Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
133/24.8T8SNT.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO INICIAL
DIVÓRCIO-CONSTATAÇÃO DA RUTURA CONJUGAL
AL. D) DO ART. 1781.º DO CC
FUNDAMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário[1] (elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2]):
1. O juiz apenas deve proferir despacho de indeferimento liminar com fundamento na manifesta improcedência do pedido quando a pretensão do autor não tiver quem a defenda, nos tribunais ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a sua tese não tem condições para vingar nos tribunais.
2. A previsão da al. d) do art. 1781.º do CC exige a demonstração da rutura do casamento através de factos externamente apreensíveis e que os mesmos apresentem uma gravidade equivalente à das constelações fácticas descritas nas alíneas anteriores, devendo, no entanto, tratar-se de factos diferentes dos que nelas são enunciados.
3. A factualidade integradora da qualquer uma das als. a) a c), apesar de não se verificarem os requisitos nelas previstos, pode, ainda assim, ser carreada para o processo por forma a que, conjuntamente com outros factos que lhes acrescentem significado, fundamentar um pedido à luz da previsão da al. d).
4. É que a técnica utilizada pelo legislador Lei n.º 61/2008, de 31.10, foi a de conferir amplitude à previsão normativa da acrescentada al. d) do art. 1781.º do CC, à qual, assim, poderão ser subsumidos factos muito diversos.
5. Assim, consagrou-se no direito português, a partir de 2008, um sistema de divórcio-constatação da rutura conjugal, em que a causa do divórcio é a própria rutura em si, independentemente das razões que a tenham determinado.
_____________________________________________________
[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO:
E instaurou, no dia 17 de novembro de 2023, a presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra V, concluindo assim a petição inicial:
«Nestes termos e nos demais de Direito que doutamente se suprirão, deverá julgar-se a ação procedente, por provada, decretando-se o divórcio entre os cônjuges, com fundamento no artigo 1781.º, al. d), do Código Civil».
*
No dia 22 de janeiro de 2024 a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho:
«(...)
Em rigor, decorre do exposto que a causa de pedir que subjaz aos presentes autos é a (eventual) separação de facto desde 31.10.2023.
*
Nos termos do artigo 931.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, apresentada a petição, se a acção estiver em condições de prosseguir, o juiz designa dia para uma tentativa de conciliação, sendo o autor notificado e o réu citado para comparecerem.
Estabelece, por sua vez, o artigo 590.º, n.º 1, do mesmo diploma legal que, nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
No caso em análise, desde já se adianta que, no âmbito da presente acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, face aos factos alegados e à causa de pedir invocada, o pedido é manifestamente improcedente.
A acção de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges consubstancia uma acção constitutiva (cfr. artigo 10.º, nº 3, alínea c) do Código de Processo Civil), em que a causa de pedir é constituída por quaisquer factos concretos invocados que mostrem a ruptura definitiva do casamento (alínea d)) ou consubstanciadores da separação de facto por um ano consecutivo (alínea a)), da alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum (alínea b)), ou da ausência do outro cônjuge, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano (alínea c)) – cfr. artigo 1781.º do Código Civil.
O ónus de alegação e prova dos factos que consubstanciam fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, nos termos acabados de enunciar, compete ao cônjuge demandante, por aqueles factos serem constitutivos do seu alegado direito ao divórcio – cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
A Autora intentou a presente acção alegando a separação de facto há menos de um ano, invocando a previsão da alínea d) do citado 1781.º do Código Civil.
Ora, o fundamento invocado de separação de facto por período inferior ao constante da alínea a), não preenche, por si só, o conceito de ruptura definitiva do casamento constante da alínea d). A par disso, no caso vertente, a Autora não alega quaisquer factos que preencham este conceito, fundando-se unicamente na separação de facto: porquanto a Autora por - não aceitar a venda do imóvel, proposta pelo Réu – entende que se encontram separados de facto desde 31.10.2023.
