Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
332/20.1T8GMR-F.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
APENSO DE LIQUIDAÇÃO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I A decisão encontra-se suficientemente fundamentada, na medida em que permite aos recorrentes perceber o sentido do decidido, a sua razão de ser.
II Encontrando o art.º 8º, n.º 1, do CIRE, justificação na natureza urgente do processo de insolvência, a qual abrange todos os seus incidentes, apensos e recurso - art.º 9º, n.º 1, CIRE -, o mesmo tem idêntica abrangência ou aplicação, salvo casos concretos devidamente ponderados, em que a urgência deva ceder perante interesse superior.
III Não será concebível esta última hipótese no apenso de liquidação, em que a lei prevê especificamente os casos de possível suspensão, ponderados os interesse que urge acautelar, de forma, por isso, taxativa e excecional.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I RELATÓRIO (por consulta eletrónica de todos os autos).

Nos autos de liquidação que correm sob o apenso C, o Sr. Administrador de Insolvência (AI) veio dar conta do início das diligências de venda do imóvel apreendido nos autos (Verba 1 – prédio de habitação, tipologia ..., com cave, ... e andar descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...29... e registo matricial n.º 1206-A).
No apenso D foi confirmada por acórdão de 2/6/2022 a decisão de indeferimento liminar de procedimento cautelar intentado pelos insolventes visando que fosse dado sem efeito e interrompido o leilão em curso, determinando-se a suspensão das diligências de venda sucessivas, até decisão final sobre a ação declarativa comum que intentaram e que corre termos sob o nº. 6305/21.... no Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz ....
No apenso A. foram reconhecidos e graduados créditos no valor de € 200.028,43.
Em 14/11/2022 os insolventes, invocando relação de prejudicialidade entre aquela causa, e os autos de liquidação, vieram requerer que “… nos termos do art. 272º nº 1 do CPC, se requer a suspensão da presente instância, até decisão final da acção declarativa indicada em 1º, a fim de se assegurar a uniformidade de julgados e a economia processual, além de se sopesar os interesses em causa, uma vez que os Insolventes vêm sua morada de habitação em risco, ao passo que os credores, para lá de poderem beneficiar com o desfecho da referida acção.”
Em 3/3/2023 foi proferido o seguinte despacho:
“Nada tendo sido oposto na sequência do despacho que antecede e tendo em conta a advertência que do mesmo consta, suspendo a liquidação do activo, pelo menos por agora, até à decisão do recurso no âmbito da acção registada sob o o nº 6305/21.... e a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães - Juiz ....
Notifique, sendo os Insolvente para, oportunamente, juntarem aos autos certidão com nota de trânsito em julgado do acórdão que recair sobre o recurso interposto.”
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Julgada parcialmente a ação por decisão e acórdão transitado em julgado, e declarada a cessação da suspensão da instância, vieram os insolventes, alegando novamente uma relação de prejudicialidade, requerer “… nos termos do art. 272º nº 1 do CPC, se requer a suspensão da presente instância, até decisão final da acção declarativa indicada em 1º, a fim de se assegurar a uniformidade de julgados e a economia processual, além de se sopesar os interesses em causa, uma vez que os Insolventes vêm sua morada de habitação em risco, ao passo que os credores, para lá de poderem beneficiar com o desfecho da referida acção, não perderão o único bem que integra a massa insolvente.”.
Foi proferido o seguinte despacho: “Atento os temas de prova fixados na invocada acção, melhor esclareçam os Requerentes o fundamento para a peticionada suspensão.”
E de seguida despacho, em 30/01/2024, decidindo: “Os Insolventes foram expressamente notificados para esclarecer melhor o fundamento para a peticionada suspensão atento os temas de prova fixados na acção que eventualmente poderia constituir causa prejudicial e nada vieram invocar ou esclarecer.
Assim, tendo por referência o que já foi expresso no douto acórdão proferido no apenso D, e não se mostrando cabalmente justificada a requerida suspensão, indefere-se o requerido pelos Insolventes a 20/11/2023.”
