Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | ||||||||||||||||
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| Relator: | CRISTINA XAVIER DA FONSECA | |||||||||||||||
| Descritores: | REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DEVER DE PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO AO LESADO | |||||||||||||||
| Nº do Documento: | RG | |||||||||||||||
| Data do Acordão: | 09/30/2025 | |||||||||||||||
| Votação: | UNANIMIDADE | |||||||||||||||
| Texto Integral: | S | |||||||||||||||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | |||||||||||||||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | |||||||||||||||
| Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | |||||||||||||||
| Sumário: | I – Ao contrário do invocado pelos recorrentes, o despacho que revogou a suspensão da execução da pena tem toda a fundamentação que lhe era exigível, podendo até ser considerado um modelo na apreciação do problema colocado. II – O regime de arguição do erro notório do art. 410.º do Código de Processo Penal não é aplicável a despachos. III – Tendo passado mais de 5 anos sobre a condenação dos arguidos (um casal), em pena de prisão cuja execução ficou suspensa na condição do pagamento de € 30.571,44, dos quais só foram depositados menos de 11% (€ 3.300,00), e constatando-se que, entre Abril de 2019 e Outubro de 2024, para amortização de capital e pagamento de juros relativos a dois empréstimos contraídos pela arguida em 2004 (relativo a uma casa que não é a residência permanente do casal), esta pagou ao banco credor o total de € 30.264,89 e as custas do processo a cargo de ambos, no valor de € 2.226,66, é patente que os arguidos tinham disponibilidade económica para cumprirem a citada condição. IV – Com a sua actuação, os arguidos dispuseram-se, voluntaria e culposamente, ao risco desse não cumprimento, privilegiando a propriedade em detrimento da liberdade; tiveram mais receio de uma instituição bancária do que da autoridade do Estado, corporizada numa decisão judicial. V – Mostra-se, assim, preenchido o requisito do art. 56.º, n.º 1, a) do Código Penal, devendo ser revogada a suspensão da execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos. | |||||||||||||||
| Decisão Texto Integral: | Neste processo n.º 228/14.6GCVNF-F.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I - RELATÓRIO No processo comum colectivo n.º 228/14.6GCVNF, a correr termos no Juízo Central Criminal (J...) de ..., Comarca de Braga, em que são arguidos AA e BB, foi proferido despacho a revogar a suspensão da execução das penas de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão e 4 (quatro) anos de prisão, em que os arguidos tinham sido condenados nos presentes autos, determinando o respectivo cumprimento efectivo. Inconformados, recorreram os arguidos, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões: «1. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, o qual condenou os recorrentes pela prática de dois crimes de burla qualificada, na forma consumada, p. e p. pelo art. 218º, nº. 2, a), em conjugação com o disposto nos arts. 217º, nº. 1, 202º, b), 14º, nº. 1, 26º, 30º, nº. 1 e 77º, todos do Código Penal (Apensos A e B), dois crimes de burla qualificada, na forma consumada, p. e p. pelo art. 218º, nº. 1, em conjugação com o disposto nos art. 217º, nº. 1, 202º, a), 14º, nº. 1, 26º, 30º, nº. 1 e 77º, todos do Código Penal (Apensos D e E), dois crimes de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelo art. 218º, n.º 2, a), em conjugação com o disposto nos art. 217º, n.º 1 e nº. 2, 202º, b), 14º, nº. 1, 22º, nº. 1 enº. 2, b), 23º, nº. 2, 26º, 30º, nº. 1 e 77º, todos do Código Penal (Apenso C e NUIPC 228/14.6GCVNF), três crimes de falsificação ou contrafação de documento, na forma consumada, p. e p. pelo art. 256º, nº. 1, a), c), d) e) e f), em conjugação com o disposto nos arts. 255º, a), 14º, nº. 1, 26º, 30º, nº. 1, e 77º, todos do Código Penal (Apensos D e E e NUIPC 228/14.6GCVNF), três crimes de simulação de crime, na forma consumada, p. e p. pelo art. 366º, nº. 1, em conjugação com o disposto nos arts. 14º, nº. 1, 26º, 30º, n.º 1, e 77º, todos do Código Penal. 2. Os recorrentes vem em sede de conclusões, nos termos do artigo 412.º n.º 2 alínea), do Código do processo penal, do presente recurso quanto à matéria de direito, indicar a violação das normas jurídicas previstas no artigo 127.º do Código de Processo Penal, atinente a livre apreciação da prova e consequente nulidade do despacho nos termos do artigo 379.º n. º1 alínea a) do CPP. 3. Reconhece-se a existência da falta de diligência e tempestividade em acautelar o cumprimento dos prazos para apresentação do requerimento a solicitar o plano de pagamento das prestações, tendo acarretado consequências processuais nefastas para a defesa dos ora recorrentes, tendo obrigado a que estes, fossem se socorrer de empréstimos a familiares por forma a cumprirem com a obrigação fixada pelo Tribunal a quo. 4. Considera-se que os recorrentes nunca agiram com dolo ou negligência no cumprimento das obrigações impostas para a condição da suspensão da execução da pena de prisão. 5. O Tribunal a quo, desconsiderou todas as provas documentais juntadas pelos recorrentes, violando o previsto no artigo 379.º n. º1 alínea a) do Código de Processo Penal, no qual deveria ter apreciado criticamente todos os meios de prova produzidos no processo, inclusive as declarações prestadas pelos arguidos. 6. Importa referir que a prova documental não foi devidamente apreciada, culminando numa violação do dever de fundamentação consagrado no artigo 374.º n. º2 do Código de Processo penal. 7. Os documentos juntos aos autos pelos ora recorrentes contradizem a decisão do tribunal a quo, constituindo um Erro notório à luz do artigo 410.º n. º2 alínea a) do Código de Processo penal. 8. Face à matéria produzida nos autos, verifica-se que os recorrentes demonstraram sempre boa-fé em cumprir com a obrigação exigida pelo tribunal a quo. 9. Destaca-se o facto, de aos ora recorrentes lhes ter sido negada a possibilidade de pagamento em prestações conforme o orçamento familiar lhes permitia. 10. Importa salientar que o Tribunal a quo, vem trazer a colação documentos extremamente pretéritos como os contratos de mútuo com hipoteca que nada relevam para o mérito e decisão da causa, tratando-se de documentos que se reportam ao ano de 2004. 11. Face ao exposto, de acordo com o artigo 412.º n. º2 alínea b) do Código de Processo Penal, no entendimento dos ora recorrentes o Tribunal a quo não apreciou a prova com o devido exame crítico e bom senso exigíveis violando o previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, no qual existia prova de indícios suficientes presentes nos autos como a prova documental e as declarações prestadas pelos arguidos em sede de audiência de julgamento. 