A ruptura definitiva do casamento é a quarta causa objectiva do divórcio, caracterizando-se por ser residual, isto é, só opera quando não se verifique, ou se invoquem as demais causas previstas no artigo 1781.º do Código Civil. Daí que, como expressamente explicita Tomé d´Almeida Ramião (in “O Divórcio e Questões Conexas”, 3.ª ed., p. 75), «não se possa, por exemplo, intentar ação de divórcio baseada na rutura definitiva invocando a separação por um período inferior a um ano, já que a separação de facto, enquanto causa autónoma, só constitui fundamento para o divórcio desde que ocorra por um período de um ano consecutivo. Dito de outro modo, a separação de facto, só por si, nessa circunstância, não pode demonstrar a rutura definitiva do casamento».
Por sua vez, e no que concerne à separação de facto como causa do divórcio, esta pressupõe a conjugação de um elemento objectivo, que é a inexistência de comunhão de vida durante um ano consecutivo, com um elemento subjectivo (ou volitivo), que é o propósito, manifestado por um ou ambos os cônjuges, de não restabelecer a comunhão de vida conjugal. O referido prazo deve estar completamente decorrido à data da propositura da acção de divórcio, não podendo, sem o decurso do mesmo (aquando a propositura da acção), a separação de facto ser invocada como causa de divórcio (cfr. Ac. RP, de 11/10/2019, in BMJ 291, p. 538).
Nesta conformidade, e face a tudo o que se expôs, importa concluir que o pedido formulado não pode proceder com referência à causa de pedir invocada, pelo que há que indeferir liminarmente a petição inicial apresentada pela Autora (cfr. artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Destarte, e face ao que se expôs supra, indefere-se liminarmente a petição inicial».
*
A autora recorre desta decisão, concluindo assim as respetivas alegações:
«1ª
A decisão ora impugnada indeferiu liminarmente a petição inicial de ação 6eclarative especial de divórcio sem consentimento do poutro cônjuge instaurada pela apelante, sob o fundamento do pedido deduzido ser manifestamente improcedente, ex vi o disposto pelo artigo 590.º, nº 1, do CPC.

Tendo invocado, a nível de fundametação que «Em rigor, decorre do exposto que a causa de pedir que subjaz aos presentes autos é a (eventual) separação de facto desde 31.10.2023.»

Ocorre que, ao fundamentar nestes termos, a decisão ora recorrida perpetrou em error in judicando.

Isto porque, ao contrário do afirmado pela decisão recorrida, a ora apelante não deduziu a sua causa de pedir e respeivo pedido, com base em seperação de facto desde a data de 03.10.2023.

Pois, verificam-se pelos articulados “14”, “15”, “16”, “17”, “18” e “19” que, na realidade, a causa de pedir foi articulada nos moldes seguintes:
-* Articulado nº “14”: - Sem se olvidar, que por mensagem de WhatsApp, o Réu transmitiu a Autora, conforme resulta do print em anexo (Doc. 12), a qual dá-se por integralmente reproduzida, a mensagem de que, Diante da recusa da mesma, em vender a casa de família, diversos tratamentos e atividades dos filhso do casal “cessarão”;
-* Articulado nº “15”: - Sentindo-se a Autora pressionada e coagida, de forma a causar uma rutura indelével na necessária confiança recíproca, que deve imperar entre o casal, como projeto comum de vida em comum, sem receio do presente ou do futuro, de modo irreversível”;
-*Articulado nº “16”: - Sem se olvidar que, sempre que solicta ao Réu, a exibição de prova documental de suporte e suficiente para auferir e controlar, a realidadde da situação económica invocada pelo Autor, nada lhe éexibido de forma satisfatória e real”;
-* Articulado nº 17: - A factualidade descrita configura ma evidente violação, por banda do Réu, dos deveres de respeito, cooperação e assistência, aos quais está adstrito por força do preceituado pelo artigo 1672.º, do Código Civil;”
-* Articulado nº “18” – O que determina a rutura definite do casamento”;
-* Articulado nº 19: Encontrando-se, assim, verificado o fundamento para o dviórcio a qua alude o artigo 1781.º, al. d), do Código Civil.”
Verica-se, assim, Excelências, que em NENHUM MOMENTO da causa de pedir, a apelante invocou o singelo decurso de prazo de separação de facto do casal mas, antes pelo contrário, invocou factos cuja gravidade deverão ser objeto de produção de prova e jukgamento, os quais justificam, de per si, a RUTURA DEFINITIVA DO CASAMENTO.

