Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2948/19.OBEPRT.G3
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
NULIDADE PROCESSUAL
SANAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O Juiz não pode substituir-se às partes no sentido de suprir a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir.
II - O princípio da igualdade das partes do art. 4.º do CPC não visa substituir a responsabilidade da iniciativa daqueles a quem a lei comete o dever de alegar e provar os factos essenciais e tão pouco o princípio da cooperação, em qualquer das leituras que dele se faça, permite igual substituição.
III - Por outro lado, o princípio da gestão processual introduzido no art. 6.º do CPC, atribuindo ao juiz o poder de exercer influência sobre o processo, quer ao nível do procedimento propriamente dito quer ao nível do processo, ou seja, do pedido e da causa de pedir e das provas carece ser respeitado dentro dos limites que fixa.
IV – Sendo irrefutável que a reforma processual operada pelos DL 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, veio consagrar um alargamento da possibilidade de salvar a acção inquinada por algum dos vícios impeditivos do conhecimento de mérito, o certo é que o alargamento de tal possibilidade de sanação ficou ainda reservada para aquelas situações resultantes de falhas menores que deixam intacta a estrutura fundamental da instância.
V - A presunção de propriedade que resulta da inscrição no registo predial ou da respectiva matriz predial não abrange a área, confrontações e/ou limites dos imóveis registados pois que o registo predial, que não é constitutivo, não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio.
VI - Os documentos não são factos, mas meios de prova de factos, pelo que deve o juiz enunciar os factos que com base nos documentos (e outros meios de prova) considera provados, explicitando suficientemente o seu conteúdo fundamental.
VII - No âmbito de um processo cível, a alegação de factos e a sua prova constitui o cerne fundamental sobre o qual incidirá uma decisão de mérito, pelo que quem se arroga o direito de preferência na aquisição de prédio rústico deve alegar e demonstrar, além do mais, que o adquirente do prédio não é proprietário confinante.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

Relatório

AA e marido, BB, intentaram acção de processo comum contra o. Ministério das Finanças (Autoridade Tributária), CC, e DD e mulher, EE e CC, pedindo que seja reconhecido e declarado o direito de preferência dos Autores, na alienação dos prédios rústicos inscritos matricialmente sob os artigos ...54 e ...61, ambos da freguesia ..., concelho ..., bem como declarados alienados/adjudicados aos Autores os prédios rústicos inscritos matricialmente sob os artigos ...54 e ...61, ambos da freguesia ..., concelho ..., e ordenado o cancelamento das inscrições registrais a favor do Réu CC – dos prédios descritos sob os nºs ...97 e ...98 (...) –- da Conservatória do Registo Predial ....
Alegaram, em síntese, que na venda em execução fiscal do quinhão hereditário das heranças de FF e de GG de que era titular o executado DD, realizada pela autoridade tributária, na qualidade de vendedora, a CC, tinham os autores direito de preferência, por serem proprietários confinantes de dois dos imóveis que integram tal quinhão hereditário (ou seja, os prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos ...54 e ...61, ambos da freguesia ..., concelho ...).
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O Réu CC contestou a acção invocando, em síntese que não houve qualquer negócio de translação da propriedade sobre imóveis, mas apenas de quinhões hereditários, inexistindo, nessa medida, direito de preferência de proprietários confinantes, pois que, quando muito, o que poderia existir era um direito de preferência de co-herdeiros e que os autores não alegam um facto constitutivo do direito de que se arrogam titulares, concretamente, que o adquirente não é também ele proprietário confinante.
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A Autoridade Tributária contestou alegando que não houve qualquer negócio de translação da propriedade sobre imóveis, mas apenas de quinhões hereditários, pelo que inexiste qualquer direito de preferência.
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Os autores responderam, invocando assistir-lhes razão por os quinhões hereditários serem titulados por uma única pessoa, pelo que ela é a proprietária dos concretos bens que compõem tais quinhões, mais invocando que os documentos juntos permitem concluir não ser o adquirente proprietário confinante.
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Inicialmente, foi proferida decisão em 1ª instância que julgou a acção improcedente e, consequentemente, dela absolveu os réus.
