Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7642/24.7T8LSB.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
AUDIÇÃO DO MENOR
DISPENSA
NULIDADE
DETERMINAÇÃO DA IDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Conforme prevê o artº. 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aplicável ao processo de promoção e protecção por força do prescrito no artº. 84º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, a audição da criança ou jovem pode ocorrer em duas diferenciadas situações ;
II - numa primeira, para que a criança ou jovem possam expressar a sua opinião e vontade relativamente à decisão proferenda – cf., os nºs. 1 e 4, do artº. 5º ; numa segunda, para que as declarações a tomar à criança ou jovem possam ser consideradas como meio probatório - cf., os nºs. 6 e 7, do mesmo normativo ;
III - no âmbito do processo de promoção e protecção, a criança ou jovem possuem o inalienável direito, na defesa do seu superior interesse, de ser ouvidos e participar nos actos e definição da medida de promoção e protecção aplicanda, ou seja, têm o direito que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão de que são destinatários ;
IV - tal audição deve ter em consideração a capacidade da criança ou jovem para a compreensão dos assuntos e matérias em discussão, na ponderação da sua idade e (i)maturidade ;
V - o que implica uma análise casuística dos critérios subjectivos de aferição, tais como a (i)maturidade, discernimento e capacidade de compreensão ou entendimento suficientes, tendo em atenção o assunto objecto das declarações a prestar ;
VI - caso o tribunal decida pela dispensa da audição, deve justificá-la, fundamentando e indicando as razões que a não permitem ou aconselham, nomeadamente as resultantes da baixa idade ou notória imaturidade revelada ;
VII - apenas sendo de dispensar tal justificação para a não audição nas situações em que é notório que a baixa idade da criança não o permite ou aconselha, o que vem sendo considerado nas situações em que a mesma tem idade inferior a três anos ;
VIII - as consequências processuais de tal falta de audição não se reconduzem à aplicação do regime das nulidades processuais civis secundárias, pois, correspondendo a um princípio geral com relevância substantiva, afecta a validade das decisões proferidas no processo ; 
IX - ou seja, tal não audição configura, para além de uma falta processual, uma clara violação das regras de direito material, que se traduz em inegável violação da intrínseca validade substancial da decisão, isto é, faz-se repercutir o vício directamente na decisão enquanto causa da invalidade desta ;
X - assim, ocorrendo omissão de audição, sem que exista despacho que a justifique, tal tem efectiva repercussão na decisão proferida, maculando-a de nulidade em virtude de ter decidido sobre matéria a que lhe estava vedada pronúncia, sem aquela audição, assim traduzindo a prática do vício de excesso de pronúncia inscrito na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil ;
XI – o que determina a anulação da decisão proferida, de forma a proceder-se à omitida audição da criança ou jovem ou, em alternativa, ser prolatado despacho que fundamente e justifique tal dispensa de audição, com consequente prolação de nova decisão ;
XII – In casu, atendendo ao assunto primordial em equação – a putativa idade do jovem não correspondente à que figura do seu documento de identificação pessoal (passaporte), implicando que, á data da instauração do processo de promoção e protecção já fosse maior, o que determinaria a cessação da medida em execução e o consequente arquivamento dos autos -, não evidenciam minimamente os autos que aquele não possuísse capacidade ou entendimento para manifestar a sua vontade, perante o julgador, relativamente ao assunto primordial em equação ;
XIII - pelo que, verificada tal omissão, urgiria determinar a anulação da proferida decisão de cessação de execução da medida, cautelar e provisória, de promoção e protecção, e consequente determinação de arquivamento dos autos, de forma a proceder-se à omitida audição do jovem ou, em alternativa, ser prolatado despacho que fundamente e justifique tal dispensa de audição, com consequente prolação de nova decisão ;
XIV - no âmbito de processo de promoção e protecção, em que está em equação a aferição/determinação da idade de jovem imigrante, nomeadamente a sua alegada menoridade/maioridade á data da instauração da acção, dever-se-ão utilizar, em combinação e articulação, diferenciados métodos avaliativos da determinação da idade óssea ;
XV - a aplicação isolada de um dos métodos aferidores, nomeadamente o método Greulich e Pyle (GP), possui várias limitações, não considerando diferenciados factores capazes de influírem no resultado apurado, tais como os processos patológicos, hábitos alimentares, condições socioeconómicas, questões ambientais e genéticas, incluindo a variação entre as etnias (subestimando a idade óssea em crianças asiáticas e superestimando em crianças africanas, comparativamente a crianças caucasianas), o que determina a existência de um viés racial que interfere na desejada precisão, aconselhando a que a utilização de tal método deva ser sempre combinada com a aplicabilidade de outros, de forma a mitigar ou eliminar a indesejada imprecisão na determinação da idade óssea.

Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
               
I – RELATÓRIO
1 – O DIGNO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Juízo de Família e Menores de Lisboa, no interesse do jovem:
- A …, nascido em 10 de Outubro de 2006,
requereu a abertura de PROCEDIMENTO JUDICIAL URGENTE, nos termos do disposto nos artigos 3º, nºs. 1 e 2, alínea A), 34º, alíneas a) e b), 11º, alín. b), 35º, nºs. 1, alín. f) e 2, 49º a 51º, 72º, 91º e 105º, todos da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (L.P.C.J.P.), aprovada pela Lei nº 147/99, de 01/09, com os seguintes fundamentos:
· No dia 18 de janeiro de 2024 o jovem apresentou-se no Centro Nacional para o Asilo e Refugiados (CNAR AIMA), onde solicitou proteção do Estado Português ;
· O jovem encontra-se desacompanhado de familiares ou de qualquer outro adulto que, por força da lei ou do costume, se responsabilize por ele ;
· Não tem meios de subsistência e carece de proteção ;
· Encontra-se, assim, em situação de vulnerabilidade e entregue a si próprio, não recebendo os cuidados e afeição adequados à sua idade, não se lhe conhecendo no momento em Portugal quaisquer familiares ou pessoa idónea que o possa ou queira receber ;
· Dada a situação de desproteção em que se encontra, o jovem foi acolhido ainda no dia de ontem, na Unidade Hoteleira Be Lisboa Benfica, sita na estrada de Benfica, 683, 1500-071.
Conclui, no sentido de requerer que:
“- O presente seja averbado como procedimento Judicial Urgente-artigo 92º da PPP
- Se confirmem as diligências levadas a cabo pela AIMA.
- Seja de imediato aplicada a favor do A …, a título cautelar, a medida de acolhimento residencial. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 34º, 35º, nº. 1, al. f), e 2, 37º, 91º e 92º, todos da LPCJP.
-Se determine a sua representação para efeitos do pedido de proteção internacional, pelo presidente/diretor das Aldeias SOS, que irá acompanhar a situação do jovem.
- Que a decisão seja comunicada à AIMA nos termos do disposto no artigo 92" n" 3 da LPCJP, seja declarada aberta a instrução, ordenando-se a realização de todas as diligências que forem tidas por convenientes ao diagnóstico da situação deste menor e a definição do seu subsequente encaminhamento, solicitando-se, nomeadamente:
- Se solicite relatório social ao NATT-PP
- A realização de perícia que permita confirmar a idade do jovem”.
Tal processo foi proposto em 19/03/2024.
2 – No dia 19/03/2024, foi proferido o seguinte DESPACHO:
Perante os factos alegados no requerimento inicial, documentados na prova anexa, indicia-se que o jovem A …, alegadamente nascido a 10.10.2006, vivencia uma situação de total desproteção comprometedora da sua saúde, segurança, educação, formação e íntegro desenvolvimento, porquanto, conforme resulta da informação de fls. 3V, no dia 18.03.2024 (ao invés do dia 18 de janeiro indicado, certamente por lapso, no artigo 1º do requerimento inicial) apresentou-se no AIMA III indocumentado e desacompanhado de familiar e/ou adulto capaz de dele cuidar, tendo solicitado proteção internacional, na sequência do que se diligenciou pelo seu acolhimento na Unidade Hoteleira BE Lisboa Benfica.
Donde, perante a situação de perigo atual e iminente vivenciado pelo jovem, que se mostra entregue a si próprio, confirma-se a providência desencadeada e, consequentemente, decide-se aplicar em seu benefício, a título cautelar, a medida de acolhimento residencial, pelo período de 6 (seis) meses, a rever em 3 (três) meses, a executar na CA que vier a ser indicada – cfr. artigos 1º, 2º, 3º, ns.º 1 e 2, alínea a), 4º, 5º, alínea a), 11º, n.º 1, alínea j), 34º, 35º, alínea f), 37º, n.º 1, 38º, 49º, 50º, 91º e 92º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.
Com urgência, oficie a indicação de CA à equipa de gestão de vagas.
Nomeia-se o diretor da CA como curador do jovem.
Nomeia-se a equipa técnica da área da CA para acompanhar a execução da medida protetiva, a quem se solicita relatório intercalar de acompanhamento decorridos dois meses para efeitos de revisão, sendo-o relativo à situação vivencial do jovem, projeto de vida e alternativa à promoção e proteção.
Determina-se a realização de perícia destinada a aferir da provável idade biológica do jovem, a realizar pela delegação do INML da área da CA que venha a ser identificada”.
3 – Em 20/05/2024, o Digno Magistrado do Ministério Público exarou nos autos a seguinte promoção:
Atento o teor da informação que antecede, de que inexistindo vaga no sistema de acolhimento residencial, o jovem foi integrado nesse mesmo dia na Unidade Hoteleira Be Lisboa Benfica e desde então está a ser acompanhado pela Equipa Técnica de Autonomia Supervisionada das Aldeias SOS, promovo se altere a medida de promoção e protecção aplicada para Apoio para Autonomia de vida, nos termos do art. 35.º nº 1 alínea d) e 62.º nº 3 alínea b) da LPCJP”.
4 – Tendo, em 19/06/2024, sido prolatado o seguinte despacho:
Como se promove e cumprido o contraditório, atento o teor da informação que antecede, de que inexistindo vaga no sistema de acolhimento residencial, o jovem foi integrado nesse mesmo dia na Unidade Hoteleira Be Lisboa Benfica e desde então está a ser acompanhado pela Equipa Técnica de Autonomia Supervisionada das Aldeias SOS, altero a medida de promoção e proteção aplicada para Apoio para Autonomia de vida, nos termos do art. 35.º nº 1 alínea d) e 62.º nº 3 alínea b) da LPCJP”.
5 – No âmbito dos exames periciais efectuados ao jovem, foi elaborado um relatório, datado de 07/08/2024, da autoria da Dra. B …, do qual consta o seguinte:
Rx mão e punho esquerdos – Idade óssea
Segundo o atlas de Gaskin, baseado nas tabelas de Greulich e Pyle, a idade óssea é de pelo menos 19 anos, verificando-se encerramento completo das físes.
Sem alterações valorizáveis osteoarticulares ou das partes moles visualizadas”.
6 – No dia 21/10/2024, foi exarada nos autos a seguinte promoção:
Ao jovem A … foi aplicada a medida de promoção e proteção de apoio para a autonomia de vida, em 19.06.2024.
Foi junto relatório social de acompanhamento, com proposta de manutenção da medida.
O jovem manifestou por declaração expressa a sua vontade na manutenção da medida aplicada, após a maioridade.
De acordo com o relatório de acompanhamento da execução da medida, elaborado pela SCML, verifica-se que o acordo está a ser cumprido e que o jovem se encontra a beneficiar do mesmo, não existindo alternativas seguras em meio natural de vida.
Assim, nos termos do disposto no artigo 62.º, n.º 1 e 3, al. c) e 63º, n.º 2 da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, verificando-se que a medida se tem revelado ajustada e benéfica para o jovem, promovo a manutenção da mesma, sendo-lhe atribuído o respetivo apoio económico (no valor de 509,26€).
Uma vez que o jovem se encontra a residir fora do concelho de Lisboa, desde 23.08.2024, na zona de Odivelas, promovo se solicite o acompanhamento da medida à Equipa Territorialmente Competente, EMAT Loures/Odivelas, de acordo com o previsto no art. 79.º, n.º 5, da LPCJP, na versão atualizada pela Lei nº 142/2015, de 8 de setembro.