Pelo que, ao indeferir liminarmente a petição inicial da apelante, a decisão recorrida violou o disposto pelos artigos 552.º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil e 1781.º, al. d), do Código Civil.
Por consequência, a título principal, ser dado provimento ao presente recurso para que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outro que ordene o prosseguimento dos autos

Por outro lado, a intenção do legislador com a nova redação dada ao artigo 1781.º, do Código Civil foi a de claramente facilitar a concessão do divórcio, tanto que, para obter o divórcio, basta que se verifique qualquer facto que mostre a rutura definitiva do casamento, até mesmo independentemente da culpa dos cônjuges.

Assim, a aplicação do direito, levada a ca pela decisão recorrida, a título subsdiário, violou o disposto pelos artigos 20.º, nº1 da Constituição da República, na vertente acesso ao Direito e 6º, nº 1, da Convenção Euorpeia dos Direitos do Homem, na vertente processo não equitaitvo, pois decide por manifestamente improcedente um pedido, sem a regular produção de prova para auferir e perquerir a informação necessária que sustente ou não a gravidade suficiente para a rutura 8efinitive do casamento.
10ª
E, ainda, violou igualmente o disposto pelo artigo 590.º, nº 4, do CPC, pois se dúvida razoável houvesse, quanto a inexistência de motivo sério e justo para a rutura definitiva do csamento, deveria então notificar a apelante para atender despacho de aperfeiçoamento, proporcionando com o convite para suprir eventuais insuficiências ou imprecisões da petição inidicial, o que não ocorreu pois, salvo o devido respeito, in casu somente seria adminssível o indeferimento liminar perante a falta absoluta da cuasa de pedir, o que não ocorreu.
11ª
Pelo tal razão, em caráter subsidiário, deverá ser dado provimento ao presente recurso para que, revogada a decisão recorrida, seja ordenada a substituição da mesma, por outra a convidar a apelante a aperfeiçoar a sua petição inicial»[3].
Remata assim:
«NESTES TERMOS, e nos melhores de direito doutamente supríveis por Vossas Excelências, requer-se, seja dado provimento ao presente recurso para que:
-* A) A título principal, seja revogada a decisão recorrida e substituída por outro que ordene o prosseguimento dos autos.
-*B) Caso assim não se entenda, em caráter subsidiário, deverá ser dado provimento ao presente recurso para que, revogada a decisão recorrida, seja ordenada a substituição da mesma, por outra a convidar a apelante a aperfeiçoar a sua petição inicial».
*
O recurso foi admitido por despacho datado de 24 de junho de 2024, ordenando-se o cumprimento do disposto no art. 641.º, n.º 7.
*
Citado para os termos do recurso e da ação, o réu veio apresentar contra-alegações, que conclui de forma exageradamente extensa e prolixa, ao arrepio do disposto no art. 639.º, n.º 1, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
***
II – Âmbito do recurso:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir se o despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial, por manifesta improcedência do pedido, deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento da ação.
***
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que consta do relatório que antecede.
*
3.2 – Fundamentação de direito:
A senhora juíza a quo indeferiu liminarmente a petição inicial, com invocação do disposto no art. 590.º, n.º 1, por entender que «(...) face aos factos alegados e à causa de pedir invocada, o pedido é manifestamente improcedente».
Afirma a senhora juíza a quo que «a Autora intentou a presente acção alegando a separação de facto há menos de um ano, invocando a previsão da alínea d) do citado 1781.º do Código Civil.
Ora, o fundamento invocado de separação de facto por período inferior ao constante da alínea a), não preenche, por si só, o conceito de ruptura definitiva do casamento constante da alínea d). A par disso, no caso vertente, a Autora não alega quaisquer factos que preencham este conceito, fundando-se unicamente na separação de facto: porquanto a Autora por - não aceitar a venda do imóvel, proposta pelo Réu – entende que se encontram separados de facto desde 31.10.2023».
Não é possível, salvo o devido respeito, acompanhar a fundamentação justificativa do despacho de indeferimento liminar.