12. Perante os indícios fortes (prova bastante) apresentados pelos documentos arrolados no processo, dúvidas não existiam para que o Tribunal a quo tivesse fundando a sua decisão com base nos factos que se verificaram no percurso de vida dos arguidos. 13. A hermenêutica jurídica aplicada pelo Tribunal a quo, considera-se inconstitucional, por violar o disposto no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 127.º do Código de Processo Penal. Deveria ter sido assegurada aos arguidos a possibilidade de um processo equitativo, com a imparcialidade necessária, e uma valoração completa e crítica de todos os meios de prova arrolados nos autos. 14. Junta DUC/autoliquidada do Deposito autónomo no valor de 5000,00€ 15. Deve pois revogar-se o despacho que revogou a suspensão da Liberdade Constitucional dando-se e um prazo de um ano para liquidação do remanescente.» Terminam os recorrentes pedindo o provimento do recurso e que lhes seja «conferido (…) a suspensão da execução das penas de prisão». O recurso foi admitido. Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu, com as seguintes conclusões[1]: «1 (…) acórdão condenatório proferido nos presentes autos (…) em 14 de Fevereiro de 2019 e pacificamente transitado em julgado em 18 de março de 2019 (cfr. referências ...09, ...98 e ...66); 2 – Inconformados (…), [os arguidos] vieram recorrer (…), sustentando, no essencial, que não estão reunidos os necessários elementos que permitam afirmar o preenchimento dos pressupostos para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, considerando que houve violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e a decisão padece da nulidade a que alude o artigo 379.º n. º1 alínea a) do CPP; 3 – Muito embora os recorrentes com a motivação tenham juntos diversos documentos e o entendimento que os artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não têm aplicação no processo penal por via do seu artigo 4.º, o certo é que, no compulsar dos assinalados documentos e no confronto com o processado, é possível verificar que aqueles documentos já se encontram nos autos e nessa medida não se tratam de quaisquer “novos” documentos, onde não tenha ocorrido o contraditório ou onde o tribunal a quo deles não tivesse conhecimento e os não tivesse apreciado, em razão da qual, porque não se está perante um daqueles casos a considerar como extemporaneidade na sua apresentação, não peticionamos que tais documentos sejam desconsiderados na apreciação do recurso pelo Tribunal da Relação de Guimarães; 4 - Considerando o explicitado a par da argumentação que aduzem sobre a decisão de mérito e tal como oportunamente pugnamos nos autos – cfr. promoção de 27 de janeiro de 2025 com a referência ...06 -, no cotejo com o todo tecido na decisão colocada em crise e bem assim do que os autos retratam sobre o reiterado e repetido (in)cumprimento dos condenados relativamente ao cumprimento da concreta injunção do pagamento do valor fixado no acórdão condenatório, tal é o bastante para afirmar a falta de razão dos recorrentes naquilo que invocam seja a propósito do que alegam sobre o princípio da livre apreciação da prova na alegada desconsideração dos documentos por si juntos ou o teor das suas declarações. 5 - Os recorrentes referem documentos que foram sendo junto aos autos ao longo do período da decretada suspensão, à forma como era despoletada a sua audição no decurso da suspensão da execução da pena no incumprimento dos pagamentos faseados e que foram eles que foram permitindo nos termos das sucessivas decisões a sucessiva prorrogação; 6 – Por outro lado, é possível ainda verificar que o tribunal a quo também alude de forma especificada às declarações dos condenados e na justificação que apresentaram para o incumprimento da injunção ou ainda para a forma como decidiram alocar os rendimentos ao longo do período da decretada suspensão e rebate-os com relação à demais prova ali referida; 7 - Por isso é de afirmar que a decisão proferida nos autos não padece dos invocados vícios ou nulidade referidos pelos ora recorrentes. 8 - O conjunto da argumentação dos ora recorrentes não permite abalar os fundamentos de facto e de direito referidos na decisão colocada em crise, olvidando por completo aquilo que constitui o ponto fulcral o cerne da questão que esteve na base da decretada revogação – a manutenção de um prédio na sua esfera de disponibilidade de uso e usufruto do qual beneficiaram e relativamente ao mesmo suportaram os encargos que estavam associados à sua anterior aquisição e manutenção, em contramão com o que fizeram com a injunção estabelecida para a decretada suspensão da execução da pena de prisão. 9 – E no que veio a apurar-se no decurso do incidente, perante aqueles elementos documentais que a decisão refere resultou que, a despeito das invocadas dificuldades económicas que os ora recorrentes foram ao longo do período da decretada suspensão referindo e dando conta aos autos e que foram sendo atendidas e consideradas como justificativas para os pagamento faseado e periódicos por conta do valor fixado no acórdão condenatório, o certo é que tais elementos permitem afirmar que os mesmos sempre dispuseram de meios económicos (próprios ou muito próximos) que lhes permitiu cumprir tais responsabilidades creditícias para manter incólume aquele património predial situado em Portugal, longe do seu domicílio profissional e habitual e do agregado familiar próximo que é na ... e suportando ao longo dos anos todos os encargos que lhe estavam associados para o manter na sua esfera de disponibilidade, designadamente o conjunto de prestações mensais atinentes ao crédito bancário que a que tinham anteriormente recorrido aquando da sua aquisição, em valores que ultrapassaram os quarenta e três mil euros; (…) 11 - Por isso, tal como pugnamos não poderia de se deixar de impor a revogação da suspensão da pena de prisão, sendo que em face do disposto nos artigos 50.º, n.º5 e 55.º, alínea d) do Código de Processo Penal já não é legalmente possível a pugnada prorrogação do prazo da decretada suspensão. 