Após, os autores interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido acórdão que negou provimento ao recurso e, confirmou a decisão recorrida.
Inconformados, os autores interpuseram recurso de revista (excepcional), vindo a ser revogado o acórdão recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos, para conhecimento dos pedidos apresentados pelos autores na petição inicial, relativamente ao reconhecimento do direito de preferência (art. 1380.º do CC).
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Perante o exposto, voltaram os autos à primeira instância tendo-se realizado audiência prévia e elaborado despacho de saneador, estabelecendo-se o objecto do litígio e tema de prova.
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Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida nova decisão que julgou a acção procedente e, em consequência reconheceu e declarou o direito de preferência dos autores AA r BB, para alienação dos prédios rústicos inscritos matricialmente sob os artigos ...54 e ...61, ambos da freguesia ..., concelho ....
Nessa sequência, determinou-se que oportunamente a Autoridade Administrativa, pela ausência do cumprimento no disposto no art. 249º, nº 7, do CPPT, providenciasse pela regularização da alienação ocorrida, para serem adjudicados e alienados pelos autores AA e BB, os prédios rústicos inscritos matricialmente sob os artigos ...54 e ...61, ambos da freguesia ..., concelho ..., com o consequente cancelamento do registo predial a favor do réu CC e registo a favor dos autores AA e BB, uma vez que os autores/preferentes devem ser substituídos na posição do comprador, pagando o preço devido e as despesas da compra.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida veio o R. CC interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

I – O tribunal a quo convidou o réu, ora Recorrente, na audiência prévia, ao seguinte:“[t]endo em conta que o réu na sua contestação suscita a questão (não alegada) na petição inicial de não ser proprietário confinante, facto que entende como facto negativo que competia aos autores alegarem em sustento do direito exercido, e embora seja questão controvertida na doutrina e Jurisprudência, entende o Tribunal que sendo um facto que aproveita à defesa do réu deveria por ele ter sido esclarecido até porque é a pessoa que está em melhores condições de o fazer, ou seja, esclarecer se é ou não proprietário confinante dos prédios em litígio nos autos. [e]m face do exposto fica o réu notificado para esclarecer tal questão”.
II – Os autores pretendem o reconhecimento judicial do direito legal de preferência, previsto no art. 1380.º do CC.
III – Na petição inicial, os Autores não alegaram que o adquirente dos prédios objeto da ação, ora réu, não é proprietário de prédios rústicos confinantes.
IV – Esse requisito constitui um facto essencial, constitutivo do direito dos autores. V – Dessarte, tal facto deveria ter sido alegado na petição inicial.
VI – As normas dos arts. 411.º e 413.º, ambos do CPC, segundo a qual incumbe ao juiz ordenar todas as diligências que se mostrem essências e adequadas, com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, devem ser conjugadas com os princípios do dispositivo, da autorresponsabilidade das partes e com o princípio da preclusão.
VII – Os factos constitutivos do direito de preferência, por consubstanciarem factos essenciais, não podem ser supridos por iniciativa do juiz.
VIII – Menos ainda se pode impor ao réu que alegue um facto constitutivo do direito dos autores.
IX - Haverá, logo, que concluir pela nulidade do despacho proferido, ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, aplicável aos despachos por força do n.º 3 do art. 613.º do mesmo diploma legal, bem como ao abrigo do disposto no art. 195.º, n.º 1, do CPC, anulando-se o mesmo.
X - O direito legal de preferência previsto no art.1380.º, n.º 1, do CC depende da verificação de que o adquirente não é proprietário de prédio confinante com o prédio alienado.
XI - Tal facto constitui um requisito essencial e constitutivo do direito de preferência, incumbindo aos Autores a respetiva alegação e prova.                                                                                         
XII - Não consta da matéria de facto dada como provada nos autos que o Réu não seja proprietário de prédio confinante.
XIII - A sentença recorrida reconheceu o direito de preferência sem que esse pressuposto legal estivesse provado, incorrendo em erro de julgamento.
XIV - Deve, por isso, a sentença ser revogada, e o Réu absolvido do pedido.
