Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7410/23.3T8BRG.G1
Relator: MARIA LEONOR BARROSO
Descritores: DECISÃO SURPRESA
LITISPENDÊNCIA
PEDIDO SUBSTANCIALMENTE IDÊNTICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
A violação do princípio do contraditório e a denominada “decisão surpresa” pressupõe que a parte se vê confrontada com uma decisão judicial “fora do padrão”, inesperada, com a qual, utilizando uma diligência normal, não poderia contar.
Verifica-se litispendência entre a presente acção e uma outra intentada pelo autor contra os mesmos RR, sendo idêntica a causa de pedir, bem como o efeito jurídico-prático pretendido, sendo irrelevante que a redacção do pedido nas duas acções seja ligeiramente diferente.
Decisão Texto Integral:
Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

O autor, AA, recorreu do despacho que julgou verificada a excepção de litispendência e absolveu da instância os réus Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional e BB, despacho proferido após a apresentação da petição inicial.

O apelante apresenta a seguinte fundamentação:
- O Proc. nº 7406/23.5T8BRG corresponde a um processo especial nos termos do art. 164º CPT identificado como “Acção especial para anulação de deliberação, enquanto o dos presentes autos (Proc. nº 7410/23.3T8BRG) corresponde a diferente processo especial previsto no art. 164º-A CPT identificado como “Acção especial para anulação de deliberação do órgão comissão eleitoral”.
- Não há identidade de pedidos, pois uma acção (a primeira ) visa a anulação da deliberação do órgão comissão eleitoral e a outra a impugnação da deliberação unilateral do Sr. Presidente da Mesa da Comissão Eleitoral.
- Estão em causa acções especiais distintas, visando objectivos distintos, com pedidos distintos, violando a decisão recorrida o disposto no art. 581º CPC.
- A sentença recorrida violou ainda o princípio do contraditório nos termos do art. 3º nº 3 CPC, constituindo uma decisão-surpresa, pois não deu ao Autor possibilidade de se pronunciar, o qual poderia ter contribuído para o esclarecimento de duvidas.

CONTRA-ALEGAÇÕES: não foram apresentadas.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: sustenta-se que o recurso não merece provimento.

RESPOSTA AO PARECER: o autor reitera a posição apresentada nas alegações de recurso.

Delimitação do objecto da apelação: saber se foi proferida decisão surpresa e se há litispendência entre o presente processo e o processo 7406/23.5T8BRG.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A ) FACTOS: os constantes do relatório e, ainda, os seguintes:

1- O pedido formulado nestes autos é o seguinte:
“a) deve declarar-se a anulação da deliberação do órgão comissão eleitoral
b) deve ser declarada a maioria da votação na Lista A, e ordenando-se ao Sr. Presidente da Comissão Eleitoral a empossar a mesma, de acordo com os votos expressos e sem reclamação das assembleias de votos.”
2 - O pedido formulado no processo nº 7406/23.5T8BRG é o seguinte:
“a) deve declarar-se provada a impugnação da deliberação unilateral do Sr .Presidente da Mesa da Comissão Eleitoral.
b) deve ser declarada a maioria da votação na Lista A, e ordenando-se ao Sr. Presidente da Comissão Eleitoral a empossar a mesma, de acordo com os votos expressos e sem reclamação das assembleias de votos.”

B) DIREITO

VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO DO CONTRADITÓRIO/DECISÃO SURPRESA

Alega o requerente que não lhe foi dada possibilidade de se pronunciar sobre a litispendência, o que poderia ter contribuído para o esclarecimento de dúvidas.