Mais promovo se determine a atribuição de um Apoio Económico Extraordinário, no valor de 140€, para além do apoio mensal acima referido, a fim de acautelar o pagamento da caução do quarto onde se encontra a residir.
7 – Tendo sido proferido, em 23/10/2024, o seguinte despacho:
Menor: A …
Medida Cautelar: Em 19.03.2024, por 6 meses (19.09.2024) título cautelar, a medida de acolhimento residencial
alterada a medida de promoção e proteção aplicada para Apoio para Autonomia de vida, nos termos do art. 35.º nº 1 alínea d) e 62.º nº 3 alínea b) da LPCJP, por despacho de 19.6.24 (mesmo prazo, 19.09.2024)
Face aos elementos dos autos, conforme promovido e por forma a salvaguardar a sua educação, formação, saúde e desenvolvimento integral do/a menor, revendo a medida que ora lhe vem aplicada, determino a prorrogação da medida cautelar por mais 3 meses (23.01.2025).
Uma vez que o jovem se encontra a residir fora do concelho de Lisboa, desde 23.08.2024, na zona de Odivelas, promovo se solicite o acompanhamento da medida à Equipa Territorialmente Competente, EMAT Loures/Odivelas, de acordo com o previsto no art. 79.º, n.º 5, da LPCJP, na versão atualizada pela Lei nº 142/2015, de 8 de setembro.
***
Como promovido, atribui-se o respetivo apoio económico (no valor de 509,26€), bem como o promovido Apoio Económico Extraordinário, no valor de 140€, a fim de acautelar o pagamento da caução do quarto onde se encontra a residir.
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De acordo com o disposto no artigo 108º, da Lei 147/99, de 09.09 (LPCJP), solicite a realização de relatório social sobre a vida do jovem, do seu agregado familiar, condições do mesmo, bem como situação atual de vida deste a nível social, escolar e familiar, devendo concluir com proposta e/ou parecer sobre a definição de medida para projeto de vida para as crianças (medida definitiva nos termos do PPP) a aplicar no processo, no prazo máximo de 15 dias (dada a simplicidade e a amplo seguimento já ocorrido nos autos). Caso o relatório não venha aos autos no prazo de 15 dias, insista, pela forma mais expedita, devendo pedir-se informação acerca do prazo previsível da entrega (para redefinição de data para a diligência infra), fazendo os autos conclusos com tal informação.
***
Nos termos do artigo 107º, nºs 1 da LPCJP, para inquirição, designo o dia 14.11.2024, pelas 15:45.
A diligência terá igualmente em vista o que consta do art. 112º da LPCJP.
Convoque o técnico responsável pelo processo - 107º, nº 2 do LPCJP.
Notifique, nos termos dos nºs 2 e 3 do citado preceito legal”.
8 – Em 14/11/2024, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Preparando a diligência dos autos afigura-se-me que a perícia conclui que o visado tem pelo menos 19 anos à data de 07.08.2024.
Dá-se sem efeito a diligência posto que agendada para acordo de aplicação de medida protetiva a menor.
Vão os autos em vista para que o MP se pronuncie quanto à tramitação dos autos.
Dê conhecimento às partes da perícia de fls. 20.
9 – Em 18/11/2024, o Digno Magistrado do Ministério Público consignou nos autos a seguinte promoção:
Melhor compulsados os autos verifica-se o jovem já era maior de idade quando se dirigiu à AIMA, em 18.01.2024, solicitando asilo, conforme consta do Relatório Final de 19.08.2024.
Assim, promovo se declare cessada a medida que se lhe mostra aplicada e se determine o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 62º, nº 3, al. a) e 63º, nº 1, al. b), da LPCJP.
10 – No dia 21/11/2024, a Associação das Aldeias de Crianças SOS Portugal, em resposta a ofício que lhe foi dirigido, veio informar do seguinte:
ASSUNTO: Resposta ao Ofício com Referência nº … 83
Exmos Srs,
Vimos por este meio enviar, respeitosamente, algumas informações relativas ao Ofício com Referência nº … 83 do jovem A … (A …).
O jovem realizou exames para avaliação de idade – Raio-X ao punho e mão esquerdos e Ortopantomografia – no dia 6.08.2024.
No dia 7.10.2024, fomos informados no Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), que o jovem tinha marcação para novo exame de avaliação de idade, nesse mesmo dia, ao qual não tinha comparecido. O jovem não compareceu uma vez que não recebeu convocatória para o mesmo, assim como a Equipa de Autonomia Supervisionada (EAS) das Aldeias de Crianças SOS, que executa os atos materiais da Medida aplicada a este jovem. Obtivemos esta informação, comparecendo ao INML com outro jovem a quem realizamos acompanhamento. Nesse mesmo dia, contactámos a equipa do Núcleo de Assessoria Técnica ao Tribunal – Promoção e Proteção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, na pessoa da técnica gestora de processo, para informar do sucedido, como descrito de seguida:
“Bom dia colegas,
venho informar que fomos hoje de manhã no Instituto Nacional de Medicina Legal informados de que o jovem A … (A …), faltou a consulta agendada para as 10h. Não recebemos nós Aldeias de Crianças SOS, enquanto Interveniente Acidental, nem o jovem, informação da marcação desta consulta, foi este o motivo da falta do jovem.
Escrevo-vos no sentido de pedir o vosso apoio relativo à articulação desta informação com o Tribunal. Caso prefiram nós podemos fazer essa articulação. Muito obrigada pelo apoio.
Com os melhores cumprimentos,
…”
Desta forma, o jovem A … (A …), não teve a possibilidade de fazer perícia no INML e possivelmente perícia através de TAC à clavícula, procedimento que tem sido prática com todos os outros jovens que acompanhamos e que, respeitosamente, consideramos seja da maior importância para a conclusão do processo de avaliação de idade dos jovens.
Vimos, por este meio, e com a maior solenidade perante o Douto Tribunal e o Ministério Público, que seja considerada a possibilidade de igualdade, neste processo de avaliação de idade, do jovem A … (A …).
Adicionalmente, sendo a idade avaliada para o jovem de 19 anos de idade, sendo a Medida de Apoio para a Autonomia de Vida uma Medida de acompanhamento até aos 21 anos de idade ou aos 25 anos de idade, caso o jovem prossiga o seu percurso educacional e, demonstrando o jovem A … (A …), necessidades prementes, em termos da sua integração no nosso país e da sua segurança para a saúde física e mental; comunicação; educação, não tendo qualquer literacia prévia; autonomia funcional e estando o jovem em cumprimento de todas as requisições e planos de intervenção individual pedidos por parte da EAS das Aldeias de Crianças SOS. Solicitamos, humildemente, a consideração por parte do Douto Tribunal e do Ministério Público, da manutenção da Medida de Apoio para a Autonomia de Vida do jovem A … (A …).
Caso necessitem de mais alguma informação adicional, estamos ao dispor.
Cordiais cumprimentos”.
11 – Em 28/11/2024, o Digno Magistrado do Ministério Público consignou nos autos a seguinte promoção:
Renovo a promoção anterior, promovendo se declare cessada a medida que se lhe mostra aplicada e se determine o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 62º, nº 3, al. a) e 63º, nº 1, al. b), da LPCJP”.
12 – Em 02/12/2024, foi proferido o seguinte despacho:
Verifica-se o jovem já era maior de idade quando se dirigiu à AIMA, em 18.01.2024, solicitando asilo, conforme consta do Relatório Final de 19.08.2024.
Assim, promoveu o MP que se declare cessada a medida que se lhe mostra aplicada e se determine o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 62º, nº 3, al. a) e 63º, nº 1, al. b), da LPCJP.
Cumpra o 84º/85º e após conclua”.
13 – Em resposta, a Associação das Aldeias de Crianças SOS Portugal veio juntar aos autos a seguinte pronúncia:
ASSUNTO: Resposta a Ofício com a Referência … 39 referente ao jovem A … (A …
Exmos Srs,
Vimos por este meio responder, respeitosamente, ao Ofício com Referência nº … 39 do jovem A … (A …).
O jovem A … (A …) demonstra necessidades prementes e coincidentes com uma etapa do desenvolvimento adequada à Medida de Apoio para a Autonomia de Vida, para a sua integração no nosso país, assim como para a sua segurança em termos de saúde física e mental; comunicação, tendo um nível de inglês muito básico e estando ainda na fase inicial da aprendizagem da língua portuguesa; educação, não tendo qualquer literacia prévia à chegada ao nosso país; autonomia funcional, sendo um jovem que ficou em casa a maior parte da sua vida, com a sua mãe que tem condições de saúde que a fragilizam.
Destacamos também, humildemente, que a idade avaliada para o jovem é de 19 anos, sendo a Medida de Apoio para a Autonomia de Vida uma Medida de acompanhamento até aos 21 anos de idade ou aos 25 anos de idade, caso o jovem prossiga o seu percurso educacional.
Adicionalmente, o jovem está em cumprimento de todas as requisições e planos de intervenção individual pedidos por parte da Equipa de Autonomia Supervisionada (EAS) das Aldeias de Crianças SOS, com um vínculo estável e seguro já estabelecido com esta EAS, assim como compromisso e colaboração com a mesma.
Considerando o acima descrito, solicitamos, humildemente, a consideração por parte do Douto Tribunal e do Ministério Público, da manutenção da Medida de Apoio para a Autonomia de Vida do jovem A … (A …).
Caso necessitem de mais alguma informação adicional, estamos ao dispor.
Cordiais cumprimentos”.
14 – Em 06/01/2025, foi proferida a seguinte DECISÃO:
Pese embora tenha sido pela casa solicitada a continuação da medida, certo é que verificando-se o jovem já era maior de idade quando se dirigiu à AIMA, em 18.01.2024, solicitando asilo, conforme consta do Relatório Final de 19.08.2024, o MP promoveu e reiterou a cessação da medida.
Sendo incontornável que originariamente o beneficiário já não era menor de idade, só sendo possível manter medida originariamente aplicada a menor, aderindo ao douto entendimento do MP, declaro cessada a medida que se lhe mostra aplicada e determino o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 62º, nº 3, al. a) e 63º, nº 1, al. b), da LPCJP”.
15 – Inconformada com tal decisão, veio a Associação das Aldeias de Crianças SOS Portugal interpor recurso de apelação, em 27/01/2025, por referência à decisão prolatada.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
“A. A 06.01.2025, o Tribunal a quo decretou a cessação da medida aplicada ao jovem A …, determinado o arquivamento dos presentes autos – não se conformando com a mesma, por violar normativos imperativos interpõe o presente recurso de apelação.
B. Em 1.º lugar, a Decisão Recorrida não identifica o jovem, nem o seu representante legal, muito menos descreve sucintamente o processo ou enumera os factos dados por provados – em violação do artigo 121.º da LPCJP, ferindo a decisão de nulidade, por omissão, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 126.º da LPCJP).
C. Também a notificação com cópia de Decisão Recorrida não mencionou forma ou prazo para interposição de recurso, tal como deveria, em violação do 122.º-A da LPCJP, ferindo a decisão de nulidade, por omissão, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 126.º da LPCJP).
D. Em 2.º lugar, o jovem A … foi convocado para a sua audição obrigatória, mas a audiência foi cancelada com base no alegado relatório médico (referente ao exame raio x pulso e mão) com indicação de que o jovem teria, pelo menos, 19 anos de idade à data da sua entrada em Portugal.
E. Não obstante, a audição do jovem é obrigatória e não pode ser dispensada, violando o Tribunal a quo a alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º e os artigos o 84.º e 4.º, alínea j), da LPCJP, ferindo a decisão de nulidade, por omissão, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 126.º da LPCJP.
F. Em 3.º lugar, a perícia médica para apurar a idade biológica do jovem não foi concluída – não foram realizados todos os exames requeridos e agendados pelo INML – tendo o Tribunal a quo apenas apreciado o relatório intercalar por referência ao exame de raio x ao pulso e mão (do qual resulta que a “a idade óssea é de pelo menos 19 anos”, sem determinar a que data se refere aquela conclusão).