Pelo exposto, e com o douto suprimento de V./Ex.as., deve ser concedido provimento ao presente recurso, declarando-se a nulidade do despacho sub censura, e revogando-se a sentença proferida, terminando-se com a absolvição dos Réus do pedido, fazendo-se assim inteira JUSTIÇA!
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Os AA. vieram apresentar as suas contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.
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Recebido o recurso, foram colhidos os vistos legais.
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III. O objecto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608.º, n.º 2, ex. vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n. os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex. officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Face às conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar e decidir sobre a nulidade arguida e se se verificam os pressupostos necessários para o exercício do direito de preferência pelos AA.
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Fundamentação de facto

Factos provados
1. Ao réu DD, no processo de execução fiscal ...67 e apensos, foram penhorados os quinhoes hereditários por morte de seus pais, FF e HH, os quais eram compostos pelos seguintes bens: imóveis todos situados na freguesia ..., concelho ..., artigos urbano ...5; rústico ...17, rústico ...61; rústico ...54; rústico ...48; rústico ...18; rústico ...90; rústico ...39.
2. O réu DD é o único herdeiro dos pais.
3. A Direcção de Finanças do Porto – Serviço de Finanças ... 2, em 30 de Julho de 2019, aceitou a proposta de adjudicação apresentada pelo réu CC, o qual apresentou uma proposta global de adjudicação de todos os bens penhorados, pelo valor de €21.600,00.
4. A Direcção de Finanças do Porto – Serviço de Finanças de ... 2, não procedeu à notificação dos confinantes para que exercessem o direito legal de preferência no prazo legal.
5. Após, a Direcção de Finanças do Porto – Serviço de Finanças de ... 2, emitiu despacho de adjudicação.
6. Os autores requererem certidão do título de transmissão em 13/11/2019, bem como os comprovativos dos impostos liquidados, para saber o preço de adjudicação dos prédios e formar a consequente vontade de preferir.
7. O prédio rústico com o artigo ...54 confina com o prédio rústico dos autores, inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo ...52.
8. Na cofinancia norte deste prédio inscrito sob o artigo ...52, surge “FF”, pai do réu DD.
9. O prédio com o artigo ...61 confina com os prédios rústicos dos autores, inscrito na matriz predial rustica da freguesia ..., concelho ... sob os artigos ...52 e ...60.
10. Os autores verificaram que o artigo ... foi adjudicado pelo valor de €73,82, pagou de IMT (5%) €3,69; pagou de IS (0,8%) €0,59, o que perfaz o valor de €78,10.
11. Os autores verificaram que o artigo ... foi adjudicado pelo valor de €34,08, pagou de IMT (5%) €1,70; pagou de IS (0,8%) €0,27, o que perfaz o valor de €36,05.
12. Para cobrança da dívida com proveniência em Imposto Único de Circulação, Coimas e Encargos e Portagens correram contra DD os processos de execução fiscal n.ºs ...67 e aps., ...80 e aps., ...22, ...01 e aps., ...60 e aps., ...75 e aps., num total de 139 processos, cuja quantia exequenda perfazia o valor de €20.562,32
13. No âmbito de tais processos, foi efetuada em 25/03/2019 uma penhora.
14. A penhora efetuada abrangeu o quinhão hereditário que o executado, DD, detinha na Herança por Óbito de FF (seu pai) e o quinhão hereditário que o mesmo executado detinha na herança por Óbito de HH (sua mãe).
15. Por despacho de 30/04/2019 proferido pelo Chefe de Finanças ... 2 foi fixado o dia 30 de Julho de 2019, pelas 11:00 para a venda dos 2 quinhões hereditários acima discriminados na modalidade de leilão eletrónico.
16. A venda registada no sistema informático da AT com o n.º ...6, foi realizada tendo os dois quinhões hereditários sido adjudicados a CC, por ter sido o proponente que apresentou a proposta de maior valor, €21.600,00.
