Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
11/22.5T8MRT.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
REJEIÇÃO DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - Uma das formas de constituição de uma servidão é a destinação do pai de família e que, tal como decorre do disposto no art. 1549º, do C. Civil, pressupõe os seguintes requisitos:
- que os prédios ou frações de um só prédio tenham pertencido ao mesmo dono;
- a existência de sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com o outro
- separação dos prédios ou frações em relação ao domínio (separação judicial) e inexistência de qualquer declaração contrária à destinação.
2 - A servidão por destinação de pai de família constitui-se automaticamente, por mero efeito da lei, no momento em que os prédios passam a pertencer a proprietários diferentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:
           
AA instaurou a presente ação contra BB e CC.

Alegou que é proprietária de um prédio urbano composto de casa de ... e ... andar, destinado a habitação, inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... e ... sob o art. ...19º, concelho ... e descrito sob o n.º ...99º da Conservatória do Registo Predial ..., da freguesia ..., estando o direito de propriedade registado a favor da autora pela Ap....50 de 2011/06/07.
A autora adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel no dia ../../2002 por doação outorgada por seus pais DD e EE.
Os réus são proprietários de um prédio composto de casa térrea e logradouro, inscrito na matriz predial rústica das freguesias de ... e ... sob o art. ...37º, concelho ..., que lhes adveio em virtude de a ré ter recebido no dia ../../2002 na sequência de doação dos seus pais.
Mesmo depois de realizadas as doações, os pais da autora e ré continuaram a viver e a utilizar todos os imóveis que doaram aos filhos. Apenas após a morte de DD cada um dos filhos passou a utilizar aquilo que era seu.
O imóvel da autora é constituído pela casa e por um pátio.
Durante a vida de DD e de modo facilitar a circulação entre os prédios que lhe pertenciam, abriu nesses diversas portas a deitar para o pátio.
Assim, ao construir o imóvel que doou à ré o DD abriu uma porta que deita para o pátio do prédio da autora.
No ano de 2002, em que doaram os prédios aos filhos, DD e EE, informaram todos os filhos que a casa e o pátio ficariam para a autora e que todas as portas viradas para o pátio se mantinham abertas para ele poder aceder a todos os imóveis, mas que, quando ele não pudesse trabalhar e a autora assim o solicitasse, os irmãos fechariam todas as portas.
Para evitar conflitos futuros entre os filhos DD e mulher elaboraram uma declaração em que, além do mais, determinou o encerramento de todas as portas existentes e que permitam a passagem de umas casas para outras e também, das portas viradas para o pátio.
Todos os filhos, desde o momento da doação, estavam cientes que a porta da casa doada à ré, logo que a autora assim o dissesse.
Após o falecimento de DD, quando a autora pediu à ré que fechasse a porta esta imediatamente o fez, colocando uma vedação com ferros cravados na terra e rede com início na esquina do seu armazém de forma a dividir e vedar o seu prédio do pátio da autora.
Em novembro de 2019 a autora e a ré cortam relações.
No dia 2 de novembro de 2021 a ré mandou reabrir a porta que até então estava encerrada iniciando a passagem para a casa pelo pátio.

Pede que:
a) Sejam os réus condenados a reconhecer e a respeitar o direito de propriedade da autora;
b) Sejam os réus condenados a, a expensas suas, fechar a porta que dá acesso ao pátio da autora;
c) Sejam os réus condenados a não mais aceder, seja por que meio for, ao pátio da autora;
d) Sejam os réus condenados numa sanção pecuniária compulsória no valor de 5,00 € por cada dia de atraso no cumprimento da sentença a contar do trânsito em julgado.
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Regularmente citados contestaram os réus impugnando a matéria vertida na petição inicial.
Mais alegou que DD faleceu em ../../2016 sendo que até três anos antes continuou a usar os prédios como se fossem seus, tal como sempre fez.
A partir dessa data os réus autorizaram o irmão da ré FF a fruir do seu prédio, acedendo sempre através do prédio da autora.
Os réus também permitiram à autora fruir a divisão do ... onde guardava lenha e na qual existe a porta em crise nestes autos aberta pelos doadores há cerca de 40 anos.
Os réus, por si ou por intermedio de outras pessoas, sempre acederem ao seu prédio passando pelo pátio do prédio da autora, de forma pública, à vista de todos, sem encontrar qualquer oposição e na convicção de exercerem um direito que lhes assiste.
Em 2019 os réus retiraram à autora o consentimento para fruir do seu prédio.
Como a autora tinha uma chave da divisão, e de modo a impedir que acedesse à mesma, os réus barraram temporariamente tal porta com o propósito de a reabrirem no futuro.
Tendo as doações sido aceites pelos donatários, os doadores deixaram de ter legitimidade para decidir o que quer que fosse sobre os prédios doados.
Em 2021 os réus retiraram a parede de bloco em frente à porta, sendo que os trabalhos que o fizeram acederam ao prédio pelo pátio da autora.
Os doadores nunca disseram aos réus para fecharem a porta que deita para o pátio.
Mais deduzem reconvenção em que pedem o reconhecimento e favor do seu prédio e onerando o prédio da autora, uma servidão de passagem permanente para pessoas, animais e veículos, sendo a autora/reconvinda condenada a retirar o cadeado e a corrente de ferro que colocou no portão da entrada do pátio e que impede a passagem. Deve ainda ser condenada a abster-se de praticar qualquer ato que impeça o exercício da servidão.
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Replicou a autora mantendo a posição assumida na petição inicial e pugnando pela improcedência da reconvenção.
             