12 - Nestes termos se pode afirmar que bem andou o tribunal a quo quando decretou a revogação da suspensão pelo que nenhuma censura deve merecer o despacho recorrido pois que ali se decidiu em conformidade com a lei e com o direito.» Entende, por isso, que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta levanta a questão prévia da irrelevância, para o recurso, do comprovativo do depósito junto pelos recorrentes, defende que o despacho recorrido não é nulo, que o vício do erro notório é exclusivo das sentenças, não se aplicando aos despachos, que houve violação grosseira por parte dos recorrentes dos deveres decorrentes da suspensão da execução da pena de prisão e que não se vislumbra qualquer violação da norma constitucional invocada; dá, por isso, parecer no sentido da improcedência do recurso. Cumprido o contraditório, não foi dada resposta ao parecer. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência. II – FUNDAMENTAÇÃO A. Delimitação do objecto do recurso Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[2], e face às conclusões do recurso, são quatro as questões a resolver: - se o despacho recorrido é nulo e/ou violador do art. 127.º; - se há nele erro notório de apreciação da prova; - se há fundamentos para revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada aos recorrentes; e - se foi violado o art. 20.º da Constituição da República Portuguesa. B. Despacho recorrido[3] «Da revogação das penas de prisão suspensa aplicadas aos arguidos AA e BB Por acórdão proferido em 14 de Fevereiro de 2019, devidamente transitado em julgado em 18-03-2019, foram AA e BB condenados pela prática, em co-autoria material e em concurso real, de dois crimes de burla qualificada, na forma consumada, p. e p. pelo art. 218º, nº. 2, a), em conjugação com o disposto nos arts. 217º, nº. 1, 202º, b), 14º, nº. 1, 26º, 30º, nº. 1 e 77º, todos do Código Penal (Apensos A e B), dois crimes de burla qualificada, na forma consumada, p. e p. pelo art. 218º, nº. 1, em conjugação com o disposto nos art. 217º, nº. 1, 202º, a), 14º, nº. 1, 26º, 30º, nº. 1 e 77º, todos do Código Penal (Apensos D e E), dois crimes de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelo art. 218º, n.º 2, a), em conjugação com o disposto nos art. 217º, n.º 1 e nº. 2, 202º, b), 14º, nº. 1, 22º, nº. 1 e nº. 2, b), 23º, nº. 2, 26º, 30º, nº. 1 e 77º, todos do Código Penal (Apenso C e NUIPC 228/14.6GCVNF), três crimes de falsificação ou contrafacção de documento, na forma consumada, p. e p. pelo art. 256º, nº. 1, a), c), d) e) e f), em conjugação com o disposto nos arts. 255º, a), 14º, nº. 1, 26º, 30º, nº. 1, e 77º, todos do Código Penal (Apensos D e E e NUIPC 228/14.6GCVNF), três crimes de simulação de crime, na forma consumada, p. e p. pelo art. 366º, nº. 1, em conjugação com o disposto nos arts. 14º, nº. 1, 26º, 30º, nº. 1, e 77º, todos do Código Penal (Apensos D e E e NUIPC 228/14.6GCVNF), em cúmulo jurídico, o primeiro na pena única de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão e a segunda na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, ambas as penas suspensas na sua execução pelo “período correspondente ao das penas” e subordinada “à condição de os arguidos, no prazo de 4 anos, procederem ao pagamento, às demandantes, de metade do valor fixado a título de indemnização, devendo demonstrar o pagamento de ¼ do montante fixado no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da decisão e assim sucessivamente, em igual dia de cada um dos três anos subsequentes”. Considerando que os arguidos foram condenados no pagamento das quantias de € 8161,48, à EMP01... – Companhia de Seguros, S.A” e de € 52.981,47, à EMP02... – Companhia de Seguros, S.A.” (anteriormente denominada Banco 1... – Companhia de Seguros, S.A., a condição de pagamento referia-se à quantia de € 30.571,47, a ser paga em quatro prestações anuais. O prazo para cumprimento da condição estipulada na sua globalidade expirou em 18 de dezembro de 2023. Não tendo os arguidos cumprido, na íntegra, a condição que lhes foi imposta, foi determinada a sua audição, com vista a aquilatar das circunstâncias que motivaram tal incumprimento, nomeadamente, nos termos e para os efeitos do art. 495º, do Código de Processo Penal e art. 56º, n.º 1, al. a), do Código Penal. Foram solicitadas informações aos Bancos em que os arguidos detêm contas e às seguradoras, credoras das indemnizações, entre outras. Foram ouvidos os arguidos – o arguido AA foi ouvido a 18 de Abril de 2024 (cfr. acta com a referência ...46) e a arguida BB foi ouvida a 14 de Outubro de 2024 (cfr. acta com a referência ...34) e, em face do que afirmaram, foram solicitados novos elementos documentais que se julgaram pertinentes para a decisão a tomar, os quais se encontram juntos aos autos. Em face do resultado da audição dos arguidos e da documentação junta aos autos, promoveu o Digno Magistrado do Ministério Público:[4] (…) É assim de concluir que a atitude assumida pelos condenados, apreciada globalmente, denota a violação grosseira e repetida dos deveres que lhes estavam impostos e da impossibilidade de alcançar, por via da suspensão da execução da pena de prisão, as finalidades subjacentes à pena aplicada. Face ao exposto, promovo que, ao abrigo do disposto no artigo 56.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, se determine a revogação da decretada suspensão da execução da pena de prisão e com isso o cumprimento da pena de prisão fixada nos autos relativamente a cada um deles. Os arguidos, notificados da promoção do Ministério Público vieram contra a mesma insurgir-se, alegando, em suma, que sempre foi sua intenção pagar o valor fixado por este tribunal, mas que apenas lhes foi possível efectuar o pagamento de € 3150, em face das dificuldades económicas que experienciam há já mais de uma década. Afirmaram que o prédio referido na promoção do Ministério Público, não lhes pertence, por ter ido doado ao seu filho, no ano de 2018, tendo sido imposição do Banco 2... que a condenada se mantivesse como usufrutuária do mesmo. No que concerne aos pagamentos que efectuaram por conta dos contratos de mútuo que celebraram com o Banco 2..., não os negam, mas afirmam que o fizeram com recurso a empréstimos a familiares, sendo hoje em dia devedores da quantia de € 25.000,00, a esses ditos familiares. Dizem ainda, à semelhança do que haviam já dito, em requerimento anterior, que as despesas mensais a que têm de fazer face, nomeadamente, renda, despesas domésticas e despesas com os filhos, não lhes permitiram dispor de quaisquer quantias, para além dos apontados € 3150 que pagaram, para cumprir com o teor do acórdão. Concluem que o incumprimento verificado não lhes pode ser imputável e, nessa medida, não pode ser revogada a pena de prisão suspensa. Pronunciam-se, ainda, prolixamente, sobre a (ir)relevância de uma nova condenação do condenado em pena suspensa (?), matéria que, com o devido respeito, não é pertinente no caso, por inexistir uma condenação posterior à dos presentes autos que possa ser fundamento de revogação. Pedem a aplicação da Lei 38-A/2023, sem, no