Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ANA CRISTINA DUARTE | ||
| Descritores: | INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO ADMISSIBILIDADE DA RECONVENÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | 1 - Proferido o despacho pré-saneador de convite ao aperfeiçoamento fático dos articulados, e decorrido o prazo aí fixado, se a parte decide não aceder ao convite que lhe foi dirigido pelo juiz, nenhuma consequência desfavorável resultará para a parte em termos imediatos. 2 – Será no despacho saneador que o juiz deverá determinar se as imperfeições em causa justificam (ou não) o julgamento antecipado do mérito da causa. 3 – Se o conjunto de factos alegados pelos autores não preenche as condições de procedência da ação, tornando-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil, o prosseguimento da ação para audiência final, terá a ação que ser julgada improcedente nessa fase, com a consequente absolvição dos réus dos pedidos. 4 – A admissibilidade da reconvenção visa compatibilizar o princípio da economia processual com o da celeridade, pressupondo uma determinada conexão com a relação jurídica invocada pelo autor. 5 – Se o que pretendem os réus não deriva do pedido formulado pelos autores, não emerge dos mesmos factos jurídicos, tratando-se, antes de uma ação totalmente nova e assente em fundamentos diversos, não é de admitir o pedido reconvencional. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO AA e mulher BB, deduziram ação declarativa contra CC e mulher DD, pedindo que os réus sejam condenados a: a) destruir a obra por si realizada; b) retirar o portão que colocaram para impedir os autores de ter acesso à fachada da sua própria habitação; c) ser reconhecido o direito de os autores terem acesso à fachada lateral da sua residência, bem como o muro de entrada que lhes pertence; d) no pagamento de € 1.000,00 por danos causados aos autores decorrentes das obras que realizaram. Para o efeito alegaram que, na Rua ..., freguesia ... existe um caminho, a pé e de carro, que dá acesso a campos e que, desde tempos imemoriais, é utilizado pelos residentes de toda a freguesia, em especial, proprietários dos campos e terrenos a que dá acesso, bem como utilizado para manutenção das habitações decorrentes desse caminho. Que os autores adquiriram a sua habitação em 20/11/2020, que confronta com esse caminho e que os réus são vizinhos dos autores. Sem que nada o fizesse prever, os réus, em 03/05/2024, construíram um muro paralelo ao muro da habitação dos autores, alterando o decurso das águas pluviais para dentro da habitação dos autores e degradando e fragilizando a base do muro dos autores, e colocaram um portão de restrição aos terrenos confrontantes, em particular acesso às portadas dos autores. O muro paralelo ao muro dos autores faz com que haja grande acumulação de lixo, água e ervas, danificando a estrutura da casa dos autores, a sua fachada, bem como o próprio muro de entrada, provocando sérios riscos de inundações. Com tal atitude, os réus apropriaram-se de terreno que sabem que não lhes pertence e bem sabiam que, ao construir tal muro, iriam prejudicar os autores. Contestaram os réus, por impugnação, designadamente, alegando que nunca o seu prédio deu servidão ao prédio que agora pertence aos autores, pois dela nunca necessitou. Em reconvenção pedem que os reconvindos sejam condenados a reconhecerem serem os réus os legítimos proprietários dos prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da contestação, onde se inclui a servidão de passagem; a fecharem todas as frestas/janelas que abriram e deitam para a propriedade dos réus, no prazo máximo de 30 dias contados do trânsito da sentença e condenados numa sanção pecuniária compulsória à razão de 25,00€/dia de atraso no cumprimento da sentença; a absterem-se de, por qualquer forma, impedir a circulação no prédio dos réus, nomeadamente a entrada e saída pela servidão, bem como de vazar quaisquer tipos de águas para o prédio dos réus, retirando e eliminando as saídas e tubos que para tal efeito mantêm, realizando as obras necessárias e adequadas para evitar que decorram para o prédio dos réus, no prazo máximo de 30 dias contados do trânsito da sentença e condenados numa sanção pecuniária compulsória à razão de 25,00€/dia de atraso no cumprimento da mesma, bem como a absterem-se de praticar qualquer ato que invada, danifique ou