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação nos seguintes termos:

“Por tudo quanto foi dito julgo a presente ação AA instaurou contra BB e CC, parcialmente procedente e, em consequência:
a) Reconheço a autora titular do direito de propriedade sobre o prédio urbano composto de casa de ... e ... andar, destinado a habitação, inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... e ... sob o art. ...19º, concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...99 da freguesia ... e inscrito a favor da autora pela Ap....50 de 2011/06/07;
b) Absolvo os réus dos demais pedidos formulados.
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Julgo procedente a reconvenção que BB e CC deduziram contra AA e em consequência:
a) Reconheço os réus titulares do direito de propriedade sobre o prédio rústico composto de casa de ... e andar, lagar e terreno, inscrito na matriz rústica sob o art. ...37 da União de Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...59 da freguesia ... e inscrito a favor dos réus pela Ap....85 de 2020/03/03.
b) Reconheço a existência de uma servidão de passagem sobre o pátio do prédio da autora e favor do prédio dos réus, constituída por destinação do pai de família, para pessoas a pé, animais bovinos, carros de bois, trator com reboque, outras máquinas e alfaias agrícolas e veículos, não incluindo a possibilidade de permanência ou aparcamento no prédio da autora.
c) Condeno a autora a facultar aos réus o acesso, retirando o cadeado que colocou no portão que confronta com a via pública ou facultando uma chave do mesmo aos réus, de modo a permitir a passagem.
d) Condeno a autora a abster-se da prática de qualquer ato que impeça o exercício da servidão de passagem por parte dos réus.
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Inconformada veio a Autora recorrer formulando as seguintes Conclusões:

1 – No seguimento do supra explanado, deveria ter sido julgada procedente a ação de reconhecimento judicial do fecho da porta da casa do forno e consequentemente confirma-se a não existência da servidão de passagem pelo pátio de propriedade da A. recorrente.
2 –Como se referiu na P.I. durante a vida de DD e por forma a circular com mais facilidade entre as casas onde a família habitava e os vários armazéns/casa térrea construídos por ele no limite do pátio, este abriu portas destes armazéns/casas para o pátio.
3 - Assim, DD ao construir o imóvel doado à R. deixou uma porta, que dava diretamente para o pátio/logradouro, propriedade de A.
4 - DD e mulher EE, em 2002, decidiram doar aos filhos todos os prédios de que eram donos na ..., e formalizaram essa doação na escritura supra anexada como documento.
5 - Nesse ano de 2002, informaram os filhos, que a casa e pátio ficaria para a filha AA, aqui A., e informaram todos os filhos que todas as portas abertas para o pátio se mantinham abertas para ele poder aceder a todos os imóveis, mas que quando ele não pudesse trabalhar e utilizar todos os armazéns/casas térreas, e tão logo, que a A., AA, comunicasse aos irmãos que pretendia o encerramento das portas, elas seriam encerradas de imediato.
6 - Nenhum filho contestou ou se opôs à orientação dos pais concordando com o encerramento de todas as portas voltadas para o pátio, logo que a irmã e A. AA assim o solicitasse.
7 - Quando a A., AA, pediu o fecho da porta da casa da irmã BB, aqui R., esta imediatamente e em cumprimento da vontade de seus pais fechou a porta que dava diretamente para o logradouro da casa da irmã em maio de 2019.
8 - Nessa mesma altura a R. mulher colocou uma vedação com ferros cravados na terra e rede com início na esquina do seu armazém, por forma a dividir e vedar a sua propriedade do pátio que não lhe pertencia.
9 - Em novembro de 2019, a R. mulher corta relações com a A. devido a desavenças familiares.
10 - No dia 2 de novembro de 2021, no dia em que se realizou uma cessão de julgamento no Tribunal de Montalegre, em que se discutiam desavenças familiares, sendo ofendida a sua mãe e arguido um seu cunhado, a R. mulher mandou reabrir a porta que estava encerrada até então, iniciando a passagem para a casa pelo pátio.
11 - Tal situação deu origem a queixas crime, que se encontram neste momento pendentes em tribunal.
12 - Até ao dia 2 de novembro de 2021, os RR. não utilizavam o pátio, não passavam nele, nem tão pouco para visitar a autora, uma vez nem sequer se falavam.
13 - A partir desse dia os RR., apesar da casa estar devoluta passaram a passar no pátio diariamente e várias vezes, colocando o carro na entrada impedindo a saída da autora da sua casa e do seu pátio.
14 - A presente ação tem como fundamento legal, entre outras normas, o que dispõe o artigo 1311.º do Código Civil.
15 - Os RR. agiram em manifesto abuso de direito violando o disposto no artigo 334.º do Código Civil, pois os RR. excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes.
16 - “A designação de servidão de vistas não é impecável, e já se tem prestado a equívocos. O objeto da restrição não é propriamente a visita sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda, do terraço, do eirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360.°. Não se exerce a servidão com o facto de se desfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho. Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja, definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida.” – vide Tabet e Ottolenghi in Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 219
17- Mais é referido, que “não se exerce a servidão como facto de se desfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho” – vide Ac. do STJ de 14-07-2016 Proc. 128/12.4TBSBG.C1.S1 in www.dgsi.pt
18 - Na servidão de vistas não se exerce a servidão através do disfrute das vistas mas através da manutenção da obra – janela terraço, etc. – em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho, Assim, o para para a extinção pelo não uso não se conta e inicia do momento em que tais aberturas deixaram de ser usadas, mas antes apenas a partir da verificação de algum facto que impeça o seu exercício – artigo 1570.º n.º 1 do CC, designadamente a queda da parede onde se situam as referidas janelas por falta de obras de manutenção. O animus pode ser presumido. - vide Ac. da Rel. de Guimarães de 12-09-2019 Proc. n.º 3739/17.8T8VCT.G1 in www.dgsi.pt
19 - Tendo os RR. comprovadamente deixado de exercer o seu direito de ter aporta aberta, conforme destinado pelo pai da R. BB, os mesmos extinguiram o seu direito de ter a porta aberta para o pátio da A., conforme o tinha destinado o pai de ambas.
