Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
119/24.2T8MDL.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: VENDA DE BENS ALHEIOS
ÓNUS DA PROVA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA
RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
NATUREZA SUBSIDIÁRIA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- Tendo entre o autor e o 2º réu sido celebrado um contrato de compra e venda, mediante o qual este lhe vendeu todos os pinheiros existentes no prédio rústico de que é proprietário, a transferência da propriedade sobre os pinheiros operou-se no momento em que ocorreu a separação material dos pinheiros do prédio ao qual se encontravam materialmente ligados com carácter de permanência à data da celebração do contrato, ou seja, no momento em que ocorreu o corte dos pinheiros.
2- Na venda de bens alheios são factos constitutivos do direito do comprador que pretenda ver declarada a nulidade da compra e venda e a condenação do vendedor a restituir-lhe o preço pago: a- ter celebrado um contrato de compra e venda; b- a coisa ou o direito objeto do contrato de compra e venda seja propriedade de terceiro; e c- o vendedor careça de legitimidade para ter realizado a venda, por não ser representante legal ou voluntário do verdadeiro proprietário da coisa ou do titular do direito vendidos.
3- Por isso, o ónus alegatório e probatório de facticidade integrativa desses pressupostos impende sobre o autor da ação (demandante).
4- A prova em como, à data da celebração do contrato de compra e venda, o prédio rústico ao qual os pinheiros vendidos estavam materialmente ligados com carácter de permanência, não é propriedade do vendedor, mas sim de terceira pessoa (1º réu), passa pela alegação e prova pelo autor da ação de que essa terceira pessoa exerceu atos possessórios sobre o prédio, características desses atos possessórios e período temporal em que os exerceu, de modo a demonstrar que, à data da celebração do contrato de compra e venda, esta tinha adquirido o direito de propriedade sobre o prédio, por usucapião.
5- Embora a obrigação do vendedor de entregar a coisa vendida ao comprador seja um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda, nem sempre essa obrigação existe; e quando exista, a entrega da coisa vendida pode fazer-se por tradição material ou simbólica.
6- Estando apurado que, nos termos do contrato de compra e venda celebrado cumpria ao comprador (autor) cortar os pinheiros e efetuar o seu carregamento e transporte do prédio rústico onde os cortara para local que entendesse, a obrigação de entrega dos pinheiros por parte do vendedor (2º réu) ficou cumprida com o facultar ao comprador do acesso ao prédio para que efetuasse o corte dos pinheiros e para que, posteriormente, procedesse ao carregamento e transporte dos pinheiros cortados, não existindo da parte do vendedor qualquer incumprimento, quando se apurou que, estando os pinheiros já cortados e prontos a serem carregados, um terceiro (1º réu), arrogando-se proprietário do prédio, impediu a compradora (autora) de os carregar e transportar.
7- O instituto do enriquecimento sem causa tem caráter subsidiário, pelo que, estando apurado que o terceiro (1º réu), à data da celebração do contrato de compra e venda entre a autora e o 2º réu, não era proprietário do prédio rústico a que os pinheiros vendidos se encontravam materialmente ligados com carácter de permanência, ao impedir que a autora (compradora) carregasse e transportasse os pinheiros cortados, o 1º réu violou, ilícita e culposamente, o direito de propriedade da autora sobre os pinheiros, constituindo-se na obrigação de a indemnizar pelos danos que lhe causou, a título de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (art. 483º, n.º 1 do CC), impondo-se julgar o pedido indemnizatório formulado contra aquele (1º réu), com fundamento em enriquecimento sem causa, improcedente.
8- Embora uma ação de indemnização possa assentar no instituto do abuso do direito, uma vez que a ilegitimidade do abuso tem as consequências de todo o ato ilegítimo, não existe da parte do 1º réu abuso de direito, designadamente, na modalidade de venire contra factum proprium, apesar de se ter apurado ter impedido o carregamento e transporte dos pinheiros cortados pela autora (compradora) quando, anteriormente, dera ordens aos trabalhadores desta para que prosseguissem com os trabalhos de corte dos pinheiros, na medida em que o 1º réu não era proprietário do prédio rústico ao qual os pinheiros vendidos, à data da celebração da compra e venda entre a autora e o 2º Réu, se encontravam ligados materialmente com caráter de permanência, pelo que não tinha (tem) qualquer direito aos pinheiros cortados pela autora, na execução do contrato de compra e venda celebrado.
Decisão Texto Integral:
I- Relatório

Sociedade de EMP01..., Lda., com sede no Lugar ..., união de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra AA, residente na Rua ..., ..., concelho ..., e BB, residente na Rua ..., ..., concelho ..., pedindo que se:

1- Declarasse a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre a Autora e o 2º Réu, por constituir venda de bem alheio; e, em consequência, se
2- Condenasse o 2º Réu a restituir o preço à Autora, no montante de 3.300,00 euros;
Subsidiariamente,
3- Declarasse a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre a Autora e o 2º Reu e, em consequência, se condenasse o último a restituir-lhe o preço recebido, no valor de 3.300,00 euros;
Cumulativamente,
4- Condenasse solidariamente os Réus a pagar à Autora uma indemnização em montante não inferior a 14.700,00 euros, a título de danos patrimoniais, por despesas tidas com o corte e remoção da madeira, no montante de 6.547,00 euros, a que acresce o valor de 8.153,00 euros, correspondente ao valor de benefícios que deixou de receber com a venda da madeira cortada e removida.
Subsidiariamente,
5- Condenasse o 1º Réu a pagar uma indemnização em montante não inferior a 18.000,00 euros, por a restituição em espécie não ser possível, correspondente ao valor em que se enriqueceu à custa da Autora, com que injustamente se locupletou, sem causa justificativa.
Para tanto alegou, em síntese: dedicar-se à atividade de compra e venda de madeira, corte e transporte de árvores para produção de madeira, com escopo lucrativo; em 09/04/2022, comprou ao 2º Réu um conjunto de árvores existentes num prédio rustico, sito na Rua ..., ..., pelo preço de 3.300,00 euros, que pagou; as árvores foram-lhe indicadas pelo intermediário do 2º Réu; em 23/04/2022, os seus trabalhadores iniciaram o corte das árvores quando foram abordados pelo 1º Réu, que lhes disse que eram suas, mas para que prosseguissem com o trabalho, que posteriormente se entenderia com o 2º Réu relativamente ao preço; na sequência, os trabalhadores prosseguiram com os trabalhos; em 30/04/2022, quando os seus trabalhadores iam transportar a madeira cortada e preparada para a sua sede, o 1º Réu chamou a GNR e impediu que a madeira, com o peso de trezentas toneladas,  saísse do local; com os trabalhos de corte e transporte das árvores despendeu 6.547,00 euros e teria vendido a madeira pelo preço de 18.000,00 euros; a madeira ficou no local onde ia ser carregada, sujeita às condições meteorológicas e outras contingências; face ao período de tempo decorrido desde o corte, não tem interesse na aquisição da madeira, que se deteriorou com o calor e a chuva e atualmente não tem valor monetário.
Regularmente citados, apenas o Réu AA, contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação e deduziu reconvenção.
Invocou a exceção dilatória de ilegitimidade passiva alegando não ter celebrado qualquer contrato com a Autora; o prédio onde esta cortou as árvores é sua propriedade. Negou ter dado qualquer ordem aos trabalhadores da Autora para que prosseguissem com o corte das árvores existentes no seu prédio.
Impugnou parte dos factos alegados pela Autora.
Concluiu pedindo que se julgasse a ação improcedente e fosse absolvido do pedido e se condenasse a Autora como litigante de má-fé no pagamento da quantia de 1.500,00 euros e da totalidade da taxa de justiça e de todos os custos que venha a ter com o processo.
Deduziu reconvenção pedindo que se condenasse a Autora-reconvinda a pagar-lhe a quantia de 3.300,00 euros, correspondendo ao valor das árvores que cortou do prédio sua propriedade, sem autorização e contra a sua vontade.
Convidou-se o Autor e a Ré-reconvinte a aperfeiçoarem, respetivamente, a facticidade que alegaram na petição inicial e na reconvenção, o que acataram.
Em 03/07/2024, proferiu-se decisão em que se: admitiu a reconvenção; saneador, em que se julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva suscitada pelo 1º Réu; fixou o valor da causa em 21.300,00 euros; enunciou o objeto do litígio; fixou os temas da prova, conheceu dos requerimentos de prova; e, finalmente, agendou data para a realização da audiência final.

Realizada a audiência final, proferiu-se, em 12/04/2025, sentença, em que se julgou improcedente a ação e a reconvenção e, bem assim, o pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé formulado pelo 1º Réu, da qual consta a seguinte parte dispositiva:
“Por todo o exposto, julga-se a presente ação totalmente improcedente e em consequência decide-se:
a) Absolver os RR. do peticionado.
b) Absolver a A. do pedido reconvencional e do pedido de condenação de litigância de má-fé formulados pelo 1º R.
c) Condenar A. e 1º R. no pagamento das custas do processo, na proporção do respetivo decaimento que se fixa em 85%-15%, respetivamente.
Condenar o R. AA no pagamento das custas pelo incidente de litigância de má-fé, que se fixam em 1 (uma) Unidade de Conta, nos termos do artigo 7º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela II em anexo ao mesmo diploma”.

Inconformado com o decido, a Autora interpôs recurso, em que formulou as seguintes conclusões:

I- Vem o presente recurso impugnar a decisão no que concerne à matéria de facto e à matéria de direito.
Da impugnação da decisão respeitante à matéria de facto e concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados que constam dos factos não provados:
II- Consta dos factos não provados sob alínea a), b), c), j):
a) O A. declarou comprar ao 2º R., que declarou vender, pelo menos, 800 (oitocentas) árvores.
b) As árvores cortadas por CC e DD, por ordem da A., correspondem às árvores referidas em 2.
c) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 10., os trabalhadores da A. cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores referidas em 2.
j) Em data não concretamente apurada, mas posterior a 30 de abril de 2022, o legal representante da A. contactou os RR. com o propósito de obter uma solução extrajudicial, a qual não logrou ser alcançada.
III) Acrescem aos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados aos referidos em II, que constam dos factos provados:
- sob ponto 2.) “Na data de 09/04/2022, a A. declarou comprar ao 2ºR., que declarou vender, quantidade não concretamente apurada de árvores, existentes em prédio rústico sito na Rua ..., freguesia ..., mediante o pagamento da quantia de 3300,00€ (três mil e trezentos euros)”.
IV) A Recorrente entende, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, ter resultado provado das declarações prestadas pelas testemunhas CC, EE, FF e GG, a quantidade aproximada de árvores vendidas, a área do terreno onde se encontravam implantadas as árvores, a correspondência entre as árvores vendidas e as árvores efetivamente cortadas por ordem da Autora e ainda que nas circunstâncias descritas em 10) dos factos provados os trabalhadores da Autora cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores referidas no ponto 2. dos factos provados.
V) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, são os seguintes:
1) Inquirição da testemunha CC, entre o minuto 6m25s e 7m30s:
- Advogada da A.: O senhor sabia por onde havia de cortar? - Testemunha: Eu sabia...
- Advogada da A.: Quem lhe disse a si?
-Testemunha: Quem me disse foi o senhor BB que recebeu as ordens do outro indivíduo que vendeu os pinheiros…
- Advogada da A.: ...o senhor BB seu patrão ou o senhor EE que vendeu os pinheiros?
- Testemunha: O meu ex-patrão... os pinheiros estavam todos dentro de uma cerca não tinha muito por onde enganar, estava tudo dentro do mesmo sítio.
2) Inquirição da testemunha EE, entre 4m20s e 10m30s:
-Advogada da A.: O senhor tem conhecimento da área que foi vendida e da quantidade de árvores?
- Testemunha: Sim, a área que na altura o senhor BB vendeu seriam cerca de dois hectares, foi a área que ele marcou, eu não conhecia o terreno mas foi ele que marcou e fui lá com o senhor.
- Advogada da A.: Foi o senhor BB que marcou? -Testemunha: Sim, sim.
- Advogada da A.: ...marcou consigo, ou seja, como é que o senhor EE tem conhecimento da área que o senhor BB queria vender?
- Testemunha: Nós fizemos a marcação numa aplicação e ele confirmou que era aquela área para cortar e foi a área que eu mostrei ao senhor HH ... antes de ir ele (vendedor) explicou mais ou menos onde era, não marcou a passo e depois marcou uma área para sabermos;
- Advogada do A.: ...o senhor EE e o senhor BB chegaram a estar no imóvel? - Testemunha: Sim... Nós fomos lá...
-Advogada da A.: Quem indicou ao madeireiro (comprador) a área que podia cortar?
- Testemunha: Fui eu com o senhor HH, eu mostrei-lhe o mapa e disse-lhe a área que era.
...
- Advogada da A.: ...o senhor AA esteve a falar com o senhor BB, eles falaram ao telemóvel?
- Testemunha: Sim, falaram.
- Advogada da A.: ...e depois disso?
- Testemunha: ...depois o senhor AA disse que podiam continuar o corte que ele lá se entendia com ele e lá continuaram até comentou que havia uns pinheiros mais abaixo que eram dele e disse cortai tudo que eu depois lá me entendo com ele...
3) Testemunha FF, entre 16m10s e 16m55s:
- Advogada da A.: O senhor sabe qual era a quantidade de madeira vendida? - Testemunha: pesada?
- Advogada da A.: A que ficou pronta para vocês transportarem e puderem vender?
- Testemunha: ...a minha ideia da madeira toda feita deviam ser 160 a 180 toneladas...
4) Testemunha GG, prestou entre as demais, as seguintes declarações entre 4m05s e 4m28s:
- Advogada da A.: O senhor sabe qual foi a quantidade de madeira cortada?
-Testemunha: O meu pai quando fez o negócio disse que era à volta de oitocentas árvores.
VI) Em sede de motivação, o Tribunal “a quo” considerou ter a testemunha CC prestado declarações “...com espontaneidade que relatou a dinâmica dos trabalhos executados e as respetivas vicissitudes...”.
VII) Relativamente à testemunha II, entendeu o Tribunal de primeira instância que “descreveu os termos da sua intervenção nessa qualidade, o que fez de forma detalhada, circunstanciada e sustentada, inclusive, pela prova documental constante dos autos”.
VIII) Do mesmo modo, conferindo credibilidade às testemunhas, o Tribunal “a quo” considerou que FF e GG, “enquanto colaboradores da sociedade A. e filhos do seu legal representante, embora manifestando o seu desconhecimento pessoal sobre os termos do negócio celebrado com o 2º R, assomaram-se espontâneos e coincidentes...”.
IX) A decisão que, a Recorrente entende dever ser proferida respeitante às questões de facto impugnadas, por acreditar não terem sido valoradas e atendidas pelo Tribunal “a quo” os depoimentos das aludidas testemunhas, no que respeita à quantidade aproximada de árvores vendidas, a área do terreno onde se encontravam implantadas as árvores, à correspondência entre as árvores vendidas e as árvores efetivamente cortadas por ordem da Autora e ainda que nas circunstâncias descritas em 10) dos factos provados os trabalhadores da Autora cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores referidas no ponto 2. dos factos provados.
X) Pelo exposto e salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, devia o Tribunal de primeira instância, julgar provado o seguinte:
- no ponto 2) dos factos provados, “Na data de 09/04/2022, a A. declarou comprar ao 2º Réu, que declarou vender, a quantidade aproximada de oitocentas árvores existentes no prédio rústico com a área de dois hectares sito na Rua ..., mediante o pagamento de 3300,00€ (três mil e trezentos euros), pertencente ao 2ºRéu.
- ter a testemunha II indicado ao representante da Autora a área onde se encontravam implantadas as árvores vendidas e posteriormente cortadas pelas testemunhas BB, CC e FF.
- as árvores cortadas por CC e DD, por ordem do representante da Autora correspondem às árvores vendidas pelo 2º Réu à Autora e pesavam pelo menos 160 (cento e sessenta) toneladas.
- nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 10., os trabalhadores da Autora cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores referidas em 2.
XI) Da impugnação da decisão sobre matéria de direito, entende a Recorrente, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, terem sido violadas as disposições previstas no artigo 476º e 334º ambos do Código Civil.
XII) O Tribunal “a quo” considerou não se verificar no caso em apreço o instituto do enriquecimento sem causa, porquanto, conforme considerações do Supremo Tribunal de Justiça, “a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos, quais sejam, a existência de um enriquecimento, sem causa justificativa e à custa de quem requer a restituição”.
XIII) Decidiu o Tribunal “a quo” que da análise dos factos provados é manifesta a ausência de qualquer circunstância demonstrativa da falta de causa justificativa do enriquecimento do enriquecimento pelo 1º Réu no montante equivalente às árvores cortadas e não recolhidas pela sociedade Autora, pelo que entendeu decidir pelo não preenchimento dos pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa.
XIV) O sentido com que as normas que constituem fundamento jurídico da decisão, deviam ter sido interpretadas e aplicadas, a Autora alegou e demonstrou a existência de deslocação patrimonial para o património do primeiro Réu, bem como os restantes pressupostos da restituição com fundamento em enriquecimento sem causa, designadamente a ausência de causa para o enriquecimento.
XV) O primeiro Réu locupletou-se com as árvores cortadas, traçadas e derramadas pela Autora, pois resultou provado sob ponto 21) que o segundo Réu recolheu e transportou a madeira cortada, pelo que enriqueceu o seu património à custa do património da Autora.
XVI) Ademais, não existindo outros meios entre as normas jurídicas aplicáveis, para se obter o ressarcimento da Autora, por a lei não parecer facultar outro meio para a mesma ser ressarcida do seu empobrecimento, o enriquecimento sem causa, de cariz subsidiário permitia lograr tal desiderato.
XVII) Na verdade, a deslocação patrimonial ocorrida para o património do 1º Réu não assenta numa obrigação de cariz negocial e não tem causa, pois não existe um facto ou relação subjacente que, de acordo com a lei e os princípios do sistema jurídico a justifiquem.
XVIII) Aliás, o caso em análise é injusto perante a ordem jurídica, (cfr. Antunes Varela, Obrigações em Geral, 2ª ed. P.364 e segs. e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed. p.335, “Ou, ainda, quando se apresentar como injusta perante a ordem jurídica, no sentido de se encontrar em desarmonia com a correta ordenação jurídica dos bens conforme fixada e aceite pelo sistema jurídico, de tal sorte que o seu acolhimento e aceitação na esfera jurídica patrimonial do enriquecido, em detrimento da do empobrecido, porque injustificada e iníqua, repugnaria ao direito”).
XIX) Pelo que, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, devia o Tribunal “ a quo” ter aplicado o instituto do enriquecimento sem causa.
XX) Além do mais, o Tribunal “a quo” considerou não se verificar o abuso do direito pelo primeiro Réu, devido à atuação em abuso de direito pressupor desde logo, o exercício de um direito próprio, pelo que inexiste fundamento para a responsabilização do primeiro Réu.
XXI) O instituto do abuso do direito, previsto no artigo 334º do Código Civil, é considerado uma válvula de segurança ou mecanismo subsidiário, para circunstâncias em que a aplicação literal duma norma jurídica produz resultados injustos e inaceitáveis, como no resultado em apreço.
XXII) Na verdade, o comportamento adotado pelo primeiro Réu, como resulta dos factos provados, excede manifestamente os ditames e limites impostos pela boa fé e em consequência da sua atuação causou danos elevados à Autora, pelo que tendo o primeiro Réu agido em abuso de direito, deve ser condenado a ressarcir a Autora.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que Vs. Exas. melhor suprirão, requer a Vs. Exas. seja concedido provimento ao recurso interposto e, em consequência, seja decidido alterar a douta sentença proferida pelo Tribunal "a quo".
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].

No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- Se o julgamento de facto realizado pela 1ª Instância padece de erro de julgamento quanto à facticidade julgada provada na sentença no ponto 2º e a julgada não provada nas alíneas a), b), c) e j);
b- Se, na sequência da impugnação com êxito do julgamento de facto operada pela recorrente, a decisão de mérito proferida na sentença (ao julgar a ação improcedente e ao absolver os recorridos dos pedidos) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe julgar a ação procedente e condenar os recorridos nos pedidos formulados;
c- Independentemente do êxito da impugnação do julgamento de facto operada pela recorrente, se a decisão de mérito proferida na sentença (ao julgar os pedidos formulados pela recorrente contra o 1º Réu com fundamento nos institutos do enriquecimento sem causa e do abuso de direito improcedentes) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe condenar o 1º Réu no pedido com fundamento nos ditos institutos jurídicos.
*
III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª instância julgou provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão de mérito a proferir na presente ação:
1- A A. tem como objeto social a atividade de compra e venda de madeira, corte e transporte de árvores para produção de madeiras, com escopo lucrativo.
2- Na data de 09-04-2022, a A. declarou comprar ao 2ª R., que declarou vender, quantidade não concretamente apurada de árvores, existentes em prédio rústico sito na Rua ..., mediante o pagamento da quantia de 3.300,00€ (três mil e trezentos euros).
3- Por acordo estabelecido com o 2.º R., foi EE quem indicou ao legal representante da A., o conjunto de árvores referido em 2., bem como o local onde as mesmas se encontravam.
4- O montante referido em 2. foi entregue ao 2º R.
5- O recibo referente ao pagamento aludido em 2. foi emitido em nome de EE.
6- Em 23-04-2022, CC e DD, por ordem da A., iniciaram o corte de árvores existentes na Rua ....
7- Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 6., o 1º R. comunicou a CC e DD que as árvores que se encontravam a cortar eram suas.
8-Tendo CC e DD interrompido os trabalhos.
9- Logo após, o 1º R., informou CC e DD de que poderiam retomar os trabalhos de corte.
10- Os trabalhadores da A. cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores, no dia 23 de abril de 2022 e durante, pelo menos, mais dois dias.
11- Em data não concretamente apurada, mas entre 23 e 30 de abril de 2022, a A. fez transportar uma máquina de corte, através de camião com reboque porta-máquinas, desde o Lugar ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., até à Rua ..., por forma a cortar, derramar e traçar a madeira existente neste último local.
12- Em data não concretamente apurada, mas entre 23 e 30 de abril de 2022, a A. fez transportar uma máquina de rechega, através de camião com reboque porta-máquinas, desde o Lugar ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., até à Rua ....
13- Em data não concretamente apurada, mas após o descrito em 12., a A. fez transportar um camião, desde a Rua ..., até ao Lugar ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho ....
14- Em data não concretamente apurada, mas entre os dias 23 e 30 de abril de 2022, a sociedade A. fez transportar dois camiões com reboque, desde o Lugar ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., até à Rua ..., a fim recolher a madeira cortada.
15- No seguimento do descrito em 14. e após o carregamento de um dos dois camiões ali identificados, o 1º R., acompanhado de militares da Guarda Nacional Republicana, compareceu na Rua ..., não autorizando a recolha e transporte da madeira cortada.
16- Em virtude do descrito em 15., a madeira cortada ficou depositada na Rua ..., em ..., a céu aberto.
17- Cada trabalhador da A. aufere, a título de rendimento, o valor de 12,00€ (doze euros) por hora.
18- Entre o Lugar ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho ... e a Rua ... distam, pelo menos, 140 (cento e quarenta) km.
19- O transporte de máquinas através de camião com reboque porta-máquinas tem o custo de 2,50€ (dois euros e cinquenta cêntimos) por quilómetro.
20- A máquina de derrame e corte de madeira referida em 11., tem um consumo diário de, pelo menos, 25 (vinte e cinco) litros de gasóleo por hora.
21- Em data não concretamente apurada, o 1º R. recolheu e transportou quantidade não determinada da madeira referida em 16. 22- Em 23 de junho de 2022, a A. remeteu ao 2º R., que recebeu, correspondência com o seguinte teor:
Exmo. Senhor:
Venho, pela presente, em representação da «Sociedade EMP01..., Lda.», representada pelo sócio gerente Sr. HH, informar, que a madeira vendida pelo Senhor, cujo peço já foi pago através de cheque e retirada n/constituinte, ainda se encontra no terreno, porque não foi permitido efetuar a carga da madeira e o transporte, por alguém que alega ser proprietário do terreno onde se encontra a madeira cortada.
Os trabalhadores e as máquinas da N/ constituinte estiveram no local a trabalhar durante vários dias, encontram-se em causa despesas elevadas e encargos despendidos pela N/constituinte, num valor não inferior a 15.000,00€ (despesas relacionadas com mão de obra, combustíveis, deslocações, entre outros) e o pagamento da madeira já foi realizado, todavia, a entrega da madeira ainda não efetuada.
Assim, solicito que me informe no prazo máximo de cinco dias a contar da receção desta carta, para o contacto de telemóvel n.º ...80, se a N/constituinte pode proceder ao carregamento e transporte da madeira vendida e se há possibilidade de resolver este problema sem recurso às vias judiciais.
Na eventualidade de não ser fornecida a resposta no referido prazo, a N/constituinte recorrerá ás vias judiciais, a fim de ser ressarcida de todas as despesas e encargos relacionados com o abate e retirada da madeira do prédio rústico em causa e a ação judicial terá de ser intentada contra todos os intervenientes, com encargos e despesas desnecessários”.
23- Até à presente data, o 2º R. não entregou à A. as árvores referidas em 2.
*
E julgou não provados os seguintes factos:
a) O A. declarou comprar ao 2º R., que declarou vender, pelo menos, 800 (oitocentas) árvores.
b) As árvores cortadas por CC e DD, por ordem da A., correspondem às arvores referidas em 2.
c) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 10., os trabalhadores da A. cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores referidas em 2.
d) O descrito em 10. ocorreu entre as 08h00m e as 17h30m.
e) O descrito em 10. ocorreu nos dias 25 (vinte e cinco), 26 (vinte e seis), 27 (vinte e sete), 28 (vinte e oito) e 29 (vinte e nove) de abril de 2022.
f) O descrito em 11. e 12. ocorreu no dia 26 de abril de 2022.
g) O equipamento referido em 11. tem um peso aproximado de 26 (vinte e seis) toneladas.
h) O equipamento referido em 12. tem um peso aproximado de 24 (vinte e quatro) toneladas.
i) À data de 29 de abril de 2022, os trabalhadores da A. haviam cortado, aproximadamente, 300 (trezentas) toneladas de árvores referidas em 2.
j) Em data não concretamente apurada, mas posterior a 30 de abril de 2022, o legal representante da A. contactou os RR. com o propósito de obter uma solução extrajudicial, a qual não logrou ser alcançada.
k) Cada trabalhador da A. aufere, a título de rendimento, o valor de 13,00€ (treze euros) por hora.
l) A máquina de derrame e corte de madeira referida em 11., tem um consumo diário de, pelo menos, 27 (vinte e sete) litros de gasóleo por hora.
m) Em abril de 2022, o preço médio de venda de gasóleo ao público era de 1,93€ (um euro e noventa e três cêntimos).
n) A quantidade de madeira referida em 16. destinava-se a ser vendida pelo valor de, pelo menos, 60,00€ (sessenta euros) por tonelada.
o) O descrito em 21. ocorreu no dia 28 de outubro de 2023.
p) À data de 23-04-2022, o prédio identificado nos autos encontrava-se registado em nome do 1º R.
q) As árvores referidas em 10. encontravam-se, no momento do corte, em prédio registado em nome do 1.º R.
r) O prédio identificado nos autos foi adjudicado ao 1º R. no seguimento da partilha por óbito do seu progenitor, JJ.
s) O 1.º R. não concordou com o corte das árvores referidas em 7.
t) Em data não concretamente apurada, mas posterior a ../../2022, o 1º R. declarou doar a KK o prédio identificado nos autos.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Da impugnação do julgamento da matéria de facto
A.1- (In)cumprimento dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto

A recorrente impugna o julgamento de facto realizado pela 1ª instância quanto à facticidade julgada provada no ponto 2º e a julgada não provada nas alíneas a), b), c) e j), impondo-se verificar se deu cumprimento aos ónus impugnatórios do julgamento de facto, enunciados, de modo taxativo, no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC (onde constam todos os dispositivos legais que se venham a enunciar sem menção em contrário), uma vez que, em caso de incumprimento, tal impedirá que o tribunal de recurso possa entrar no conhecimento da impugnação, determinando a imediata rejeição do recurso quanto a ela.

Estabelece o art. 640º que:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (sublinhado nosso).

As disposições acabadas de transcrever enunciam os ónus impugnatórios do julgamento de facto, cujo cumprimento são impostos ao recorrente com a finalidade de evitar a interposição de recursos de pendor genérico e à salvaguarda cabal do princípio do contraditório, uma vez que o recorrido apenas ficará habilitado de todos os elementos necessários a organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações, quando lhe seja dado a conhecer: a concreta materialidade fáctica julgada provada e/ou não provada que é impugnada pelo recorrente; qual a concreta decisão que, na sua perspetiva, deverá recair sobre essa matéria; quais os específicos elementos de prova em que funda a impugnação; e, bem assim, qual a lógica de raciocínio percorrida na valoração e conjugação daqueles meios de prova, de modo a evidenciar que o raciocínio probatório seguido pela 1ª Instância é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova, ou seja, que é inconsistente, e antes inculca a versão dos factos que propugna, por ser a que atinge o patamar da probabilidade prevalecente[2].
A propósito dos ónus impugnatórios do julgamento de facto, cumpre enfatizar ser entendimento consolidado do STJ impor-se distinguir entre: ónus impugnatórios primários e secundários. Os ónus impugnatórios primários são os que se encontram especificados no n.º 1 do art. 640º e relacionam-se com o mérito ou demérito do recurso. Em relação a eles entende-se que a sua apreciação deve ser feita de acordo com um critério de rigor em sentido estrito, impondo-se a imediata rejeição do recurso quanto à matéria de facto impugnada quando o recorrente incumpra com qualquer um deles, sem prejuízo das atenuações infra indicadas em nota de rodapé ao identificado critério de rigor. Por sua vez, os ónus impugnatórios secundários encontram-se elencados na al. a) do n.º 2 do art. 640º e prendem-se com a observância de requisitos formais, destinados a facilitar a localização da prova pessoal gravada no suporte técnico que contenha a gravação em que o recorrente funda a impugnação do julgamento de facto. O não cumprimento perfeito ou inexato destes não tem como efeito automático a rejeição do recurso, uma vez que a falta cometida deverá ser apreciada à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não se justificando a rejeição do recurso quando não exista dificuldade relevante na localização (pelo recorrido e pelo tribunal de recurso) dos excertos da gravação em que o recorrente funda a impugnação[3].
Acresce precisar que, atento o disposto no n.º 4 do art. 635º, as conclusões exercem a função essencial de delimitação do objeto do recurso, sendo nelas fixado o thema decidendum a que o tribunal ad quem vê a sua atividade decisória balizada.
Dito por outras palavras, o recorrente tem, nas conclusões, de indicar, de forma rigorosa, os concretos pontos da matéria de facto julgada provada e/ou julgada não provada que impugna. Ou seja, nas conclusões de recurso o recorrente tem de dar cumprimento ao ónus impugnatório primário da al. a) do n.º 1 do art. 640º, especificando os concretos pontos da matéria de facto que impugna, sob pena de se ter de rejeitar a impugnação do julgamento de facto, por falta de objeto.
Quanto aos restantes ónus impugnatórios primários das als. b) e c) do n.º 1, e secundários da al. a) do n.º 2, ambos do art. 640º, na medida em que não exercem uma função individualizadora das questões submetidas pelo recorrente ao tribunal ad quem, não têm/devem constar das conclusões de recurso, mas sim da motivação[4].
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, analisadas as alegações de recurso verifica-se que a recorrente, apesar de nas conclusões ter indicado, de modo expresso e discriminado, pretender impugnar o julgamento da matéria de facto julgada provada no ponto 2º e a julgada não provada nas als. a), b), c) e j) (com o que cumpriu o ónus impugnatório primário da al. a) do n.º 1 do art. 640º), quanto à facticidade julgada não provada na al. j) não deu cumprimento aos demais ónus impugnatórios primários da al. b) e c) do n.º 1 e secundários da al. a) do n.º 2 do art. 640º.
Com efeito, na al. j) a 1ª Instância julgou não provado que: “j) Em data não concretamente apurada, mas posterior a 30 de abril de 2022, o legal representante da A. contactou os RR. com o propósito de obter uma solução extrajudicial, a qual não logrou ser alcançada”.
Ora, percorridas as conclusões e a antecedente motivação verifica-se que a recorrente não indicou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada em que funda a impugnação daquela concreta facticidade (al. j)), nem a decisão que, na sua perspetiva, deverá ser proferida quanto a ela, dado que toda a prova que indicou e a decisão que, na sua perspetiva, deve ser dada à facticidade que impugnou refere-se à restante facticidade impugnada (ou seja, ponto 2º dos factos provados e alíneas a), b) e c) dos factos não provados na sentença).
Em face do que se vem dizendo, rejeita-se a impugnação do julgamento da matéria de facto quanto à facticidade julgada não provada na alínea j), por incumprimento dos ónus impugnatórios do art. 640º, n.ºs 1, als. b) e c) e 2, al. a).
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Quanto à facticidade julgada provada no ponto 2º e a julgada não provada nas als. a), b) e c), a recorrente cumpriu de modo suficiente com todos os ónus impugnatórios do julgamento de facto, na medida em que indicou, especificada e discriminadamente, nas conclusões, a facticidade que impugna; e na motivação de recurso (e, inclusivamente, erroneamente – vide fundamentos supra - nas conclusões) indicou: os concretos meios probatórios em que funda a impugnação; a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre cada um dos concretos pontos da matéria de facto que impugna; e, finalmente, quanto à prova gravada, identificou o início e o termo da gravação onde constam os excertos dos depoimentos em que funda a impugnação.
Destarte, do ponto de vista do cumprimento dos ónus impugnatórios do julgamento de facto, não existe qualquer impedimento processual a que esta Relação entre na apreciação da impugnação quanto à facticidade julgada provada no ponto 2º e a julgada não provada nas als. a), b) e c).

A.2- Parâmetros a que deve obedecer a reapreciação do julgamento de facto pela Relação e em que lhe é consentido alterar o julgamento realizado pela 1ª Instância
Antes de entrarmos na apreciação dos concretos erros de julgamento de facto que o recorrente assaca à sentença, impõe-se enunciar os parâmetros a que deve obedecer a reapreciação pelo tribunal ad quem dos pontos da matéria de facto impugnada e, bem assim, os critérios em que lhe é consentido proceder à alteração do julgamento de facto realizado pela 1ª instância.
Da conjugação do regime constante dos arts. 635º, n.º 4, 640º e 662º resulta que, em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto submetida ao princípio da livre apreciação da prova (que é o princípio regra que vigora no ordenamento processual civil nacional), a Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada; sobre essa matéria tem de realizar um novo julgamento; nele tem de formar a sua convicção de forma autónoma; para a formação dessa convicção não só reaprecia os meios de prova especificados por recorrente e recorrido, respetivamente, nas alegações e contra-alegações de recurso, mas todos os que lhe sejam acessíveis e que, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda serem pertinentes para formar uma convicção segura; sem prejuízo das limitações que decorrem da falta de imediação e de oralidade, o novo julgamento a realizar pelo tribunal de recurso não está condicionado pela apreciação e fundamentação do tribunal a quo, uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, gozando, por isso, dos mesmos poderes atribuídos à 1ª instância, podendo, nomeadamente, na formação da sua convicção (autónoma) recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o julgador a quo[5]; na sequência desse novo julgamento, a Relação pode determinar, mesmo oficiosamente, a renovação da produção de prova quando se suscitarem dúvidas sérias sobre a credibilidade de determinado depoente ou sobre o sentido do seu depoimento, ou ordenar a produção de novos meios de prova que potenciem a superação de dúvidas sérias sobre a prova anteriormente produzida; sempre que, reapreciando a prova produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, e através das regras da experiência comum, da lógica, ciência ou da técnica o tribunal de recurso consiga relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados adquirir uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento, impõe-se que introduza as modificações pertinentes ao julgamento de facto realizado pelo julgador a quo; no entanto, em caso de dúvida, nomeadamente, perante depoimentos contraditórios e a fragilidade da prova produzida, se o julgamento de facto se mostrar objetivado numa fundamentação compreensível, onde se optou por uma das soluções de facto permitidas pelas regras da experiência comum, da ciência ou da técnica, deverá prevalecer esse julgamento, em respeito pelos princípios da oralidade, da imediação, da concentração e da livre apreciação da prova[6].
Com efeito, estabelece o art. 662º, n.º 1 que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (destacado nosso), do que resulta que, para que o tribunal ad quem possa alterar o julgamento de facto realizado pela 1ª instância não é suficiente que a prova indicada pelo recorrente, isolada ou conjuntamente com a demais prova que o tribunal de recurso, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta ou permita o julgamento de facto que propugna, mas antes é imprescindível que o imponha.
O comando legal acabado de referir tem plena justificação quando se pondera estar-se na presença de facticidade submetida ao princípio da livre apreciação da prova, pelo que, tendo presente o enunciado princípio, bem como os da imediação, da oralidade e da concentração e, bem assim, que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade prevalecente e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar totalmente a livre apreciação da prova que assiste ao julgador da 1ª Instância, nem ignorar que a imediação, a oralidade e a concentração da prova de que beneficiou tornaram-lhe percetíveis determinadas realidades relevantes para a formação de uma convicção segura, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem, através da audição da gravação dos depoimentos pessoais prestados em audiência final.
Por isso, a Relação apenas pode/deve alterar o julgamento da matéria de facto quando, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova constante do processo que entenda pertinente para a formação de uma convicção segura, conclua, com a necessária segurança que a prova pessoal produzida em audiência final, conjugada com a restante prova (documental, pericial e/ou por inspeção), uma vez submetida às regras do normal acontecer, da ciência ou da técnica apontam numa direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância, por infirmar os termos do raciocínio probatório por esta adotado, evidenciando ser injustificado e inconsistente, e antes aponta para outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente[7]. Em caso de dúvida, nomeadamente, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida impõe-se que faça prevalecer a decisão de facto proferida pela 1ª Instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso[8].
Estabelecidos os parâmetros que se acabam de enunciar urge entrar na apreciação da concreta impugnação do julgamento de facto operada pelo recorrente.

A.3- Impugnação da facticidade julgada provada no ponto 2º e da julgada não provada nas alíneas a), b) e c).