Dispõe o art. 590.º, n.º 1, que «nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente (...)».
Conforme referem Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, «os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição.
Assim acontece quando seja manifesto que a ação nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelo autor (...)»[4].
Tal como salienta Abrantes Geraldes, «os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios formais ou substanciais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, que jamais o processo assim iniciado poderá culminar com uma decisão de mérito, ou em que seja inequívoca a inviabilidade da pretensão apresentada pelo autor, sem necessidade de qualquer diligência suplementar»[5].
Ainda segundo o mesmo Autor, a rejeição da petição inicial com fundamento na manifesta improcedência do pedido, «assenta em razões substanciais ligadas à manifesta antevisão da inviabilidade da pretensão.
Estamos aqui perante um julgamento antecipado do mérito da [ação] que se justifica apenas nos casos de evidente inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior; isto é, quando seja inequívoco que [a ação] nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais.
O juiz deve reservar esta decisão apenas para os casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência»[6].
Em suma, um tal despacho apenas deve ser proferido quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial.
Por outras palavras, o despacho de indeferimento liminar apenas deve ser proferido em situações limite e de absoluta certeza jurídica, inexistindo qualquer possibilidade de o requerente obter merecimento do pedido formulado[7].
Tem sido esta a orientação da jurisprudência, tanto da 2ª Instância, como do Supremo Tribunal de Justiça.
Tal como consta do Ac. da R.E. de 02/10/1986, C.J., XI, 4º, 283, o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será de proferir se «não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido», se a evidência da improcedência tiver um «caráter absoluto e objectivo, para poder sê-lo», se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.
No Ac. do S. T. J. de 05.03.1987, BMJ 365º, 562, decidiu-se que só será possível o indeferimento «quando a pretensão não tiver quem a defenda, nos tribunais, ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais».
No Ac. do S.T.A. de 17.10.2018, Proc. n.º 646/17.8BEAVR 0121/18 (Casimiro Gonçalves), in www.dgsi.pt, decidiu-se que «o indeferimento liminar, por manifesta improcedência, só deve decretar-se quando tal improcedência for evidente em termos de o seguimento do respectivo processo carecer, em absoluto, de razão de ser».
É à luz destes considerandos que desde já se afirma que petição inicial com que foi introduzida em juízo esta ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, não obstante não poder ser considerada um exemplo de bem alegar, antes constituindo uma peça linguisticamente descuidada, não poderia ter sido fulminada com um despacho de indeferimento liminar.
A autora instaura a ação com fundamento na al. d) do art. 1781.º do CC, introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, vigente a partir de 30 de novembro de 2008, segundo a qual, além dos referidos nas als. a) a c), são ainda «fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (...) quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento».
Será, por conseguinte, à luz da interpretação deste normativo que haveremos de concluir que, no caso concreto, a petição inicial não pode ser fulminada com a prolação de um despacho de indeferimento liminar.
Conforme pertinentemente afirma Rute Teixeira Pedro, «não pode ler-se, nesta al., a consagração, entre nós, do divórcio unilateral a pedido, em que um dos cônjuges pode requerer, com sucesso, a dissolução do casamento, sem para tal apresentar um fundamento. Tal hipótese, para além, de poder comportar um desrespeito pela garantia institucional que a Constituição da República Portuguesa consagra, no art. 36.º, n.º 1, para o casamento, não é consentânea com o teor normativo vertido no art. 1781.º. Considerando as exigências previstas nas al. a), b) e c), não será sustentável o entendimento, segundo o qual, para a invocação procedente da al. d), diversamente do que acontece nas als. anteriores, bastará a formulação séria da vontade de não pretender continuar casado, rectius de querer o decretamento do divórcio. A expressão de tal vontade corresponderá, em última análise, à formulação do pedido de divórcio que terá que ocorrer, também, nos casos das alíneas anteriores que, assim, ficariam esvaziadas de conteúdo útil. Por outro lado, a inclusão das várias alíneas no mesmo artigo, importará que, também na alínea d), se exija a demonstração da rutura do casamento através de factos externamente apreensíveis e que os mesmos apresentem uma gravidade equivalente à das constelações fácticas descritas nas als. anteriores.