entanto, alegarem em que medida é que tal lei se poderia aplicar, in casu, limitando-se a fazer um resumo do teor do diploma em apreço. Dizem, ainda, que estão dispostos, como sempre estiveram, a efectuar o pagamento do remanescente em dívida, em 18 meses, depositando, desde já, € 5000,00, caso o tribunal assim o permita. Cumpre apreciar. Adiante-se, antes de mais, que se adere integralmente e sem reservas à promoção que antecede, que espelha um entendimento correcto e equilibrado das normas legais aplicáveis ao caso e às circunstâncias do mesmo. Para aquelas considerações se remete, no essencial, quanto à fundamentação da decisão ora a proferir. Acrescenta-se apenas que, o requerimento agora apresentado pelos arguidos apenas veio reforçar o que o Ministério Público concluiu, ou seja, que os arguidos não cumpriram com o estipulado por este tribunal porque assim não quiseram fazer, privilegiando todas as demais responsabilidades financeiras das suas vidas, em relação à condição decretada por este tribunal. De facto, como bem aponta do Magistrado do Ministério Público, os arguidos efectuaram o pagamento de mais de € 2.226,66 relativos a custas processuais, em Maio de 2019 e, mais, pagaram, entre Abril de 2019 e Outubro de 2024, prestações mensais para amortização de dois créditos bancários, no valor global de € 43033,52. Caso tivessem canalizado estas quantias para o pagamento da condição decretada, isso em nada teria bulido, com a sua habitação e subsistência, já que a casa em causa, serve, apenas, como a condenada afirmou na sua audição, para passar as suas férias em Portugal e para poder voltar para Portugal, caso assim o entenda no futuro. Privilegiaram, torna-se evidente, o pagamento, das obrigações cujo incumprimento os tornaria susceptíveis de execução e, eventuais, penhoras de bens, ao contrário, do que sucede com a obrigação de pagamento das quantias fixadas como condição da suspensão, as quais, confiaram, não sendo pagas, não gerariam quaisquer consequências. Quiseram salvaguardar a casa – que doaram ao seu filho, mas cujo usufruto vitalício pertence à condenada – e conseguiram tal objectivo, como, aliás, afirmam no seu requerimento. Os alegados empréstimos a que tiveram de recorrer, estão por demonstrar - não tendo sequer identificados os seus credores, que serão “familiares” – mas a terem existido, podiam e deviam ter sido canalizados para o cumprimento da condição da pena suspensa e não para a salvaguarda do património imobiliário (do filho) dos arguidos. Por fim, em abono da conclusão do Digno Magistrado do Ministério Público, que fazemos nossa, como deixámos dito – de que o incumprimento da condição imposta aos condenados foi culposo - temos o facto de os arguidos, terem agora disponibilidade para efectuar um pagamento de € 5000,00 – de imediato - e de pagaram o restante em 18 meses (o que daria uma prestação de mais de € 1200 mensais), sem que tenham alegado qualquer alteração favorável das suas circunstâncias de vida, que permita tais pagamentos. Em suma, somos forçados a concluir que incumprimento dos arguidos (traduzido na falta de pagamento da quantia determinada no período da suspensão) foi efectivamente culposo, mostrando-se, definitivamente, infringidos os deveres impostos e revelando que a mera advertência do cumprimento da pena de prisão não foi suficiente para alcançar as finalidades da punição. Os arguidos revelaram uma ausência de compromisso com as determinações do tribunal, tendo agido dolosamente, o que nos leva a concluir que o juízo de prognose a formular neste momento, quanto à prevenção especial, revela-se irremediavelmente desfavorável, porquanto se mostram frustradas as finalidades preventivas que estiveram na base da suspensão da pena de prisão. Em face de tais pressupostos, impõe-se a revogação da suspensão da pena de prisão aplicada aos arguidos, nos termos do disposto no art. 56.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Não há lugar à aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, porquanto, os arguidos tinham, à data dos factos praticados, mais de 30 anos. Face ao exposto e nos termos do disposto no art. 56.º n.º 1, alínea a) do Código Penal, o Tribunal decide revogar a suspensão da execução das penas de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão e 4 (quatro) anos de prisão, em que os arguidos AA e BB foram condenados nos presentes autos, determinando o respectivo cumprimento efectivo.» C. Apreciação do recurso 1. Nulidade do despacho recorrido Manifestando uma confusão de conceitos jurídicos e de normas que não pode passar em claro, os recorrentes invocam este vício, estribando-se nos arts. 379.º, n.º 1, a), e 374.º, n.º 2. Como decorre da própria epígrafe de ambos os artigos, e é explicitado no seu conteúdo, a sua aplicação é restrita às sentenças (e acórdãos), pelo que não são em caso algum aplicáveis a um despacho, seja ele de que natureza for. Está, por isso, liminarmente arredada a aplicação daquelas normas nesta sede, sem necessidade de mais considerações. Não se ignora que, nos termos do art. 97.º, n.º 5, “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.” Tal decorre da norma constitucional do art. 205.º, n.º 1: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.” É evidente que um despacho que revoga a suspensão da execução da pena de prisão não é de mero expediente, pelo que necessita de ser fundamentado: os seus destinatários têm de perceber os motivos, de facto e de direito, que levaram o Tribunal a tomar aquela decisão, e não outra. Isto não só pela inteligibilidade, mas também, e sobretudo, para que possa haver uma reacção por parte do cidadão que está descontente, seja arguindo um vício legal, seja por via de recurso para um Tribunal superior (quando a lei o admita). Ora, só um leitor muito distraído do despacho recorrido poderia vislumbrar alguma falha na sua fundamentação: - por transcrição da promoção do Ministério Público que o antecedeu, enumera meticulosamente a Mm.ª Juiz a quo todos os actos processuais praticados pelo Tribunal após o trânsito em julgado da sentença dos autos, ao longo de mais de 5 anos, no sentido de obter dos ora recorrentes os pagamentos devidos como condição da suspensão da execução das penas de prisão, bem como as reacções que aqueles actos mesmos suscitaram por parte dos arguidos; - aí se encontra exposta a posição assumida pelos ora recorrentes face à promoção do Ministério Público no sentido da revogação da citada suspensão; - além de aderir aos fundamentos dessa promoção (que, já de si, são bastante explícitos e coerentes), a Mm.