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Inconformados, os insolventes AA e BB, interpuseram recurso apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“A- Por despacho de 30/01/2024 (Ref.ª ...63), foi indeferida a suspensão da instância requerida pelos Insolventes/Apelantes, pedido esse formulado em 20/11/2023 (Ref.ª ...59), onde se sustentava tal pedido na existência de causa prejudicial, a saber, o decurso de acção cível a decorrer no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães - Juiz ..., acção com o nº 6305/21...., onde se discute, ainda, do recebimento indevido da quantia de 27.731,93€ (vinte e sete mil setecentos e trinta e um euros e noventa e três cêntimos).
B- Não concordando e não se conformando, os Insolventes interpõem o presente recurso de apelação.
C- Tendo os Apelantes requerido a suspensão da instância por existir causa prejudicial, onde alegaram e fundamentaram quais os factos que consubstanciam essa causa prejudicial e a relação de afectação com o processo em presença, a ausência de resposta a pedido de esclarecimentos adicionais solicitados pelo Tribunal não justifica nem serve, por si só, o indeferimento da requerida suspensão.
D- Nem o indeferimento da suspensão é válido nem pode ser considerado devidamente fundamentado apenas pela ausência de esclarecimentos adicionais a prestar pelos Requerentes/Apelantes, sem ponderação dos factos alegados no requerimento dessa suspensão da instância, fundamentos e relação e afectação com o presente apenso.
E- A remissão, como forma de fundamentação, para uma decisão que julgou pedido e causa de pedir diferentes, sujeitos a aplicação de normas com requisitos diversos, concretamente a existência, ou não, de causa prejudicial adversus verificação, ou não, dos requisitos para o decretamento de providência cautelar, não corresponde a pronúncia sobre a questão colocada à consideração do tribunal, por incoerência absoluta.
F- O que configura duas ordens de razões manifestamente diversas, a ser ponderadas à luz de critérios e fundamentos distintos, não permitindo, s. m. o., fazer-se remissão e transposição, por adesão, àqueloutros fundamentos, para a matéria da suspensão da instância, no caso vertente.
G- Tal configura nulidade de omissão de pronúncia, cf. al. d) do nº1 do art. 615º do CPC, a qual ora se invoca expressamente, sendo violados os preceitos do art. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 154º nº 1 e 608º nº 2, 1ª parte, ambos do Código de Processo Civil.
H- Pelo que deve tal decisão ser revogada, determinando-se a prolação de nova decisão que aprecie os factos e fundamentos da suspensão da instância, cf. art. 271º do CPC, alegados pelos Recorrentes.
I- Considerando que o presente apenso se destina à venda do imóvel casa de morada de família dos Insolventes e seu agregado familiar, único bem que integra a massa insolvente, e que a pretensão daqueles é precisamente obstar a tal, a presente arguição de nulidade e impugnação da decisão recorrida impõe-se, sob pena de, progredindo as diligências de venda do imóvel, a impugnação, a final, ser absolutamente inútil, cf. art. 644º nº 2 al. h) do CPC, porquanto qualquer decisão que ponha termo ao presente apenso será após a venda do bem.”
Pedem a revogação do despacho recorrido e prolação de nova decisão que aprecie os fundamentos da suspensão requerida.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Entretanto foi, a pedido do Tribunal, junta certidão da sentença proferida naquele processo n.º 6305/21.... que julgou improcedentes os pedidos dos A.A., com informação de que não transitou.
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O recurso foi admitido como apelação com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal.
Foi fixado à ação o valor de €183.530,00.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se a decisão é nula por omissão de pronúncia;
-se a pendência do processo n.º 6305/21.... impõe a suspensão do presente por causa prejudicial.
O Tribunal recorrido não proferiu o despacho previsto no art.º 617º, n.º 1, C.P.C.; porém essa apreciação não se mostra indispensável pelo que não se determina a baixa dos autos para o efeito.  