Deverá tratar-se de factos diferentes dos que são enunciados nas als. anteriores deste preceito. A factualidade nelas prevista só relevará qua tale no particular quadro aí legalmente tipificado. Assim, a separação de facto, a alteração das faculdades mentais e a ausência não poderão, por si, constituir fundamento bastante do divórcio, se não se verificarem os requisitos previstos, respetivamente, nas als. a), b) e c). Nesse caso, poderão, ainda assim, ser carreados para o processo para, conjuntamente com outros factos que lhes acrescentem significado, fundar um pedido à luz da al. d).
A técnica legislativa adotada comunica amplitude à previsão normativa da al. d), a que, assim, poderão ser subsumidos factos muito diversos. Desde logo, revelarão a rutura definitiva do casamento as hipóteses fácticas em que se verifica a violação culposa dos deveres conjugais assumidos pelos cônjuges (art. 1672.º), quando tal violação, pela sua reiteração ou gravidade, comprometa a possibilidade da vida em comum. Falamos, p. ex., de situações de violência doméstica ou de adultério. Apesar de a culpa não ser, como referido, um requisito necessário para a procedência do pedido ao divórcio fundado na al. d), a demonstração da sua existência não impede a aplicação da alínea, podendo até ser decisiva para caracterizar os factos como significativos da rutura do casamento, na medida em que os mesmos factos praticados sem culpa podem ser insuficientes para ter essa carga de sentido. A extensão normativa da al. d) não se esgota, no entanto, nessas hipóteses, que se encontravam previstas, antes da reforma de 2008, no anterior art. 1779.º. Para recortar as situações que poderão relevar ao abrigo desta al., a doutrina e a jurisprudência continuam a fazer apelo aos critérios da gravidade dos atos, na sua singularidade ou reiteração, e da sua essencialidade para o comprometimento definitivo do casamento»[8].
Francisco Pedreira Coelho/Guilherme de Oliveira concretizam que «(...) o direito português, depois de 2008, consagra um sistema de divórcio-constatação da rutura do casamento, em que a causa do divórcio é a própria rutura em si, independentemente das razões que a tenham determinado.
(...)
No nosso direito, admite-se um princípio geral de dissolução por divórcio com fundamento em rutura definitiva da vida em comum, que pode ser indiciada pela verificação de qualquer facto, nos termos do art. 1781.º-d). A Lei manteve, no entanto, com alterações, as causas que vinham especificadas na redação anterior porque eram conhecidas da jurisprudência e da doutrina, e porque podiam servir da padrão do grau de exigência com que os tribunais haviam de aplicar a cláusula geral nova (al. d[9].
António Menezes Cordeiro afirma mesmo que «a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, fixou um esquema que se aproxima do antigo repúdio romano. Na verdade, um dos cônjuges pode, faltando qualquer justificação objetiva, provocar um divórcio, sem o consentimento do outro cônjuge».
No Ac. do S.T.J. de 25.02.2021, Proc. n.º 1299/16.6T8TMR.E2.S1 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt, escreve-se por via da al. d) do art. 1781.º do CC «(...) introduziu-se, na nossa ordem jurídica, o designado modelo de “divórcio-constatação da rutura conjugal”, inspirado na “conceção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do matrimónio”[10].
Tal previsão normativa configura uma facti species modelada sob o tipo de cláusula geral em torno do conceito indeterminado de “rutura definitiva do casamento”, o qual poderá ser preenchido por “quaisquer factos” reveladores dessa rutura.
Assim, a aferição do factualismo relevante requer a determinação do alcance do sobredito conceito indeterminado, de modo a delinear, ainda que por contornos flexíveis, os seus parâmetros, à luz da ratio legis que lhe está subjacente.
Nesta linha, tem vindo a ser entendido que a rutura definitiva do vínculo matrimonial deve ser consubstanciada em factos objetivos que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respetivas culpas, não se bastando com factos banais ou esporádicos nem tão pouco com razões ou sentimentos de índole meramente subjetiva de qualquer dos consortes[11]. Tem-se mesmo acentuado a necessidade de um padrão de exigência nivelado, em termos de sistemática hermenêutica, com as situações previstas nas alíneas a) a c) do citado artigo 1781.º, afora as suas especificidades, de forma a prevenir os riscos de algum voluntarismo[12].
