sujeição a julgamento, ou a sua não sujeição a julgamento por algum ou alguns dos crimes que lhe são imputados na acusação.
O sujeito processual arguido não tem um direito fundamental a não ser sujeito a julgamento. Neste sentido vem a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, vd. entre muitos outros, o Ac. n.º 101/01, Proc. 402/00, Relator: Conselheiro Artur Maurício, acessível in
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010101.html
No mesmo sentido, Acórdão desta Relação de Lisboa, proferido no processo 503/18.0JAFUN-E.L1-5 de 19/09/2025 relatado por Sandra Oliveira Pinto- IGFEJ- Bases Jurídico documentais.
«(…) O Tribunal Constitucional tem repetidamente sustentado que “a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação. O que a Constituição determina no nº 2 do artigo 32º é que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação» NOTA 5: - Pela primeira vez no Acórdão nº 31/87, e reiterado, entre outros, nos Acórdãos nos 474/94, 551/98, 459/00, 79/05 e 242/05...»
Convém ainda esclarecer que vindo a inimputabilidade do arguido a ser reconhecida em julgamento «Dúvidas não há de que aos factos constantes da acusação serão aditados esses factos novos que, não deixando de serem relevantes em termos de diferente orientação quanto às opções punitivas dada a irresponsabilidade penal já atingida pela declaração de inimputabilidade, tal aditamento/alteração, porque não enquadrável na alínea f) do n.º 1 do art.º 1º do CPP, só pode consubstanciar, reafirmamos, alteração não substancial dos factos.
Se retirado da sentença, a definição do quadro de imputação jurídico criminal não se mostra alterado, apenas se modifica, como dissemos, a opção da sanção aplicável (entre pena privativa ou medida de segurança) e é precisamente por isso (porque do facto aditado não resulta nem crime diverso e nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis) que se considera que estamos face a alteração não substancial dos factos constantes da acusação – Relação de Lisboa processo 1383/16.6 PFAMD.L1-5. – IGFEJ- bases jurídicas- documentais.
E se a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa, a questão nem se levanta – artº 358, nº2 do C.P.P.
Vertendo ao caso concreto e sintetizando o requerimento da abertura de instrução este tem como fim declarado a não sujeição do arguido a julgamento por inimputabilidade ou imputabilidade diminuída.
O arguido não afasta em concreto, o desacerto da decisão de acusar tomada com base nos elementos que existiam no inquérito nesse momento, ou seja, aceita os factos, mas pretende demonstrar que a sua atuação está a coberto de uma inimputabilidade ou imputabilidade diminuída causada pela doença e pela medicação.
Sucede, porém, que na fase de inquérito foi realizada perícia médico legal com as conclusões nesta vertidas que não apontam para a inimputabilidade, não obstante reconhecerem a patologia de que o arguido padece, bem como, a medicação a que está sujeito e os efeitos destes fármacos.
Nestes termos o fim pretendido pelo arguido só poderia ser alcançado com pedido de esclarecimento da perícia, invocando razões não suficientemente dilucidadas, ou com o pedido de nova perícia, o que deveria ter sido feito logo que foi notificado da perícia. E não o tendo feito atempadamente, como devia, pode ainda solicitá-lo em audiência de julgamento.
As provas indicadas pelo arguido visam a apreciação da culpa, em sentido jurídico- penal, designadamente, a influência dos fármacos e da patologia de que padece -reconhecida na perícia - no comportamento, com relevância jurídico-penal, que indiciariamente adotou para lhe retirar ou diminuir a culpa na prática dos factos (diminuição já reconhecida na perícia).
Tendo sido sujeito a perícia médico legal, com as conclusões apontadas, não poderia o juiz de instrução criminal contrariar a perícia com base nos elementos de prova sugeridos pelo arguido - testemunhas e restantes meios de prova oferecidos, porquanto O juízo científico inerente a prova pericial presume-se subtraído a livre apreciação do Tribunal – artº 163º do CP.P.

- A perícia concluiu pela perigosidade do arguido apenas se não tomasse a medicação, o que não está em causa no requerimento de abertura de instrução, mas antes os efeitos desta mesma medicação.
O requerimento de abertura de instrução não refere que se o arguido fosse considerado inimputável não perigoso o processo seria arquivado.
Nesta conformidade, a argumentação do requerimento de abertura de instrução interpretado substancialmente e com os meios probatórios aí referidos não levaria à não introdução do feito em juízo, com as considerações referidas e a prova oferecida, pretendendo antes que o juiz de instrução conhecesse da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída com aquela prova.
Tudo isto para referir que a instrução, nos moldes requeridos, com os factos indiciários não impugnados e sem nova prova pericial requerida não evitaria a introdução do feito em juízo e como tal seria inútil para defesa do arguido.
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3. Decisão:
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso interposto por AA e consequentemente, manter a decisão recorrida
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Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respetiva taxa de justiça.

Lisboa, 21 de outubro de 2025.
Alexandra Veiga
Alda Tomé Casimiro
Rui Coelho