prejudique ou dificulte a liberdade de uso e/ou circulação dos réus nas suas propriedades, nomeadamente arremessando lixo e detritos para a propriedade dos réus ou colocando obstáculos no caminho de servidão; sejam, ainda, condenados a retirar as câmaras que deitam diretamente sobre a propriedade dos réus e a demolir o muro que invade a propriedade dos réus e recolocar os postes e rede divisórios que ali existiam ou, em alternativa, se declare que o identificado muro, uma vez que ocupa parte do terreno dos réus, é meeiro. Caso assim não se entenda, serem os autores condenados a indemnizar os réus pela parcela de terreno que a estes pertence e da qual se apropriaram para construir o muro, em valor a apurar e a liquidar em execução de sentença, bem como condenados a absterem-se de colocar qualquer tipo de construção ou material em cima do indicado muro, nomeadamente, toldos que façam escoamento de águas ou potencie a queda de detritos ou lixo para o prédio dos réus, indemnizando os réus pelos danos que lhes têm causado, em valor não inferior a € 5.000,00. Os autores replicaram, excecionando a extemporaneidade do articulado dos réus e impugnando toda a matéria que serve de base à reconvenção, pedindo a condenação dos réus como litigantes de má-fé em multa e indemnização não inferior a € 5.000,00. Foi considerada tempestiva a contestação/reconvenção. Foi proferido despacho a convidar os autores a aperfeiçoar a petição inicial, articulando factos dos quais resulte o direito que os autores se arrogam sobre o caminho, local de construção do muro, qual o prejuízo em concreto sofrido com a construção do mesmo, bem como definição dos terrenos em causa e que direitos pretendem os autores ver reconhecidos. Decorrido o prazo concedido, os autores não procederam ao aperfeiçoamento da petição inicial. O tribunal considerou que, “não tendo sido alegados factos essenciais referentes à causa de pedir, existem já nos autos elementos suficientes que permitam conhecer imediatamente do mérito da causa” e ordenou a notificação das partes para, querendo, alegarem o que tiverem por conveniente. Os autores vieram, então, prestar os esclarecimentos que consideraram necessários, salientando que os réus entenderam e demonstraram total conhecimento do que é alegado na petição inicial. Os réus requereram que fosse considerado não escrito tudo o que agora alegaram os autores, uma vez que não aperfeiçoaram a petição inicial no prazo para tal concedido. Requerem que o tribunal se pronuncie sobre a admissibilidade da reconvenção. Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os réus dos pedidos por total ausência de alegação de factos integradores do direito de que os autores se arrogam titulares. Os autores interpuseram recurso, tendo concluído a sua alegação com as seguintes Conclusões: I. Ascende à douta consideração deste Superior Tribunal ad quem recurso impetrado do despacho proferido nos presentes autos, pelo qual o Tribunal a quo determinou a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade do processo e absolvição dos réus da instância e do pedido. II. A ideia primordial no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial é a de impedir o prosseguimento de uma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo; o fito secundário é permitir o cabal conhecimento por parte do réu das razões fácticas que alicerçam o pedido dos Autores para, assim, poderem exercer cabalmente o contraditório - Ac. do STJ de 28.05.2002, p.02B1457 - disponível in www.dgsi.pt (na lição sempre atual do Mestre Alberto dos Reis, há que ter presente que: “Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta” - Comentário, 2º, 364 e 371); III. A jurisprudência tem vindo a defender que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciadora da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido pois verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que seja impossível ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar qual o pedido e a causa de pedir – cfr. Acs. do STJ de 30.04.2003, 31.01.2007 e 26.03.2015, p.03B560, 06A4150 e 6500/07.4TBBRG.G2,S2, disponível in www.dgsi.pt. IV. Os articulados apresentados pelos Recorrentes, em consonância com os documentos juntos, evidenciam um quadro factual mínimo que justifica o prosseguimento do processo. V. Os documentos juntos com a petição devem considerar-se parte integrante desta e por isso