17. O adjudicatário procedeu em 31/07/2019 ao pagamento do valor da venda: €21.600,00, e do IMT e Imposto do Selo.
18. Em 12/08/2019, foi proferido o despacho pelo Chefe de Finanças ... 2, por delegação de competências do Diretor de Finanças do Porto, com o seguinte teor:
i. “Em face da informação que antecede e demais elementos constantes dos autos à margem identificados, e dado que está pago o preço e acréscimos legais exigíveis a esta data, nos termos do artigo 827º do Código de Processo Civil, ADJUDICO o Móvel constituído pela verba um correspondente a 7 /8 indiviso e a verba dois correspondente a 1/8 indiviso do quinhão hereditário composto por: Artigo urbano nº...5; artigo rústico nº ...17; Artigo rústico ...51; Artigo rústico nº ...61; Artigo rústico nº ...54; Artigo rústico nº ...48; Artigo rústico nº ...18; Artigo rústico nº ...90 e Artigo rústico n...39 a CC, NIF ...93.
ii. Proceda-se à emissão e entrega ao adquirente do competente título de transmissão, após o trânsito em julgado deste despacho.
Notifique-se o executado, e o comprador deste despacho.”
19. O título de transmissão foi passado em 14/08/2019.
20. A Direcção de Finanças do Porto – Serviço de Finanças de ... 2, não procedeu à notificação dos proprietários confinantes dos prédios que integram os referidos quinhões hereditários.
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Fundamentação de direito

Da nulidade
O Recorrente começou por arguir a nulidade do despacho proferido na audiência prévia, ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, aplicável aos despachos por força do n.º 3 do art. 613.º do mesmo diploma legal, bem como ao abrigo do disposto no art. 195.º, n.º 1, do CPC, que o convidou a esclarecer se é ou não proprietário confinante dos prédios em litígio nos autos “[t]endo em conta que o réu na sua contestação suscita a questão (não alegada) na petição inicial de não ser proprietário confinante, facto que entende como facto negativo que competia aos autores alegarem em sustento do direito exercido, e embora seja questão controvertida na doutrina e Jurisprudência, entende o Tribunal que sendo um facto que aproveita à defesa do réu deveria por ele ter sido esclarecido até porque é a pessoa que está em melhores condições de o fazer…”.
Vejamos.
As nulidades típicas de uma decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
Assim, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito.
Tais vícios não se confundem, assim, com erros de julgamento (error in judicando), decorrentes de má percepção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa.
Especificamente, segundo o disposto no art. 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
As questões postas, a resolver, «suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)» (Alberto dos Reis, op. cit., pág. 54). Logo, «as “questões” a apreciar reportam-se aos assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões» (Ac. do STJ, de 16.04.2013, António Joaquim Piçarra, Processo n.º 2449/08.1TBFAF.G1.S1); e não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes (a estes não tem o Tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido).
Por outras palavras, as «partes, quando se apresentam a demandar ou a contradizer, invocam direitos ou reclamam a verificação de certos deveres jurídicos, uns e outros com influência na decisão do litígio; isto quer dizer que a «questão» da procedência ou improcedência do pedido não é geralmente uma questão singular, no sentido de que possa ser decidida pela formulação de um único juízo, estando normalmente condicionada à apreciação e julgamento de outras situações jurídicas, de cuja decisão resultará o reconhecimento do mérito ou do demérito da causa.» (Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, Almedina, Lisboa, pág. 228).
Nos termos do princípio da cooperação consagrado no art. 7.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, “o[O] juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência”.
Contudo, é certo, que não pode substituir-se às partes no sentido de suprir a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (cfr. art. 5.º, n.º 1, do mesmo diploma).
O princípio da igualdade das partes do art. 4.º do CPC não visa substituir a responsabilidade da iniciativa daqueles a quem a lei comete o dever de alegar e provar os factos essenciais e tão pouco o princípio da cooperação, em qualquer das leituras que dele se faça, permite igual substituição. Por outro lado, o princípio da gestão processual introduzido no art. 6.º do CPC, atribuindo ao juiz o poder de exercer influência sobre o processo, quer ao nível do procedimento propriamente dito quer ao nível do processo, ou seja, do pedido e da causa de pedir e das provas - Vd. Miguel Mesquita “A flexibilização do princípio do pedido à luz do direito processual civil” in RLJ ano 143, nº 3983, p. 145 – carece ser respeitado dentro dos limites que fixa.