20 - Estando esta facto provado o Tribunal a quo não poderia de deixar de reconhecer esse direito à A. e ordenar o fecho da porta da casa do forno.
21 - Efetivamente o Tribunal a quo invocou esta decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, mas a mesma inverta aqui a vontade do pai de família e das partes.
22 - O pai de família, aqui os pais da A. e R. BB destinou a divisão dos prédios de acordo com a sua perceção mais justa e equitativa entre todos os seus filhos.
23 - Efetivamente, não estamos a falar de um só prédio, mas sim, de vários prédios que pertencia a um só proprietário, que decidiu doa-los de uma forma igualitária entre os seus filhos.
24 - Para evitar conflitos entre os seus filhos, decidiu este sim, autonomizar os acessos aos seus prédios.
25 - Como o fez, nomeadamente com a porta da casa do forno, que deveria ser fechada.
26 - Assim, não estamos a falar no âmbito do artigo 1.549.º do Código Civil, mas sim da destinação do pai de família perante a divisão de prédios.
27 - Destarte, não pode ser interpretado o conceito conforme o fez o Tribunal a quo,
28 - Mas sim respeitar a vontade do pai de família, que determinou, que o prédio da casa do forno deveria ter entrada e saída pelo prédio do palheiro e o restante pelo caminho de consorte situado a Norte dos prédios.
30 - A constituição da servidão por destinação do pai de família pressupõe, assim, a verificação dos seguintes requisitos essenciais:
a) que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fracionadamente, ao mesmo proprietário, de cujo tempo provenha a servidão;
b) que, quando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário;
c) que existam sinais visíveis e permanentes que revelem a servidão.
31 - A constituição de servidão por destinação de pai de família, além de existência de sinais, assenta numa manifestação de vontade do transmitente e mesmo do transmissário, que se presume se nada for dito em contrário.
32 - “Enquanto os dois prédios ou as duas frações pertencem ao mesmo dono, não se pode falar, ... em servidão, existindo apenas uma situação de facto que não tem qualquer significado jurídico, pois o proprietário ao gozar as utilidades usa do direito de domínio e não do direito de servidão, só o podendo vir a ter na hipótese dos dois prédios ou das duas fracções se vierem a separar …”, “pois é neste momento que a servidão, latente e causal, passa a ser aparente e formal.” - vide Carlos Gonçalves Rodrigues, in Cf. Da Servidão Legal de Passagem, Separata do volume XIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Almedina, a pág. 93
33 - Tem entendido a jurisprudência, amplamente citada na sentença, que aos proprietários dos prédios onerados com servidão de passagem é permitido o direito de tapagem consagrado no art.º 1356.º do Código Civil, que tem de ser conciliado com o uso da servidão.
34 – Por o Tribunal a quo ter decidido desta forma, ou seja, não dando como provado e julgando-se incompetente para julgar a presente ação e improcedente os pedidos formulados contra os RR. e recorridos, absolvendo-os dos pedidos formulados pela A. e recorrente, não dando provimento aos pedido formulados na ação da A. e recorrente, simplesmente o Tribunal a quo errou.
35 - Fundamentação do recorrente:
. a) Exige-se o cumprimento do legalmente prevista nestes casos;
. b) A conclusão de que os factos alegados pela A. na sua P.I. foram no essencial alegados, que fundamentam a ação de reconhecimento de fecho da porta da casa do forno de acesso ao pátio da propriedade da A. e recorrente e vedar a passagem pelo pátio, tal como tinha sido determinado pelo pai da A. e recorrente e a R. BB e vão de acordo com o pedido formulado, o Tribunal a quo considerando-os provados, dando consequentemente provimento aos pedidos formulados pela A. e julgando a P.I. procedente na sua totalidade;
36 – Se a Meritíssima Juiz tivesse levado em conta todos os factos e nós entendemos que seriam provados com a prova testemunhal provados, poderia sim, ser defendido os interesses da A. e recorrente, que assim não foram.
37 - Agindo da forma descrita o Meritíssimo Juiz violou o preceituado no artigo 334.º, 1311.º, 1360°, 1549º , e n.º 1 do 1570.º, e n.º 2 do artigo 608.º, al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, n.º 2 do artigo 608.º do Código Civil, e do artigo 20.º da Constituição Portuguesa, os primeiros por erro de aplicação e os últimos por omissão, caso tivesse julgada procedente o requerido pelo ora recorrente.