suscetíveis de suprir as lacunas de que a petição possa enfermar - Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 27-02- 1970 (na J. R. ano 16º, p. 86); mas também Acórdão do STJ de 02-07-1991 (Processo 080329, Relator Simões Ventura) – disponível in www.dgsi.pt -, onde se refere que “(…) III - Os documentos juntos com a petição devem considerar-se parte integrante dela e por isso, ao remeter-se expressamente para eles, outro alcance se não teve senão o de integrar a petição com o conteúdo de tais documentos, não estando, portanto, a autora obrigada a reproduzir no articulado as prestações descritas naqueles documentos”; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-10-2008 (Processo 2377/07.8TBVIS.C1, Relator Virgílio Mateus) – disponível in www.dgsi.pt - “A causa de pedir é a matéria de facto alegada, quer seja narrada na petição, quer conste dos documentos juntos com a petição e para os quais esta remeta.” (e, em idêntica opinião, também os Acórdãos de 01.04.2009 (P.236/08.6TBLSA.C1) e de 26.01.2010 (Pº 1801/09.7TBCBR.C1). VI. O quid essencial aduzido que determinou a ineptidão da petição inicial está bem patente ao longo do articulado apresentado pelos Recorrentes, mas também dos documentos juntos de onde emana a pretensão deduzida, ou seja, a causa petendi – artigos 4.º, 5.º, 8.º, 10.º e 11.º da petição inicial e documentos n.º 1, 2, 3, 4, 5 e 6 juntos com a petição inicial e para os quais os Recorrentes remeteram expressamente, com referência à reprodução integral do seu teor, para os devidos efeitos legais. VII. Salvo o devido respeito, que muito é, entendemos que mal andou o Tribunal a quo por não ter atentado, como lhe competia e era seu mister, ao disposto no nº 3, do art. 186º do CPC - mesmo que o Réu, na contestação, invoque a falta ou ininteligibilidade do pedido, tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que o demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que dele pretende retirar não sendo possível, nestas circunstâncias, absolver o réu da instância por ineptidão da petição inicial – cfr. Ac. Do STJ de 01.10.2003, p.02S3742 – disponível in www.dgsi.pt. VIII. Escalpelizando o articulado apresentado pelos réus, a conclusão a retirar terá forçosamente de ser a de que a petição inicial é suficientemente explícita e percetível para permitir a qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art. 236º do Código Civil), ou a um diligente bom pai de família, compreender os contornos da relação material controvertida, como foi, atento o teor da defesa dos réus. IX. Ora, no caso dos presentes autos, os Recorridos não invocam a referida exceção que os beneficia e, por outro lado, contestam com conhecimento, rigor e domínio perfeito e técnico-jurídico, o que é demonstrativo da interpretação da petição inicial, causa de pedir e pedido. X. De facto, os Recorridos reconheceram: o caminho/servidão que é arguido pelos Recorrentes, descrevendo os Recorridos que se trata de uma servidão que em tempos servia determinados prédios rústicos. Sendo que os Recorridos alegam que tal servidão, que tão bem reconheceram, lhes pertence – vejam-se os artigos 4.º e 5.º da contestação; Reconhecem ainda o muro alegado pelos Recorrentes, confessando os Recorridos que efetivamente construíram tal muro paralelo ao muro dos Recorrentes mas que fica desviado da casa e muro dos Recorrentes – veja-se o artigo 39.º da contestação; Além disso, apesar dos detalhes na PI por parte dos Recorrentes sobre os danos que este muro lhes causa, sempre requereram uma perícia para que se fizesse prova dos danos, uma vez que se tratam de danos técnicos, nomeadamente fragilização da base do muro que os Recorrentes são proprietários e infiltrações e inundações (conforme foi alegado na PI), sendo que os Recorridos foram minuciosos ao alegarem que o muro que tinham construíram junto do muro dos Recorrentes não potencia inundações na propriedade dos AA ou derrocada do muro dos Recorrentes – veja-se o artigo 40.º da contestação - o que se entende que os Recorridos perceberam perfeitamente de qual muro estaríamos a falar; Reconheceram ainda a colocação do portão na servidão pois alegam na sua contestação “para colocarem o portão, os RR, construíram um pequeno muro paralelo ao muros dos AA”, o que é subjacente o perfeito entendimento da PI por parte Recorridos – veja-se o artigo 39.