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a considerar é a que consta do relatório supra.
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IV- O MÉRITO DO RECURSO.

Nulidade do despacho.
Vejamos primeiro sob o prisma da nulidade da decisão.

Dispõe o art.º 615º, nº. 1, do C.P.C., que é nula a sentença quando: (…)
“b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; (…).
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cfr. Acórdão desta Relação de 4/10/2018 em que foi relatora a Exmª Srª Desembargadora Drª Eugénia Cunha, e do STJ de 17/10/2017, publicados em www.dgsi.pt, como todos os que citaremos sem outra indicação).
Conforme Acórdão desta Relação relatado pela Exmª Srª Desembargadora Drª Maria João Matos com a mesma data e igualmente publicado “As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).”
De acordo com o art.º 613º, n.º 3, C.P.C. estas causas de nulidade aplicam-se, com as necessárias adaptações, aos despachos.
Quanto à situação de falta de fundamentação, diremos que o dever de fundamentação assenta no principio constitucional da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente (art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
A fundamentação tem de ser factual e jurídica. E, de acordo com o n.º 2 do art.º 154º, não pode ser através da mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou oposição em apreço, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade. O dever de fundamentação abrange todos os pedidos controvertidos e todas as dúvidas suscitadas no processo, mas também abrange o dever de explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia em determinado sentido.
Pode divergir-se se a falta absoluta constitui a causa de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º – “a ausência total de fundamentos de direito e de facto” conforme refere José Alberto dos Reis “Código V cit., pág. 140, e Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª. ed., 1985, págs. 670 a 672; ou se a integra uma fundamentação apenas incompleta ou insuficiente.
Tem sido posição maioritária da jurisprudência que apenas a falta absoluta conduz à nulidade; admite-se que uma insuficiência grosseira (situação diversa da falta de mérito justificativo suficiente para justificar a parte dispositiva, que sempre se traduzirá antes em erro de julgamento) possa equivaler à sua falta.
Aplicando ao caso, os recorrentes pediram a suspensão da instância de liquidação ao abrigo do art.º 272º, n.º 1, C.P.C., até decisão da ação n.º 6305/21...., “… a fim de se assegurar a uniformidade de julgados e a economia processual, além de se sopesar os interesses em causa, uma vez que os Insolventes vêm sua morada de habitação em risco, ao passo que os credores, para lá de poderem beneficiar com o desfecho da referida acção, não perderão o único bem que integra a massa insolvente.”
O Tribunal recorrido, depois de convidar os recorrentes a justificar a sua pretensão face aos temas de prova daquela ação, decidiu pelo indeferimento do pretendido.
Portanto, antes de mais impõe-se evidenciar que decidiu a questão que lhe foi colocada.
E como justificou a sua decisão? Por referência ao que já foi expresso no douto acórdão proferido no apenso D, e não se mostrando cabalmente justificada a requerida suspensão.
Portanto, impõe-se também considerar que foi apresentada uma fundamentação.
A questão coloca-se em saber se a remissão para o que foi dito no acórdão mencionado, a que acresce a falta de justificação complementar do requerido –averiguando depois se efetivamente não foram apresentadas razões para o pretendido pelos recorrentes- traduz uma fundamentação suficiente para obstar à nulidade do despacho.
E adiantamos já que pensamos que está suficientemente fundamentado, na medida em que permite aos recorrentes perceber o sentido do decidido, a sua razão de ser.
De facto, percebe-se por um lado que o Tribunal entendeu que os temas de prova daquela ação, nomeadamente sem mais explicação, não constituem argumento que sustente a existência de causa prejudicial. E por outro lado, a remissão para o que foi dito no acórdão, produzido nos autos e mediante recurso dos também aqui recorrentes, acórdão esse que se debruçou precisamente sobre o significado daquela ação face à liquidação do imóvel aprendido que constitui a casa de morada de família, tornando a questão aqui em apreço simples, esclarece o sentido do despacho de indeferimento. 