O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
“2- Na data de 09-04-2022, a A. declarou comprar ao 2ª R., que declarou vender, quantidade não concretamente apurada de árvores, existentes em prédio rústico sito na Rua ..., mediante o pagamento da quantia de 3.300,00€ (três mil e trezentos euros)”.
E julgou não provado que:
“a) O A. declarou comprar ao 2º R., que declarou vender, pelo menos, 800 (oitocentas) árvores.
b) As árvores cortadas por CC e DD, por ordem da A., correspondem às arvores referidas em 2.
c) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 10., os trabalhadores da A. cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores referidas em 2”.
O julgamento de facto assim realizado (assim como a totalidade do julgamento de facto que efetuou) foi motivado/fundamentado pelo Senhor Juiz a quo nos termos que se passam a enunciar:
“A convicção do tribunal fundou-se na apreciação crítica da prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo ainda recorrido, no estritamente necessário, às regras da experiência comum.
No que à prova documental concerne, atentou o tribunal, desde logo, no teor do recibo emitido por EE, em benefício da sociedade A., na data de 09-04-2022, no montante de 3.300,00€ (três mil e trezentos euros), bem como na correspondência remetida por esta última sociedade aos RR. nas datas de 12 de maio de 2022 e 17 de junho de 2022 (e respetivos registos).
Em devida consideração foi, igualmente, levado o conteúdo do despacho de arquivamento proferido no âmbito do processo 16/22.6GDMDL, na data de 05-10-2023, com especial enfoque para as razões que determinaram tal desfecho.
Particular relevo assumem, nesta sede, as certidões de teor do prédio rústico e da conservatória de registo civil, predial, comercial e automóvel apresentadas pelo 1ª R., a partir dos quais se lograram extrair os elementos registrais do prédio rústico situado em ..., ..., ....
Por fim, atentou o tribunal no printscreen retirado do sítio online googlemaps, demonstrativo da distância entre a localidade de ... (...) e a Rua ....
Já em sede de audiência final, foi recolhido o depoimento de BB que, enquanto R., relatou a dinâmica negocial estabelecida com a sociedade A., descrevendo o papel assumido por EE nesse âmbito, bem como os termos da sua interação com AA em tal seguimento.
Ainda que hesitante na descrição das características do prédio a que fez alusão e respetivos dados de registo, assumiu o R. o seu desconhecimento sobre quais as árvores que, efetivamente, foram objeto de corte, asseverando não mais se ter deslocado ao local identificado nos autos.
Também AA¸ na qualidade de R., relatou o cenário com que se deparou e a dinâmica subjacente, confirmando ter contactado com BB no âmbito do episódio submetido a apreciação judicial, embora negando qualquer relação contratual estabelecida com a sociedade A.
Quanto ao mais, rejeitou a adoção de uma postura de consentimento/assentimento relativamente à conduta da sociedade A. – e que lhe é, por esta, imputada -, numa versão que carece de correspondência com as regras da experiência comum.
De facto, não é expectável, segundo os preceitos do normal acontecer que, uma vez confrontado com a possibilidade da sua conduta contender com o direito de terceiros, o homem médio colocado na posição da sociedade A. simplesmente prossiga com a mesma, sem antes se assegurar que tal conduta não acarretará um risco não considerado no âmbito da relação contratual primitiva (estabelecida com o 2º R.), com as suas inerentes consequências.
Na verdade, apenas a perceção de que o risco não inicialmente considerado se encontra acautelado confere verosimilhança à conduta da sociedade A., nos termos descritos pelo próprio R., já que só tal perceção torna compreensível que, ainda que interpelada (na pessoa dos seus funcionários) por um terceiro que se arroga titular do direito sobre as árvores cortadas, a sociedade A. haja, ainda assim, prosseguido com a sua atividade, comportamento unicamente compreensível perante a assunção de uma postura de consentimento/assentimento do seu interlocutor.
Diga-se, até, que apenas a adoção de tal postura por parte do 1ª R. permite compreender a inexistência de uma reação imediata perante o cenário com que foi confrontado, com vista à tutela dos seus direitos, reação que, como revela AA nas suas declarações, apenas se manifestou após um hiato de dois a três dias.
A incompatibilidade entre a versão do R. AA e as regras da experiência comum condiciona, inevitavelmente, a credibilidade da sua versão e, consequentemente, a sua aptidão para influenciar o sentido decisório.
O que se deixa dito assume igual validade para os depoimentos de LL e MM, cujas versões, por se revelarem igualmente incompatíveis com os preceitos do normal acontecer – pelos motivos que se deixaram exarados – não são merecedoras de credibilidade.
Reitere-se: afigura-se inverosímil que, confrontada com a possibilidade da sua conduta contender com direitos de terceiros (cenário descrito também pelas referidas testemunhas), a sociedade A. haja, ainda assim, prosseguido com a sua atividade, assumindo, por esse meio, riscos não inicialmente considerados no âmbito da relação contratual primitiva, estabelecida com o 2º R. 
Inquirido foi também BB que, na qualidade de ex-colaborador da sociedade A. – e ainda que com assinaláveis dificuldades em sede de enquadramento temporal -, descreveu os termos da sua interação com o R. AA, os trabalhos executados, a logística envolvente e o respetivo desfecho, o que fez sem que se denotasse qualquer intenção de alterar a verdade dos factos.
Globalmente coincidente com o depoimento desta testemunha foi a versão carreada por CC que, sendo à data dos factos colaborador da sociedade A., identificou o episódio submetido a apreciação judicial, ainda que negando conhecer os termos do negócio celebrado entre A. e 2º R.
Ademais, foi com espontaneidade que relatou a dinâmica dos trabalhos executados e as respetivas vicissitudes (aqui se incluindo a abordagem do R. AA), descrevendo, igualmente, a logística envolvente na execução daqueles.
Objeto de apreciação crítica foi o depoimento de II que, assumindo-se como intermediário no negócio descrito nos articulados, descreveu os termos da sua intervenção nessa qualidade, o que fez de forma detalhada, circunstanciada e sustentada, inclusive, pela prova documental constante dos autos.
Inquiridos foram, igualmente, FF e GG que, enquanto colaboradores da sociedade A. e filhos do seu legal representante, embora manifestando o seu desconhecimento pessoal sobre os termos do negócio celebrado com o 2º R, assomaram-se espontâneos e coincidentes, em particular, na descrição da logística associada aos trabalhos executados e os custos inerentes.
Quanto a KK, apresentando-se como filho do 1º R., assumiu apenas conhecer o que, no essencial, lhe foi por este transmitido quanto às circunstâncias subjacentes ao dissídio que está na génese dos autos, pelo que o seu depoimento assumiu escassa relevância probatória.
A convicção do tribunal, quer quanto aos termos do negócio celebrado entre A. e 2º R., quer quanto às diligências por aquela encetadas no seguimento de tal negócio, é o resultado da apreciação conjugada da prova produzida, nos termos que acima se deixaram expostos.
Ainda assim, a prova produzida e já objeto de análise afigura-se insuficiente para sustentar a conexão entre o objeto do referido negócio e as concretas árvores efetivamente cortadas.
Na verdade, ainda que se possa dar como assente que, na data de 09-04-2022, a A. declarou comprar ao 2º R., que declarou vender, quantidade não concretamente apurada de árvores, existentes em prédio rústico sito na Rua ..., mediante o pagamento da quantia de 3.300,00€ (três mil e trezentos euros), da prova produzida não só não se extrai o concreto número de árvores vendidas, como não se retira, sequer, qual a concreta área/delimitação espacial a que se refere o negócio.
A impossibilidade de determinar, em concreto, qual o objeto sobre que recaiu o negócio celebrado, afasta, consequentemente, qualquer tentativa de efetuar um paralelismo entre este último e as árvores cortadas por ação da A.
Diremos, simplificando: ainda que da prova produzida se extraia que, nas circunstâncias supra descritas, o 2ª R. declarou vender à A. árvores existentes na Rua ... e que, nesse seguimento, a A. procedeu ao corte de árvores existentes na Rua ..., certo é que dos elementos recolhidos não se logra retirar que as árvores objeto de corte correspondem às que foram, efetivamente, vendidas pelo 2º R.
Relativamente ao elenco de factos não provados, o mesmo é o resultado da análise da prova produzida, bem como da ausência de elementos que, sobre tais factos, permitam efetuar um juízo inverso.
No que em particular concerne ao invocado direito do 1º R. sobre o prédio identificado nos autos, se, por um lado, a versão deste último não mereceu credibilidade (nos termos que se deixaram supra exarados), por outro, nem mesmo a prova documental por aquele carreada sustenta tal alegação, já que, quando se atenta na certidão apresentada pelo 1ª R. na data de 21-05-2024, é patente a omissão de qualquer averbamento em nome deste último (ou, até, do seu progenitor).
Diga-se, ainda, que o teor de tal certidão é incompatível com o alegado ato de doação, praticado pelo 1º R., em benefício de KK, atenta a causa ali apresentada como fundamento para o registo inscrito em nome deste último (i. e., usucapião).
A falta de credibilidade da versão do 1º R. e a desconformidade entre o por este alegado e o teor dos elementos documentais por este carreados determinaram, necessariamente, a inclusão dos respetivos factos no elenco de factos não provados”.
Advoga a recorrente que a prova produzida por si identificada, ou seja, os depoimentos das testemunhas CC, EE, FF e GG impõe que se tivesse julgado provada a facticidade julgada não provada nas alíneas a), b) e c) e, nessa sequência, propugna que se proceda à sua eliminação do elenco dos factos não provados e, em consequência, se altere a facticidade julgada provada no ponto 2º, no sentido de passar a constar da seguinte redação:  
“2- Na data de 09/04/2022, a A. declarou comprar ao 2º Réu, que declarou vender, a quantidade aproximada de oitocentas árvores existentes no prédio rústico com a área de dois hectares sito na Rua ..., mediante o pagamento de 3300,00€ (três mil e trezentos euros), pertencente ao 2ºRéu”.
E se julgue provado que:
“A testemunha II indicou ao representante da Autora a área onde se encontravam implantadas as árvores vendidas e posteriormente cortadas pelas testemunhas BB, CC e FF”.
“As árvores cortadas por CC e DD, por ordem do representante da Autora correspondem às árvores vendidas pelo 2º Réu à Autora e pesavam pelo menos 160 (cento e sessenta) toneladas”.
“Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 10., os trabalhadores da Autora cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores referidas em 2”.
Prima facie cumpre referir termos procedido à análise de toda a prova documental junta aos autos e à audição integral da prova pessoal produzida em audiência final.
O Réu AA, em declarações de parte, referiu que, em determinado dia, estando em casa, um vizinho seu, já falecido, veio avisá-lo que tinham cortado o seu pinheiral e o de um vizinho; na sequência do que, se deslocou ao pinheiral, sua propriedade, que fica por trás do cemitério, e constatou que “estava tudo cortado”. “Falou com o filho do madeireiro e com o EE, que lhe disse que nada tinha a ver, e pô-lo em contacto, por telemóvel, com o BB (2º Réu), que lhe disse que “só daí a 15 dias é que vinha à terra, mas a verdade é que este nunca mais falou com ele”.
Referiu que o Réu BB é proprietário de um pinheiral, que herdou do pai e que, anteriormente, era do avô, o qual confina com o pinheiral de que é proprietário. A Autora não só cortou os pinheiros que existiam no pinheiral propriedade do Réu BB, como os existentes no pinheiral do próprio e no do vizinho.
O Réu AA negou ter dado ordens aos trabalhadores da Autora para que prosseguissem com o corte dos pinheiros, designadamente, na sequência da conversa telefónica que manteve com o Réu BB.
Confirmou que, na altura em que os trabalhadores da Autora se preparavam para carregar a madeira dos pinheiros que tinham cortado, deslocou-se ao local, acompanhado por soldados da GNR, e impediu-os de a carregarem, pretendendo que o fez porque os pinheiros eram sua propriedade.
Referiu que a madeira dos pinheiros cortados ficou no local, tendo oferecido parte dela a amigos, outra parte levou-a para casa, e a restante ficou no local e, presentemente, encontra-se podre.
A testemunha EE, referiu ser trabalhador da construção civil e que, tendo prestado serviços da sua área ao 2º Réu BB, pessoa de quem é amigo, residindo este no ..., a dada altura, comunicou-lhe que pretendia vender os pinheiros da propriedade que herdara do pai e que, anteriormente, tinha sido propriedade do avô, sita em .... O Réu EE indagou junto do depoente se conhecia um madeireiro que estivesse interessado em comprar os pinheiros e, como conhecesse o Senhor BB (legal representante da Autora), apresentou-lhe o último e eles fizeram o negócio.
Disse que o legal representante da Autora entregou ao depoente um cheque, titulando a quantia de 1.300,00 euros, a título de sinal pela compra dos pinheiros e, posteriormente, entregou-lhe mais 2.000,00 euros, em dinheiro, a título de remanescente do preço, verbas essas que transferiu para a conta do Réu BB.
Afirmou que os contactos entre o legal representante da Autora e o Réu BB foram estabelecidos por via telefónica, servindo o depoente como intermediário.  Quem fez a marcação da área de terreno onde se situavam os pinheiros vendidos foi o 2º Réu BB, que delimitou essa área num mapa da Google Maps, que entregou ao depoente. Posteriormente, o depoente deslocou-se a esse terreno, com o legal representante da Autora, a quem indicou a área dos pinheiros vendidos e a cortar.
Disse que, já depois da recorrente ter pago o preço da compra dos pinheiros, um tal NN deslocou-se ao escritório da mulher, solicitando que lhe telefonasse porque estavam a cortar pinheiros que não eram do Réu BB. Combinou encontrar-se com o NN, no início da tarde desse dia, o que fez. Na altura em que se deslocou ao terreno onde se encontravam em curso os trabalhos de corte dos pinheiros, estavam nele três empregados da recorrente, um dos quais é filho do legal representante da recorrente, a efetuar os trabalhos de corte dos pinheiros. No local encontrava-se ainda o tal NN, o 1º Réu AA, e, mais tarde, também chegou o legal representante da Ré. O depoente telefonou ao Réu BB e colocou-o a falar com o Réu AA. Na sequência desse contacto telefónico o Réu AA deu ordens aos trabalhadores da recorrente para que prosseguissem com os trabalhos, “que ele depois falava com ele”, isto é, com o 2º Réu BB.
A versão dos factos apresentada pela testemunha EE foi corroborada pelo 2º Réu, BB, em sede de declarações de parte, e pelas testemunhas BB, CC, OO e FF.
O 2º Réu BB referiu ter herdado um prédio por óbito do pai, que, anteriormente, tinha sido propriedade do seu avô, em ..., em que existiam árvores de fruto e pinheiros, pelo que, antes que ardessem, decidiu vender os pinheiros.
Na altura, conhecia o Senhor EE (referindo-se à testemunha EE) e “para não se deslocar do ... a ... falou com ele”, junto de quem indagou “se conhecia alguém interessado na compra dos pinheiros, que lhe disse que conhecia o BB” (referindo-se ao legal representante da recorrente).
Afirmou ter sido “o Senhor EE (a testemunha EE) que negociou, com o conhecimento dele, evidentemente”.
“O monte onde estavam os pinheiros era uma área enorme, mais de um hectare”, tratando-se de um monte murado, em todo o seu perímetro, embora existissem partes do muro que tinham caído.
Referiu ter ido ao sítio da internet, de onde tirou um mapa, em que delimitou a área do prédio, cujos pinheiros tinha vendido.
Entretanto, recebeu uma chamada do Senhor EE (testemunha EE – intermediário), dizendo que estava ali o Senhor AA (1º Réu) a dizer que os pinheiros eram dele”, ao que retorquiu “ser impossível, porque ele sabia que o terreno era dele. Sempre foi do avô e do pai”. “Falou por telemóvel com o AA, a quem perguntou: “O senhor tem documentos em como a propriedade é sua?”, que lhe respondeu: “Não tenho documentos, mas é meu, não dou autorização” para que prosseguissem os trabalhos. Na sequência da discussão que teve com o 1º Réu AA, acabou por comunicar-lhe que, se a Autora “cortou pinheiros que não são meus, eu pago-lhe esses pinheiros, porque o homem (referindo-se ao legal representante da recorrente) tem aí as máquinas e os trabalhadores; deixe os homens prosseguirem com os trabalhos”, acabando o Réu AA por lhe comunicar: “Pronto, vou deixá-los cortar o resto dos pinheiros”.
O Réu BB referiu que, passados uns dias do incidente acabado de referir, recebeu novo contacto telefónico a informá-lo que o Réu AA apareceu no local e que não deixava levar a madeira dos pinheiros cortados.
Questionado se, na sequência do primeiro episódio supra relatado contactou o Réu AA, nomeadamente, se lhe fizera alguma proposta para que lhe comprar os pinheiros, o Réu BB respondeu negativamente e que nunca mais se deslocara a ..., afirmando que os pinheiros eram seus e que “não viu os pinheiros que foram cortados, mas se tivessem cortado pinheiros que não eram dele certamente que lhe diziam. Vendi o que era meu”.
As testemunhas BB, CC, OO e FF, as três primeiras que trabalharam para a Autora, e a última que continua nela a trabalhar, exercendo as funções de manobrador da máquinas e  filho do legal representante daquela, foram concordantes em  afirmar que quando estavam a cortar os pinheiros no monte, apareceu o Réu AA, com a GNR, dizendo que os pinheiros eram sua propriedade e ordenando-lhes que parassem o corte, ao que obedeceram. O NN contactou telefonicamente o pai (legal representante da Autora) e, entretanto, apareceu no monte o EE (a testemunha EE – intermediário) que esteve a falar com o Réu AA e que o pôs a falar por telemóvel com o Réu BB. Na sequência dessa conversa telefónica, o Réu AA   lhes comunicou que prosseguissem com os trabalhos de corte dos pinheiros, que depois “se entendia” com o Réu BB, e que, apenas por isso, prosseguiram com os trabalhos de corte dos pinheiros. Acontece que, quando tinham os pinheiros cortados e a madeira limpa, e quando procediam ao seu carregamento, apareceu o Réu AA, acompanhado novamente pela GNR, que os obrigou a descarregarem a madeira que já se encontrava acondicionado num dos camiões, impedindo que transportassem toda a madeira que tinham cortado, acabando esta por ficar no local.
Especificamente quanto aos pinheiros cortados, a testemunha BB afirmou ter sido o CC (a testemunha CC), quem lhe indicou a área de terreno onde devia efetuar o corte. Nada referiu quanto ao número de pinheiros cortados ou ao peso da madeira que deles resultou. Quando questionado se existiam marcos no monte onde cortaram os pinheiros, limitou-se a dizer “ter visto uma pedras e acha que foram para lá dessas pedras”.
A testemunha CC afirmou ter conhecimento por onde devia cortar os pinheiros, porque o Senhor BB (legal representante da Autora) “lhe disse por onde devia cortar. O Senhor BB recebeu ordens do outro indivíduo que vendeu os pinheiros”, vindo a concretizar que esse outro indivíduo a que se referida era a testemunha EE (intermediário). “Os pinheiros estavam todos dentro de uma cerca; não havia muito por enganar porque estava tudo dentro do mesmo sítio. O terreno era só um, não havia divisória”. Afirmou não saber quantas árvores cortaram, nem saber concretizar a área do terreno em que efetuaram o corte dos pinheiros.
Por sua vez, a testemunha OO pronunciou-se no mesmo sentido da testemunha anterior: “Sabia por onde devia cortar porque foi o BB (o ex-patrão) que lhe disse por onde devia cortar. Não tinha muito que enganar, porque estava tudo dentro do mesmo sítio. O terreno não tinha nenhuma divisão. Não se recorda quantas árvores cortaram, nem da área do terreno em que efetuaram o corte, nem da quantidade de madeira cortada”.
A testemunha FF afirmou ter sido o pai (legal representante da Autora) quem lhe indicou a área onde deviam efetuar o corte dos pinheiros e marcaram os pinheiros a vermelho. A quantidade de madeira que resultou dos pinheiros cortados ascendia a 150/160 toneladas.
Finalmente, a testemunha GG, motorista da Autora, para quem trabalha, e filho do legal representante desta, referiu que apenas esteve presente quando o Réu AA apareceu no local e impediu o carregamento da madeira que tinha resultado do corte dos pinheiros, dizendo que o peso ascendia a cerca de 300 toneladas de madeira. Quanto ao número de pinheiros cortados e que a Autora comprou ao 2º Réu BB, limitou-se a dizer aquilo que ouvira ao pai.
Cotejada a prova que se acaba de identificar da respetiva análise extraem-se os seguintes factos:
O Réu BB é proprietário de um prédio, sito em ..., que tinha herdado por óbito do pai e que, anteriormente, fora propriedade do avô, onde existiam árvores de fruto e pinheiros, e decidiu vender os pinheiros.
Como residisse no ... (mais concretamente, em ...), socorreu-se da testemunha EE para lhe conseguir interessado para a compra dos pinheiros.
O negócio da venda dos pinheiros incidia sobre todos os pinheiros existentes no prédio, independentemente do seu número, dimensão ou diâmetro, conforme, aliás, fora alegado pela Autora na petição inicial, que apenas veio concretizar o número de pinheiros objeto da compra e venda na sequência do despacho proferido pela 1ª instância, convidando-a a fazer essa concretização.
A testemunha EE colocou o Réu BB em contacto com o legal representante da Autora, os quais nunca se encontraram pessoalmente, tendo negociado a compra e venda telefonicamente e por intermédio da testemunha EE.
A compra dos pinheiros pela Autora teve por objeto todos os pinheiros existentes no interior daquele prédio, tendo sido acordado que a Autora pagaria pelos mesmos a quantia de 3.000,00 euros, a quem caberia cortar os pinheiros e fazer o transporte dos mesmos ou da madeira que deles resultasse para local que entendesse.
Os contactos no terreno (in loco) processaram-se entre o legal representante da Autora e o intermediário do Réu BB: a testemunha EE.
O preço de compra dos pinheiros foi entregue pelo legal representante da Autora à testemunha EE (intermediário), que o fez chegar ao vendedor (o Réu BB), pelo que a Autora pagou o preço acordado pela compra dos pinheiros.
O Réu BB delimitou a área do prédio onde se situavam os pinheiros que vendera à Autora num mapa, que tirou do Google Maps, e entregou esse mapa à testemunha EE (intermediário).
A testemunha EE, fazendo uso desse mapa, deslocou-se com o legal representante da Autora ao prédio e indicou-lhe o perímetro deste onde se situavam os pinheiros vendidos e a serem cortados.
O legal representante da Autora indicou aos trabalhadores desta - as testemunhas BB, CC, OO e FF, o perímetro do prédio onde se localizavam os pinheiros comprados e a serem cortados de acordo com a indicação que lhe foi feita pela testemunha EE, tanto assim que, na sequência do surgimento no prédio do Réu AA, acompanhado pela GNR,  dizendo que os pinheiros que estavam a ser cortados se situavam no interior da sua propriedade, EE deslocou-se ao monte e não acusou os trabalhadores da Autora de que estavam a cortar pinheiros fora do perímetro do prédio que indicara ao legal representante da Autora, mas antes telefonou ao vendedor (o Réu BB), a fim de lhe transmitir que o Réu AA estava a reclamar a propriedade do terreno onde se processava o corte dos pinheiros.
Quando os trabalhadores da Autora tinham iniciado o corte dos pinheiros, apareceu no monte o Réu AA, acompanhado pela GNR, pretendendo que os pinheiros que estavam a ser cortados eram seus, porque se encontravam em terreno que pretendia ser sua propriedade.
A prova produzida é no sentido de que o terreno onde os pinheiros foram cortados não integra propriedade do 1º Réu AA, mas antes o prédio propriedade do Réu BB, posto que, conforme se exarou na motivação do julgamento de facto na sentença, “a versão do Réu AA não mereceu credibilidade”, e não é corroborada  pelo teor da certidão que juntou em 21/05/2024, na qual é “patente a omissão de qualquer averbamento em nome deste último (ou, até, do seu progenitor)” e “é  incompatível com o alegado ato de doação, praticado pelo 1ª R., em benefício de KK, atenta a causa ali apresentada como fundamento para o registo inscrito em nome deste último (i. e., usucapião)”.
Os pinheiros comprados pela Autora ao Réu BB eram todos os que existiam no prédio de que este é proprietário (não tendo o negócio de compra e venda incidido sobre um número especifico de árvores, designadamente, sobre cerca de 800 árvores) e todas as árvores que foram cortadas pelos trabalhadores da Autora foram por ela compradas ao Réu BB, por se situaram dentro daquele prédio, cujo perímetro foi indicado pelo Réu BB à testemunha EE, a qual, por sua vez, o indicou, in loco, ao legal representante da Autora, e este às testemunhas CC, OO e FF, tendo, por sua vez, a testemunha CC indicado o mesmo à testemunha BB.
Quanto ao peso das árvores, e a área do prédio do prédio do Réu BB, onde se situavam os pinheiros que vendeu à Autora, os valores indicados pelas testemunhas supra identificadas e pelo próprio Réu BB não passou de uma estimativa por eles feita - um juízo opinativo -, o qual não permite julgar, com um mínimo de segurança necessária, que o peso ascendesse, pelo menos, a 160 toneladas e que a área do prédio ascendesse a dois héctares.