º da contestação. XI. No caso concreto, deve concluir-se pela cabal compreensão pelos Recorridos, evidenciada na contestação, sendo suficiente ver que não tiveram dificuldade em defender-se quer por exceção quer por impugnação, deste modo assegurando um efetivo e leal contraditório - a compreensão pelos Recorridos é impeditiva do vício da ineptidão, que nem sequer levantaram, formal e expressamente, precisamente por tê-la interpretado convenientemente, pelo que o Tribunal a quo não podia conhecer desta questão oficiosamente – art. 196º do CPC. XII. Em denegação do direito dos Recorrentes, nem o Tribunal a quo atendeu à jurisprudência nacional relevante que considera que mesmo existindo ineptidão da petição inicial (o que apenas por hipótese académica de admite), nos termos do art. 186.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, o Tribunal a quo deve considerar forçosamente sanada, prosseguindo os ulteriores termos do processo. Este tem sido o entendimento perfilhado pelos Tribunais Superiores desde sempre pelo que, a título meramente exemplificativo, iremos destacar apenas o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-11-1988 (Processo 076956, Relator Pinto Ferreira) – disponível in www.dgsi.pt -, em cujo sumário podemos ler que: (…) “III - Ocorre a sanação do vício de ineptidão da petição inicial consistente na falta ou ininteligibilidade da causa de pedir desde que o réu, não obstante arguir o vício, conteste e se verifique que interpretou corretamente o pensamento do autor expresso na petição, valorando-se, para o efeito, a aceitação implícita do autor dessa interpretação decorrente do teor da réplica (do artigo 193º, n. 3 do Código de Processo Civil de 1967) [atual art. 186º, n.º 3 do CPC].” XIII. Sobre esta questão em particular também o Supremo Tribunal de Justiça se debruçou, nomeadamente em Acórdão datado de 19-12-1989 (Processo 078268, Relator José Domingues) disponível in www.dgsi.pt - “Desde que haja contestação, o juiz não pode, por força do disposto no nº 3 do artigo 193º do Código de Processo Civil, julgar inepta a petição inicial no despacho saneador, por falta de indicação da causa de pedir, consequentemente, anulando todo o processo, se chegar à conclusão que o Réu, na contestação, interpretou corretamente a dita petição (ouvindo para tanto o Autor, se necessário) e isto quer o mesmo Réu haja ou não suscitado a questão da ineptidão.” XIV. A este propósito (e também sobre a importância da documentação junta com o articulado) veja-se, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-07-1997 (Processo 97ª448., Relator Cardona Ferreira) - disponível in www.dgsi.pt, “Não é inepta a petição inicial por falta de causa de pedir se a ré a interpretou tão adequadamente que se defende por excepção e por impugnação e reconveio, e apenas existe certa complexidade por haver que conjugar, em termos de fundo, articulados com documentos conexos e pedidos cruzados.” XV. E, mais recentemente, o Acórdão do STJ proferido pelo mesmo Tribunal Superior, datado de 04-06-2008 (Processo 08S937, Relator Pinto Hespanhol) - disponível in www.dgsi.pt - “(…) 3. Tratando-se de um vício que afecta todo o processo, a ineptidão da petição inicial não é susceptível de suprimento, salvo no caso previsto no n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Civil” [atual art. 186º, n.º 3 do CPC]. (o destaque é nosso) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 16- 04-2013 (Processo 139/11.7TVLSB.L1-7, Relator Conceição Saavedra) – disponível in www.dgsi.pt -, cujo sumário refere o seguinte: “II- Descortinando-se irregularidade, insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização de certos factos necessários à procedência da acção, tal será sempre sanável através do convite ao aperfeiçoamento, nos termos do art. 508, nºs 2 e 3, do C.P.C.” [atual art. 590º, n.º 3 e 4 do CPC]. XVI. Aqui chegados, entendemos não podendo manter-se o decidido no que concerne à ineptidão da petição inicial, existindo factualismo controvertido no articulado apresentado pelos Recorrentes e cabalmente interpretado pelos Recorridos, evidenciado no exercício do contraditório quer por exceção quer por impugnação, pelo que importa que os Recorrentes prosseguiam os seus termos normais, numa efetiva afirmação da prevalência da decisão de mérito, sobre decisões meramente formais, ideia sintetizada no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 27-09-2016, (Processo nº 220/15.3T8SEI.C, Relator Carlos Moreira) – disponível in www.dgsi.pt - “1.A petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão. 2. Se tal não se verifica a petição é, quando muito, deficiente, devendo o juiz proferir despacho de aperfeiçoamento – art.