De qualquer das formas, o facto é que o despacho objecto de impugnação não se pronunciou sobre a questão fundamental atinente ao pedido formulado limitando-se apenas a endereçar um convite ao R./Recorrente.
Convite esse a que a parte não deu cumprimento, tendo os autos prosseguido os seus termos sem qualquer cominação daí decorrente.
Esgotou-se nesse mero convite sem consequências.
Nenhuma questão, relativamente a esse convite, acabou por ser alvo de decisão.
Como tal, a questão fundamental subjacente a esse convite terá de ser apreciada e decidida no âmbito do recurso interposto da decisão de mérito proferida.
Pois, esse convite não contende com a nulidade da decisão recorrida, enquanto vício ou erro formal ou de procedimento, na medida em que, para além do mais, nenhum efeito adveio da sua inobservância com prejuízo para a parte.
Em segundo lugar, também se julga não se verificar a nulidade arguida, enquadrável no art. 195.º, n.º do Cód. Proc. Civil, por o despacho a convidar a parte, a prestar esclarecimentos, em nada influiu na decisão ou no exame da causa, pelas razões aduzidas.
De qualquer das formas a julgar-se verificada a situação prevista no citado preceito necessário seria que a parte, presente no acto, desde logo tivesse arguido o vício que invoca (cfr. art. 199.º, n.º 1, 1.ª parte, do Cód. Proc. Civil).
Por outro lado, na esteira do entendimento condensado na máxima tradicional "dos despachos recorre-se, das nulidades reclama-se", só podem ser conhecidas nulidades processuais cobertas por despacho que sobre elas se tenha pronunciado, a não ser que sejam do conhecimento oficioso.
Assim, exceptuada essa situação e a prevista no n.º 3, do artigo 199.0, do Cód. Proc. Civil (a de o processo ser expedido em recurso antes de findar o prazo referido no n.º 1, caso em que a arguição pode ser feita perante o tribunal superior), as nulidades devem ser arguidas e julgadas no tribunal perante o qual ocorreram.
Decorre do exposto que, a existir, a nulidade invocada estaria sanada.

Do direito de preferência
Posto isto, importa apreciar e decidir sobre a questão de fundo.
No presente caso, os autores pretendem o reconhecimento judicial do direito legal de preferência, previsto no art. 1380.º do CC.
Como aponta o R./Recorrente e foi invocado na contestação deduzida, os Autores não alegaram que o adquirente dos prédios não é proprietário de prédios rústicos confinantes.
Assim, considerando tratar-se de um facto essencial, constitutivo do direito dos autores, entende que deveria ter sido alegado na petição inicial, não podendo essa omissão ser suprida por iniciativa do juiz e menos ainda impor ao réu que alegue um facto constitutivo do direito dos autores.
Na sua contestação o R./Recorrente veio precisamente invocar que a alegação e prova de que o adquirente não é proprietário do prédio confinante constitui um facto constitutivo do direito do A., pelo que, perante essa omissão, pugnou pela improcedência da acção, por omissão de factos essências tendentes a demonstrar o direito de que se arrogam os AA.
Em resposta os AA. vieram alegar que os documentos juntos, quer do registo predial, quer da respectiva matriz predial permitem constatar que o R. não consta como confinante de nenhum dos prédios objecto do direito que se pretende exercer.
Acontece que o R., para além de ter vindo impugnar o doc.3, junto com a p.i., veio também impugnar a veracidade das confrontações resultantes das cadernetas prediais.