G. Aquele exame possui limitações várias e margem de erro de 1 a 2 anos e deve ser sempre complementado com outros exames – nomeadamente, raio x ortopantomografia (que foi realizado pelo jovem, mas cujo relatório nunca foi disponibilizado).
H. Além disso, o INML agendou novos exames, mas que não foram realizados pelo jovem (por não ter recebido convocatória para o efeito).
I. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo proferiu uma decisão precipitada, sem os elementos instrutórios e probatórios para a boa decisão da causa e à descoberta da verdade material, em violação do previsto pelos artigos 410.º, 411.º e 413.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 126.º da LPCJP.
J. Deverá o Tribunal ad quem revogar a Decisão Recorrida e substituí-la por outra que determine a reabertura dos presentes autos, com a consequente análise do relatório de exame médico de ortopantomografia e agendamento de data para a realização dos demais exames solicitados pelo INML,
K. Com manutenção das medidas provisoriamente aplicadas ao jovem A … até à decisão final a ser proferida pelo Tribunal a quo após a realização das diligências probatórias imperativas por lei (como a audição do jovem A …) e os exames necessários à conclusão da perícia, estará o Tribunal a quo em condições de proferir decisão acerca das medidas a ser decretadas e aplicadas ao jovem A …”.
Conclui, no sentido do provimento do recurso interposto, devendo ser determinado:
a) Que a Decisão Recorrida viola os artigos 121.º, 122.º-A e alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º e os artigos o 84.º e 4.º, alínea j), da LPCJP, estando ferida de nulidade, por omissão, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 126.º da LPCJP), devendo ser os autos reabertos com vista à sanação daquelas nulidades.
b) A revogação da Decisão Recorrida por violação dos artigos 410.º, 411.º e 413.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 126.º da LPCJ, e sua substituição por outra que determine a reabertura dos presentes autos, nos termos e com os efeitos supra expostos”.
Juntou 11 documentos.
16 – Em sede contra-alegacional, o Digno Magistrado do Ministério Público referenciou o seguinte:
“1. A recorrente não tem legitimidade para apresentar o presente recurso na qualidade de legal representante do jovem, atendendo a que o mesmo é maior de idade, a crer na idade pelo mesmo declarada;
2. Idade essa que não se concebe atento o resultado do exame médico agora impugnado;
3. O MP mantém o entendimento de que o jovem já era maior quando se dirigiu à AIMA para solicitar protecção internacional, pelo que, não lhe podia ser aplicada a LPCJP.
4. Nestes termos a decisão recorrida fez correta interpretação dos factos e adequada aplicação do direito, pelo que deve ser mantida”.
17 – Em 28/02/2025, foi proferida a seguinte Decisão:
Decidiu este Tribunal:
Pese embora tenha sido pela casa solicitada a continuação da medida, certo é que verificando-se o jovem já era maior de idade quando se dirigiu à AIMA, em 18.01.2024, solicitando asilo, conforme consta do Relatório Final de 19.08.2024, o MP promoveu e reiterou a cessação da medida.
Sendo incontornável que originariamente o beneficiário já não era menor de idade, só sendo possível manter medida originariamente aplicada a menor, aderindo ao douto entendimento do MP, declaro cessada a medida que se lhe mostra aplicada e determino o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 62º, nº 3, al. a) e 63º, nº 1, al. b), da LPCJP.”
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Recorreu a ASSOCIAÇÃO DAS ALDEIAS SOS DE PORTUGAL, legal representante do jovem.
Requereu a atribuição do efeito suspensivo considerando que, se for atribuído efeito diferente, e até decisão final do recurso ora interposto, o jovem A … encontrar-se-á numa situação de absoluta desproteção, com grave comprometimento da sua segurança, saúde e desenvolvimento.
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Invocou nulidade da decisão decorrente da violação do disposto nos artigos 121.º e 122.º-A da LPCJ , por omissão, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 126.º da LPCJP), invocando que o Tribunal a quo não procedeu à identificação do jovem, nem do seu representante legal, muito menos descreveu sucintamente o processo ou enumerou os factos dados por provados.
Nos termos do artigo 617º, nº 2 do CPC reformulo, indo ao encontro da pretensão da Associação recorrente:
DECISÃO
Os vertentes autos tiveram início a requerimento do MP para aplicação ao jovem de nome A …, alegadamente nascido a 10/10/2006 e nacional da Gâmbia, medida a título cautelar, de acolhimento residencial. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 34º, 35º, nº. 1, al. f), e 2, 37º, 91º e 92º, todos da LPCJP.
Em 19.03.2024 confirmou-se judicialmente a providência desencadeada e, consequentemente, decidiu-se aplicar em benefício do jovem A …, alegadamente nascido a 10.10.2006, a título cautelar, a medida de acolhimento residencial, pelo período de 6 (seis) meses, a rever em 3 (três) meses, a executar na CA que vier a ser indicada.
Em 19.06.2024 foi alterada a medida de promoção e proteção aplicada para Apoio para Autonomia de vida, nos termos do art. 35.º nº 1 alínea d) e 62.º nº 3 alínea b) da LPCJP, a qual foi prorrogada por despacho de 23.10.2024, designando-se conferência para audição e aplicação da medida não provisória por acordo.
Foi atribuído Apoio Económico Extraordinário, no valor de 140€, para além do apoio mensal acima referido, a fim de acautelar o pagamento da caução do quarto onde se encontra a residir.
O Tribunal ordenou a realização de outros exames aos quais o jovem beneficiário faltou - não compareceu ao exame marcado para o(a) R. Manuel Bento de Sousa 3, 1150-334 Lisboa, no dia 07/10/2024, às 10:00.
Preparando a diligência dos autos verificou-se que a perícia conclui que o visado tem pelo menos 19 anos à data de 07.08.2024.
Idos os autos ao MP, verificando que o jovem já era maior de idade quando se dirigiu à AIMA, em 18.01.2024, solicitando asilo, conforme consta do Relatório Final de 19.08.2024, promoveu se declarasse cessada a medida que se lhe mostra aplicada e se determine o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 62º, nº 3, al. a) e 63º, nº 1, al. b), da LPCJP.
Cumprido foi o 84º/85º da LPCJP.
A Casa opôs-se.
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Assente com interesse para a decisão dos autos, designadamente por virtude da consulta aos autos e atenta a perícia realizada:
1- Os vertentes autos tiveram início a requerimento do MP para aplicação ao jovem de nome A …, alegadamente nascido a 10/10/2006 e nacional da Gâmbia, medida a título cautelar, de acolhimento residencial. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 34º, 35º, nº. 1, al. f), e 2, 37º, 91º e 92º, todos da LPCJP.
2 - Em 19.03.2024 confirmou-se judicialmente a providência desencadeada e, consequentemente, decidiu-se aplicar em benefício do jovem A …, alegadamente nascido a 10.10.2006, a título cautelar, a medida de acolhimento residencial, pelo período de 6 (seis) meses, a rever em 3 (três) meses, a executar na CA que vier a ser indicada.
3 - Em 19.06.2024 foi alterada a medida de promoção e proteção aplicada para Apoio para Autonomia de vida, nos termos do art. 35.º nº 1 alínea d) e 62.º nº 3 alínea b) da LPCJP, a qual foi prorrogada por despacho de 23.10.2024, designando-se conferência para audição e aplicação da medida não provisória por acordo.
4 - Foi atribuído Apoio Económico Extraordinário, no valor de 140€, para além do apoio mensal acima referido, a fim de acautelar o pagamento da caução do quarto onde se encontra a residir.
5 - O Tribunal ordenou a realização de outros exames aos quais o jovem beneficiário faltou - não compareceu ao exame marcado para o(a) R. Manuel Bento de Sousa 3, 1150-334 Lisboa, no dia 07/10/2024, às 10:00.
6 - Por relatório final do IML, de 07.08.2024 e conforme consta do Citius a 28.08.2024, concluiu-se em parecer médico que a idade do jovem é de, pelo menos, 19 anos.
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Pese embora tenha sido pela casa solicitada a continuação da medida, certo é que verificando-se o jovem já era maior de idade quando se dirigiu à AIMA, em 18.01.2024, solicitando asilo, conforme consta do Relatório Final de 19.08.2024, o MP promoveu e reiterou a cessação da medida.
Sendo incontornável que originariamente o beneficiário já não era menor de idade, só sendo possível manter medida originariamente aplicada a menor, aderindo ao douto entendimento do MP, declaro cessada a medida que se lhe mostra aplicada e determino o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 62º, nº 3, al. a) e 63º, nº 1, al. b), da LPCJP.”
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O Ministério Público, ao abrigo do disposto no art. 124º, nº 1 da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99 de 1 de setembro, apresentou resposta ao recurso interposto, dizendo que a recorrente não tem legitimidade para apresentar o presente recurso na qualidade de legal representante do jovem, atendendo a que o mesmo é maior de idade.
De facto, se o jovem tem pelo menos 19 anos em 07.08.2024, ainda que os tivesse feito nesse dia, já teria seguramente mais de 18 à data do pedido de asilo e da entrada da ação em 19.03.2024, pelo que se conclui precisamente como o MP.
Todavia, concluir pela falta de legitimidade da CA em virtude maioridade do jovem, inviabilizando-a de apresentar recurso à Relação, sabendo que o recurso põe em causa a própria conclusão em relação à idade, poderá inviabilizar também a sindicância da questão ao nível do Tribunal da instância Superior, pelo que, em nome da garantia absoluta dos inerentes direitos do visado, se vai admitir, sem prejuízo de outra decisão do Tribunal da Relação quanto à admissibilidade, naturalmente.
Face ao exposto: Por legal e tempestivo admito o recurso interposto, que é de apelação e sobre de imediato, nos próprios autos, (artigos 123º da LPCJP, 645º, nº1 alínea a) e 647º, nº3 alínea a) do Código de Processo Civil) o qual, nos termos do art. 124º da LPCJP, terá efeito suspensivo atenta a definitividade e consequências imediatas da medida aplicada, sendo pois, do interesse das menores que não haja alterações não definitivas à situação de facto que vivenciam.
Notifique”.
18 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil [2], estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas ;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da Recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pela Recorrente, enquanto representante do jovem, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede consubstancia-se em aferir acerca DA (IN)ADEQUAÇÃO E (IM)PERTINÊNCIA DO DECIDIDO, relativamente à cessação da medida de promoção e protecção aplicada, com consequente determinação de arquivamento dos autos.
Nesse desiderato, cumpre conhecer acerca do seguinte:
A. Da NULIDADE decorrente da falta de referência à possibilidade, forma ou prazo para interposição de recurso ;
B. Da NULIDADE decorrente da falta de audição do jovem ;
C. Da NÃO CONCLUSÃO da PERÍCIA e da NECESSIDADE de REALIZAÇÃO de EXAMES MÉDICOS COMPLEMENTARES, conducente ao INDEVIDO ARQUIVAMENTO dos AUTOS

Nessa apreciação, impõe-se, necessariamente, o conhecimento do quadro legal do processo judicial de promoção e protecção.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

A –
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na Decisão apelada foram considerados ASSENTES os seguintes factos:
1- Os vertentes autos tiveram início a requerimento do MP para aplicação ao jovem de nome A …, alegadamente nascido a 10/10/2006 e nacional da Gâmbia, medida a título cautelar, de acolhimento residencial. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 34º, 35º, nº. 1, al. f), e 2, 37º, 91º e 92º, todos da LPCJP.
2 - Em 19.03.2024 confirmou-se judicialmente a providência desencadeada e, consequentemente, decidiu-se aplicar em benefício do jovem A …, alegadamente nascido a 10.10.2006, a título cautelar, a medida de acolhimento residencial, pelo período de 6 (seis) meses, a rever em 3 (três) meses, a executar na CA que vier a ser indicada.
3 - Em 19.06.2024 foi alterada a medida de promoção e proteção aplicada para Apoio para Autonomia de vida, nos termos do art. 35.º nº 1 alínea d) e 62.º nº 3 alínea b) da LPCJP, a qual foi prorrogada por despacho de 23.10.2024, designando-se conferência para audição e aplicação da medida não provisória por acordo.