º 6º e 590º nº4 do CPC. 3. Em qualquer dos casos, se o réu a interpretou convenientemente, tal vício fica arredado/sanado – artº 186º nº3 – sendo, então, a questão da (im)procedência do pedido dilucidada a final.” XVII. Além disso, a ineptidão da PI sempre daria lugar à absolvição da instância, não entendendo como o Tribunal a quo vem proferir sentença no sentido de absolver os Recorridos do pedido! XVIII. O despacho proferido pelo Tribunal a quo violou as disposições legais dos artigos 20º da Constituição da República Portuguesa, artigo 9º e 236º do Código Civil, e artigos 6º, n.º 1 e 2, 186º, n.º 1, 2, al a) e 3, 196º e 590º, n.º 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil. Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao recurso julgando-o totalmente procedente e, em consequência, revogar-se a decisão proferida, substituindo-a por outra em que se julgue não verificada a ineptidão da petição inicial e a nulidade do processado, determinando-se o prosseguimento da causa, assim fazendo Vossas Excelências a costumada Justiça! Os réus interpuseram recurso subordinado, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes Conclusões: I. Entendem os Recorrentes que bem andou o Tribunal a quo improcedendo a ação, absolvendo-os do pedido, decisão que deve manter-se. II. Não obstante a decisão proferida quanto à ação principal, deveria o pedido reconvencional formulado pelos Recorrentes ter sido apreciado e admitido e a ação ter prosseguido os seus termos relativamente à mesma; III. O Tribunal a quo, não considerou que ocorria uma insanável indicação da causa de pedir, porém, sem que fossem sanados os vícios apontados pelo Tribunal a ação teria necessariamente que de improceder, o que veio a acontecer. IV. Com a contestação, foi deduzida reconvenção e depois mediante requerimento datado de 14/01/2025, com a referência citius 4733569, além do mais, os Recorrentes requereram a apreciação da reconvenção e o prosseguimento dos autos porém o Tribunal não se pronunciou sobre tal matéria; V. Cremos, pois, que, o Tribunal a quo, deveria ter-se pronunciado acerca da admissibilidade da reconvenção e do pedido para prosseguimento dos autos para a sua apreciação, porém nada disse, o que consubstancia omissão de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º nº 1 al. d) do C.P.C. VI. A improcedência da ação nos autos em apreço, não obsta, a que se aprecie o pedido reconvencional, salvo quando este seja dependente do pedido formulado pelo Autor, o que não é o caso, conforme preceitua o artigo 266.º n.º 6 do CPC. VII. Para que se admita a reconvenção ao abrigo da supracitada norma, é necessário que o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir da ação principal, ou decorra da causa de pedir que serve de fundamento da defesa do Réu, o que é o caso dos autos. VIII. Com a decisão proferida, o Tribunal a quo violou os artigos 266.º, 608.º e 615.º, todos do CPC. Nestes termos e nos mais de direito ao caso aplicáveis, deve ser julgado procedente o presente recurso, e, por essa via: a) Ser declarada nula a sentença recorrida na parte em que não conheceu da admissibilidade da reconvenção, devendo ser substituída por outra que a admita e ordene o prosseguimento dos autos. Assim se fazendo a COSTUMADA JUSTIÇA! No despacho de admissão do recurso dos autores – de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo – a Sra. Juíza pronunciou-se sobre a nulidade suscitada pelos réus no recurso subordinado, considerando que lhes assistia razão e passou, de imediato, a analisar a admissibilidade do pedido reconvencional, não o tendo admitido. Ordenou a notificação dos réus para se pronunciarem quanto ao interesse na manutenção do recurso subordinado, face à sanação da nulidade invocada. Os réus mantiveram o seu interesse no recurso subordinado, agora quanto à questão da não admissibilidade da reconvenção, recurso que foi admitido, com o mesmo efeito e modo de subida do principal. Foram colhidos os vistos legais. As questões a resolver traduzem-se em saber se ocorre a “total ausência de alegação de factos integradores do direito de que os autores se arrogam titulares, que determina a absolvição dos réus dos pedidos” e se a reconvenção é admissível. II. FUNDAMENTAÇÃO A matéria de facto relevante é a que consta do relatório supra. Em primeiro lugar deve dizer-se que a possibilidade de se apreciar oficiosamente a nulidade decorrente da ineptidão da petição inicial decorre diretamente do exposto nos artigos 196.