Como se sabe, a este respeito, e como é hoje entendimento pacífico, a presunção de propriedade que resulta da inscrição no registo predial ou da respectiva matriz predial não abrange a área, confrontações e/ou limites dos imóveis registados pois que o registo predial, que não é constitutivo, não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio – veja-se Acórdão desta Relação de 30/05/2018, processo n.º 8250/15.9T8VNF.G1, que cita, com este entendimento, os Acórdãos do STJ de 27/11/93, 5/7/2001, 4/5/2004, 8/10/2009 e 13/02/2014 e o Acórdão desta Relação de 11/01/2018, processo n.º 1772/07.7TBBCL.G1, citando Acórdãos do STJ de 7/04/2011, proc. nº. 569/04.0TCSNT e de 14/11/2013, proc. nº. 74/07.3TCGMR, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Por isso, o que eventualmente consta da descrição do registo predial quanto à área e confrontações dos prédios, e que passou para a descrição dos mesmos na escritura de doação, não está abrangido pela presunção legal vertida no artigo 7.º do Código do Registo Predial.
Acresce que os documentos não são factos, mas meios de prova de factos, pelo que deve o juiz enunciar os factos que com base nos documentos (e outros meios de prova) considera provados, explicitando suficientemente o seu conteúdo fundamental.

Posto isto, importa considerar que para que se possa deferir o direito de preferência, ao abrigo do disposto no art. 1380.º, do Cód. Civil, necessário se torna que se demostre:
1. Que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura;
2. Que o preferente seja dono de prédio confinante com o prédio alienado;
3. Que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura; e
4. Que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.

Assim, quem se arroga o direito de preferência na aquisição de prédio rústico deve alegar e demonstrar, além do mais, que o adquirente do prédio não é proprietário confinante (neste sentido Ac. STJ 1303/20.3T8VRL.G1.S1, de 19.12.23, in dgsi).
Importa ter em conta, quanto a esta questão, que a atribuição do direito de preferência nos casos legalmente previstos constitui uma limitação ao carácter pleno do direito de propriedade, no qual se inclui a livre disposição dos bens de que se tem a propriedade – cf. artigo 1305.º CC.
Assim, como excepção ou limitação ao direito de propriedade, a atribuição do direito de preferência, só pode valer nos limites e termos em que se encontra legalmente previsto.
Ora, no âmbito de um processo cível, a alegação de factos e a sua prova constitui o cerne fundamental sobre o qual incidirá uma decisão de mérito.
Pois, de acordo com o princípio do dispositivo, incumbe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (forma de oposição), razão por que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.
Todavia, o art.º 5.º, n.º 2, al. a) e b), a que corresponde o anterior 264.º, n.º 2, do Código de Processo Civil permite ao juiz a consideração, mesmo oficiosa, respectivamente, dos factos instrumentais, bem como dos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciarem.
Na noção dada por CASTRO MENDES (Direito Processual Civil, II, p. 208), factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos actos pertinentes.
Já segundo TEIXEIRA DE SOUSA (Introdução ao Processo Civil, p. 52), tratam-se de factos que indiciam os factos essenciais.
Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais.
Já o poder inquisitório confere ao juiz tomar em consideração na decisão os factos que "sejam complemento ou concretização de outros que as partes oportunamente hajam alegado", visando suprir certas deficiências da alegação, e não a completa omissão de factos essenciais à procedência da pretensão formulada ou da excepção deduzida, conforme decidiu o STJ no Ac. 01.07.2004, proc. 03B3417, in dgsi.pt.
Acresce que, como decorre do preceituado no art. 552.º, do Cód. Civil, o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção, como lógico antecedente da pretensão que pretende formular.
Tal decorre do princípio do dispositivo que faz recair sobre aquele que invoca a titularidade de um direito o ónus de alegação dos factos que o integram (art. 5.º, n.º 1, CPC).
Assim, na petição inicial, o A. propõe a acção, deduzindo a sua pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito a tutelar e dos fundamentos respectivos.
Constitui, como tal, o pedido, a pretensão do autor (art.º 552º, n.º 1, alínea e)); o direito para que ele solicita ou requer, a tutela judicial/e o modo por que intenta obter essa tutela; o efeito jurídico pretendido pelo autor (art.º 581º, n.º 3).
Já a causa de pedir consiste no acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer, sendo certo que este direito não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir -  Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 111.
Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real em causa (art.º 581.º, n.º 4).