Por último, também se percebe que o Tribunal recorrido entendeu que não se verificava o preenchimento da condição prevista no art.º 272º, n.º 1, do C.P.C., aludido pelos recorrentes.
Conclui-se por isso que o despacho proferido não é nulo por falta de fundamentação, improcedente este argumento recursivo.
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Aplicação do direito.

Resta por isso apreciar se a decisão se mostra correta, face ao dispositivo legal invocado pelos requerentes/recorrentes: o art.º 272º, n.º 1, C.P.C..
Antes de mais, haverá que verificar se tal disposição pode ser abstratamente aplicável no apenso de liquidação por via do art.º 17º, n.º 1, CIRE.

Ora, o CIRE prevê:
“Artigo 8.º
Suspensão da instância e prejudicialidade
1 - A instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, excepto nos casos expressamente previstos neste Código.
2 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 264.º, o tribunal ordena a suspensão da instância se contra o mesmo devedor correr processo de insolvência instaurado por outro requerente cuja petição inicial tenha primeiramente dado entrada em juízo.
3 - A pendência da outra causa deixa de se considerar prejudicial se o pedido for indeferido, independentemente do trânsito em julgado da decisão.
4 - Declarada a insolvência no âmbito de certo processo, deve a instância ser suspensa em quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor e considerar-se extinta com o trânsito em julgado da sentença, independentemente da prioridade temporal das entradas em juízo das petições iniciais.”.
Coloca-se então a questão de saber o que se deve ter por abrangido na expressão “instância do processo de insolvência”.
Ora, encontrando esta norma justificação na natureza urgente do processo de insolvência, a qual abrange todos os seus incidentes, apensos e recurso - art.º 9º, n.º 1, CIRE -, a mesma tem idêntica abrangência ou aplicação.
Sobre a interpretação deste artigo pronunciou-se o Ac. desta Relação de 21/10/2021 (processo n.º 1551/18.6T8VNF-B.G1).
A Relação de Lisboa, em três acórdãos todos de 22/6/2021 (apensos diferentes do mesmo processo, relatados respetivamente pelas Sr.ªs Desembargadoras Amélia Sofia Rebelo, Maria Adelaide Domingos e Fátima Reis Silva) pronunciaram-se sobre a (não) abrangência da norma a uma ação comum apensa à insolvência.
O Ac. desta Relação de 7/12/2023 (processo n.º 1315/21.0T8VCT-L.G1) relatado pela aqui 1ª adjunta, pronunciou-se pela inaplicabilidade em concreto ao apenso de reclamação e verificação de créditos.
Em concreto sobre a sua incidência no apenso de liquidação pronunciou-se o Ac. da Rel. de Lisboa de 7/2/2023 (processo n.º 862/11.6TYLSB-AJ.L1.1), pugnando pela sua inaplicabilidade já que a liquidação apenas pode ser suspensa nos casos expressamente previstos na lei, em conformidade com essa norma.
Também o Ac. desta Rel. de 28/05/2020 (processo n.º 6686/17.0T8VNF-G.G1), referindo a natureza excecional da suspensão da liquidação do ativo, considerou que fora dos casos previstos na lei –que infra se vão enumerar- poder-se-á admitir a suspensão da liquidação em situações objetivamente avaliáveis que visem corrigir injustiças manifestas, mas não deixando de ter presente os interesses dos credores.
No caso concreto do apenso de liquidação, em primeiro lugar teríamos de ponderar as situações em que o CIRE prevê noutra disposição motivo de suspensão.
Nas disposições relativas a essa fase do processo (cfr. art.ºs 156º e segs. do CIRE), consta a possibilidade de suspensão da liquidação e partilha da massa insolvente se a assembleia de credores decidir atribuir ao administrador da insolvência o encargo de elaborar um plano de insolvência –n.º 3 do art.º 156º.
Também pode ser suspensa a liquidação da massa e da partilha do respetivo produto, mediante requerimento do proponente de um plano de insolvência, se o juiz entender que tal se afigura indispensável para acautelar a execução desse plano –art.º 206º, n.º 1, do CIRE.