ª Juiz a quo faz um feliz e inteligente resumo do que resulta dos autos, explicando as razões que a levaram a concluir que apenas por vontade dos arguidos – privilegiando outros gastos – é que estes não cumpriram a obrigação de pagamento dos autos, concluindo pelo incumprimento culposo; - invoca-se a norma pertinente – o art. 56.º, n.º 1, a), do Código Penal – assim como se afasta a aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023 (esta, aliás, omitida no recurso, mas que a Mm.ª Juiz a quo apreciou por ter sido chamada à colação pelos arguidos). Aqui chegados, apenas uma palavra merece a invocação, pelos recorrentes, da violação do art. 127.º: decorre claramente que tal não ocorreu, uma vez que a Mm.ª Juiz a quo não decidiu de forma arbitrária ou discricionária, mas antes seguindo um raciocínio lógico e apreciando livremente a prova de que (abundantemente) dispunha, de acordo com as regras da experiência, tal como esta norma prevê. Não há, por isso, sombra de dúvida: o despacho recorrido tem toda a fundamentação que lhe era exigível, podendo até, sem favor, ser considerado um modelo na apreciação do problema colocado. Improcede, nesta parte, o recurso. 2. Erro notório do art. 410.º, n.º 2, a) No entender dos recorrentes, tal vício consubstancia-se na contradição entre os documentos por eles juntos aos autos e o despacho recorrido (conclusão 7). Prevê tal norma: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (…)”. Ora, é evidente que a própria formulação do artigo afasta a sua aplicação a despachos: estes obedecem a diversa estrutura – menos complexa, dispensando a enumeração de factos provados – e a diferentes regras, por respeitarem à aplicação de determinadas normas a particulares questões e não à decisão de fundo do processo[5]. Está, portanto, liminarmente afastada a aplicação do art. 410.º, n.º 2, a), ao despacho recorrido e, como tal, destinado ao insucesso este segmento do recurso. 3. Fundamentos da revogação da suspensão da pena Tal como foi feito na promoção do Ministério Público na 1.ª instância (ref.ª ...06)[6] e no parecer dos autos, não pode apreciar-se a questão de fundo sem fazer a necessária resenha da marcha processual desde a condenação dos arguidos até ao despacho recorrido: a) À data do julgamento, os arguidos, casados entre si, tinham um rendimento mensal de cerca de € 6.500,00, e despesas fixas de cerca de € 3.000,00 (ref.ª ...09, pág. 28). b) Notificados a 25 de Março de 2019 para pagamento das custas, ambos os arguidos requereram, a 3 de Maio seguinte, a liquidação em prestações (ref.ª ...74), o que foi indeferido por extemporaneidade (ref.ª ...21). c) A 14 desse mês, tais custas foram pagas na totalidade, € 2.226,66 (ref.ª ...20). d) A 7 de Junho do mesmo ano, foram entregues aos ora recorrentes bens apreendidos nos autos, nos quais avultam três televisões, um DVD, uma consola de jogos, uma máquina de secar, duas peças de porcelana e um serviço de jantar “...” (ref.ª ...75). e) A 11 de Maio de 2020, na sequência de promoção do Ministério Público, foi ordenada a notificação de cada um dos condenados para, no prazo de 5 dias, demonstrar nos autos o pagamento de ¼ de metade do valor fixado a título de indemnização referente à primeira tranche (refªs. ...55, ...96, ...80, ...51 e ...53). f) A 5 de Junho de 2020, os arguidos vieram alegar que dificuldades económicas os tinham impossibilitado de entregar o valor em causa (ref.ª ...94). g) Nessa sequência, por despacho de 9 de Junho de 2020, foi ordenada a sua notificação para, no prazo de 5 dias documentarem nos autos «todos os rendimentos e as despesas que alegavam no assinalado requerimento» (ref.ª ...80). h) Porque os arguidos não reagiram, a 29 de Junho de 2020 foi designada a data de 23 de Setembro para a respectiva audição, assim como do técnico superior da DGRSP responsável pelo acompanhamento, «nos termos e para os efeitos do artigo 56.º (Revogação da suspensão) do Código Penal» (ref.ª ...94). i) A 23 de Setembro de 2020, foram os arguidos ouvidos, e no mesmo acto foi-lhes concedido prazo para virem aos autos indicar valor que consideram «disponível a entregar nos autos e que com este junte ainda a documentação seja das receitas seja das despesas» (ref.ª ...79). j) Em 6 de Outubro de 2020 os recorrentes apresentaram requerimento juntando documentos referentes às despesas e rendimentos (todos em francês) e propondo «o pagamento mensal e sucessivo» de € 75,00 (ref.ª ...01). k) A 12 de Outubro de 2020, foi proferido despacho como segue: «Não tendo sido entregue qualquer valor e face ao montante de rendimentos que cada um dos condenados sempre dispôs pode-se afirmar que os mesmos nenhum esforço sério fizeram no sentido de cumprir logo desde o primeiro ano a condição a que estavam sujeitos pelo acórdão proferido nos autos transitado pacificamente em julgado, pelo menos de um modo parcial, sendo por culpa sua que não cumpriram o determinado em tal decisão, optando por aplicar todos os seus rendimentos nas despesas correntes do agregado familiar sem que se verifique uma qualquer contenção/redução em qualquer das rubricas em que se pode desdobrar um orçamento familiar. Assim visto, mas na consideração que ainda nos encontramos no decurso do segundo ano da decretada suspensão e tendo em vista conceder aos condenados uma última oportunidade de evitar a revogação e por outro lado o cumprimento ao menos de forma parcial da condição referente ao primeiro ano da decretada suspensão, considerando a promoção que antecede do Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 55.º, alíneas a) e c) do Código Penal e na solene advertência que constitui a sua audição presencial decido que cada um dos condenados proceda à entrega/depósito nos autos da quantia mensal de € 150 por conta do período já vencido, que deverá ser em duplicado nos meses em que aufiram subsídios de natal e/ou de férias, devendo comprová-lo nos autos sempre de forma bimensal até ao dia 10 de cada mês, devendo a primeira entrega ocorrer impreterivelmente até ao dia 10 de novembro, com a expressa advertência de que, não o fazendo, pode a decretada suspensão ser revogada» (ref.ª ...94). l) A 27 de Outubro de 2020, depois de notificados deste despacho, vieram os ora recorrentes requerer que fosse alterada a quantia fixada para € 75,00 mensais, «tornando, assim, possível cumprir a condição a que estão sujeitos sem asfixiar os seus direitos mais básicos como alimentação e saúde», e por o valor fixado pelo Tribunal os colocar «no limiar da pobreza» (ref.ª ...08). m) Esta pretensão não veio a ter provimento, conforme despacho de 29 de Outubro de 2020, por se entender que o poder jurisdicional, quanto a tal questão, se tinha esgotado no despacho referido em k) (ref.