Decorre do exposto que, na parcial procedência da impugnação do julgamento de facto, decide-se:
1- Alterar a facticidade julgada provada no ponto 2º, o qual passa a constar dos seguintes factos, que se julgam provados:
“2- Na data de 09-04-2022, a Autora declarou comprar ao 2º Réu, que declarou vender, todos os pinheiros existentes no prédio rústico sito na Rua ..., mediante o pagamento da quantia de 3.300,00 euros”;
2- Ordenar a eliminação do elenco dos factos provados das alíneas a), b) e c);
3- Ordenar o aditamento ao elenco dos factos provados na sentença, da seguinte facticidade, que se julga provada:
“24- II indicou ao representante da Autora a área onde se encontravam implantadas as árvores vendidas e, posteriormente cortadas por BB, CC, OO e FF.
“25- As árvores cortadas por BB, CC, OO e FF, por ordem do legal representante da Autora correspondem às arvores referidas em 2”.
“26- Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 10., os trabalhadores da A. cortaram, traçaram e prepararam a madeira das árvores referidas em 2”.
  4- Ordenar que se adite ao elenco dos factos não provados a seguinte facticidade, que se julga não provado:
“O negócio referido em 2) dos factos provados tivesse incidido sobre um número de árvores específico e, bem assim, que a Autora tivesse, na execução daquele contrato cortado cerca de 800 árvores”.