Analisando:
A violação do princípio do contraditório (3º, 3, CPC) e a denominada “decisão surpresa” que a inquina de invalidade[1] tem sido equacionada por certo sector da jurisprudência (com a qual nos identificamos) para casos em que a parte se vê surpreendida com uma decisão judicial “fora do padrão”, inesperada e com a qual, utilizando uma diligência normal, não poderia contar. Dando um exemplo, quando se aplica, de modo singular ou inovador, uma solução jurídica nunca equacionada ou debatido pelas partes (embora a decisão surpresa possa respeitar também ao aspecto processual da causa por omissão de diligência).
Conquanto o juiz seja livre no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (5º, 3, CPC) e haja assuntos de conhecimento oficioso, às partes deve ser proporcionado a oportunidade de se pronunciarem sobre questões de direito ou de facto que sejam fundamento inusitado, imprevisto ou não expectável da decisão - ac. RG de 2-05-2024, p. 753/21.2T8VVD.G2, www.dgsi.pt ( onde se faz um resumo sobre a  questão).
Naturalmente que o preceito e o principio não podem ser entendidos como uma imposição de o juiz ouvir as partes sempre que se prepara para decidir, sob pena de desresponsabilização dos litigantes e de entravamento e ineficiência processual. A tramitação processual regula os momentos e peças onde as partes podem e devem expor os seus argumentos. A audição fora dos pertinentes marcos (petição inicial, contestação, resposta, etc) só se justifica nos casos, cremos que excecionais, em que o juiz enverede por caminhos que uma parte diligente não poderia prever. O uso do “contraditório”, note-se, não se destina a colmatar a situação inversa de falta de diligência da parte, que deve contar e antever os cenários possíveis.
No caso dos autos do confronto entre as duas petições dos processos em causa logo se evidencia que: (i) as partes são as mesmas (física e juridicamente); (ii) existe completa identidade de causa de pedir, ou seja, a narração dos factos, e até a numeração em artigos, são cópia uma da outra; (iii) acrescem (em termos que abaixo desenvolveremos algo mais) pedidos substancialmente idênticos.
Tendo ambos os processos sido apresentados no mesmo dia e no mesmo tribunal (juízo de trabalho de Braga), não será demasiada exigência que o autor logo tivesse previsto a possibilidade, diríamos até inevitabilidade, de o juiz se pronunciar sobre a litispendência, excepção de conhecimento oficioso, face à evidência de similitude de causas. Assim sendo, se o autor tinha razões para dar entrada de duas petições praticamente iguais, então deveria tê-las oportunamente apresentado, o que não fez.
Improcede a arguição.
*
A LITISPENDÊNCIA ENTRE O PRESENTE PROCESSO E O Nº 7406/23.5T8BRG
A litispendência é uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal aprecie o mérito da causa. A mesma coloca-se quando no tribunal pendem causas repetidas, isto é, dois litígios iguais, cumulativamente quando às partes litigantes, à causa de pedir e ao pedido - 577º, 578º, 580º, 581º e 582º, CPC.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico e, finalmente “Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.” - 581º CPC.
A litispendência (assim como o caso julgado) visa evitar que o tribunal possa proferir decisões contraditórias ou reproduzir uma anterior. Prossegue a segurança jurídica, o prestígio dos tribunais e a eficiência do sistema judicial.
No caso dos autos é incontestável que as partes são as mesmas, bem como a causa de pedir cuja narração dos factos - e mesmo a sua numeração como já referimos - é completamente igual nas duas acções.
O recorrente centra-se no pedido, defendendo que não é igual.
Refere que a espécie de acções é diferente. Ora, não é a forma que o autor escolhe que determina se existe ou não litispendência, mas sim a triplicidade de elementos cumulativos acima sumariados (partes, causa de pedir e pedido).
O pedido é a tutela jurídica jurisdicional pretendida pela parte, de que são exemplos o pedido de condenação em quantia monetária em dívida, ou de reconhecimento de um direito de propriedade, ou de declaração de invalidade de um acto ou negócio jurídico. O pedido liga-se aos factos descritos como causa de pedir, sendo o seu corolário lógico.

Recorda-se que o pedido dos presentes autor é o seguinte:
“...a) deve declarar-se a anulação da deliberação do órgão comissão eleitoral
b) deve ser declarada a maioria da votação na Lista A, e ordenando-se ao Sr. Presidente da Comissão Eleitoral a empossar a mesma, de acordo com os votos expressos e sem reclamação das assembleias de votos.”

O pedido formulado no processo nº 7406/23.5T8BRG é o seguinte:
“a) deve declarar-se provada a impugnação da deliberação unilateral do Sr. Presidente da Mesa da Comissão Eleitoral.
b) deve ser declarada a maioria da votação na Lista A, e ordenando-se ao Sr. Presidente da Comissão Eleitoral a empossar a mesma, de acordo com os votos expressos e sem reclamação das assembleias de votos.”

Contextualizando com recurso à causa de pedir, em ambas as acções está em causa o acto eleitoral que teve lugar em 23-11-2023 para os órgãos sociais do Sindicato, em que o A foi candidato da lista A, arguindo uma série de irregularidades que fundamentam o pedido.
O pedido formulado na al. b) é rigorosamente igual em ambas as acções.
O pedido formulado na al. a) tem uma redacção algo diferente, mas na sua substância é idêntico. Visa o mesmo efeito jurídico: anular a deliberação que a entidade Comissão Eleitoral tomou relativamente ao acto eleitoral de 23-11-2023. Simplesmente numa acção o autor refere-se à entidade Comissão Eleitoral e noutra ao seu presidente, que não é mais do que o membro através do qual a vontade daquela entidade se exterioriza.
O que importa é a tutela jurídica pretendida, que em ambas as acções se reconduz à anulação da deliberação da Comissão Eleitoral (expressada através do seu membro) quanto àquelas concretas eleições para o sindicato.
Com referem António Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol I, 2019, Almedina, pág. 651 a identidade de pedidos afere-se “pela circunstância de em ambas as acções se pretender obter o mesmo efeito prático-jurídico, não sendo de exigir uma adequação integral das pretensões”.

III- DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
Notifique.
9-10-2025

Maria Leonor Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Vera Sottomayor


[1] Não interessando ao caso entrar na problemática de saber se se trata de nulidade processual (195º CPC) por violação de norma processual própria e/ou conjugada com o art. 3º CPC, ou de nulidade de decisão por excesso de pronúncia (615º, 1, d), CPC)