ª ...45). n) Os condenados vieram depositar nos autos, de cada vez, € 300,00 a 9 de Novembro de 2020 (refªs. ...1), a 10 de Dezembro seguinte (refªs. ...7) e, em 2021, a 11 de Janeiro (refªs. ...40), 11 de Fevereiro (refªs. ...) e 29 de Março (refªs. ...1); após nova notificação para virem demonstrar os depósitos a que estavam obrigados, por despacho de 7 de Junho (ref.ª ...96), reiterada no despacho de 23 do mesmo mês (ref.ª ...79), os condenados procederam a novo depósito de € 300,00 a 8 de Julho seguinte (refªs. ...), 8 de Setembro – de € 300,00 cada condenado (refªs. ...0) – e 12 de Outubro, mais uma vez de € 300,00 cada um (refªs. ...0). o) Estando em falta os pagamentos do último trimestre de 2021, foi proferido despacho, a 19 de Janeiro de 2022, a determinar a notificação dos condenados para os efectuarem (ref.ª ...32). p) Por despacho de 15 de Fevereiro de 2022, na sequência de requerimento apresentado pelos recorrentes, no qual alegavam ter «vindo a suportar despesas excecionais e de montante avultado» (ref.ª ...04) – que vieram a concretizar em requerimento posterior (ref.ª ...44) –, foi deferida «a prorrogação, por quatro meses, do prazo para liquidação da prestação em falta», atendendo a que os condenados tinham tido despesas com saúde e impostos de cerca de € 14.277,07 durante o ano de 2021 (ref.ª ...39). q) Por despacho de 22 de Junho de 2022, e na ausência de qualquer outro pagamento até à data, foi determinada a notificação dos condenados para virem demonstrar os pagamentos relativos ao último trimestre de 2021 e primeiro de 2022 (ref.ª ...74). r) Em resposta, a 20 de Julho de 2022 os condenados requereram «a prorrogação de prazo por mais 15 (quinze dias para dar cumprimento ao solicitado» (ref.ª ...26). s) A 29 de Agosto de 2022, vieram os condenados depositar a quantia de € 300,00, alegando não poderem efectuar mais nenhum pagamento devido a doença do arguido (refªs. ...60, ...). t) Por despacho de 13 de Setembro seguinte, foi deferida a prorrogação de prazo de pagamento por dez dias (ref.ª ...25). u) A 4 de Outubro de 2022, e esgotado tal prazo, foi ordenada a notificação dos ora recorrentes para, em 10 dias, demonstrarem nos autos os pagamentos efectuados, «relativos ao último trimestre de 2021 e primeiro de 2022, em cumprimento da condição que lhes foi imposta para a suspensão da pena de prisão.» (ref.ª ...54) v) A 19 de Outubro de 2022, os condenados, invocando dificuldades económicas provocadas por razões de saúde do recorrente que levaram a ter ficado sem casa na ..., onde residiam, e à necessidade de arranjarem nova residência, juntaram documentos e requereram novo prazo de 6 meses para «liquidar as prestações em atraso» (ref.ª ...44). w) A 24 do mesmo mês, na sequência de promoção do Ministério Público e ao abrigo do art. 495.º, n.º 2, foi designado o dia 24 de Novembro para a audição dos arguidos (ref.ª ...27). y) Por requerimento de 23 de Novembro, os arguidos requereram a junção aos autos de documentos «para prova da sua incapacidade de pagar as mensalidades da condenação», referentes a execução por falta de pagamento de impostos (2020 e 2021), aviso de anulação do contrato de arrendamento por falta de pagamento (Setembro de 2022), despesas de electricidade, pagamento de seguro mensal dos condenados e seus filhos, alegando num resumo manuscrito proventos mensais de 5500 francos suíços e despesas de 7660 francos suíços (ref.ª ...95). z) A 24 de Novembro de 2022 foi ouvido o arguido (ref.ª ...26) e, a 16 do mês seguinte, a arguida (ref.ª ...11), ambos alegando, no essencial, as condições económicas espelhadas na documentação que juntaram. aa) A 1 de Fevereiro de 2023, foi proferido o seguinte despacho: «Os documentos juntos aos autos revelam, por natureza, que os condenados estão, actualmente, em situação de incumprimento das suas obrigações vencidas, tendo o pagamento da renda da habitação e de outros serviços essenciais conexos em mora/incumprimento. Além disso, estão em mora/incumprimento com o pagamento dos seus seguros, obrigatórios, bem como, com o pagamento das despesas de saúde. Ouvidos, deram conta de um contexto de dificuldades económico-financeira decorrentes, essencialmente, da situação de desemprego/emprego precário/a tempo parcial de BB que, reduzindo o rendimento familiar, os deixou em situação de precariedade. Isto posto, inexistem, actualmente, elementos que permitam ao Tribunal pronunciar-se, em definitivo, sobre a culpa no incumprimento. Nessa medida, os condenados disporão até ao fim do período de suspensão da execução da pena aplicada a AA (18 de Dezembro de 2023), para proceder ao pagamento, total ou parcial/parcelado, da quantia fixada como condição da suspensão da execução da pena; altura em que se avaliará o (in)cumprimento da mesma condição e dos seus reflexos na pena aplicada.» (ref.ª ...37) ab) A 27 de Novembro de 2023, foi ordenada a notificação dos arguidos para «virem aos autos demonstrar o pagamento integral ou parcial do montante em dívida, em cumprimento da condição de suspensão da pena de prisão que lhes foi aplicada», e que se solicitasse à demandante “EMP03...” que informasse «quais os pagamentos (datas e valores) efectuados» por cada um dos arguidos (ref.ª ...43). ac) A 29 de Novembro de 2023, a “EMP03...” informou que «até ao momento não foram detetados quaisquer pagamentos por parte dos arguidos nos termos da sentença.» (ref.ª ...96) ad) Não tendo sido demonstrado qualquer outro pagamento, a 22 de Fevereiro de 2024 foi designada nova data para audição dos arguidos (ref.ª ...85), tendo o arguido sido ouvido em 18 de Abril de 2024, e considerada justificada a falta da arguida, por doença (ref.ª ...46). ae) A pedido dos condenados, a 6 de Maio foi prorrogado por 10 dias o prazo para a junção de documentos destinados a comprovar a sua insuficiência económica (refªs. ...98 e ...92). af) A 10 desse mês, os condenados vieram juntar uma resenha (da sua lavra) relativa às receitas e despesas mensais, em que estas excedem aquelas, anexando documentos em francês (ref.ª ...78). ag) Porque a Mm.ª Juiz a quo o determinou por despacho de 2 de Junho de 2024 (ref.ª ...56), os condenados juntaram a tradução de tais documentos a 28 desse mês, estando pendentes na ... várias execuções contra o arguido (ref.ª ...80). ah) Na sequência das averiguações efectuadas pelo Tribunal junto do Banco de Portugal e dos bancos em que a condenada era titular de contas, a 10 de Outubro de 2024 o Banco 2... remeteu aos autos extractos bancários referentes a uma dessas contas, relativamente à qual constam dois contratos de empréstimo e onde se verifica a transferência/depósito de valores para fazer face aos encargos derivados de tais empréstimos, amortização de capital e juros (ref.