B- Do Direito.
B.1- Venda de bens alheios
A título principal, a recorrente pediu que se declarasse a nulidade do contrato de compra e venda que celebrou com o Réu BB, por ter incidido sobre bens alheios e, em consequência, se condenasse o último a restituir-lhe o preço pago, no montante de 3.300,00 euros.
O tribunal a quo julgou o referido pedido improcedente com o argumento de não se ter provado que o contrato de compra e venda tivesse por objeto coisa alheia, decisão de mérito essa que se subscreve, mas não o fundamento em que se ancorou.
O contrato de compra e venda é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (art. 874º do CC).
Da noção legal de compra e venda decorre tratar-se de um contrato translativo da propriedade ou de outro direito real sobre uma coisa ou da titularidade de um direito, pelo que, mediante a celebração daquele contrato não se transmitem coisas, mas antes direitos, que podem ser direitos reais, direitos de crédito, direitos de autor, etc.[9].
Trata-se de um contrato típico e nominado, na medida em que se encontra previsto e regulado na lei, e que, em regra, é consensual, na medida em que, em princípio, não se encontra sujeito a forma escrita, sem prejuízo das exceções enunciadas no art. 875º do CC.
Um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda é a transmissão do direito de propriedade ou de outro direito real sobre determinada coisa (móvel ou imóvel) ou da titularidade de um direito do vendedor para o comprador. A transferência do direito opera-se por mero efeito da celebração do contrato de compra e venda, o que significa que a transferência de direitos reais sobre a coisa dele objeto não está dependente da tradição desta pelo vendedor ao comprador, nem do respetivo registo de aquisição a favor do último (arts. 874º, 879º, al. a) e 408º, n.º 1, do CC).
  Não obstante, a transferência do direito de propriedade ou do direito real sobre a coisa se dar por mero efeito da celebração do contrato de compra e venda, o certo é que pode ocorrer uma dissociação temporal entre o momento da celebração do contrato e o momento da transferência efetiva do direito real sobre a coisa dele objeto de vendedor para o comprador. É o que acontece na celebração de contrato de compra e venda de coisa genérica (em que a coisa vendida está dependente de determinação), de coisa alternativa (em que cumpre ao vendedor e/ou ao comprador escolher aquela), de coisa relativamente futura (em que a compra e venda incide sobre coisa que o vendedor ainda vai adquirir), de compra e venda com reserva de propriedade, ou em que a venda da coisa está dependente da sua separação de um outro bem[10].
Em todas as situações em que ocorra a referida dissociação entre o momento da celebração do contrato de compra e venda e a transferência da propriedade sobre a coisa ou o direito dele objeto, dado que, nos termos do art. 408º, n.º 1 do CC, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por “mero efeito do contrato”, daqui decorre que, muito embora a transmissão do direito real sobre a coisa ou do direito não ocorra com a celebração do contrato de compra e venda, por estar dependente de evento futuro, a transmissão do direito real do vendedor para o comprador não depende da celebração de novo contrato, mas verificado que seja o evento futuro, transfere-se automaticamente o direito do vendedor para o comprador por mero efeito do contrato de compra e venda celebrado.
Neste sentido, expendem Pires de Lima e Antunes Varela que: “Do teor do artigo 874º resulta claramente a atribuição de natureza real, e não apenas obrigacional, ao contrato de compra e venda, o que resulta também, explicitamente, do artigo 879º, alínea c). (…). Trata-se da conceção já tradicional ente nós (cfr. art. 1549º do Cód. de 1867), segundo a qual a transmissão da coisa (ou, seja, do direito) tem por causa o próprio contrato, embora, por circunstâncias várias, o objeto possa ficar dependente de determinação, quando se trate de coisa futura, ou haja reserva de propriedade (art. 409º). O que não pode é estabelecer-se que a transferência do direito fique dependente de nova convenção, sem se desfigurar, com isso, a natureza do primeiro contrato. «A transmissão da propriedade, escreve Galvão Telles (Contratos Civis, pág. 9), ou do direito vendido não é produzida por novo ato, é gerada pela própria venda, que cumula com os efeitos pessoais, estabelecimento de obrigações entre as partes, o efeito real, translação do domínio. Este efeito dimana sempre da venda, ainda quando não é sua consequência imediata. Em regra, o comprador adquire a propriedade logo que celebra o contrato; mas pode haver um intervalo, maior ou menor, entre a compra e a aquisição: assim sucede na venda de coisas genéricas ou em alternativa, na venda de bens futuros, na venda sujeita a condição suspensiva. (…). Enquanto a indeterminação do objeto não cessa pela individualização da coisa a entregar, dentro do género ou da alternativa, ou os bens não se tornem presentes ou a condição se não cumpre, o comprador não adquire a propriedade. A aquisição, portanto, é diferida, nestes casos; mas ainda então lança as suas raízes no contrato de compra e venda, de que tira origem, sem necessidade de interferência de um subsequente ato alienatório. O caráter real da venda significa que esta é causa da transmissão, seja transmissão imediata ou transmissão futura”[11].
Destarte, operando o contrato de compra e venda a transferência da propriedade ou de outro direito real menor sobre uma coisa ou da titularidade de um direito do vendedor para o comprador, porque ninguém pode transmitir a outrem aquilo que não tem na sua esfera jurídico-patrimonial, nos casos em que a compra e venda tenha por objeto bens ou direitos alheios e o vendedor careça de legitimidade para a realizar, o art. 892º do CC, fulmina-o de nulidade; mas o vendedor não pode opô-la o comprador doloso.
Frise-se que a nulidade da venda de bens ou direito alheios prescrita no art. 892º apenas se refere, às relações entre vendedor e comprador, na medida em que, quanto ao verdadeiro proprietário, o contrato de compra e venda é ineficaz[12].
Atenta a previsão legal da norma do art. 892º do CC, são assim factos constitutivos do direito do comprador em obter a declaração de nulidade do contrato de compra e venda com fundamento no instituto de venda de bens de alheios: a- ter celebrado um contrato de compra e venda com o réu tendo por objeto coisa ou direito, em que o autor assuma a qualidade jurídica de comprador e o réu a de vendedor; b- a coisa ou o direito objeto do contrato tenha como proprietário ou titular, respetivamente, terceiro; c) o vendedor careça de legitimidade para realizar a venda da coisa ou do direito, por não ser representante legal ou voluntário do verdadeiro proprietário da coisa ou do titular do direito vendidos.
Por sua vez, atentas as regras do ónus da prova enunciadas no n.º 1 do art. 342º do CC, impende sobre o autor (comprador) o ónus da prova do preenchimento dos factos concretos que preencham os pressupostos acabados de enunciar, dado serem constitutivos do direito a que se arroga titular de ver declarada a nulidade do contrato de compra e venda que celebrou com o réu e, em consequência da declaração dessa nulidade, nos termos dos arts. 285º e 289º do CC, em ver o último (vendedor) condenado a lhe restituir o preço que lhe pagou.
Revertendo ao caso dos autos, apurou-se que, em 09/04/2022, recorrente e recorrido BB (2º Réu) celebraram um contrato de compra e venda, mediante o qual o último vendeu à primeira todos os pinheiros existentes no prédio rústico sito na Rua ..., mediante o preço de 3.300,00 euros.
Os pinheiros vendidos eram todos os que existiam no prédio rústico acabado de identificar à data da celebração do contrato de compra e venda.
Os pinheiros vendidos, na medida em que se encontram ligadas com carácter de permanência ao prédio rústico sito na Rua ..., nos termos do n.º 3 do art. 204º do CC, são coisas imóveis, fazendo parte integrante daquele prédio rústico. Apenas no momento em que são cortados e, em consequência desse corte, são separados do prédio rústico ao qual se encontram materialmente ligados, os pinheiros vendidos passam a assumir a natureza jurídica de «coisa móvel» e, por conseguinte, o contrato de compra e venda celebrado entre recorrente e recorrido opera a transferência da propriedade sobre os mesmos do vendedor (recorrido BB) para a recorrente (compradora).
Acontece que, conforme antedito, impendendo o ónus da prova em como os pinheiros vendidos eram propriedade de terceira pessoa (no caso, do recorrido AA) sobre a própria recorrente (compradora), por se tratar de facto constitutivo do direito a que se arroga titular de ver declarada a nulidade do contrato de compra e venda que celebrou com o vendedor BB e, em consequência dela, ver o último condenado a lhe restituir o preço pago, a alegação (e, posteriormente prova) de que os pinheiros são propriedade de terceira pessoa (que não do recorrido BB, nomeadamente, do recorrido AA), passa pela alegação e prova de que o prédio ao qual os pinheiros estavam ligados materialmente com carácter de permanência, à data da celebração do contrato de compra e venda com o vendedor BB, era propriedade do recorrido AA.
Tendo presente que, nos termos do art. 7º do Cód. Reg. Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos preciso termos em que o registo o define e, bem assim, que o título aquisitivo do prédio rústico pelo recorrido AA, por via translativa do direito de propriedade sobre o mesmo, não provam a composição, nem as áreas ou confrontações do prédio que figuram na descrição predial, na  matriz e/ou no título translativo da propriedade (escritura de compra e venda, de doação, partilha, etc.), a demonstração em como o prédio rústico onde os pinheiros objeto do contrato de compra e venda se encontravam ligados materialmente com carácter de permanência, à data da celebração do contrato de compra e venda, não eram propriedade do vendedor BB, mas antes do recorrido AA, passa pela alegação e prova pela recorrente de facticidade de onde resulte que AA era então o possuidor desse prédio e que, atentos os materiais por ele exercidos sobre o mesmo, respetivas características, e período temporal em que os exerceu, adquiriu o direito de propriedade sobre o mesmo (e, por conseguinte, sobre os pinheiros que a ele se encontravam ligados materialmente com carácter de permanência), à data da celebração do contrato de compra e venda dos pinheiros entre recorrente e o recorrido BB, por via do funcionamento do instituto da usucapião.
Com efeito, apesar da certidão da descrição predial ou matricial demonstrativos em como o prédio rústico se encontra inscrito no registo ou na matriz como sendo propriedade do recorrido AA e, no que à certidão da descrição predial se refere, caso o direito de propriedade sobre o prédio se encontrasse inscrito no registo em nome do recorrido AA (o que não é o caso dos autos), levar a que, nos termos do art. 7º do Cód. Reg. Predial, se tivesse de presumir iuris tantum (sendo admitida prova em contrário) de que este era proprietário daquele, e o título constitutivo ou translativo do direito de propriedade sobre o prédio para AA (escritura de compra e venda, doação, partilha, etc.), caso tivesse sido junto aos autos (o que também não é a situação dos autos), consubstanciem documentos autênticos (arts. 362º, 363º, n.ºs 1 e 2, 369º e 370º do CC) e, como tal, nos termos do art. 372º, n.º 1 do CC, fazerem prova plena dos factos que referem como tendo sido praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e os que são atestados com base nas suas perceções, essa força probatória plena não se estende às declarações que nele se encontram exaradas como tendo sido emanadas pelos declarantes perante a entidade documentadora, nem que essas declarações não se encontrem afetadas por vício na formação ou na transmissão da vontade do declarante, uma vez que a entidade documentadora desconhece, nem se encontrava em condições de conhecer, se as declarações que lhe foram prestadas correspondem (ou não) à verdade ontológica ou se encontravam (ou não) afetadas por vícios na formação ou transmissão de vontade dos declarantes.
Por isso, a força probatória plena de que beneficiam os documentos autênticos não se estende à realidade ontológica das declarações que neles se encontram exaradas como tendo sido emanadas pelo declarante à entidade documentadora, não impedindo que os declarantes ou terceiros venham alegar e provar que as declarações são falsas ou que, no momento em que foram prestadas à entidade documentadora estavam viciadas por vício na formação ou na transmissão de vontade do declarante.
A composição, áreas e confrontações dos prédios que se encontram inscritas nas certidões prediais ou matriciais e, bem assim, nos títulos constitutivos ou translativos da propriedade ou de outros direitos reais menores (escritura de compra e venda, doação, partilha, etc.) foram neles exarados pelo funcionário perante as declarações que lhe foram prestadas pelo interessado ou partes contratantes. Por isso, na sequência do que se vem dizendo, tem-se como plenamente provado que o interessado ou os contratantes (no caso de escrituras de compra e venda, doação, partilha, etc.) declararam perante a entidade documentadora que o prédio tinha a composição, área e confrontações que se encontram inscritas nesses documentos autênticos. Acontece que o funcionário que inscreveu o prédio nas Finanças, o conservador (ou respetivos ajudantes) que o registou, ou o notário que lavrou as escrituras públicas de compra e venda, doação, etc., não têm como saber se a composição, área e confrontações que lhe foram declaradas pelo requerente ou pelos contratantes têm (ou não) aderência com a realidade ontológica efetivamente existentes no terreno.
Daí que a força probatória plena de que beneficiam as certidões matriciais e prediais e, bem assim, as escrituras públicas de compra e venda, doação, etc. (título constitutivo ou translativo do direito) não se estenda à composição, área e confrontações dos prédios que neles se encontram exaradas,  elementos esses que ficam submetidos ao princípio geral da livre apreciação da prova[13].
Por isso, para que o adquirente prove a sua qualidade de proprietário do prédio que lhe foi transmitido e que este tem determinada composição, área e confrontações/limites, não basta que disponha de título translativo da propriedade (escritura de compra e venda, doação, etc.), ainda que juridicamente válido, nem as áreas e confrontações/limites que nele se encontram inscritas ou que constam das respetivas descrição predial ou matricial. De facto, a força probatória plena inerente a tais documentos não se estende aqueles elementos (composição, área e confrontações), a que acresce a circunstância de ninguém poder transmitir direitos ao transmissário que não possui na sua esfera jurídica-patrimonial. Por isso, é necessário que o comprador (no caso, a recorrente) que pretenda ver a compra e venda dos pinheiros que comprou anulada, com fundamento em venda de coisa alheia e, em consequência, que lhe seja restituído o preço pago pela compra, alegue e prove os concretos atos possessórios, suas características e período temporal em que o terceiro (alegado verdadeiro proprietário do prédio que lhe foi vendido – no caso, o recorrido AA) vem exercendo, por si e/ou antepossuidores, sobre o  prédio, aos quais os pinheiros se encontram ligados materialmente com carácter de permanência, e dentro de  que limites o mesmo exerceu esses atos materiais e desde quando, de modo a demonstrar que, à data da celebração do contrato de compra e venda dos pinheiros nele existentes), aquele terceiro tinha adquirido o direito de propriedade sobre o prédio, por via originária, mediante o funcionamento do instituto da usucapião, com determinada composição, área e confrontações/limites[14].
Na verdade, o instituto da usucapião é que constitui fundamento primário dos direitos reais no ordenamento jurídico nacional, porque a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, com função essencialmente declarativa, mas na usucapião[15]. Por isso, na ordem jurídica nacional, para prova de direitos reais, tudo se resume à posse, suas características e ao período em que os atos possessórios são exercidos.
Resulta do que se vem dizendo que, por um lado, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, o ónus alegatório e probatório na presente ação, em que a recorrente pretende que se declare a nulidade do contrato de compra e venda que celebrou com o recorrido BB (2º Réu), com fundamento de que os pinheiros objeto desse contrato são propriedade de terceiro, não impende sobre o recorrido AA (1º Réu), que se apurou se ter arrogado proprietário dos pinheiros e ter impedido a recorrente (compradora) de carregar a madeira que resultou do seu corte e limpeza, mas antes impende sobre a própria recorrente. Por outro lado, para satisfação dos referidos ónus alegatória e probatório, não bastava à recorrente (autora) alegar (e provar, mediante a junção aos autos das certidões respetivas) que o prédio rústico ao qual se encontravam materialmente e com carácter de permanência ligados os pinheiros vendidos, à data da celebração do contrato de compra e venda que celebrou com o recorrido BB, se encontrava inscrito no registo como sendo propriedade do recorrido AA, ou juntar aos autos escritura de compra e venda, doação, partilha, etc., demonstrativa em como este tinha adquirido, originariamente ou por via translativa, o direito de propriedade sobre o prédio e que, consequentemente, à data da celebração do contrato de compra e venda o prédio era sua propriedade, mas tinha de alegar (e, posteriormente provar) os concretos atos possessórios que o recorrido AA exerceu sobre aquele prédio, suas características e período temporal em que os praticou, tudo de modo que se pudesse concluir (ou não) que AA tinha adquirido o direito de propriedade sobre o prédio (e os pinheiros nele existentes) à data da celebração do contrato de compra e venda, por via da usucapião, o que tudo tinha de constar do elenco dos factos provados, não bastando na motivação do julgamento de facto realizado na sentença enunciar que o recorrido não fez prova em como fosse proprietário do prédio e que este não é sua propriedade.
Ora, na petição inicial a recorrente não alegou os enunciados atos possessórios, suas características e período temporal em que o recorrido AA os vinha exercendo, pelo que ficou impedida de fazer prova dessa facticidade e, consequentemente, de provar que os pinheiros objeto do contrato de compra e venda que celebrou com o recorrido BB, fossem à data da celebração desse contrato propriedade do recorrido AA, por este ter adquirido, por usucapião, a propriedade do prédio onde aqueles cresciam.
Daí que, com a presente fundamentação, se imponha confirmar a decisão de mérito constante da decisão recorrida, no segmento em que julgou improcedente o pedido deduzido pela recorrida em que pedia que fosse declarada a nulidade do contrato de compra e venda que celebrou com o recorrido BB, por ter por objeto coisa alheia, e se condenasse este a restituir-lhe o preço de 3.300,00 euros que lhe pagou, como contrapartida da compra dos pinheiros.