4 - Foi atribuído Apoio Económico Extraordinário, no valor de 140€, para além do apoio mensal acima referido, a fim de acautelar o pagamento da caução do quarto onde se encontra a residir.
5 - O Tribunal ordenou a realização de outros exames aos quais o jovem beneficiário faltou - não compareceu ao exame marcado para o(a) R. Manuel Bento de Sousa 3, 1150-334 Lisboa, no dia 07/10/2024, às 10:00.
6 - Por relatório final do IML, de 07.08.2024 e conforme consta do Citius a 28.08.2024, concluiu-se em parecer médico que a idade do jovem é de, pelo menos, 19 anos.
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Nos termos dos nºs. 3 e 4, do artº. 607º, ex vi do nº. 2, do artº. 663º, ambos do Cód. de Processo Civil, tendo por base, ainda, a análise da tramitação processual, consideram-se ainda provados os seguintes factos:
7 No dia 06/09/2024, a Unidade Funcional de Clínica Forense da Delegação do Sul do INMLCF, I.P., da Delegação Sul comunicou aos presentes autos a confirmação de marcação de exame para o dia “07/10/2024, pelas 10:00, na especialidade de Pareceres / outras perícias (presencial), no âmbito do(a) DETERMINAÇÃO DE IDADE, com o nº. processo 7642/24.7T8LSB”, a realizar na pessoa de A … ;
8 No dia 12/09/2024, foi remetido e-mail para a Associação das Aldeias de Crianças S.O.S. de Portugal, ao cuidado da Directora Dra. C … – email …-..@aldeias…-… -, na qualidade de legal representante do jovem A …, no sentido de fazê-lo comparecer no exame médico referenciado em 7 ;
9 Não tendo o jovem comparecido para a realização do exame pericial na data designada.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1)Da NULIDADE decorrente da falta de referência à possibilidade, forma ou prazo para interposição de recurso
Invocando o disposto no artº. 121º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo – aprovada pelo artº. 1º da Lei nº. 147/99, de 01/09 -, referenciou a Recorrente que, na decisão recorrida, o Tribunal a quo não procedeu à identificação do jovem, nem do seu representante legal, e muito menos descreveu sucintamente o processo ou enumerou os factos dados como provados.
Adrede, referencia, ainda, que na notificação enviada ao jovem e à Recorrente, com cópia da decisão recorrida, não foi feita qualquer referência à possibilidade, forma ou prazo para interposição do recurso, em contravenção do disposto no artº. 122º-A, do mesmo diploma.
Assim, tais omissões ferem a decisão de nulidade, nos termos do nº. 1, do artº. 195º, do Cód. de processo Civil, ex vi do nº. 1, do artº. 195º, da LPCJP.

Apreciando:
Relativamente á aludida primeira causa de nulidade, o Tribunal a quo, através da decisão de 28/02/2025, veio supri-la, reformulando a decisão prolatada, nos quadros do nº. 2, do artº. 617º, do Cód. de processo Civil.
Constatando-se, assim, que a decisão reformulada contém os elementos processuais referenciados no citado artº. 121º, da LPCJP, a aludida e putativa nulidade, nesta parte, sempre se teria que julgar como suprida. O que se consigna e decide.
No que se reporta á segunda causa de nulidade, não se mostra a que a decisão reformulada a tenha suprido, o que, reconheça-se, sempre se revelaria de nula utilidade, atento o recurso já proposto, e ora em apreciação.
Efectivamente, estatui o referenciado artº. 122º-A, do mesmo diploma, que “a decisão é notificada às pessoas referidas no n.º 2 do artigo seguinte, contendo informação sobre a possibilidade, a forma e o prazo de interposição do recurso”, sendo aqueles “o Ministério Público, a criança ou o jovem, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem”.
Ora, a omissão daquele acto, enquanto irregularidade, só seria susceptível de transmutar-se em nulidade, nos quadros do nº. 1, do artº. 195º, do Cód. de Processo Civil, caso fosse susceptível de “influir no exame ou na decisão da causa”.
Todavia, tendo a Associação Recorrente, na qualidade de legal representante do jovem, interposto o recurso ora sob apreciação, facilmente se constata que a aludida irregularidade, tendo existido, não se transmutou em nulidade (secundária), pois não influenciou, nomeadamente coarctando-o, o direito ao recurso que aquele normativo pretende acautelar. O qual foi tempestivamente exercido, motivando a intervenção do presente Tribunal.
Donde, neste segmento, improcede a respectiva conclusão recursória (Conclusão C.).
2) Da NULIDADE decorrente da falta de audição do jovem
Referencia, ainda, a Recorrente que o “o jovem A … foi convocado para a sua audição obrigatória, mas a audiência foi cancelada com base no alegado relatório médico (referente ao exame raio x pulso e mão) com indicação de que o jovem teria, pelo menos, 19 anos de idade à data da sua entrada em Portugal”.
Não obstante, aduz, tal audição é obrigatória e não pode ser dispensada, “violando o Tribunal a quo a alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º e os artigos o 84.º e 4.º, alínea j), da LPCJP, ferindo a decisão de nulidade, por omissão, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 126.º da LPCJP”.

Apreciando:
Fruto da alteração introduzida pela Lei nº. 142/2015, de 08/09, prescreve o artº. 84º, da LPCJP, que “as crianças e os jovens são ouvidos pela comissão de proteção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção, nos termos previstos nos artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro”.
Anteriormente, este normativo, na sua redacção inicial – decorrente da Lei nº. 147/99, de 01/09 -, prescrevia que:
“1 - As crianças e os jovens com mais de 12 anos, ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe, são ouvidos pela comissão de protecção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e protecção.
2 - A criança ou o jovem tem direito a ser ouvido individualmente ou acompanhado pelos pais, pelo representante legal, por advogado da sua escolha ou oficioso ou por pessoa da sua confiança”.
Os artigos 4º e 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível – aprovado pela Lei nº. 141/2015, de 08/09 -, preveem acerca dos princípios orientadores e audição da criança, estatuindo (no ora relevante) que:
Artigo 4º:
“1 - Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes:
a) Simplificação instrutória e oralidade - a instrução do processo recorre preferencialmente a formas e a atos processuais simplificados, nomeadamente, no que concerne à audição da criança que deve decorrer de forma compreensível, ao depoimento dos pais, familiares ou outras pessoas de especial referência afetiva para a criança, e às declarações da assessoria técnica, prestados oralmente e documentados em auto;
(….)
c) Audição e participação da criança - a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse.
2 - Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, o juiz afere, casuisticamente e por despacho, a capacidade de compreensão dos assuntos em discussão pela criança, podendo para o efeito recorrer ao apoio da assessoria técnica” (sublinhado nosso).
Artigo 5º:
“1 - A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz promove a audição da criança, a qual pode ter lugar em diligência judicial especialmente agendada para o efeito.
3 - A audição da criança é precedida da prestação de informação clara sobre o significado e alcance da mesma.
4 - A audição da criança respeita a sua específica condição, garantindo-se, em qualquer caso, a existência de condições adequadas para o efeito, designadamente:
a) A não sujeição da criança a espaço ou ambiente intimidatório, hostil ou inadequado à sua idade, maturidade e características pessoais;
b) A intervenção de operadores judiciários com formação adequada.
5 - Tendo em vista o cumprimento do disposto no número anterior, privilegia-se a não utilização de traje profissional aquando da audição da criança.
6 - Sempre que o interesse da criança o justificar, o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, pode proceder à audição da criança, em qualquer fase do processo, a fim de que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório nos atos processuais posteriores, incluindo o julgamento.
7 - A tomada de declarações obedece às seguintes regras:
a) A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a criança ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito;
b) A inquirição é feita pelo juiz, podendo o Ministério Público e os advogados formular perguntas adicionais;
c) As declarações da criança são gravadas mediante registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas quando aqueles meios não estiverem disponíveis e dando-se preferência, em qualquer caso, à gravação audiovisual sempre que a natureza do assunto a decidir ou o interesse da criança assim o exigirem;
d) Quando em processo-crime a criança tenha prestado declarações para memória futura, podem estas ser consideradas como meio probatório no processo tutelar cível;
e) Quando em processo de natureza cível a criança tenha prestado declarações perante o juiz ou Ministério Público, com observância do princípio do contraditório, podem estas ser consideradas como meio probatório no processo tutelar cível;
f) A tomada de declarações nos termos das alíneas anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela deva ser possível e não puser em causa a saúde física e psíquica e o desenvolvimento integral da criança;
g) Em tudo o que não contrarie este preceito, aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime processual civil previsto para a prova antecipada” (sublinhado nosso).
O transcrito artº. 84º, da LPCJP, concretiza ou operacionaliza o princípio orientador de intervenção de audição obrigatória e participação, plasmado na alínea j), do artº. 4º, do mesmo diploma, no qual se consigna que “a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção”.
Referencie-se, ainda, no ponderável quadro legislativo, o estatuído no artº. 12º da Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança [3], ao referenciar que:
“1 - Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.
2 - Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional” (sublinhado nosso).
Com relevância, urge, ainda, mencionar o prescrito nos artigos 3.º e 6.º da Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança - adoptada em Estrasburgo, em 25 de Janeiro de 1996, acolhida na nossa ordem jurídica pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13 de Dezembro de 2013, e pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27 de Janeiro -, onde se consigna que: “à Criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar: b) ser consultada e exprimir a sua opinião;
Nos processos que digam respeito a uma Criança, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão deverá: c) ter devidamente em conta as opiniões expressas da Criança”.
Referencie-se, ainda, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que no seu artº. 24º, a propósito dos Direitos das crianças, enuncia que “1. As crianças têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade”.
Por fim, considere-se, igualmente, o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro (Decisões em Matéria Matrimonial e Responsabilidade Parental – Bruxelas II Bis), que, tendo em vista a execução de decisões entre Estados–Membros, salienta igualmente a importância da audição da criança.

Exposto o quadro legislativo matricial, vejamos como jurisprudencialmente tem sido equacionada a necessidade de proceder á prévia audição da criança ou jovem relativamente aos assuntos que lhe digam directamente respeito. O que faremos por enunciação cronológica (todos os arestos encontram-se em www.dgsi.pt ).
- do STJ de 14/12/2016 – Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº. 268/12.0T8MGL.C1.S1 -, no qual se exarou que “a audição da criança num processo que lhe diz respeito não pode ser encarada apenas como um meio de prova, com o qual se pretende fazer prova de um facto relevante no processo. É muito mais vasta a finalidade da audição. Trata-se antes de mais de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta.
O exercício do direito de audição, enquanto meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança, que consabidamente norteia processos como o presente, está naturalmente dependente e relacionado com a maturidade da criança em causa. A lei portuguesa actual – cfr. artigos 4º, i) e 84º da Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, na anterior e na actual redacção, que lhes foi dada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro de 2015, e artigos 4º e 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro, e que se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (artigo 5º da Lei nº 141/2015) –, seguindo os diversos instrumentos internacionais vinculativos (ou não) do Estado Português, alterou a forma de determinar a obrigatoriedade de audição da criança. Onde dantes se estabelecia como obrigatória a audição da criança com mais de 12 anos “ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe” (nº 1 do artigo 84º da Lei nº 147/99), diz-se agora que a criança deve ser ouvida quando tiver “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em conta a sua idade e maturidade” art.4º, c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
Se antes da entrada em vigor da Lei nº 141/2015 se exigia que o tribunal ouvisse as crianças com mais de 12 anos e, quanto àquelas que tivessem idade inferior, ponderasse a sua maturidade e justificasse a decisão de não as ouvir – salvo se a criança tivesse uma idade em que é notória essa falta de maturidade, naturalmente –, após a sua entrada em vigor essa ponderação não pode deixar de se revelar na decisão – continuando a ser dispensada quando for notório que a baixa idade da criança não a permite ou aconselha”.
E, no que concerne ao vício decorrente dessa não audição carente de justificação, acrescenta ser inadequado “aplicar o regime das nulidades processuais à falta de audição. Entende-se antes que essa falta afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva e, por isso mesmo, processual”.