Também pode ponderar-se quando a administração da massa insolvente for entregue ao próprio devedor, caso em que a liquidação não tem lugar enquanto aquela administração não lhe for retirada – art.º 225º do CIRE.
Igualmente se constata quando seja deduzida oposição de embargos à sentença de declaração de insolvência, bem como quando seja interposto recurso da decisão que mantenha a declaração –art.º 40º, n.º 3, do CIRE.
Por último, se o devedor for uma pessoa singular e apresentar um plano de pagamentos, o juiz, se concluir pela probabilidade de o plano vir a ser aprovado, deve determinar a suspensão do processo de insolvência até que seja proferida decisão sobre o incidente do plano de pagamentos –art.º 255º, n.º 1. CIRE.
Nada disso está aqui em causa.
Marco Carvalho Gonçalves (Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, págs. a 208) elenca as várias (outras) situações previstas no próprio CIRE de suspensão da instância. A saber: art.ºs. 10º, n.º 1, b), 17º-E, n.º 6, 76º, 264º, n.º 3, b).
Definido que, à partida, se aplica à liquidação o art.º 8º, n.º 1, desde já afastamos os seus números seguintes que não são chamados ao caso.
Face a tal, resta concluir que não estamos perante nenhuma das situações em que a lei permita a suspensão da instância de liquidação.
E também se dirá que o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do art.º 8º do CIRE, na parte em que proíbe a suspensão da instância nos casos previstos no art.º 279º, n.º 1, C.P.C. – atual art.º 272º, n.º 1 do C.P.C. na redação vigente (-acórdão n.º 248/2012 de 22/05/2012, processo n.º 77/11).
Admitimos que, fora dos casos previstos na lei, aquela regra de aplicabilidade a todos os incidentes, apensos e recurso, possa não impedir uma suspensão da instância, em casos concretos devidamente ponderados, em que a urgência deva ceder perante interesse superior.
Mas tal não será concebível no apenso de liquidação, em que a lei prevê especificamente os casos de possível suspensão, de forma, por isso, taxativa e excecional. Estes casos previstos tutelam os interesses legítimos que podem estar envolvidos numa situação de paralisação da liquidação.
Assim sendo, terá de improceder a pretensão dos requerentes/recorrentes.
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Pode cogitar-se a seguinte questão: este art.º 8º, n.º 1 do CIRE não foi invocado pelo Tribunal recorrido; não foi por esse motivo legal que o Tribunal se guiou, indeferindo antes a pretensão por não se integrar no art.º 272º, n.º 1, C.P.C., tal como requerido, face à falta de justificação perante os temas de prova daquele processo n.º 6305//21.0T8GMR, e face à apreciação que sobre os efeitos da pendência deste sobre a liquidação já foi feita no acórdão proferido por esta Relação no apenso D.
Na medida em que enveredamos neste recurso por outro tipo de apreciação, e muito embora o Tribunal não esteja vinculado em termos de aplicação do direito (cfr. artº. 5º, n.º 3, C.P.C.), podia cogitar-se se esta Relação não estaria desta forma a proferir uma decisão surpresa, que exigisse (para assim não ser, não caindo em nulidade) o respeito prévio pelo princípio do contraditório, dando aos recorrentes a oportunidade de se manifestarem face a esta nova configuração jurídica (cfr. artº. 3º, n.º 3, C.P.C.).
Entendemos que não se justifica o cumprimento prévio do princípio do contraditório porque, ainda que não fosse por aquela “proibição” de suspensão dos autos de liquidação, nunca se poderia entender aquela causa como prejudicial da liquidação, ou como motivo justificado para a sua suspensão.