Nestes Termos e nos mais de Direito,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, substituindo-se a Mui Douta Decisão impugnada por outra, que julgue a ação totalmente procedente por provada, julgando-a procedente a ação por provada, de acordo com os pedidos formulados na P.I.
Decidindo V/Ex.as deste modo, farão, como é hábito, a melhor e inteira
JUSTIÇA!
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Os Réus apresentaram contra-alegações, concluindo no sentido da improcedência do recurso.
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Questões a decidir:
- Verificar se é admissível o recurso de impugnação da matéria de facto;
- Caso tal recurso seja admissível, analisar se a prova produzida permite retirar as conclusões de facto expostas na sentença recorrida;
- Verificar se se encontra correta a subsunção dos factos ao direito.
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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre decidir.

A matéria considerada provada na 1ª instância é a seguinte:
1. O direito de propriedade sobre o prédio urbano composto de casa de ... e ... andar destinado a habitação inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... e ... sob o art. ...19º, concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...99º encontra-se inscrito a favor da autora pela Ap....50 de 2011/06/07.
2. O direito de propriedade ingressou na esfera da autora mediante doação outorgada por escritura pública a ../../2002 em que foram doadores seus pais DD e EE.
3. Desde o dia ../../2002 que a autora habita na referida casa, ali fazendo a sua vida, de forma ininterrupta, à vista de todos e sem encontrar qualquer oposição na convicção de não lesar qualquer direito de terceiro.
4. Na mesma doação referida em 3 os doadores doaram à ré um prédio rústico composto de casa térrea e logradouro, com a área de 1883 m2, a confrontar de norte com GG, sul com HH, nascente com II e poente com JJ inscrito na matriz predial rústica da União de Freguesias ... e ... sob o art. ...37, concelho ....
5. O prédio referido em 4 encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03 e o direito de propriedade inscrito a favor dos réus pela Ap....85 de 2020/03/03.
6. Após a outorga da escritura de doação (em que foram doados também prédios aos outros filhos dos doadores) os doadores continuaram a utilizar todos os prédios como se fossem seus, como tinham feito até aí; continuando a meter o gado no ... da casa dos réus, e a guardar lenha a outros materiais e utensílios no espaço que tem a porta virada para o pátio do prédio da autora.
7. Utilizando para aceder ao prédio da ré o pátio do prédio da autora.
8. Após a morte de DD, que faleceu em ../../2016, é que cada um dos donatários passou a utilizar os bens que lhes pertenciam.
9. O prédio da autora é constituído por uma casa de habitação e um pátio.
10. A casa de habitação tem uma porta que dá acesso ao pátio.
11. O prédio da autora tem uma porta que deita para o pátio.
12. No pátio da autora estava colocado um “tronco” onde, em tempos era colocado o gado.
13. Na vida de DD a circulação entre a casa de habitação e as diversas construções existentes era feita através do pátio, existindo nessas construções portas que deitavam para tal espaço, abertas há mais de 40 anos.
14. A utilização do pátio permitia a DD e demais pessoas, circular entre todos os imóveis sem ter de utilizar o caminho público nem o caminho de consortes que circundam os imóveis.
15. Em maio de 2019 a ré colocou uma parede de bloco em frente à porta que deita para o pátio da autora e uma vedação com ferros cravado na terra e rede com início na esquina do seu armazém.
16. No dia 2 de novembro de 2021 a ré reabriu a porta do seu prédio que deita para o pátio da autora.
17. A partir do ano de 2016 os réus autorizaram o irmão da autora e da ré FF a utilizar o seu prédio para meter o gado e guardar e utilizar diversos objetos agrícolas e alfaias, acedendo ao mesmo pelo pátio do prédio da autora.
18. Assim, para acederem ao seu prédio os réus, desde a data da doação (2002) e antes disso os seus antecessores sempre passaram pelo pátio do prédio da autora, à vista e com o conhecimento de todos, sem qualquer oposição e na convicção de exercerem um direito que lhes assiste e não lesam direitos de terceiros.
19. O acesso ao prédio dos réus, desde há mais de 40 anos, é realizado desde a via pública (Rua ...) através do pátio do prédio da autora, entrando pelo portal situado a na estrema sudoeste à face da rua.
20. Passando a pé, com animais e máquinas, quer para aceder à construção que tem a porta virada para o pátio quer para aceder ao armazém situado a nascente.
21. O que sempre fizeram à vista de todos, de forma pacifica e sem encontrar qualquer oposição.
22. A autora colocou uma corrente e um cadeado no portal de acesso da via pública ao pátio.
23. Impedindo os réus de, por essa via, acederem ao seu prédio.

Com relevância para a decisão nada mais se provou, designadamente que:

a) No ano de 2002 os doadores informaram os filhos que a casa e o pátio ficava para a filha AA, aqui autora, bem que todas as portas abertas para o pátio se mantinham abertas para ele poder aceder a todos os imóveis.
b) Sendo que, quando ele não pudesse trabalhar e utilizar todos os armazéns/casas térreas, e logo que a autora comunicasse aos irmãos que pretendia o encerramento das portas elas seriam encerradas de imediato.
c) DD e mulher elaboraram e assinaram, em 17 de maio de 2006, uma declaração em que deixaram esclarecida a situação relativa ao acesso aos terrenos e às casas que tinham doado aos filhos assim como o encerramento de todas as portas que permitiam a passagem de umas casas para outras e o encerramento das portas viradas para o pátio.
d) Quando a autora disse à ré para fechar a porta do seu prédio que dá para o pátio em maio de 2019 esta de imediato o fez.
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Da modificação da matéria de facto fixada na sentença:

No recurso interposto, no “corpo das alegações” a Recorrente transcreve partes de depoimentos e diz que o tribunal recorrido não os valorou, nem mencionou na sentença e que caso tivesse valorado, assim como fotografias do local, a decisão teria sido diversa.