º e 186.º n.º 1 do CPC. Em todo o caso, o que se verifica nos autos, é que a sentença conheceu de mérito, ao concluir que os vícios que haviam sido detetados na petição inicial e que haviam conduzido ao convite ao aperfeiçoamento de tal articulado – convite a que os autores não corresponderam -, “impedem a procedência da ação, não sendo alegados os elementos essenciais ao preenchimento dos direitos que os autores se arrogam ser titulares”, pelo que, mais do que a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, o que está em causa é “a total ausência de alegação de factos integradores do direito de que se arrogam titulares”, motivo pelo qual se absolveram os réus dos pedidos e não da instância. Os apelantes introduzem a questão tratada jurisprudencialmente nos termos das suas alegações, e que resulta do disposto no artigo 186.º, n.º 2 do CPC, de que a petição não poderia considerar-se inepta porque os réus contestaram e se verifica do seu articulado que interpretaram convenientemente a petição inicial. Ora, salvo o devido respeito, o que está aqui em causa, não é a posição que os réus assumiram na sua contestação/reconvenção, posição essa, aliás, que se prende sobretudo, ou até exclusivamente, com a sua pretensão reconvencional e com os direitos que pretenderam fazer valer, independentemente da alegação dos autores na petição inicial. O facto de resultar da contestação que os réus teriam compreendido a que direito os autores estariam a fazer referência, foi o motivo pelo qual a Sra. Juíza resolveu proferir despacho a convidar os autores a suprir as insuficiências do seu articulado, conforme resulta do seguinte trecho do seu despacho de 22/10/2024: “Sobre os Autores impende o ónus de alegar a factualidade de onde resulte o direito que reclamam. Contudo, conforme resulta da própria contestação, os Réus terão compreendido a que direito se faz referência. Assim, não podermos afirmar que ocorra uma total e completa falta de indicação da causa de pedir, insanável. Nas circunstâncias do caso e em face da alegação, pese embora o seu carácter genérico, considera-se que se atentaria contra a justiça não permitir aos Autores alegar os factos concretos pertinentes que se mostram indicados no seu requerimento inicial. Impõe-se nesta sede, ao abrigo do preceituado no art. 590º, nº1, al. b) do C.P.Civil, suprir tais insuficiências de facto. Assim, convida-se os Autores, a aperfeiçoar a petição inicial, respeitando escrupulosamente o teor e extensão da matéria de facto nesta vertida, para o que deverá juntar novo articulado, onde melhor precise o por si alegado, de modo a concretizar os pontos genéricos e controversos, acima elencados”. Não tendo os autores correspondido ao convite que assim lhes foi feito, uma vez que não procederam ao aperfeiçoamento da petição inicial, e, considerando a Sra. Juíza que estava em condições de conhecer do mérito da causa, proferiu saneador-sentença com o desfecho a que nos vimos referindo (não sem antes possibilitar às partes o exercício do contraditório, evitando qualquer tipo de decisão surpresa). Veja-se, a este propósito, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, in CPC Anotado, vol. I, pág. 680: “Proferido o despacho pré-saneador de convite ao aperfeiçoamento fático dos articulados, e decorrido o prazo aí fixado, se a parte decide não aceder ao convite que lhe foi dirigido pelo juiz, nenhuma consequência desfavorável resultará para a parte em termos imediatos. Tudo o que possa vir a suceder ficará relegado para o despacho saneador, momento em que o juiz deverá determinar se as imperfeições em causa justificam (ou não) o julgamento antecipado do mérito da causa (artigo 595.º, n.