Donde, ter-se decidido pela anulação do acórdão recorrido, com consequente baixa do processo “a fim de, ou serem ouvidos os menores, se a sua capacidade de compreensão assim o determinar, ou ser justificada a sua não audição”.
Em consonância, lavrou-se o seguinte sumário:
“I - A audição da criança num processo que lhe diz respeito – no caso, de promoção e protecção – não pode ser encarada apenas como um meio de prova, tratando-se antes de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta.
II - O exercício do direito de audição, enquanto meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança, está, naturalmente, dependente da maturidade desta.
III - A lei portuguesa actual, seguindo os diversos instrumentos internacionais, alterou a forma de determinar a obrigatoriedade dessa audição, tendo passado a prever – onde antes se estabelecia que era obrigatória a audição de criança com mais de 12 anos “ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe” – que a criança deve ser ouvida quando tiver ”capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em conta a sua idade e maturidade” (art. 4.º, al. c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09).
IV - A ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, só estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade não a permite ou aconselha.
V - A falta de audição da criança afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais” ;
- da RP de 04/11/2019 – Relator: Miguel Baldaia de Morais, Processo nº. 1474/17.6T8PRD.P1 -, no qual se consignou que a reforma legislativa operada pelas já citadas Leis nºs. 141/2015 e 142/2015, foi no sentido de fomentar a audição da criança ou jovem, “sendo que para tal deixou de se falar de idades para realização da mesma, ficando a realização da audição judicial da criança a depender, fundamentalmente, do critério da “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade” (cfr. art. 4º, nº 1 al. c))”.
Decorre, assim, do exposto que a “consagração da audição judicial da criança deixou de se filiar num critério objectivo (como, por via de regra, sucedia na lei pretérita, onde se estabelecia a obrigatoriedade de audição relativamente a toda e qualquer criança de 12 anos ou mais), passando antes a assentar em critérios subjectivos de aferição, como a “capacidade de compreensão”, a “maturidade” e o “discernimento”. Esta capacidade de “compreensão suficiente”, ou capacidade de entendimento mínimo, consubstancia-se então numa capacidade de compreensão relativa, assente na capacidade de compreender qual o assunto que será objecto das suas declarações, ou de, pelo menos, identificá-lo, o que, naturalmente, pressupõe uma ponderação casuística a levar a cabo pelo julgador.
Desta forma, na prossecução do antecedente juízo exposto no citado aresto do STJ, bem como na demais jurisprudência que cita, acrescenta que “a ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, somente estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade (que se tem considerado ser o caso de crianças com idade inferior a três anos) não o permite ou aconselhe. Dito de outro modo, quando a criança não é ouvida, terá sempre de existir um despacho a reflectir a necessidade ou não da sua audição, devidamente fundamentado (sublinhado nosso).
Ponderando acerca das consequências processuais dessa não audição, referencia quer tal omissão “afeta a validade da decisão final do correspondente processo por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais”.
Nesse sentido, e para além do referenciado aresto do STJ, apela ao entendimento de Salazar Casanova – O regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho e o princípio da audição da criança, in Scientia Juridica, Tomo LV, n.º 306 – abril/junho 2016, pág. 236 -, “quando afirma que as razões que permitem a audição de uma criança em juízo são de “ordem substantiva” e que se devem ao superior interesse da criança, e “assim, onde determinada diligência processual colida com tal interesse, há-de prevalecer este”.
Esta não audição da criança, não justificada, configura, assim, uma falta processual mas também a clara violação de regras de direito material, não devendo um tribunal limitar-se a ver esta omissão numa restrita visão processual, reconduzindo, antes, a falta a uma violação inegável da sua intrínseca validade substancial, ao dito princípio geral com relevância substantiva, e, por isso mesmo, processual” (sublinhado nosso) ;
- desta RL de 08/07/2021 – Relator: Nuno Lopes Ribeiro, Processo nº. 8812/14.1T8LSB-B.L2-6 -, no qual estava em equação a audição de criança de 9 anos, à data da decisão, em processo de promoção e protecção, em que se procedeu à aplicabilidade de medida de confiança, com vista a futura adopção.
Considerando-se o gravíssimo objecto da audição, entendeu-se que o mesmo constituía, “ele mesmo e por si, o fundamento que desaconselha a mesma audição, na medida em que transfere para a criança o fardo insuportável e injusto de opinar sobre a situação de perigo grave relativamente à sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento.
E uma criança de 9 anos não tem capacidade de compreensão das várias vertentes que conduzem à conclusão de que se encontra em perigo grave, inultrapassável senão pela aplicação desta medida de confiança para adopção”.
Acrescentou-se que “não estando em causa a relevância probatória das suas declarações – pois que dos autos fluem à exaustão outros meios probatórios, por si suficientes -, a sua audição encontraria justificação enquanto exercício do direito fundamental a ser ouvida sobre a medida de promoção e protecção que se pretende beneficie e a verificação dos respectivos pressupostos.
Contudo, a sua tenra idade permite concluir que não possui a capacidade de compreensão relativamente à verificação dos necessários pressupostos de aplicação da medida em concreto – o perigo grave para a sua segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento, que apenas poderá ser debelado pela confiança judicial com vista a adopção.
A idade da menor indicia fortemente falta de maturidade e de capacidade para compreender os assuntos em questão.
Pelo contrário, essa audição poderá ter efeitos perniciosos no seu crescimento e construção de personalidade, na medida em que, de futuro, poderá consolidar uma ideia de que a sua opinião foi decisiva para a decisão do julgador, quando não se encontrava em condições de a tomar, pela sua tenra idade”.
Entendeu-se, assim, que “o reconhecimento formal de um direito a ser ouvido pode ter efeitos negativos de futuro, que não suplantam as vantagens dessa audição, nesta altura.
Reconhecendo-se que a situação é de fronteira – 9 anos à data presente – e afastando-se a existência de um limite mínimo etário automático para a audição, parece-nos que as vantagens e riscos dessa audição para a própria criança, justificam que, agora, não seja ouvida”, assim se considerando justificada a não audição da criança ;
- desta RL de 10/11/2022 – Relatora: Ana de Azeredo Coelho, Processo nº. 3007/22.3T8LRS-B.L1-6 -, no qual, apreciando acerca das consequências da preterição da audição da criança, sem que se tenha lavrado despacho justificativo de tal exclusão, referenciou que “literalmente, a situação pode enquadrar-se no regime das nulidades processuais enquanto omissão de um acto que a lei prescreve – artigo 195.º, n.º 1, do CPC. Assim, o acórdão desta Relação e Secção de 14 de Abril de 2005, proferido no processo 1634/2005-6 (Manuel Gonçalves).
Enquadramento possível é o de considerar a omissão de audição como integrando vício da previsão do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, determinando a anulação da decisão para ampliação da sua base fáctica. Assim, o acórdão desta Relação de 9 de Novembro de 2021, proferido no processo 1117/14.0TMLSB-F.L1-7 (Luís Filipe Pires de Sousa), e o da Relação do Porto de 8 de Outubro de 2020, proferido no processo 2970/19.0T8PRT-C.P1 (Filipe Caroço).
Numa terceira posição, a jurisprudência vem tratando amiudadamente a omissão de que nos ocupamos como de direito material, com consequência de invalidade da decisão, excluindo o seu tratamento no âmbito das nulidades processuais, fazendo repercutir o vício directamente na decisão enquanto invalidade desta.
Encontramos enunciada esta posição no acórdão do STJ de 14 de Dezembro de 2016, proferido no processo 268/12.0TBMGL.C1.S1 (Maria dos Prazeres Beleza) e no desta Relação e Secção de 14 de Julho de 2020, proferido no processo 24889/19.0T8LSB-A.L1-6 (Nuno Ribeiro)”.
Aduzindo perfilhar este último entendimento, aduz que “a omissão em causa não é a omissão de um acto enquanto trâmite processual previsto pela lei, mas o desrespeito por um princípio enformador do direito das crianças, com repercussão processual, mas natureza substantiva, enquanto direito a ser ouvido, a ser-lhe proporcionada a liberdade de expressão de um verdadeiro sujeito de direitos e direito a fazer ouvir a sua voz no que lhe respeita, segundo a sua maturidade e capacidade de compreensão. O que afasta o enquadramento enquanto nulidade processual.
Por outro lado, embora sejam configuráveis situações de possível enquadramento no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, quando a audição da criança sirva os propósitos do artigo 5.º, n.º 6, do RGPTC, não é menos certo que o direito da criança a ser ouvida, a dimensão fundamental do princípio, mantém-se íntegro mesmo quando considerações de necessidade probatória não intervenham”.
Acrescentando que na concreta situação trata-se da prolação de uma decisão com omissão de um acto que a lei estabelece, com essencialidade, dever ser previamente respeitado, cita a posição de Miguel Teixeira de Sousa assumida em casos similares, e condensada no post de 08/09/2020, no sentido de que:
a) O acórdão segue a orientação que sempre se defendeu neste Blog: o proferimento de uma decisão que devia ter sido antecedida de um acto que foi indevidamente omitido implica a nulidade da decisão proferida por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC). Sobre o problema, cf. Jurisprudência 2019 (242)).
Uma sentença só pode constituir uma nulidade processual nos termos do art. 195.º CPC se o que estiver em causa não for a sentença como acto, mas antes a sentença como trâmite. Se, a seguir à fase dos articulados, o juiz proferir, em processamento normal, a sentença final, este proferimento constitui uma nulidade processual, porque a sentença é proferida num momento que não é o estabelecido pela lei.
Sempre que o que esteja em causa seja o conteúdo da sentença (e em que, portanto, a sentença tenha de ser vista como acto), o que pode haver é uma nulidade da sentença, nunca uma nulidade processual.
b) Diferente da situação analisada no acórdão - o tribunal omite um acto essencial e, ainda assim, profere uma decisão - é aquela em que existe uma decisão do tribunal que dispensa esse acto. Neste caso, trata-se de uma decisão contra legem que é impugnável nos termos gerais (mas com a limitação imposta pelo art. 630.º, n.º 2, CPC)”.
Donde, conclui que:
“- a não audição da criança antes da prolação da decisão que lhe respeita tem de ser apreciada e decidida em despacho judicial, impugnável nos termos gerais.
- a omissão de audição, sem despacho que a justifique, constitui, com repercussão na decisão proferida por a tornar nula em razão de decidir de matéria sobre a qual lhe estava vedada pronúncia sem aquela audição, vício da previsão do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC”, assim se determinando a anulação da decisão proferida, e consequente audição da criança, antes da prolação de nova decisão ;
- desta RL de 12/01/2023 – Relatora: Carla Maria Oliveira, Processo nº. 438/17.4T8VFX-E.L1-8 -, o qual efectuou a distinção entre os âmbitos da audição da criança no âmbito do processo de promoção e protecção, ou seja, podendo ou não destinar-se a efeitos probatórios.
Sumariou, então, numa vertente das formalidades a cumprir nessa audição, que a “I- A intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança em perigo tem como princípio primeiro o interesse superior da criança, sendo corolário desse princípio, em termos processuais, a audição do menor (o mesmo deverá ser ouvido sempre que a sua maturidade e idade o permitam).
II- O art.º 5º do RGPTC, aplicável aos processos de promoção e protecção por força do art.º 84º, da LPCJP, estabelece a audição da criança em duas situações distintas: a primeira, para que a criança possa manifestar a sua opinião, a atender na decisão a tomar (cfr. nºs 1 e 4); a segunda, para que sejam tomadas declarações à criança, sempre que tal o justifique, para que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório (cfr. nºs 6 e 7);
III- Quando a audição da criança se assuma como uma diligência probatória, essa audição deverá efectuar-se na presença dos mandatários dos progenitores, sob pena de nulidade, nos termos do art.º 5º, nº 7, al. b) do RGPTC e art.º 3º, nº 3, do NCPC, ex xi do art.º 549º, nº 1, do NCPC.