Sendo irrefutável que a reforma processual operada pelos DL 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, veio consagrar um alargamento da possibilidade de salvar a acção inquinada por algum dos vícios impeditivos do conhecimento de mérito, o certo é que o alargamento de tal possibilidade de sanação ficou ainda reservada para aquelas situações resultantes de falhas menores que deixam intacta a estrutura fundamental da instância (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol, 2ª edição revista e ampliada, pp. 64 e 65).
In casu, após o recurso interposto, veio o STJ pronunciar-se sobre a questão alvo de impugnação e que consistia em apurar se os AA. tinham direito a preferir na adjudicação dos imóveis a um dos herdeiros, em sede de partilhas.
Após as devidas considerações, concluiu-se que “…como na adjudicação se transmitiram bens imóveis pertencentes ao executado, e não quinhões hereditários (direito às heranças abertas por óbito dos seus pais), ocorreram compras e vendas dos prédios inscritos sob os artigos rústicos ...54 e ...61, que podem justificar uma preferência na sua compra pelos proprietários dos terrenos confinantes com os mesmos, no caso, aos recorrentes.
Temos, pois, que não podendo ser alienados os quinhões hereditários do executado nas heranças abertas por óbito dos seus pais, isto é, o direito a quotas hereditárias, mas tendo que ser alienados os concretos bens integrantes das mesmas heranças, pois sendo herdeiro único era o proprietário dos bens, poderá haver o direito de preferência consignado no art. 1380.º, do CCivil, aos proprietários dos terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura.
Destarte, procedendo o recurso de revista, há que revogar o acórdão recorrido, determinando o prosseguimento dos autos.”
Prosseguiram, assim, os autos para apuramento dos factos, tendo sido dados como provados aqueles que foram ora enunciados no ponto III, com base nos quais foi proferida decisão a reconhecer o direito dos AA.
Acontece que, lendo os fundamentos a fundamentação de direito, constata-se que o tribunal a quo se limitou a transcrever e a enunciar a argumentação constante do acórdão do STJ atinente à questão prévia que se suscitava nos autos quanto a ser exercido o direito de preferência num caso de adjudicação dos imóveis a um herdeiro por via de partilhas e não através de um qualquer negócio de compra e venda inerente aos prédios objecto do direito invocado pelos AA.
Como tal, tendo-se entendido que esse direito de preferência podia ser exercido num caso de adjudicação dos imóveis a um herdeiro por via de partilha, tinham os autos que prosseguir para apuramento dos demais pressupostos.
Ora, como resulta dos factos dados como provados e que não foram alvo de impugnação, fica sem se saber se os prédios têm área inferior à unidade de cultura e se o adquirente do prédio é, ou não, proprietário confinante.
Aliás, em nosso modesto entendimento, considera-se que a sentença proferida não aborda e aprecia especificamente a excepção invocada quanto à falta de alegação pelos AA. deste último facto, nem procede a uma análise crítica dos factos dados como provados, por forma a enunciar quais os que, em seu entender, integram os requisitos do direito de preferência que reconhecem aos AA.
Perante tudo o que se expôs, entendemos que, por não terem os AA. logrado alegar e demonstrar os requisitos do exercício do direito de preferência que pretendiam ver reconhecido e declarado nesta acção com as devidas consequências daí resultantes, tem o recurso de proceder quanto ao fundo da questão, e, em consequência, ser revogada a decisão, por forma a julgar-se a acção improcedente, por não provada.
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V. Dispositivo

Pelo exposto, os Juízes da 2.ª Secção Cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar o recurso improcedente quanto à nulidade arguida e procedente, quanto ao fundo da questão, revogando-se, em consequência, a decisão proferida, por forma a julgar-se a acção improcedente, por não provada.
Custas do recurso pelo R./Recorrente e AA./Recorridos, na proporção do respectivo decaimento de metade para cada uma das partes, face à não procedência quanto à questão da nulidade suscitada.
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Guimarães, 13 de Novembro de 2025
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária, sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser nos trechos transcritos, e é assinado electronicamente pelo colectivo)

Maria dos Anjos Melo (Juíza Relatora)
José Cravo (Juiz Desembargador 1.ºAdjunto)
Afonso Cabral de Andrade (Juiz Desembargador 2.ºAdjunto)