ª ...78). ai) Foi a arguida ouvida a 14 do mesmo mês, e ali confrontada com tal documentação do Banco 2..., os contratos de empréstimo em causa e o imóvel associado a tais empréstimos (contratos de mútuo com hipoteca), sendo também determinado que fossem solicitados novos elementos junto da AT e Banco 2... (ref.ª ...34). aj) A 22 de Outubro de 2024, a AT fez chegar a caderneta predial relativo ao prédio “Casa de habitação de cave e ... com 6 divisões” com um “valor patrimonial actual (CIMI): €100.373,35 Determinado no ano: 2021” e averbado a favor da arguida como usufrutuária desde 2018 (ref.ª ...81). ak) Tal imóvel está registado na Conservatória de Registo Predial ..., constando a condenada como adquirente a 1 de Julho de 2004, e a doação, por esta, com reserva de usufruto, a CC, a 19 de Novembro de 2018 (ref.ª ...33). al) A 28 de Outubro de 2024, o Banco 2... fez chegar aos autos dois contratos de mútuo com hipoteca (sobre o imóvel referido supra), celebrados entre a condenada e aquela instituição a 23 de Julho de 2004, pelo prazo de 40 anos, à taxa de juro inicial de 3,17%: - um, no valor de € 100.000,00, relativo a crédito para habitação, tendo a condenada, entre 16 de Abril de 2019 e 17 de Outubro de 2024, pago € 21.516,76 (€ 13.879,68 de amortização de capital e € 6.631,68 de juros); - outro, no valor de € 45.000,00, destinado «a fazer face a compromissos financeiros assumidos anteriormente (…) e a aquisição de equipamento para a sua residência”, tendo a condenada, entre 16 de Abril de 2019 e 17 de Outubro de 2024, pago € 8.748,13 (soma da amortização de capital e dos juros)[7] (ref.ª ...13). Veja-se agora a lei pertinente para o caso. No excerto aqui relevante, prevê o art. 56.º, n.º 1, a), do Código Penal, que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada “sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres (…) impostos”. Note-se que, à data do despacho recorrido, 18 de Março de 2025, tinham passado precisamente dois anos sobre o período original da obrigação de pagamento a que os recorrentes estavam sujeitos – terminado a 18 de Março de 2023, conforme acórdão condenatório – e (também ao dia) 1 ano e 3 meses sobre o fim do período de suspensão de execução da pena do recorrente (18 de Dezembro de 2023), conforme prorrogação que lhes foi concedida pelo Tribunal a 1 de Fevereiro de 2023 – aa) supra. Está, por isso, afastada qualquer possibilidade de aplicação do art. 55.º do Código Penal, tanto mais que a respectiva solene advertência que aí se refere também já lhes tinha sido feita, no longínquo mês de Outubro de 2020 – k) –, sem resultado. É evidente que aquela violação grosseira e reiterada dos deveres impostos como condição da suspensão pressupõe que haja culpa, repetida e patente, por parte do condenado: este podia (e sabia que devia) cumpri-los, mas não o fez porque não quis, nomeadamente por usar os seus recursos económicos para outros fins que lhe pareceram mais importantes. Não se enquadram, per si, naquele artigo as falhas ocasionais ou parcelares de pagamento, ou os atrasos resultantes de uma pior fase de conjuntura económica do condenado, que o possam levar a negligenciar pontualmente a sua obrigação. Só que nem sempre as prioridades são respeitadas, e o caso dos recorrentes é paradigmático disso mesmo. Começando pelos pagamentos a que estavam vinculados os recorrentes, pelo acórdão condenatório, são claríssimos:
Porém, logo na primeira destas datas os recorrentes não tinham demonstrado qualquer pagamento nos autos, isto apesar de, em Maio de 2019, terem pago as custas na totalidade, no valor de € 2.226,66, e de lhes terem sido devolvidos bens que indiciam um modo de vida bem acima da média – tal como o eram os seus vencimentos à data do acórdão, mesmo considerando que trabalhavam num país onde também o custo de vida é elevado, a ... – a). Quando foram confrontados com a sua omissão, vieram alegar ter dificuldades económicas, protelaram quanto puderam o apuramento destas por parte do Tribunal – cf. f) a i) – e, num momento em que já estava em curso o prazo para a obrigação de pagamento da segunda parcela, propuseram-se pagar mensalmente € 75,00 cada um – j) –, o que, manifestamente, seria um montante residual face não só a um ano inteiro de incumprimento, mas também ao valor correspondente à divisão de cada uma das parcelas por 12 meses (€ 318,45/mês). Nessa altura, foi-lhes fixado o pagamento mensal de € 150,00 a cada um – k) –, no que já foi, por um lado, uma decisão que considerou os encargos por eles alegados e, por outro, continha a aludida solene advertência, bem como um prazo definido para cada uma das liquidações. Perante isso, os condenados ainda esboçaram uma (vã) tentativa para levar avante o valor mensal de € 75,00 – l) e m) – e, durante escassos cinco meses, deram cumprimento ao ordenado, embora no último deles fora do prazo fixado; depois, foram necessários dois despachos judiciais para que os arguidos voltassem a pagar, um mês tal como ordenado e, em dois meses seguidos, o dobro (€ 300,00 cada um) – n). Sem qualquer depósito nos dois últimos meses de 2021 – ou notícia do motivo da sua ausência –, relembrou o Tribunal aos condenados as suas obrigações, tendo estes logrado, face aos encargos que alegaram, a prorrogação por mais quatro meses – o) e p); isto numa altura em que já tinham passado quase três anos desde o trânsito em julgado da sua condenação… Mesmo assim, ainda foi necessária, quatro meses depois, nova notificação do Tribunal, já incluindo pagamentos relativos a 2022, e nova prorrogação foi solicitada, com a alegação de doença do arguido, tendo sido efectuado um depósito de € 300,00 – q) a s). Apesar da prorrogação lhes ter sido depois concedida, por 10 dias, nunca mais, desde 29 de Agosto de 2022, os condenados depositaram qualquer outro valor, voltando à carga com a invocação de dificuldades económicas, o que levou à necessidade da sua nova audição, culminando na prorrogação do prazo de pagamento por mais nove meses do que no acórdão, desta vez até 18 de Dezembro de 2023 – t) a aa). Não tendo a seguradora (demandante) recebido qualquer valor, e face ao (já nesta altura) impenitente silêncio dos condenados, foi necessária uma terceira audição de ambos, que entretanto juntaram documentos (em francês, o que implicou ter o Tribunal de ordenar a sua apresentação em português, “ganhando” assim os condenados mais tempo…) e pediram prazo para demonstrar a sua insuficiência económica (que, até aqui, sempre tinha merecido a compreensão dos sucessivos julgadores, face aos elementos coligidos nos autos) – ab) a ag). Portanto, aqui chegados, mais de 5 anos volvidos sobre a condenação, do total de € 30.571,44 que os ora recorrentes estavam vinculados a depositar nos autos, só o tinham feito no valor de € 3.300,00, ou seja, menos de 11%. Perante as averiguações determinadas pelo Tribunal sobre a situação económica dos condenados – que, lembre-se, são um casal –, eis que toda a fachada da falta de meios financeiros para prover à condição de pagamento ruiu com estrondo. É que só aí se pôde constatar, conforme ah) a al), um conjunto de circunstâncias particularmente importantes para a questão em análise: - a recorrente adquiriu em 2004 uma casa de habitação de cave e ... com 6 divisões, no concelho ..., cujo valor patrimonial actual, para efeitos fiscais, é superior a € 100.000,00 (o que, num tempo de alta no mercado de habitação, significa que o seu valor real é certamente bem maior); - a recorrente doou o mesmo imóvel, com reserva de usufruto, ao filho do casal, CC, a 19 de Novembro de 2018, em plena pendência dos autos principais, onze meses depois da acusação formulada contra os arguidos (ref.