B.2- Da resolução do contrato de compra e venda
A recorrente pediu que se declarasse a resolução do contrato de compra e venda que celebrou com o Réu PP e, em consequência, se condenasse o último a restituir-lhe a quantia de 3.300,00 euros que lhe pagou, a título de preço pela compra dos pinheiros.
Na sentença sob sindicância, o tribunal a quo considerou que:
“Conforme se extrai do supra exposto, a procedência da pretensão ora formulada depende da prova da efetiva celebração do contrato que subjaz ao pedido, cabendo à A. o ónus da prova de tal celebração, atenta a inexistência, neste caso, de uma qualquer inversão das regras previstas no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil.
Como decorre da factualidade provada, logrou o tribunal dar como assente que, efetivamente, A. e o 2º R. acordaram na venda de um número não concretamente apurado de árvores existentes em prédio rústico sito na Rua ..., mediante o pagamento da quantia de 3.300,00€ (Três mil e trezentos euros) – cf. facto 2.
Demonstrado resultou, também, que não obstante o acordado, o 2º R. não procedeu à entrega, à sociedade A., das árvores por esta adquiridas (facto 23).
 Temos, assim, uma situação de incumprimento contratual por parte do 2º R., incumprimento esse que se presume culposo, nos termos dos artigos 406º, n.º 1, 762º, n.º 1, 798º e 799º do Código Civil, atenta a ausência de qualquer circunstância suscetível de ilidir a presunção de culpa que recai sobre o 2º R.”.
Porém, julgou o pedido improcedente atenta a consideração que a resolução do contrato de compra e venda dependia da alegação e prova de factos dos quais resultasse ter ocorrido incumprimento definitivo do contrato de compra e venda celebrado por parte do recorrido BB (vendedor), o que se quedava por provar.
Não se subscreve a ilação de que o recorrido BB não entregou as árvores vendidas à recorrida (compradora) e que, consequentemente, tivesse incorrido em incumprimento do contrato de compra e venda celebrado.
Dúvidas não existem que, a par dos efeitos reais – a transferência do direito de propriedade ou de outro direito real ou da titularidade do direito do vendedor para o comprador -, o contrato de compra e venda tem como efeitos obrigacionais essenciais a obrigação do vendedor de entregar a coisa, e a obrigação do comprador de pagar o preço (art. 879º, als. a) e b) do CC).

Sendo o dever de entregar a coisa um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda, mas não sendo este um negócio jurídico real quoad constitutionem, a transmissão do direito de propriedade ou do direito real sobre a coisa do vendedor para o comprador não fica dependente do primeiro proceder à sua entrega ao último.

Acresce que, situações existem em que não existe obrigação do comprador de entregar a coisa vendida ao comprador, como sucede, por exemplo, quando a compra e venda não tenha por objeto coisa, mas direitos; quando o comprador já tenha em seu poder a coisa comprada (v.g. o proprietário vende o prédio no cumprimento de contrato-promessa com traditio que antes tinha celebrado com o comprador, ou vende prédio a inquilino, etc.), ou quando a obrigação de entregar a coisa recaia sobre terceiro, por via das regras gerais (art. 767º do CC) ou de convenção (v.g., a coisa vendida encontra-se num armazém à guarda de terceiro).
Quando, por via do contrato de compra e venda celebrado sobre o vendedor impenda a obrigação de entregar a coisa ao comprador, o cumprimento dessa obrigação pode fazer-se por tradição material ou simbólica[16].

No caso dos autos apurou-se que, em 09/04/2022, foi celebrado um contrato de compra e venda entre a recorrente e o recorrido BB, mediante o qual este lhe vendeu todos os pinheiros existentes no prédio rústico sito na Rua ..., mediante o pagamento da quantia de 3.300,00 euros (cfr. ponto 2º dos factos apurados).
Mais se apurou que, nos termos do contrato de compra e venda celebrado cumpria à recorrente (compradora) efetuar o corte dos pinheiros e efetuar o seu transporte para local que tivesse por conveniente (cfr. pontos 3º, 6º, 15º, 24º, 25º e 26º dos factos apurados).
Nos termos do contrato de compra e venda celebrado cumpria assim à recorrente (cortar os pinheiros), momento em que, conforme antedito, a propriedade sobre os mesmos se transferiu automaticamente, por efeito da compra e venda celebrada, do vendedor BB para a compradora (recorrente).
A entrega das árvores que o recorrido BB vendeu à recorrente processou-se com o facultar pelo mesmo do acesso à última (recorrente - compradora) ao prédio para que procedesse ao respetivo corte e, posteriormente, para que carregasse e transportasse os pinheiros ou a madeira que deles resultasse para local que tivesse por conveniente.
Daí que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, o vendedor BB cumpriu integralmente com a obrigação de entrega dos pinheiros que vendeu à recorrente, na medida em que lhe facultou o acesso ao prédio a que se encontravam materialmente e com carácter de permanência ligados os pinheiros vendidos, para que procedesse ao respetivo corte e, posteriormente, facultou-lhe novamente o acesso ao prédio para que recolhesse e transportasse a madeira deles resultante.
É certo que se apurou que, quando os trabalhadores da recorrente iniciaram os trabalhos de corte dos pinheiros, apareceu o Réu AA que, arrogando-se proprietário do prédio, deu ordem para que os trabalhos de corte fossem interrompidos, acabando, logo após, por informar os trabalhadores da recorrente que poderiam retomar os trabalhos, o que fizeram, cortando, traçando e preparando a madeira e que, quando os trabalhadores da recorrente procediam ao carregamento da madeira, AA, compareceu novamente no local, acompanhado pela GNR, e impediu o seu carregamento, acabando a madeira por ficar no local, a céu aberto, na sequência do que, a recorrente remeteu carta ao vendedor BB, reclamando que lhe entregasse a madeira dos pinheiros que lhe tinha comprado, o que aquele não fez até à presente data (pontos 7º a 16º e 22º e 23º dos factos apurados).
Todavia, contrariamente ao entendimento sufragado pelo tribunal a quo, não cumpria ao recorrido BB então entregar à recorrente a madeira dos pinheiros que lhe tinha vendido, uma vez que já tinha procedido à sua entrega, ao facultar-lhe o acesso ao prédio para que os cortasse e, posteriormente, para que recolhesse e transportasse a madeira.
Foi o recorrido AA que, arrogando-se proprietário do prédio e, consequentemente, dos pinheiros, que (em função da motivação do julgamento de facto) infundadamente e, por isso, ilicitamente, lesou o direito de propriedade da recorrente sobre a madeira que resultou do corte dos pinheiros, ao impedir que a carregasse e transportasse, com o que, ilícita e culposamente, violou o direito de propriedade da recorrente sobre essa madeira.
Em suma, o recorrido BB não violou qualquer obrigação que para ele emergisse do contrato de compra e venda que celebrou com a recorrente, nomeadamente, da obrigação de lhe entregar os pinheiros vendidos.
Com a presente fundamentação impõe-se confirmar a decisão de mérito constante da sentença recorrida, no segmento em que se absolveu o recorrido BB do pedido que contra ele foi formulado pela recorrente com fundamento na resolução do contrato de compra e venda.