IV- Já quando a audição da criança seja para esta possa livremente exprimir a sua opinião, a mesma não está sujeita às regras referidas nos citados nºs 6 e 7 do referido art.º 5º, não existindo qualquer nulidade quando a mesma não é realizada na presença de advogados, podendo o juiz ouvir a criança sem a presença de qualquer mandatário” ;
- da RC de 13/06/2023 – Relatora: Teresa Albuquerque, Processo nº. 437/21.1T8CLD-A.C1 -, o qual começa por referenciar que “o respeito pelo superior interesse da criança - que exige sempre a ponderação dos interesses conexos com os seus bens prioritários (a vida, a liberdade, a integridade moral, a identidade pessoal, a autonomia, o desenvolvimento da personalidade) - não prescinde da sua audição quando esteja em causa decisão que a afecte naqueles seus interesses”.
Reconhecendo inexistir convergência jurisprudencial relativamente às consequências da não audição da criança, quando esta se impõe, inexistindo despacho justificativo da exclusão dessa audição, perfilha a orientação estabelecida no citado aresto do STJ de 14/12/2016, assim concluindo pela anulação da decisão, com consequente cumprimento pelo Tribunal recorrido dos actos omitidos ;
- da RP de 23/11/2023 – Relatora: Isabel Silva, Processo nº. 3063/20.9T8VFR-G.P1 -, no qual se sumariou que:
I - A omissão da audição da criança integra uma realidade jurídica complexa, que tanto pode redundar numa nulidade processual, como num erro de julgamento, com repercussão na apreciação e decisão da matéria de facto, a impor a anulação da decisão.
II - Há que distinguir entre a omissão de audição tout court, e uma decisão expressa e fundamentada de não audição; neste último caso, estamos no âmbito duma impugnação por erro de julgamento” ;
- desta RL de 05/12/2023 – Relatora: Cristina Silva Maximiano, Processo nº. 28159/17.0T8LSB.L1-7 -, no qual se referenciou que tem sido entendimento jurisprudencial, aí expressamente acolhido, 
que a ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, apenas estando dispensada a justificação para a sua não audição quando for notório que a sua baixa idade (que se tem considerado ser o caso de crianças com idade inferior a três anos) não o permite ou aconselhe. Ou seja, quando a criança não é ouvida, terá sempre de existir um despacho, devidamente fundamentado, a dispensar tal audição”.
Relativamente às consequências processuais decorrentes de tal falta de audição, quando esta é devida, ou da falta de consignação de justificação para a não audição, apelou ao entendimento de Paulo Guerra - in “A Audição de Crianças em Tribunal – e quando não se ouvem?”, em “Questões do Regime Geral do Processo Tutelar Cível”, caderno de “Colecção Formação Contínua”, E-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Julho 2019, p. 89-90, acessível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=wpeLi5nKGq0%3D&portalid=30 -, no sentido de que atendendo ao princípio de respeito pelas opiniões da criança, reconhecido pelo artº. 12º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, “fácil é de concluir que o regime das nulidades processuais não é, de facto, o mais adequado à catalogação do vício da falta de audição de uma criança em sede judiciária. (…) Na realidade, e para finalizar, se é verdade que a criança não tem, em regra, capacidade de exercer sozinha os seus legais direitos, também o é que haverá certos direitos ligados à substância e ao «ser» da criança que só podem gozados por ela própria, de viva voz, sem interferência de terceiros. E aí basta-lhe a sua capacidade regra de gozo de direitos. E bastará ao tribunal afirmar essa essência e substância para declarar que a omissão da audição de uma criança com maturidade para o efeito, quando conveniente, afeta a subsistência da decisão que não a admitiu, não por força da constatação de uma nulidade processual civil de natureza secundária, mas por aplicação direta do princípio básico (de essência) da existência de uma criança – ter direito a ser ouvida por quem vai decidir relevantes aspetos da sua vida.” (sublinhado nosso).
Donde, ter-se entendido que, perante a não audição legalmente tutelada, e falta de decisão fundamentante da respectiva dispensa, impunha-se a anulação da decisão apelada, com consequente determinação da baixa do processo a fim de, ou proceder-se à audição olvidada, caso a capacidade de compreensão o determinasse, ou justificar-se a decisão de não audição.
Acerca da questão em apreciação, referencia Paulo Guerra - QUESTÕES DO REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL 3. Audição da criança, pg. 88 e sgs, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_QRGTPC.pdf: - que “a criança não tem capacidade em regra para exercer os seus direitos em tribunal. Mas, nesta sede, por gozar do direito de ser ouvido em tribunal, tem de se fazer ouvir, quando tal for considerado conveniente e tiver maturidade para o efeito.
Deixar de ouvir uma criança neste jaez é «matar» um seu direito substancial, colado à sua pele com a própria «essência das coisas».
Ouvir uma criança em tribunal não é um acidente de percurso – é um direito inalienável de toda a criança, para o exercício do qual, nesta sede, não tem de ser representado por terceira pessoa.
Isso faz parte da essência dos seus direitos.
Volto à Magna Carta da Infância.
Quanto ao conteúdo normativo da Convenção da ONU de 1989, pode-se dizer que o mesmo se reconduz a quatro princípios fundamentais:
— Princípio da não discriminação, consagrado no artigo 2.º, segundo o qual os Estados Partes se comprometem a respeitar e a garantir os direitos firmados na Convenção «a todas as crianças que se encontrem na sua jurisdição, sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou outra da criança, de seus pais ou representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social, fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação»;
— Princípio do interesse superior da criança, plasmado no artigo 3.º, o qual deverá constituir a consideração primacial a ter em conta em «todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos»;
— Princípio de que a criança tem direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento, estabelecido pelo artigo 6.º, que protege não só o direito à vida, como também à sobrevivência e ao desenvolvimento, devendo estes últimos ser assegurados na «máxima medida possível» (e aqui a noção de «desenvolvimento» deve ser interpretada num sentido amplo e abarcando uma dimensão qualitativa que contemple, para além da saúde física da criança, o seu desenvolvimento mental, emocional, cognitivo, social e cultural);
— Princípio do respeito pelas opiniões da criança, reconhecido pelo artigo 12.º, o qual se reconduz ao direito de que a criança é titular de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que a ela respeitem e de as suas opiniões serem devidamente tomadas em consideração, de acordo com a sua idade e maturidade – para tanto, «deve ser assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem».
Atento este último princípio, fácil é de concluir que o regime das nulidades processuais não é, de facto, o mais adequado à catalogação do vício da falta de audição de uma criança em sede judiciária.

E daí a relevância deste aresto de 2016 que vem lançar novos desafios ao próprio direito processual da criança.
Na realidade, e para finalizar, se é verdade que a criança não tem, em regra, capacidade de exercer sozinha os seus legais direitos, também o é que haverá certos direitos ligados à substância e ao «ser» da criança que só podem gozados por ela própria, de viva voz, sem interferência de terceiros.
E aí basta-lhe a sua capacidade regra de gozo de direitos.

E bastará ao tribunal afirmar essa essência e substância para declarar que a omissão da audição de uma criança com maturidade para o efeito, quando conveniente, afeta a subsistência da decisão que não a admitiu, não por força da constatação de uma nulidade processual civil de natureza secundária, mas por aplicação direta do princípio básico (de essência) da existência de uma criança – ter direito a ser ouvida por quem vai decidir relevantes aspetos da sua vida” (sublinhado nosso).

Aqui chegados, podemos enunciar as seguintes directrizes ou critérios:
- conforme prevê o artº. 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aplicável ao processo de promoção e protecção por força do prescrito no artº. 84º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, a audição da criança ou jovem pode ocorrer em duas diferenciadas situações ;
- na primeira, para que a criança ou jovem possam expressar a sua opinião e vontade relativamente à decisão proferenda – cf., os nºs. 1 e 4, do artº. 5º ; na segunda, para que as declarações a tomar à criança ou jovem possam ser consideradas como meio probatório - cf., os nºs. 6 e 7, do mesmo normativo ;
- no âmbito do processo de promoção e protecção, a criança ou jovem possuem o inalienável direito, na defesa do seu superior interesse, de ser ouvidos e participar nos actos e definição da medida de promoção e protecção aplicanda, ou seja, têm o direito que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão de que são destinatários ;
- tal audição deve ter em consideração a capacidade da criança ou jovem para a compreensão dos assuntos e matérias em discussão, na ponderação da sua idade e (i)maturidade ;
- o que implica uma análise casuística dos critérios subjectivos de aferição, tais como a (i)maturidade, discernimento e capacidade de compreensão ou entendimento suficientes, tendo em atenção o assunto objecto das declarações a prestar ;
- caso o tribunal decida pela dispensa da audição, deve justificá-la, fundamentando e indicando as razões que a não permitem ou aconselham, nomeadamente as resultantes da baixa idade ou notória imaturidade revelada ;
- apenas sendo de dispensar tal justificação para a não audição nas situações em que é notório que a baixa idade da criança não o permite ou aconselha, o que vem sendo considerado nas situações em que a mesma tem idade inferior a três anos ;
- as consequências processuais de tal falta de audição não se reconduzem à aplicação do regime das nulidades processuais civis secundárias, pois, correspondendo a um princípio geral com relevância substantiva, afecta a validade das decisões proferidas no processo
- ou seja, tal não audição configura, para além de uma falta processual, uma clara violação das regras de direito material, que se traduz em inegável violação da intrínseca validade substancial da decisão, isto é, faz-se repercutir o vício directamente na decisão enquanto causa da invalidade desta ;
- desta forma, ocorrendo omissão de audição, sem que exista despacho que a justifique, tal tem efectiva repercussão na decisão proferida, maculando-a de nulidade em virtude de ter decidido sobre matéria a que lhe estava vedada pronúncia, sem aquela audição, assim traduzindo a prática do vício de excesso de pronúncia inscrito na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil ;
- o que determina a anulação da decisão proferida, de forma a proceder-se à omitida audição da criança ou jovem ou, em alternativa, ser prolatado despacho que fundamente e justifique tal dispensa de audição, com consequente prolação de nova decisão – vimos seguindo, de perto, o aresto desta mesma Relação e Secção prolatado pelo mesmo Relator – nº. 8079/18.2T8LRS-B.L1, datado de 07/03/2024, no qual o ora 2º Adjunto figura como 1º Adjunto.

Reportando tais ensinamentos ao caso sub judice, temos então que:
· O presente processo de promoção e protecção iniciou-se em 19/03/2024, como procedimento judicial urgente, a tramitar nos quadros do artº. 92º, da LPCJP ;
· A primeira medida de natureza cautelar ou provisória, de acolhimento residencial, pelo período de 6 meses (a rever em três meses), data de 19/03/2024 ;
· Por decisão de 19/06/2024, determinou-se, nos termos dos artigos 35º, nº. 1, alín. d) e 62º, nº. 3, alín. b), ambos da LPCJP, a alteração de tal medida de promoção e protecção para a medida de apoio para a autonomia de vida, após prévio cumprimento do disposto nos artºs. 84º e 85º, ambos do mesmo diploma ;
· Por decisão de 23/10/2024, determinou-se a prorrogação de tal medida cautelar por mais 3 meses, ou seja, até 23/01/2025 ;
·  Por despacho da mesma data – 23/10/2024 -, invocando-se o disposto no nº. 1, do artº. 107º, do mesmo diploma, designou-se data para inquirição, nomeadamente do jovem A …, consignando-se expressamente que tal diligência “terá igualmente em vista o que consta do art. 112º da LPCJP” ;
· Em 14/11/2024, foi consignado despacho que, concluindo que o jovem, com base na perícia realizada, teria pelo menos 19 anos em 07/08/2024, deu sem efeito a diligência “agendada para acordo de aplicação de medida protetiva a menor” ;
· Previamente á decisão apelada, por despacho de 02/12/2024, consignando-se a promoção do Ministério Público, no sentido de declarar-se cessada a medida aplicada, com consequente o arquivamento dos autos, nos termos dos artºs. 62º, nº. 3, alín. a) e 63º, nº. 1, alín. b), ambos da LPCJP, determinou-se o cumprimento dos artigos 84º e 85º, do mesmo diploma ;
· Tendo sido, então, prolatada a decisão sob apelo, datada de 06/01/2025, que considerou que o jovem beneficiário já não era menor à data da instauração do procedimento judicial urgente de promoção e protecção, pelo que, sendo apenas possível manter medida originariamente aplicada a menor, determinou o arquivamento dos autos.