Por outro lado, nas conclusões das alegações limita-se a dizer o seguinte:
A conclusão de que os factos alegados pela A. na sua P.I. foram no essencial alegados, que fundamentam a ação de reconhecimento de fecho da porta da casa do forno de acesso ao pátio da propriedade da A. e recorrente e vedar a passagem pelo pátio, tal como tinha sido determinado pelo pai da A. e recorrente e a R. BB e vão de acordo com o pedido formulado, o Tribunal a quo considerando-os provados, dando consequentemente provimento aos pedidos formulados pela A. e julgando a P.I. procedente na sua totalidade;
Se a Meritíssima Juiz tivesse levado em conta todos os factos e nós entendemos que seriam provados com a prova testemunhal provados, poderia sim, ser defendido os interesses da A. e recorrente, que assim não foram.”
Mostra, assim, discordância relativamente ao que foi decidido, no entanto, não indica os pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que imporiam decisão diversa relativamente a esses pontos ou a decisão que entenderia ser correta.
O art. 640 do C. P. Civil, exige a quem pretende impugnar a decisão quanto à fixação dos factos na sentença, que tome posição específica sobre os motivos da discordância, indicando os pontos de facto que pretende impugnar, os concretos meios de prova que impugnam decisão diversa e a decisão que entende ser a correta.

Conforme refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., pág. 139 a 141), sempre que o recurso envolva a impugnação da matéria de facto deve o recorrente, nomeadamente:

a) Em quaisquer circunstâncias, indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Deixar expressa na motivação, a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos.
Acrescenta este Autor que, quanto ao recurso da matéria de facto não existe despacho de aperfeiçoamento.      
Assim, por falta de observância do formalismo imposto pelo art. 640º do C. P. Civil, se rejeita o recurso na parte respeitante à reapreciação da matéria de facto.
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Da existência ou não de servidão:

Importa neste recurso apurar se a A. pode exigir da Ré que esta feche a porta da “casa do forno” que deita para o prédio da A., bem como impedir que a ré passe pelo pátio que faz parte do prédio da A. para aceder ao seu prédio.
A A. baseia o invocado direito de impedir a passagem da Ré pelo seu prédio através de uma porta que deita para o prédio da A., no facto de seus pais (doadores das propriedades em causa nos autos) terem elaborado e assinado, em 17 de maio de 2006, uma declaração em que deixaram esclarecida a situação relativa ao acesso aos terrenos e às casas que tinham doado aos filhos assim como o encerramento de todas as portas que permitiam a passagem de umas casas para outras e o encerramento das portas viradas para o pátio.
Ora, como resulta da análise da matéria de facto provada e não provada, este facto não resultou provado (v. al. c) dos factos não provados), pelo que, não pode a A. exigir o fechamento da porta existente na propriedade da Ré com este fundamento.
A A., no seu recurso, refere que o Tribunal recorrido não poderia deixar de reconhecer à A. o direito a ordenar o fecho da porta da casa da Ré porque se extinguiu a servidão de vistas pelo não uso.
Contudo, em parte alguma do processo, alguma vez foi invocada ou sequer mencionada a existência de uma servidão de vistas ou mesmo a extinção da servidão pelo não uso (sendo certo que neste caso o prazo sem uso teria de ser de 20 anos (art. 1569º, al b), do C. Civil, prazo este que de modo algum decorreu).
Na petição a A. pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio aí identificado e que os RR. sejam condenados a fechar a porta que dá para o pátio do prédio da A. e que deixem de o utilizar e o que os RR. pediram em reconvenção foi o reconhecimento da existência de uma servidão de passagem, onerando o prédio da A., pedido este que foi julgado procedente na sentença recorrida.
Deste modo, a questão da servidão de vistas e da sua extinção é uma questão nova, nunca abordada na primeira instância que, por isso, não cabe conhecer em sede de recurso, uma vez que os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão e não para obter decisões sobre questões que nunca tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido, sendo certo que a questão em causa não é de conhecimento oficioso.
Diz ainda a A. no seu recurso o que aos proprietários dos prédios onerados com servidão de passagem é permitido o direito de tapagem consagrado no art.º 1356.º do Código Civil, que tem de ser conciliado com o uso da servidão, no entanto, também esta questão nunca foi abordada na primeira instância, pelo que não pode agora ser conhecida.
Assim, não cumpre abordar neste recurso as questões da existência de eventual servidão de vistas, sua extinção e do eventual direito de tapagem.
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Relativamente à existência de servidão de passagem:
Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia (cfr. Art. 1543º do C. Civil).
O direito de servidão predial é um direito real de gozo sobre coisa alheia, mediante o qual o proprietário de um prédio tem a faculdade de se aproveitar das utilidades de prédio alheio em benefício do aproveitamento das utilidades do primeiro (Luís A. Carvalho Fernandes in Lições de Direitos Reais, Quid Juris, pág. 421).
Como é sabido, as servidões, no que respeita à sua natureza e constituição, podem ser voluntárias ou legais. As servidões voluntárias constituem-se por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família (1547º, nº 1); as servidões legais são aquelas que, na falta de constituição voluntária, por aqueles meios, podem ser constituídas por sentença judicial ou, sendo caso disso, por decisão administrativa (1547º, nº 2).