Com efeito, na larga maioria dos casos, a situação de rutura do casamento manifesta-se através de práticas reiteradas que se prolongam no tempo, indiciadoras do rompimento da sociedade conjugal sem qualquer propósito de a restabelecer, importando assim que se demonstrem os traços fundamentais dessa reiteração, diferentemente do que dantes se exigia no modelo de divórcio-sanção baseado em violação culposa dos deveres conjugais.
Todavia, como muito bem se explicita no acórdão do STJ, de 03/10/2013, proferido no processo n.º 2610/10.9TMPRT.P1.S1[13], citado pelos Recorrentes, enquanto que a demonstração dos casos típicos previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 1781.º do CC faz presumir, iuris et de iure, a rutura definitiva do casamento, já o fundamento configurado na respetiva alínea d), sob a fórmula de cláusula geral objetiva, implica a prova efetiva dessa rutura, independentemente das circunstâncias específicas exigidas naquelas primeiras alíneas, nomeadamente o vetor de duração temporal mínima.
Nessa medida, poderá, a demonstração da rutura definitiva do casamento resultar de um núcleo fáctico único ou mais singular, desde que dotado de intensidade suficientemente reveladora de uma situação e intencionalidade que, à luz do consenso social, se mostrem inequívocas no sentido da emergência dessa rutura definitiva».
Retornando ao caso concreto, na petição inicial com que introduziu em juízo esta ação, a autora alega que:
- casou com o réu no dia 7 de novembro de 2013, sem convenção antenupcial;
- após o casamento residiram em Angola entre 1 de dezembro de 2013 e 1 de janeiro de 2018;
- o agregado mudou-se para Portugal no dia 10 de janeiro de 2018, vivendo até hoje, e sem interrupção na casa de morada de família, propriedade de ambos;
- autora e réu são pais de G, nascido no dia 17 de março de 2014, e de A, nascida no dia 10 de outubro de 2016, ambos residentes em Portugal, na companhia da autora, enquanto o réu trabalha em Angola;
- o filho de ambos, G, com 9 anos de idade, apresenta «diagnóstico de “Perturbação do Espectro do Autismo”, com atraso de linguagem, com dificuldades sérias de comunicação, perturbação do Desenvolvimento intelectual, perturbações de foro psiquiátrico e dependência de 3.ª pessoa para a vida»;
- (...) «diagnóstico esse, que graças a todos os esforços desenvolvidos pelo agregado e, sobretudo acompanhamento incessante da Autora-progenitora, revela progressos a nível escolar»;
- o réu transmitiu à autora, no dia 31 de outubro de 2023, através de e-mail, que face às necessidades económicas e financeiras do agregado teriam de proceder à «venda obrigatória do imóvel que representa a casa de morada de família»;
- (...) e anunciou-lhe «a separação de facto do casal, na hipótese da ora requerente não aceitar a almejada venda do imóvel»;
- (...) pelo que, «por não aceitar a referida venda, Autora e Réu encontram-se separados de facto desde 31 de outubro de 2023»;
- É «manifestamente urgente, regular as responsabilidades parentais dos filhos menores, de forma a tutelar os seus interesses superiores, os quais, aneseiam por manifesta e indiscutível tutela»;
- (...) e acima de tudo, por divergirem reciprocamente, Autora e Ré nesta matéria, por não estarem de acordo quanto ao mais, no que respeita aos filhos»;
- «Nomeadamente, no que respeita a fixação da residência destes em exclusivo com a progenitora, na casa de morada de família, a qual o Réu deseja vender»;
- «(...) e, ainda, no que respeita as questões de particular importância atinentes ao tratamento do filho G e da escolaridade da filha A»;
- «(...) por mensagem de whatsApp, o Réu transmitiu a Autora (...) a mensagem de que, diante da recusa da mesma, em vender a casa de família, diversos tratamentos e atividades dos filhos do casal “cessarão"»;
- «Sentindo-se a Autora pressionada e coagida, de forma a causar uma rutura indelével na necessária confiança recíproca, que deve imperar entre o casal, como projeto comum de vida em comum, sem receio do presente ou do futuro, de modo irreversível»;
- «Sem se olvidar que, sempre quando solicita ao Réu, a exibição de prova documental de suporte e suficiente para auferir e controlar, a realidade da situação económica invocada pelo Autor, nada lhe é exibido de forma satisfatória e real»;
- «A factualidade descrita configura uma evidente violação, por banda do Réu, dos deveres de respeito, cooperação e assistência, aos quais está adstrito por força do preceituado pelo artigo 1672.º, do Código Civil»;
- «O que determina a rutura definitiva do casamento»;
- «Encontrando-se, assim, verificado o fundamento para o divórcio a que alude o artigo 1781.º, al. d), do Código Civil»;
- «Sem se olvidar a recusa do Réu propor um acordo que tutele a Autora e a prole, de forma que proporcione a manutenção da casa de morada de família».