· Ou seja, até à prolação da decisão recorrida, as enunciadas medidas foram aplicadas a título cautelar ou provisório, e tiverem duração total de aproximadamente 9 meses e meio ;
· Ora, durante este período, a audição do jovem foi efectivada nos termos do artº. 84º, do diploma em equação, ou seja, procedendo á sua prévia notificação para pronúncia acerca da decisão de revisão da medida em execução ;
· Tendo inclusive o mesmo, em 21/10/2024, vindo, pelo seu próprio punho, manifestar interesse na continuidade da aplicabilidade da medida de promoção e protecção de apoio para a autonomia de vida – cf., fls. 31 ;
· Assim, e até á designação para a sua audição obrigatória, prevista no artº. 107º, nº. 1, alín. a), da LPCJP, nunca a Sra. Juíza a quo procedeu á audição directa e imediata do jovem, mediante contacto directo e pessoal ;
· Ora, tal solução, estando-se, num primeiro momento, perante procedimento judicial urgente, equacionando-se, apenas, a aplicabilidade de medidas de promoção a protecção de natureza provisória, a atenta e particular situação do jovem, que foi no imediato acompanhado pela Equipa Técnica de Autonomia Supervisionada das Aldeias S.O.S. (instituição que veio a assumir-se como a sua legal representante, conforme afirmado no recurso interposto), bem como a dificuldade de estabelecer comunicação verbal com o mesmo, atento o facto de apenas falar inglês num nível básico, sendo a língua materna o mandiga, o que dificultou a comunicação, percepção e qualidade da informação transmitida (cf., as informações da Segurança Social de 11/11/2024 e o teor da Avaliação do Superior Interesse de 26/04/2024, cf., doc. nº. 10, junto com as alegações), parece ser perfeitamente justificada e entendível até àquele momento de prolação do despacho inicial de abertura da instrução ;
· Todavia, perante a interpretação do resultado da perícia junta aos autos, relativa á determinação da idade do jovem, e estando em equação o potencial arquivamento dos autos, mediante prévia declaração de cessação da medida em execução, entendemos que a sua audição nos mesmos moldes do artº. 84º não se revelava como suficiente ou bastante, antes se impondo a sua efectiva audição pessoal e directa ;
· A qual se encontrava inclusive designada, podendo-se então confrontar o jovem com tal resultado, explicando-o e ouvindo-o acerca da equacionada idade, divergente da constante do seu passaporte pessoal.
Ora, atendendo ao exposto, impunha-se, com efectividade, que o Tribunal a quo tivesse procedido à devida audição do jovem, mediante contacto directo e pessoal, ou que, caso assim o entendesse e considerasse, tivesse proferido fundada decisão justificadora para a não operacionalização de tal audição, nomeadamente a resultante de ausência de capacidade de compreensão e entendimento para emitir pronúncia acerca do assunto em equação.
Atendendo ao assunto primordial em equação – a putativa idade do jovem não correspondente à que figura do seu documento de identificação pessoal (passaporte), implicando que, á data da instauração do processo de promoção e protecção já fosse maior, o que determinaria a cessação da medida em execução e o consequente arquivamento dos autos -, não evidenciam minimamente os autos que aquele não possuísse capacidade ou entendimento para manifestar a sua vontade, perante o julgador, relativamente ao assunto primordial em equação.
Pelo que, verificada tal omissão, urgiria determinar a anulação da proferida decisão de cessação de execução da medida, cautelar e provisória, de promoção e protecção, e consequente determinação de arquivamento dos autos, de forma a proceder-se à omitida audição do jovem ou, em alternativa, ser prolatado despacho que fundamente e justifique tal dispensa de audição, com consequente prolação de nova decisão.
O que determinaria, relativamente ao presente segmento, e ainda que com diferenciado enquadramento jurídico, legalmente sustentável e admissível, juízo de procedência das conclusões alegacionais e, prima facie, prejudicialidade no conhecimento da demais questão decidenda.
Todavia, entendemos que o juízo exposto não prejudica a análise da questão subsequente, cujo conhecimento se impõe desde logo por razões de economia e celeridade processual, pelo que a passaremos a apreciar.
3) Do INDEVIDO ARQUIVAMENTO dos AUTOS
Referencia, ainda, a Apelante que a perícia médica efectivada para “apurar a idade biológica do jovem não foi concluída – não foram realizados todos os exames requeridos e agendados pelo INML – tendo o Tribunal a quo apenas apreciado o relatório intercalar por referência ao exame de raio x ao pulso e mão (do qual resulta que a “a idade óssea é de pelo menos 19 anos”, sem determinar a que data se refere aquela conclusão)”.
Todavia, enfatiza, tal exame possui “limitações várias e margem de erro de 1 a 2 anos e deve ser sempre complementado com outros exames – nomeadamente, raio x ortopantomografia (que foi realizado pelo jovem, mas cujo relatório nunca foi disponibilizado)”.
Pelo que, tendo o INML agendado outros exames, que nunca foram realizados, pelo facto do jovem não ter recebido convocatória para o efeito, entende-se ter o Tribunal a quo proferido “uma decisão precipitada, sem os elementos instrutórios e probatórios para a boa decisão da causa e à descoberta da verdade material, em violação do previsto pelos artigos 410.º, 411.º e 413.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 126.º da LPCJP”.
Donde, pugna pela revogação da decisão sob apelo, a qual deve ser substituída por outra que determine “a reabertura dos presentes autos, com a consequente análise do relatório de exame médico de ortopantomografia e agendamento de data para a realização dos demais exames solicitados pelo INML”.
Assim, dever-se-á manter a medida provisoriamente aplicada, até á decisão final proferenda, a qual dependerá da audição do jovem e realização dos demais exames necessários á conclusão da perícia.
Apreciando:
Prescrevendo acerca do objecto da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo – aprovada pelo artº. 1º da Lei nº. 147/99, de 01/09 -, o artº. 1º deste diploma enuncia que a finalidade do mesmo é “a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral”.
Acrescenta o artº. 3º do mesmo diploma – entretanto alterado pela Lei nº. 142/2015, de 08/09 e pela Lei 26/2018, de 05/07 -, prevendo acerca da legitimidade da intervenção, que:
“1 - A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.
2 - Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
h) Tem nacionalidade estrangeira e está acolhida em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional”.
O perigo a que se reporta o presente normativo “traduz a existência de uma situação de facto que ameace a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem, não se exigindo a verificação da efectiva lesão da segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento. Basta, por isso, a criação de um real ou muito provável perigo, ainda longe de dano sério”, sendo que a situação de perigo deve ser actual e persistente à data da decisão, conforme decorre dos artigos 4º, alín. e) e 111º, do diploma em equação [4].
Relativamente aos princípios orientadores da intervenção, estão previstos no artº. 4º do mesmo diploma. Com relevo para o caso sub júdice podemos enunciar, exemplificativamente, os seguintes:
- o princípio do interesse superior da criança e do jovem, o qual traduz que “a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto” ;
- o princípio da privacidade, o qual dispõe que “a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem deve ser efectuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada” ;
- o princípio da proporcionalidade e actualidade, no sentido de que “a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade” ;
- o princípio da responsabilidade parental, no sentido de que “a intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem” ;
- o princípio da prevalência da família, no sentido de que “na promoção de direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem na sua família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adopção ou outra forma de integração familiar estável” ;
- o princípio da continuidade das relações psicológicas profundas, no sentido de que a intervenção “deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante”.
No que concerne à finalidade das medidas de promoção dos direitos e de protecção, aduz o artigo 34º do mesmo diploma visarem as mesmas:
a) Afastar o perigo em que estes se encontram ;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral ;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso”.
Por fim, o artº. 35º, consagrando o princípio da tipicidade, efectua a elencagem das medidas de promoção e protecção, dividindo-as entre as executadas no meio natural de vida ou em regime de colocação, e fazendo-as elencar pela respectiva ordem de preferência e prevalência.
Dispõem os nº.s 1 e 2 do artº. 69º da Constituição da República Portuguesa que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
2. O Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal”.
Por sua vez, os artigos 19º e 20º da Convenção Sobre os Direitos da Criança [5], na prossecução de idênticos princípios, dispõem que:
“Os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada.
2. Tais medidas de protecção devem incluir, consoante o caso, processos eficazes para o estabelecimento de programas sociais destinados a assegurar o apoio necessário à criança e aqueles a cuja guarda está confiada, bem como outras formas de prevenção, e para identificação, elaboração de relatório, transmissão, investigação, tratamento e acompanhamento dos casos de maus tratos infligidos à criança, acima descritos, compreendendo igualmente, se necessário, processos de intervenção judicial.
1. A criança temporária ou definitivamente privada do seu ambiente familiar ou que, no seu interesse superior, não possa ser deixada em tal ambiente tem direito à protecção e assistência especiais do Estado.
2. Os Estados Partes asseguram a tais crianças uma protecção alternativa, nos termos da sua legislação nacional.
3. A protecção alternativa pode incluir, entre outras, a forma de colocação familiar, a kafala do direito islâmico, a adopção ou, no caso de tal se mostrar necessário, a colocação em estabelecimentos adequados de assistência às crianças. Ao considerar tais soluções, importa atender devidamente à necessidade de assegurar continuidade à educação da criança, bem como à sua origem étnica, religiosa, cultural e linguística”.
Refira-se, ainda, o Princípio VII da Declaração dos Direitos da Criança [6], o qual consagra que:
A criança tem direito à educação, que deve ser gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus elementares. Deve ser-lhe ministrada uma educação que promova a sua cultura e lhe permita, em condições de igualdade de oportunidades, desenvolver as suas aptidões mentais, o seu sentido de responsabilidade moral e social e tornar-se um membro útil à sociedade.
 O interesse superior da criança deve ser o princípio directivo de quem tem a responsabilidade da sua educação e orientação, responsabilidade essa que cabe, em primeiro lugar, aos seus pais.
A criança deve ter plena oportunidade para brincar e para se dedicar a actividades recreativas, que devem ser orientados para os mesmos objectivos da educação; a sociedade e as autoridades públicas deverão esforçar-se por promover o gozo destes direitos”.
Bem como os Princípios 4º e 5º da mesma Declaração, estatuindo que:
a criança deve beneficiar da segurança social. Tem direito a crescer e a desenvolver-se com boa saúde; para este fim, deverão proporcionar-se quer à criança quer à sua mãe cuidados especiais, designadamente, tratamento pré e pós-natal. A criança tem direito a uma adequada alimentação, habitação, recreio e cuidados médicos.
A criança mental e fisicamente deficiente ou que sofra de alguma diminuição social, deve beneficiar de tratamento, da educação e dos cuidados especiais requeridos pela sua particular condição”.
Resulta do legal enquadramento efectuado, estar “na protecção e garantia de direitos básicos da criança ou do jovem, nomeadamente o direito à vida, ao desenvolvimento saudável, ter uma família, à privacidade, a condições de vida acima do limiar da pobreza, a cuidados primários de saúde, uma educação, a participar nas decisões que lhe dizem respeito, as garantias de sucesso na sua integração social e prevenir situações de perigo e de condutas desviantes ou de marginalidade” [7].
De retorno ao caso concreto, constata-se que no âmbito do despacho inicial ainda proferido em sede de procedimento judicial urgente, determinou-se a realização de perícia “destinada a aferir da provável idade biológica do jovem”, a realizar por delegação do INML.
Com tal desiderato, o jovem realizou, em 06/08/2024, dois exames:
· RX idade óssea (punho e mão esquerdos) ;
· RX ortopantomografia.
Conforme relatório médico datado de 07/08/2024, tendo por base o RX idade óssea (punho e mão esquerdos), consta que “segundo o atlas de Gaskin, baseado nas tabelas de Greulich e Pyle, a idade óssea é de pelo menos 19 anos, verificando-se encerramento completo das físes.
Sem alterações valorizáveis osteoarticulares ou das partes moles visualizadas”.
Não consta dos autos qualquer interpretação pericial médica relativamente ao RX ortopantomografia realizado, sendo certo que, aquando da comunicação efectuada ao Tribunal em 11/07/2024, fez-se constar que “para o RX de ortopantomografia apenas serão disponibilizadas as imagens em CD”.