Uma das formas de constituição de uma servidão é a destinação do pai de família e que, tal como decorre do disposto no art. 1549º, do C. Civil, pressupõe os seguintes requisitos:
- que os prédios ou frações de um só prédio tenham pertencido ao mesmo dono;
- a existência de sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com o outro
- separação dos prédios ou frações em relação ao domínio (separação judicial) e inexistência de qualquer declaração contrária à destinação.

A servidão por destinação de pai de família constitui-se automaticamente, por mero efeito da lei, no momento em que os prédios passam a pertencer a proprietários diferentes.

No caso verificam-se os requisitos necessários à constituição de servidão por destinação de pai de família.

Na verdade, enquanto os pais de A. e Ré eram vivos a titularidade do direito de propriedade sobre os prédios descritos na matéria de facto provada pertencia-lhes na totalidade. Existiam e existem, também, sinais visíveis que permitem o reconhecimento da existência da servidão, através da existência de portas que deitavam e deitam para o pátio que agora pertence à Autora. Por outro lado, o pai da A. e da Ré utilizava esse pátio para circular entre todos os seus imóveis sem ter de utilizar o caminho público ou o caminho de consortes que circundam os imóveis. O acesso ao prédio que agora é dos RR., desde há mais de 40 anos, que é realizado desde a via pública através do pátio da casa da Autora.

A servidão constituiu-se, assim, quando os prédios se separaram, vindo a pertencer a diferentes proprietários e poderia ter sido excluída por negócio jurídico ou ato jurídico voluntário, revestindo a forma escrita, contudo, no presente processo, a A. não conseguiu provar que o seu pai, ao doar os seus prédios tivesse excluído a constituição da servidão.

Do alegado abuso de direito:

A A. alega que os RR “agiram em manifesto abuso de direito violando o disposto no artigo 334.º do Código Civil, pois os RR. excedem manifestamente os limites
impostos pela boa fé, pelos bons costumes.”.

A qualificação de uma situação como de abuso de direito resulta do enquadramento jurídico de uma determinada factualidade nessa figura jurídica.
O abuso de direito traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (v art. 334º do C. Civil)
Não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, não sendo necessário que tenha consciência de que, ao exceder o direito está a exceder os limites impostos pela boa-fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, baste que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente (v. Pires de Lina e Antunes Varela in Código Civil anotado, vol. I, pág. 217).

O conceito de boa-fé do art. 334º do C. Civil tem um sentido ético, que se reconduz às exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, para com a outra, respeitando expectativas dos sujeitos jurídicos (V. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 104 e 105).
                    
Na síntese conclusiva do Acórdão do STJ de 15/12/11 (in www.dgsi.pt ) refere-se que “existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado”.

No caso, analisando os factos provados, vemos que dos mesmos não se pode concluir que o exercício do direito por parte dos RR revele um excesso manifesto por o seu exercício se considerar clamorosa e intoleravelmente ofensivo da justiça.

Acresce que, examinando os factos alegados pela A. e até as suas alegações de recurso, vemos que se limita a negar a existência da servidão, não alegando qualquer facto que nos permita concluir que o exercício da servidão, tal como é pretendido pelos RR, é manifestamente excessivo.
                            
Não se verifica, pois, qualquer situação de abuso de direito.

Deste modo, há que julgar o recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida.
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DECISÃO:
 
Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
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Guimarães, 16 de outubro, de 2015

Alexandra Rolim Mendes
António Beça Pereira
Raquel Baptista Tavares