E de facto, tal como se diz no despacho recorrido, advogam contra a pretensão dos recorrentes as razões aduzidas no acórdão proferido no apenso D (aí para outro efeito) relativas ao facto de os insolventes/recorrentes terem perdido os poderes de administração e de disposição do bem (cfr. art.º 81º, n.º 1, CIRE), o qual responde pelas dívidas da massa –cfr. art.ºs 605º e 819º C.C., e 735º, n.º 1, C.P.C., e ainda 46º, n.º 1, CIRE.
E como lá se concluiu: “Destarte, tendo o prédio objeto da presente providência cautelar e que constitui a casa de morada de família dos apelantes e do seu agregado familiar sido apreendido pelo administrador de insolvência, que inclusivamente procedeu ao registo dessa apreensão, é apodítico que apesar dos apelantes, até à adjudicação desse prédio ao respetivo comprador, continuarem a deter a qualidade de proprietários do mesmo, àqueles não assiste o direito de, na defesa desse seu direito de propriedade, exercerem quaisquer faculdades de modo a obstar à venda daquele, como é o caso dos autos, pelo que claudica, no caso, desde logo, o requisito do “fumus boni iuris”.” E mais foi dito que essa posição não viola o direito constitucional à habitação, citando jurisprudência em conformidade.
O processo de insolvência é tido como um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores ou pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando este se não se mostre possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores –art.º 1º do CIRE.
A fase da liquidação prevista nos art.ºs 158º e segs. do CIRE destina-se à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores com vista a satisfazer os seus créditos na medida do possível, o que se concretiza, fundamentalmente, através da venda dos bens que integram a massa insolvente.
Naquela ação está em causa (nesta fase apenas) um pretenso direito indemnizatório no valor de cerca de € 30.000,00 (na versão dos próprios), reforçando-se a sua insuficiência para satisfazer (a totalidade dos) os créditos julgados verificados e graduados na sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito dos autos de insolvência.
Acresce ainda a improcedência dessa pretensão em 1ª instância.
Significa isto, que ainda que se ponderasse o requerido perante o art.º 272º, n.º 1, do C.P.C., não tem qualquer sustento a sua pretensão.
Este artigo prevê a suspensão por causa prejudicial ou por motivo justificado. Entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada - José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1º, pág. 550 da 4ª edição.
Os requerentes/recorrentes aludiam a causa prejudicial, o que claramente não se verifica. A pretensão indemnizatória por danos face à atuação do Banco, em nada se relaciona ou colide com a venda do imóvel. Suspender a liquidação não significa que o imóvel retorne definitivamente à esfera dispositiva dos recorrentes, pelo que nada muda quanto à sua posição perante os credores.
Motivo justificada para a suspensão da liquidação, também não encontramos. Para além do que ficou já dito, o valor em causa mostra-se manifestamente insuficiente para de algum modo satisfazer os interesses dos credores.
Concluindo-se de qualquer modo pela falta de sustento do pretendido, mostra-se desnecessário e violador do princípio da economia processual e da proibição de prolação de atos inúteis (cfr. art.º 130º do C.P.C.), conceder-se os recorrentes a possibilidade de se pronunciarem antes de se decidir.
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Em última análise sempre se dirá ainda que não viola as expectativas dos recorrentes o facto de o Tribunal de 1ª instância, numa primeira fase, ter deferido o requerimento de suspensão da instância que então apresentaram. Desde logo porque esse despacho não foi sujeito a reapreciação pelo Tribunal superior, contingência esta que sofre o que agora apreciamos. As expectativas só podem resultar da lei aplicável, não do modo como ela é aplicada em concreto.
Por outro lado, porque as circunstâncias aquando da prolação do primeiro despacho não eram sequer as mesmas: a quantia que então estava em causa naquela ação (ainda) era superior, e ponderou-se o silêncio das partes aqui envolvidas.
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As custas são a cargo dos recorrentes, porque vencidos (cfr. art.º 527º, n.ºs. 1 e 2, C.P.C.).
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, negam provimento à apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário (art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.).
Guimarães, 27 de junho de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Alexandra Viana Lopes
2º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
(assinaturas eletrónicas)