A aditar a tais exames, em 06/09/2024, a “Unidade Funcional de Clínica Forense da Delegação do Sul do INMLCF, I.P., da Delegação Sul comunicou aos presentes autos a confirmação de marcação de exame para o dia “07/10/2024, pelas 10:00, na especialidade de Pareceres / outras perícias (presencial), no âmbito do(a) DETERMINAÇÃO DE IDADE, com o nº. processo 7642/24.7T8LSB”, a realizar na pessoa de A …” – cf., facto 7..
Alega a Recorrente que o jovem nunca recebeu convocatória para a realização deste exame. Todavia, conforme indiciariamente se provou, “no dia 12/09/2024, foi remetido e-mail para a Associação das Aldeias de Crianças S.O.S. de Portugal, ao cuidado da Directora Dra. C … – email …-…@aldeias …-, na qualidade de legal representante do jovem A …, no sentido de fazê-lo comparecer no exame médico referenciado em 7.”.
E, apesar daquela Unidade Funcional informar aguardar, caso ainda houvesse interesse, nova marcação – cf., comunicação de 07/10/2024, a fls. 28 e 29 -, esta nunca foi solicitada.
Relativamente a este exame complementar não realizado, desconhece-se a sua natureza ou abrangência, referenciando a ora Apelante que tratar-se-á, possivelmente, de “perícia através de TAC à clavícula, procedimento que tem sido prática com todos os outros jovens que acompanhamos e que, respeitosamente, consideramos seja da maior importância para a conclusão do processo de avaliação de idade dos jovens” – cf., comunicação de 21/11/2024, sob a referência 026/TR/JT/2024.
Constata-se, assim, que para a determinação da idade biológica do jovem beneficiário:
Ø Foram realizados dois exames de RX ;
Ø Apenas se conhece relatório baseado num desses exames de RX ;
Ø Foi designada data para a efectivação de um outro exame pericial, o qual nunca foi realizado.
Aqui chegados, indaga-se: as conclusões apostas no exame médico realizado - RX idade óssea (punho e mão esquerdos) – configuram-se como adequadas, suficientes e totalmente idóneas na determinação da idade biológica do jovem ?
Tal putativa assertividade ou concludência permite prescindir da leitura pericial médica do realizado RX ortopantomografia, bem como da realização do demais exame marcado pelo INMLCF ?
Vejamos.
Identificando-o como doc. nº. 9, a Apelante juntou aos autos, com a as alegações recursórias, um estudo denominado Precisão e exatidão da avaliação radiológica da idade óssea em crianças de diferentes grupos étnicos: uma revisão sistemática – in Archives of Health, Curitiba, v. 5, n. 3, p, 01-06, special edition, 2024, ISSN 2675-4711 -, estando-se perante um artigo aceite para publicação em 07/12/2024, tendo como autores cinco identificados graduados em Medicina.
Consta ter tal artigo médico “por objetivo uma revisão de literatura sobre a aplicação e validade da radiografia de idade óssea em crianças pertencentes a diferentes grupos étnicos”, tendo como objectivo “averiguar a precisão e exatidão da avaliação radiológica da idade óssea em crianças de diferentes grupos étnicos, de modo a destacar limitações atuais e propor adaptações aos métodos atuais”.
Acrescenta-se ter-se destacado a existência de “alterações na validade do exame a depender do grupo étnico a qual a criança pertença, por exemplo, em pacientes asiáticos e árabes houve uma superestimação da idade óssea, bem como na população africana”.
Pelo que, aduz-se, “o emprego da radiografia na estimativa de idade óssea é satisfatório na maioria das crianças, permitindo o diagnóstico de patologias estaturais e puberais. Contudo, se empregado isoladamente, confere alguns vieses que atrapalham sua correta interpretação, devendo levar em consideração a população analisada e suas características clínicas”.
Referencia, ainda, o mesmo estudo que “os métodos mais comuns para a avaliação consistem em comparar a ossificação do rádio e ulna, metacarpos/falanges e do carpo (Greulich ; Pyle, 1959) ou em avaliar índices de maturação óssea com base em pesos (Tanner – Whitehouse, 1983). Há ainda métodos que avaliam a arcada dentária”.
Todavia, “apesar da sua grande aplicabilidade clínica, a avaliação apresenta limitações devido a fatores externos e internos ao paciente. Há a variabilidade individual, expressa por diferenças genéticas, hormonais, ambientais, além da própria interpretação subjetiva das radiografias, comparadas a modelos padrão.
A variação étnica é outro fator que contribui para a limitação da ferramenta. A maturação esquelética ocorre em padrões diferentes entre os grupos étnicos, sendo que a maior parte dos estudos radiológicos baseia-se em padrões caucasianos de maturação (Greulich ; Pyle, 1959)”.
Assim, aduz, “a precisão e a exatidão da avaliação radiológica da idade óssea podem variar significativamente entre diferentes grupos étnicos. O método Greulich e Pyle (GP), amplamente utilizado, apresenta variações significativas na precisão quando aplicado a crianças de diferentes origens étnicas. Segundo Mora e Cappa (2013), mostraram que o método GP tende a subestimar a idade óssea em crianças asiáticas e superestimar em crianças africanas, em comparação com crianças caucasianas. No trabalho de Van Rijn, Lequin e Robben (2005) também relataram variações significativas na precisão do GP para crianças de diferentes origens étnicas”.
Pelo que, acrescenta, indicarem os resultados “que a avaliação radiológica da idade óssea é heterogênea e suscetível a variações étnicas. Diferenças genéticas e ambientais entre os grupos étnicos podem influenciar a taxa de maturação óssea, o que pode explicar parte da variabilidade observada (Ruhli e Henneberg, 2004). A diversidade nas curvas de crescimento e desenvolvimento entre as populações destaca a necessidade de métodos de avaliação que considerem essas variações. A utilização de métodos como GP e TW, desenvolvidos principalmente com base em populações europeias ou norte-americanas, pode não ser ideal para populações de outras origens (Cole e Green, 1992). Deve-se, portanto, a criação de novas tabelas de referência específicas para diferentes grupos étnicos”.
Ressalva-se, assim, que a precisão da avaliação da idade óssea é importante “na determinação da idade em emigrantes sem documentação (Bull et al., 1999)”, pelo que “erros na avaliação podem levar a disgnósticos incorrectos ou decisões legais inadequadas, destacando a importância de métodos precisos e ajustados”.
Por fim, em termos de considerações finais, consigna que “a idade óssea pode ser avaliada a partir de diversos métodos, sendo os mais utilizados o Greulich-Pyle Atlas (GPA) e Tanner-Whitehouse 3 (TW3), que são baseados em análise de radiografias de mão e punho. De acordo com a literatura, embora amplamente utilizados, possuem limitações pois não levam em consideração alguns fatores que podem interferir no crescimento, como processos patológicos, hábitos alimentares, condições socioeconómicas, questões ambientais e genéticas, incluindo a variação entre as etnias. Dessa forma, fica claro que há um viés racial para avaliação da idade óssea de acordo com os métodos estudados, interferindo na precisão dos mesmos. Apesar disso, podem ser utilizados de maneira a auxiliar a avaliação do paciente, principalmente se combinando diferentes métodos” (sublinhado nosso). 
De acordo com cópia do passaporte junta aos autos, o jovem A … (também identificado nos autos como A …) tem como data de nascimento 10/10/2006, pelo que, à data da instauração dos autos – 19/03/2024 -, teria, aparentemente, 17 anos de idade.
Todavia, segundo o exame pericial efectuado através de RX à mão e punho esquerdos, para determinação da idade óssea, o mesmo teria, em 07/08/2024, pelo menos, 19 anos de idade, situando-se o seu nascimento, pelo menos, no ano de 2005. O que significaria que, à data da instauração da presente acção, já teria atingido a maioridade.
Constata-se, todavia, conforme a literatura médica referenciada, que aquela conclusão pericial, na qual se fundou a decisão apelada, teve por base o método Greulich – Pyle, o qual apresenta variações significativas de precisão, consoante a origem étnica do indivíduo em equação, tendendo, nomeadamente, a superestimar a idade óssea em crianças africanas.
Efectivamente, conforme referenciado, tal método, isoladamente aplicado, possui várias limitações, não considerando diferenciados factores capazes de influírem no resultado apurado, tais como os referenciados processos patológicos, hábitos alimentares, condições socioeconómicas, questões ambientais e genéticas, incluindo a variação entre as etnias, o que determina a existência de um viés racial que interfere na desejada precisão. Donde, o prudente conselho de que a utilização de tal método deva ser sempre combinada com a aplicabilidade de outros, de forma a mitigar ou eliminar a indesejada imprecisão na determinação da idade óssea.
Ora, in casu, o jovem, para além do RX à mão e punho esquerdos, efectuou, ainda, um RX ortopantomografia, cuja aferição pericial não se mostra realizada nos autos. E, ademais, foi convocado para a realização de outro exame pericial (cuja natureza se desconhece), igualmente para a aferição da sua idade biológica (ao qual terá faltado uma única vez, desconhecendo-se se por responsabilidade sua, pois a notificação foi apenas efectuada á associação que se assume como sua legal representante, ora Recorrente).
Constata-se, assim, que a decisão sob sindicância, fundando-se em exclusivo naquele juízo pericial parcelar, foi intempestiva e precocemente prolatada, pois deveria ter aguardado pela avaliação pericial do exame já realizado, e pela realização do demais exame pericial determinado. De forma a concluir-se, com maior certeza, acerca da idade biológica do jovem, bem como da (im)pertinência acerca da (in)subsistência dos presentes autos de promoção e protecção.
O que implica, neste contexto, juízo de procedência das conclusões recursórias, determinante:
- da revogação da decisão recorrida/apelada ;
- a qual se substitui por decisão que determina:
a) a audição directa e presencial do jovem por parte do Tribunal ;
b) a aferição/avaliação pericial do RX de ortopantomografia realizada pelo jovem ;
c) a realização do demais exame pericial determinado, solicitando-se nova marcação do mesmo ;
d) após o que dever-se-á determinar acerca da idade biológica do jovem (confirmando ou infirmando a que consta do seu documento oficial), com reflexos no processamento dos ulteriores termos processuais.
*
Nos quadros do artº. 4º, nº 1, alínea i), do Regulamento das Custas Processuais, não são devidas custas.

***
IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Recorrente ASSOCIAÇÃO das ALDEIAS SOS de PORTUGAL, legal representante do jovem A … (também identificado nos autos como A …), em que figura como Apelado/Recorrido o DIGNO MAGISTRADO do MINISTÉRIO PÚBLICO  ;
b) Em consequência, determina-se:
- a revogação da decisão recorrida/apelada ;
- a qual se substitui por decisão que determina:
1. a audição directa e presencial do jovem por parte do Tribunal ;
2 a aferição/avaliação pericial do RX de ortopantomografia realizada pelo jovem ;
3. a realização do demais exame pericial determinado, solicitando-se nova marcação do mesmo ;
4. após o que dever-se-á determinar acerca da idade biológica do jovem (confirmando ou infirmando a que consta do seu documento oficial), com reflexos no processamento dos ulteriores termos processuais.
c) Nos quadros do artº. 4º, nº 1, alínea i), do Regulamento das Custas Processuais, não são devidas custas.

Lisboa, 08 de Maio de 2025
Arlindo Crua
Higina Castelo
Pedro Martins
_______________________________________________________
[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Todas as referências legais infra, salvo expressa menção em contrário, reportam-se ao presente diploma.
[3] Introduzida na ordem jurídica nacional pela Resolução da AR nº. 20/90, de 12/09.
[4] Tomé d’Almeida Ramião, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Anotada e Comentada, 7ª Edição, Quid Júris, pág. 25.
[5] Publicada no DR nº. 211/90, Série I, 1º Suplemento, de 12/09/1990.
[6] Adoptada em 20 de Novembro de 1959 pela Assembleia-geral das Nações Unidas.
[7] Tomé d’Almeida Ramião, ob. Cit., pág. 64.