º 1, alínea b))”. No caso dos autos, o estado do processo possibilitava já tal decisão, sem necessidade de ulterior instrução da causa. Com efeito, o conjunto de factos alegados pelos autores não preenche as condições de procedência da ação, tornando-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil, o prosseguimento da ação para audiência final – neste sentido, autores e obra citada, pág. 697. Os autores alegam que a construção de um muro e a vedação de um caminho, pelos réus, coloca em causa o seu direito. Mas ficamos sem saber que direito. O caminho onde terá sido construído o muro e colocado o portão, será um caminho público, privado, de servidão, a que título os autores se arrogam o direito de impedir tais construções, ou qual o direito que se arrogam sobre tal caminho, ou terá o muro e o portão sido colocados em terreno propriedade dos autores, invadindo os seus limites ou violando regras urbanísticas ou de construção e qual o prejuízo concreto que tais construções aportam aos autores? Sem a alegação do direito que os autores terão sobre tais prédios e caminho, não poderá concluir-se, a final, pela existência ou inexistência do direito reclamado (que, aliás, não é pedido pois os autores não peticionam que seja declarada a existência de qualquer servidão). Como bem se refere na sentença recorrida: “No presente caso, os Autores não invocam a aquisição originária dos seus direitos. Antes, limitam-se a mencionar que existe uma servidão constituída sobre um caminho que, alegadamente, foi ocupado pelos Réus, sem alegarem a origem desses direitos. Os Autores não descrevem a forma como as servidões foram constituídas, que fins deveriam servir, os exatos caminhos por onde se processam, as características morfológicas, nem sequer o âmbito ou o modo do seu exercício. Do articulado de petição inicial extrai-se que os Autores entendem existir uma servidão, quer de passagem, quer de vista, mas não são alegados factos dos quais se possam extrair a constituição de tais servidões, as suas características, modo de exercício do direito. Nem sequer se alcança do articulado, quais os prédios servientes e quais os dominantes. São escritas várias considerações genéricas a propósito da existência de diversas servidões, sem, contudo, ser alegada factualidade concreta da qual se possa concluir pela existência das mesmas, forma da sua criação, modo de serem exercidas”. A ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir – artigo 186.º, n.º 2, a) do CPC - ocorre quando o autor omite por completo a indicação dos factos concretos em que baseia a sua pretensão ou quando a indicação é de tal forma genérica que não permite a especificação de um facto. Uma vez que a causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer (integrada por factos concretos e não por conceitos jurídicos ou juízos conclusivos), sem tais factos, não pode concluir-se pela existência ou inexistência dos direitos reclamados a título de pedido – neste sentido, Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª ed., Gestlegal, 2017, pp.50 e 56, (a causa de pedir corresponde ao núcleo fático essencial, tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito material pretendido e cuja falta, traduzindo-se na falta de objeto do processo, constitui nulidade de todo ele por ineptidão da petição inicial). Segundo o ensinamento propugnado pelo Prof. Alberto dos Reis, citado na sentença recorrida, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, pág.370, “o autor não pode limitar-se a formular, na petição inicial, o pedido, a indicar o direito que pretende fazer reconhecer; tem de especificar a causa de pedir, ou seja, a fonte desse direito, o facto ou ato de que, no seu entender, o direito procede”. No caso de que nos ocupamos, para além da falta da causa de pedir que sustente factualmente os pedidos formulados, nem sequer vêm formulados pedidos correspondentes aos direitos de que, eventualmente, os autores seriam detentores e que teriam sido violados (reconhecimento de um eventual direito de propriedade ou de servidão). Concluindo-se, como se concluiu que “Estes vícios impedem a procedência da ação, não sendo alegados os elementos essenciais ao preenchimento dos direitos que os Autores se arrogam ser titulares”, outra não poderia ser a decisão final que não a improcedência da ação, com a consequente absolvição dos réus dos pedidos. Trata-se, como já referimos, de uma decisão de mérito, que, por isso mesmo, impunha a absolvição do pedido e não da instância. Improcede, assim, a apelação dos autores. E o mesmo destino terá o recurso subordinado. A reconvenção consiste numa ação cruzada deduzida pelo réu contra o autor. O exercício do poder reconvencional não pode ser admitido sem que haja qualquer conexão com o objeto da ação pois, “a reconvenção incondicionada abriria portas a quaisquer pedidos formulados pelo réu contra o autor, pedidos que o tribunal teria que conhecer concomitantemente com o pedido formulado por este, que veria assim, o processo marchar morosamente, talvez com inevitáveis e irreparáveis repercussões sobre a sua esfera jurídica (v. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pág. 172). Visa-se compatibilizar o princípio da economia processual com o da celeridade, pressupondo uma determinada conexão com a relação jurídica invocada pelo autor – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 302. De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 266.º do C. Proc. Civil, a reconvenção é admissível nos seguintes casos: a) Quando o pedido do réu emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa; b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor. d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter. A estes limites materiais, acrescem outros de cariz processual, previstos no n.º 3 do preceito citado e também no artigo 93.º do C. Proc. Civil. No caso dos autos, entendem os réus que a reconvenção emerge do mesmo facto jurídico invocado pelos autores – a invocada servidão de passagem. Já na sentença recorrida, considerou-se que os réus formulam pedidos de natureza diversa e assentes em fundamentos distintos daqueles em que se baseiam os pedidos dos autores, sendo as causas de pedir distintas, uma vez que os réus pretendem que se reconheçam direitos seus, que alegam estar a ser violados pelos comportamentos dos autores mas que em nada se baseiam na causa de pedir destes últimos, concluindo que os réus pretendem enxertar nesta ação uma instância totalmente nova e assente em fundamentos diversos que só poderão ser conhecidos em novo e distinto processo. Entendemos que se decidiu bem. Na ação, como já vimos aquando do conhecimento do recurso dos autores, estes pretendem que os réus sejam condenados a destruir o muro que construíram paralelamente ao muro da sua habitação e a retirar um portão que impede o acesso às portadas/fachada de sua casa, sem que, no entanto, aleguem a causa de pedir para tal. Qual o direito que os autores se arrogam para deduzir tal pedido? Da leitura da petição inicial não resulta a que título utilizariam o caminho onde tais obras foram realizadas, se o mesmo é público, se é propriedade dos autores ou se constitui uma servidão de passagem, desconhecendo-se o direito que os autores se arrogam sobre tal caminho. Ora, o que os réus peticionam em sede reconvencional – que se reconheça que são proprietários dos prédios que identificam, aí se incluindo a servidão de passagem e que os autores sejam condenados a fechar janelas, a absterem-se de impedir a circulação no prédio dos réus, a absterem-se de vazar águas para o prédio dos réus, retirando as saídas e tubos que construíram, bem como lixos, detritos e obstáculos e as câmaras que deitam para o prédio dos réus, além de demolirem um muro que invade a propriedade dos réus, recolocando os postes e rede divisória que aí existe – em nada se baseia nos factos que servem de fundamento à ação (onde apenas se pretende a demolição de um muro e a retirada de um portão, sem que seja alegada qualquer causa de pedir relativa à forma de domínio sobre as propriedades em causa). Ou seja, o que pretendem os réus não deriva do pedido formulado pelos autores, não emerge dos mesmos factos jurídicos, tratando-se, antes de uma ação totalmente nova e assente em fundamentos diversos. Considerando o que acima se expôs sobre a figura da reconvenção e sobre a relação jurídica ora em causa, vemos que o pedido reconvencional não emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa, não existindo, pois, a necessária conexão entre os factos invocados na petição inicial e/ou na contestação com os factos alegados na reconvenção, pelo que temos como não verificado o requisito substantivo exigido na lei processual necessário para que a reconvenção fosse admitida (al. a), do n.º 2, do artigo 266.º, do C. Proc. Civil), motivo pelo qual o pedido reconvencional não é admissível Improcede, assim, o recurso subordinado. III. DECISÃO Em face do exposto, decide-se julgar improcedentes ambos os recursos, confirmando-se a sentença recorrida. Custas de cada apelação pelos respetivos apelantes. *** Guimarães, 2 de outubro de 2025 Ana Cristina Duarte Alcides Rodrigues Afonso Cabral de Andrade |