Perante isto, o mínimo que se pode dizer é que a afirmação contida no despacho recorrido, de que «a Autora intentou a presente acção alegando a separação de facto há menos de um ano, invocando a previsão da alínea d) do citado 1781.º do Código Civil», é por demais redutora, não espelhando a realidade alegada na petição inicial.
É verdade que na petição inicial vem alegado que autora e réu se encontram separados de facto desde 31 de outubro de 2023, ou seja, desde cerca de apenas um mês antes da instauração da ação.
No entanto, não é esse o fundamento desta ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges.
A separação de facto desde 31 de outubro de 2023 é apenas, segundo o alegado pela autora na petição inicial, a consequência de outros factos, que descreve, e que, em seu entender mostram a rutura definitiva do seu casamento com o réu.
Para sermos mais claros: a separação de facto do casal desde 31 de outubro de 2023 é apenas um facto que, juntamente com outros igualmente alegados na petição inicial, mostram, no entender da autora, a rutura definitiva do casamento, e constituem fundamento do pretendido divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, nos termos da al. d) do art. 1781.º do CC.
Se a factualidade alegada pela autora na petição inicial, caso venha a resultar provada, constitui, ou não, fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, ao abrigo da previsão da al. d) do art. 1781.º do CC é questão que, obviamente, não cabe aqui apreciar, e nem sequer foi apreciada em sede de despacho liminar.
Conclui-se, assim, que o despacho recorrido não pode subsistir, devendo ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.
***
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, sem julgar a apelação procedente, em consequência do que,
4.1 – revogam o despacho recorrido;
4.2 – determinam a devolução do processo à 1.ª instância, para que os autos aí prossigam seus regulares termos, conforme à senhora juíza a quo se afigurar ser de direito.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo do apelado (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 18 de novembro de 2025
José Capacete
Micaela Sousa
Edgar Taborda Lopes

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[3] As conclusões foram transcritas tal como apresentadas pela recorrente.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Almedina, 2025, p. 820.
[5] Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol. (2.ª Edição), Almedina, p. 160.
[6] Temas cit., p. 162.
[7] Cfr. o Ac. desta Relação de 14.06.2012, Proc. nº 26879/11.2YYLSB-A.L1-6 (Tomé Ramião), in www.dgsi.pt.
[8] Código Civil Anotado (Coord. Ana Prata), Volume II, Almedina, 2017, pp. 683-684.
[9] Direito da Família Volume I - Introdução – Direito Matrimonial, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 719-720.
[10] A este propósito, veja.se, entre outros, o acórdão do STJ de 09-02-2012, relatado pelo Juiz Cons. Hélder Roque, no processo 819/09.7TMPRT.P1.S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[11] A este propósito, vide o acórdão da Relação de Lisboa, de 23-11-2011, relatado pela Juíza Desembargadora Maria José Mouro, no âmbito do processo n.º 88/10.6TMFUN.L1-2, com as abundantes citações doutrinárias aí citadas, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jjtrl.
[12] Vide as considerações feitas a este propósito no acórdão indicado na nota precedente.
[13] Relatado pela Juíza Cons. Maria dos Prazeres Beleza, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.