ª ...89), três meses depois da decisão instrutória nos mesmos termos daquela (ref.ª ...34) e, certamente não por coincidência (mas antes como forma de acautelar património), quando já tinham decorrido duas sessões da audiência de julgamento, com produção de prova da acusação e demandantes… (refªs. ...97 e ...70) - esta casa, segundo declarações da própria arguida – e também resulta dos autos – não é a residência permanente do casal, mas aquela onde passam férias quando vêm a Portugal, pelo que a sua rentabilização, nomeadamente através de arrendamento, não os deixaria sem casa e ainda lhes permitiria disporem de (mais) meios para o cumprimento das obrigações neste processo (se fosse essa a sua vontade real); - entre Abril de 2019 e Outubro de 2024, para amortização de capital e pagamento de juros relativos a dois empréstimos por si contraídos em 2004, um para compra do aludido imóvel e outro para saldar dívidas anteriores e compra de equipamento do imóvel, a recorrente pagou ao banco credor o valor total de € 30.264,89 (€ 21.516,76 + € 8.748,13). Se a isto acrescer o valor de custas pago – € 2.226,66, em Maio de 2019 –, é patente que os recorrentes tinham disponibilidade económica para cumprirem a obrigação a que estavam sujeitos como condição da suspensão da execução da pena – a mais importante de todas –, que era em valor inferior (€ 30.571,47). Porém, preferiram dar prioridade a uma obrigação civil – o pagamento dos empréstimos – em vez de uma condição imposta por um Tribunal como consequência da prática de vários crimes! Dispuseram-se, portanto, voluntaria e culposamente, ao risco do não cumprimento da condição, cabendo-lhes agora arcar com as consequências dessa nefasta opção. Como por outras palavras escreveu a Mm.ª Juiz a quo, acharam mais importante evitar uma execução e subsequente penhora – caso não pagassem as prestações ao banco –, não se preocupando (ou pensando que tudo iria correr bem para o seu lado) com as possíveis repercussões da falta de pagamento atempado nestes autos. Em suma, privilegiaram a propriedade em detrimento da liberdade; tiveram mais receio de uma instituição bancária privada do que da autoridade do Estado corporizada numa decisão judicial. Ao contrário do que alegam, os recorrentes não «demonstraram sempre boa-fé em cumprir com a obrigação» (protelaram o mais que podiam ao longo dos anos, e nunca sequer alegaram como encargo o pagamento do empréstimo bancário, certamente receando que o Tribunal descobrisse a sua existência…), bem como lhes foi por várias vezes permitido o pagamento em prestações e concedidas dilações para o mesmo. Mostrou sempre o Tribunal muita compreensão para com os ora recorrentes mas, infelizmente, ficou à saciedade demonstrado que não a souberam merecer. Portanto, bem andou a Mm.ª Juiz a quo quando considerou preenchido o requisito do art. 56.º, n.º 1, a), do Código Penal e, em consequência, revogou a suspensão da execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos: o incumprimento destes foi sem dúvida deliberado, reiterado e grosseiramente culposo, pelo que não assiste, nesta parte, razão aos recorrentes. 4. Violação do art. 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa Alegam os recorrentes não terem tido direito a um processo equitativo e imparcial, pelo que consideram inconstitucional «a hermenêutica jurídica aplicada pelo Tribunal a quo» (conclusão 13). Nos termos dessa disposição constitucional, “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.” Decorre da simples leitura do art. 277.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental, ser sindicável a constitucionalidade das normas, mas já não a das decisões judiciais. De tal forma que, em sede de fiscalização concreta, só há recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma “com fundamento na sua inconstitucionalidade”, ou que apliquem norma “cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” (art. 280.º, n.º 1). Ora, não se vislumbra que os recorrentes invoquem tal vício em relação a uma concreta norma penal ou processual penal – não concretizam qual a norma violadora do art. 20.º, n.º 4, que a Mm.ª Juiz a quo tenha aplicado –, pelo que o conhecimento desta questão está irremediavelmente prejudicado, por falta de fundamento jurídico, e também aqui destina o recurso a soçobrar. III - DISPOSITIVO Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelos arguidos AA e BB, confirmando integralmente o despacho recorrido. Custas a cargo dos recorrentes, com 4 UC de taxa de justiça. Guimarães, 30 de Setembro de 2025 (Processado em computador e revisto pela relatora) Os Juízes Desembargadores Cristina Xavier da Fonseca Isilda Pinho Pedro Cunha Lopes [1] Suprime-se parte da primeira, por se reportar ao despacho recorrido, bem como a décima, por ser uma transcrição do mesmo despacho. [2] Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem. [3] Mantêm-se os destaques de origem. [4] Dispensa-se aqui a transcrição da maior parte de tal promoção, para evitar repetições: nela se faz uma resenha dos autos desde o acórdão condenatório, o que é também função deste Tribunal na apreciação do recurso. [5] Vide ac. Rel. Évora de 9.2.21, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRE:2021:1.18.2PTSTR.E1.F5/, e da Rel. Porto de 15.2.12, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2012:918.10.2TAPVZ.P1.A5/, este relativo ao recurso de uma decisão instrutória. [6] Todas as referências são dos autos principais. [7] Na declaração bancária relativa ao segundo empréstimo (doc. 3 da mesma ref.ª), há um manifesto lapso na soma das prestações pagas, já que o total foi “importado” do relativo ao empréstimo mais elevado (doc. 2). |