B.3- Da responsabilidade pré-contratual
Sustenta a recorrente que, ao ter agido nos termos em que atuou, o Réu AA violou os deveres de boa-fé e de lealdade que sobre ele impediam, pugnando pela sua condenação a satisfazer-lhe a indemnização que reclama, a título de responsabilidade civil pré-contratual.
O instituto da responsabilidade pré-contratual encontra-se regulado no art. 227º do CC, que impõe a quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato a obrigação de, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.
O referido instituto assenta na consideração de que nas negociações preliminares dos contratos e ao longo de todo o processo genético que culmina na sua celebração as partes estão obrigadas a agir de modo leal, probo, correto e equilibrado, tomando em devida consideração os interesses legítimos da sua contraparte, em relação à qual, a prevenção e a tutela da confiança proíbe que não criem, propositadamente expectativas infundadas geradoras de danos.
Das obrigações acabadas de referir deriva, entre outros, o dever sério e empenhado na concretização do negócio, não compatível com um início ou prosseguimento de negociações que sabe estarem votadas ao malogro, bem como de prestar informação atempada à contraparte, sobre algum facto desta desconhecido, que possa obstar à conclusão do negócio.
O início de negociações e a quebra injustificada delas, quando já tinham atingido um ponto de não retorno, por ser legítimo e razoável que a contraparte tivesse criado a fundada e justificada convicção de que o negócio iria ser concluído, faz incorrer a parte que assim atua em responsabilidade civil pré-contratual.
No caso dos autos, a recorrente faz assentar a pretensa responsabilidade pré-contratual em que estará constituído o recorrido AA perante si na circunstância de se ter apurado ter-se dirigido ao prédio, onde os trabalhadores daquela procediam ao corte dos pinheiros comprados  ao recorrido BB, e ter dado ordens para interromperem os trabalhos; e logo após, tê-los informado para que retomassem os trabalhos de corte dos pinheiros, para, posteriormente, quando já se encontravam integralmente cortados e a madeira preparada a fim de ser carregada e transportada, ter impedido o carregamento e transporte desta, com o que, na perspetiva da recorrente, AA pôs, de modo injustificado, termo às negociações que tinha com ela estabelecido tendo em vista a compra dos pinheiros.
O entendimento jurídico da recorrente assenta na consideração de que AA, ao dar ordens aos seus trabalhadores para que retomassem os trabalhos de corte dos pinheiros, encetou com ela uma negociação tendo por fim a aquisição dos pinheiros, o que não se pode subscrever.
Primo, porque múltiplas razões podem estar subjacente à descrita conduta do recorrido AA, nomeadamente, a conversa telefónica que manteve com o recorrido BB, que vendera os pinheiros à recorrente.
Secundo, porque os trabalhadores da recorrente não dispunham de poderes para representar a última num processo negocial que tivesse sido então iniciado por AA tendo em vista a compra dos pinheiros pela recorrente.
Tertio, porque dificilmente se pode ver na ordem dada pelo recorrido AA aos trabalhadores da recorrida para que retomassem os trabalhos de corte dos pinheiros ser seu propósito dar início a um processo negocial com a recorrente tendente a vender-lhe os pinheiros, para o que, aliás, não bastaria esse seu propósito, mas seria necessário que o legal representante da recorrida estivesse disposto com ele a negociar a compra dos pinheiros.
Finalmente, o legal representante da recorrente nem sequer se encontrava presente no local quando AA se deslocou ao mesmo e começou por ordenar que os trabalhos de corte dos pinheiros fossem interrompidos e, de seguida, deu ordem para que prosseguissem.
Resulta do exposto que, na improcedência deste fundamento de recurso, improcedem os erros de direito que a recorrente assaca à sentença.

B.4- Do enriquecimento sem causa
A recorrente pediu, a título subsidiário, a condenação do Réu AA a pagar-lhe uma indemnização não inferior a 18.000,00 euros, corresponde ao valor com que se enriqueceu à sua custa, sem causa justificativa.
A 1ª Instância julgou o pedido improcedente com o argumento de que: “Da análise dos factos provados é manifesta a ausência de qualquer circunstância demonstrativa da falta de causa justificativa do enriquecimento referido. Em face do conjunto de factos provados, cumpre concluir pelo não preenchimento, no presente caso, dos pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa e, consequentemente, pela inevitável improcedência do peticionado pela sociedade A.”.
Assaca o recorrente erro de direito ao assim decidido, sustentando que: “O primeiro Réu locupletou-se com as árvores cortadas, traçadas e derramadas pela Autora, pois resultou provado sob ponto 21) que o segundo Réu recolheu e transportou a madeira cortada, pelo que enriqueceu o seu património à custa do património da Autora. Ademais, não existindo outros meios entre as normas jurídicas aplicáveis, para se obter o ressarcimento da Autora, por a lei não parecer facultar outro meio para a mesma ser ressarcida do seu empobrecimento, o enriquecimento sem causa, de cariz subsidiário permitia lograr tal desiderato. Na verdade, a deslocação patrimonial ocorrida para o património do 1º Réu não assenta numa obrigação de cariz negocial e não tem causa, pois não existe um facto ou relação subjacente que, de acordo com a lei e os princípios do sistema jurídico a justifiquem. Aliás, o caso em análise é injusto perante a ordem jurídica, (cfr. Antunes Varela, Obrigações em Geral, 2ª ed. P.364 e segs. e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed. p.335, “Ou, ainda, quando se apresentar como injusta perante a ordem jurídica, no sentido de se encontrar em desarmonia com a correta ordenação jurídica dos bens conforme fixada e aceite pelo sistema jurídico, de tal sorte que o seu acolhimento e aceitação na esfera jurídica patrimonial do enriquecido, em detrimento da do empobrecido, porque injustificada e iníqua, repugnaria ao direito”). Pelo que, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, devia o Tribunal “a quo” ter aplicado o instituto do enriquecimento sem causa”.
Antecipe-se, desde já, sem razão.
Na ação de enriquecimento sem causa, incumbe ao autor que a ela recorre o ónus de alegar e provar os seguintes requisitos cumulativos: a) verificar-se um enriquecimento patrimonial do demandado, seja qual for a forma que essa vantagem revista (aumento do ativo patrimonial, diminuição do passivo, uso ou consumo de coisa alheia ou exercício de direito alheio, ou poupança de despesas); b) esse enriquecimento tem de ter sido obtido à custa de quem requer a restituição, ou seja, é a razão de ser do empobrecimento patrimonial deste (tem de se afirmar, portanto, um nexo causal entre a vantagem patrimonial obtida pelo demandado/enriquecido e o empobrecimento patrimonial do demandante); e c- esse enriquecimento patrimonial do demandado careça de causa justificativa, ou seja, é necessário que, à luz dos princípios aceites no sistema jurídico, não exista uma relação entre enriquecido e empobrecido ou um facto que legitime o enriquecimento[17].
Sucede que, nos termos do art. 474º do CC, a ação baseada em enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, só podendo socorrer-se a ela quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reação.
Ora, independentemente de, no caso em análise, se encontrarem (ou não) preenchidos os pressupostos  legais acima enunciados de que depende a indemnização com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, certo é que, atenta a natureza subsidiário do instituto em causa, nunca a recorrente podia obter a condenação do recorrido AA com fundamento nele instituto, na medida que, em função do que acima já se deixou enunciado, na motivação do julgamento da matéria de facto realizado na sentença lê-se que o recorrido AA não era proprietário do prédio de onde foram cortados os pinheiros pelos trabalhadores da recorrida na execução do contrato de compra e venda que celebrara com o Réu BB.
Por isso, ao impedir, infundada e injustificadamente, a recorrente de carregar e transportar a madeira resultante do corte dos pinheiros que comprara ao recorrido BB, apesar dessa madeira ser propriedade daquela (relembra-se, a propriedade dos pinheiros transferiu-se para a recorrente no momento em que foram cortados os pinheiros), o recorrido AA violou, ilícita e culposamente, o direito de propriedade da recorrente sobre a madeira, com o que se constituiu em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos que, nos termos do art. 483º, n.º 1 do CC, o obriga a reparar todos os danos que lhe causou em consequência dessa sua conduta.
Em suma, a lei faculta expressamente um instituto jurídico à recorrente que lhe permite ser indemnizada por todos os prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais) que sofreu em consequência de ter sido impedida por AA de carregar e transportar a madeira de que era proprietária, bastando para tal, caso ainda esteja em tempo, instaurar contra o mesmo a competente ação indemnizatória, com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual, alegando e provando ter comprado os pinheiros ao recorrido BB que existiam no prédio rústico de que este é proprietário, os atos possessórios, suas características e período temporal em que o recorrido BB exerceu, por si e antepossuidores, esses atos possessórios sobre o dito prédio, de modo a demonstrar que ele tinha, à data da compra e venda dos pinheiros, adquirido o direito de propriedade sobre o prédio (ao qual os pinheiros se encontravam então materialmente ligados com carácter de permanência), por usucapião; que cortou os pinheiros e que o recorrido AA a impediu de carregar e transportar a madeira que deles resultou, lesando o seu direito de propriedade sobre a madeira e os concretos danos que sofreu em consequência dessa conduta do recorrido AA.
Com a presente fundamentação, impõe-se confirmar a decisão de mérito constante da sentença recorrida, no segmento em que julgou improcedente o pedido indemnizatório formulado pela recorrente com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, atenta a natureza subsidiária daquele instituto, o que se decide.

B.5- Do abuso do direito 
A recorrente pediu, a título subsidiário, a condenação do recorrido AA a pagar-lhe a indemnização de 18.000,00 euros com fundamento no instituto do abuso do direito.
A 1ª Instância julgou o pedido improcedente com o argumento de que “(…), a atuação em abuso de direito pressupõe, desde logo, o exercício de um direito próprio. Uma vez que, do elenco de factos provados, não se extrai que o 1º R. atuou no exercício de qualquer prerrogativa legalmente tutelada, inexiste fundamento para a sua condenação nos termos peticionados”.
Imputa a recorrente erro de direito ao assim decidido, sustentando que o “instituto do abuso do direito, previsto no artigo 334º do Código Civil, é considerado uma válvula de segurança ou mecanismo subsidiário, para circunstâncias em que a aplicação literal duma norma jurídica produz resultados injustos e inaceitáveis, como no resultado em apreço. Na verdade, o comportamento adotado pelo primeiro Réu, como resulta dos factos provados, excede manifestamente os ditames e limites impostos pela boa fé e, em consequência da sua atuação causou danos elevados à Autora, pelo que tendo o primeiro Réu agido em abuso de direito, deve ser condenado a ressarcir a Autora”.
Quid inde?
O instituto do abuso de direito encontra-se regulado no art. 334º do CC e visa obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que confere um direito subjetivo a uma determinada pessoa, na normalidade das situações seria ajustada, mas numa específica situação da relação jurídica estabelecida entre credor/devedor, o modo como esse direito é exercido pelo seu titular se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante[18].
Trata-se de uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador visa obtemperar à injustiça chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade, isto é, em que se visa dar remédio à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido a uma determinada pessoa, numa particular situação em que esse exercício ocorre[19]. Não se se trata da violação de um direito de outrem, ou da ofensa a uma norma tuteladora de um interesse alheio, mas do exercício anormal do direito por parte do seu titular, que o exerce em termos considerados clamorosamente reprováveis pela ordem jurídica, na medida em que, embora o exerça respeitando a estrutura formal do direito em causa, atentas as situações particulares do caso concreto em que o exerce, que é violadora da afetação substancial, funcional ou teleológica do mesmo, de modo que se impõe considerar que esse exercício, por referência ao quadro concreto em que é exercido, é ilegítimo[20].
Dizem-nos Pires de Lima e Antunes Varela que “a ilegitimidade do abuso do direito tem as consequências de todo o ato ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar; à nulidade, nos termos do art. 294º; à ilegitimidade de oposição; ao alongamento de uma prazo de prescrição ou de caducidade”[21].
Não obstante o instituto do abuso de direito seja habitualmente invocado nas ações a título de exceção, com vista a que se neutralize o direito que o autor nelas exerce e em que funda o pedido, o referido instituto pode servir de fundamento a uma ação indemnizatória, em que o réu, sendo titular de um direito, o exerceu em termos clamorosamente injustos e iníquos contra o autor, causando-lhe danos patrimoniais e/ou não patrimoniais que este pretende sejam indemnizados.
Acontece que, no caso dos autos, de acordo com o que se encontra exarado na fundamentação do julgamento de facto, o recorrido AA não era proprietário do prédio em que se encontravam, à data da compra e venda, materialmente e com caráter de permanência ligados os pinheiros que lhe foram vendidos pelo recorrido BB. Caso o fosse, ao ter dado ordens aos trabalhadores da recorrente para que prosseguissem com o corte dos pinheiros e ao ter, posteriormente, impedido que a madeira resultante do seu corte fosse carregada e transportada, podia efetivamente ocorrer da parte daquele uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire factum proprium (ao impedir o carregamento e transporte da madeira, AA contradisse o seu comportamento anterior, em que dera ordem aos trabalhadores da recorrente para que prosseguissem com o trabalho de corte dos pinheiros). Sucede que o prédio a que os pinheiros se encontravam materialmente ligados com caráter de permanência, à data da celebração da compra e venda, não era propriedade do recorrido AA, mas antes do recorrido BB, pelo que, ao impedir a recorrente de carregar a madeira que resultou do respetivo corte, na sequência desta ter comprado os pinheiros ao último, o recorrido AA não agiu em abuso de direito (não tinha qualquer direito de propriedade sobre os pinheiros), mas violou antes, ilícita e culposamente, o direito de propriedade da recorrente sobre a madeira resultante do corte dos pinheiros, constituindo-se em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos perante aquela, nos termos do n.º 1 do art. 483º do CC.
Decorre do exposto, impor-se com a presente fundamentação, confirmar o segmento decisório da sentença, em que se julgou improcedente o pedido indemnizatório formulado pela recorrente contra o recorrido AA com fundamento no instituto do abuso do direito.
Aqui chegados, sem prejuízo das alterações supra identificadas introduzidas ao julgamento de facto realizado pelo tribunal a quo, impõe-se julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmar a decisão de mérito constante da sentença recorrida, com a presente fundamentação.
 
C- Das custas
Nos termos do art. 527º, n.ºs 1 e 2, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, quem daquele tirou proveito. Entende-se que dá causa às custas do recurso a parte vencida, na proporção em que o for. 
Apesar do presente recurso ter procedido parcialmente quanto à impugnação do julgamento da matéria de facto, a decisão de mérito constante da sentença recorrida manteve-se inalterada, pelo que o recorrente ficou vencido, devendo, por isso, suportar as custas do recurso.
*
V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sem prejuízo das alterações supra identificadas introduzidas ao julgamento de facto realizado na sentença, acordam em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão de mérito constante da sentença recorrida, com a presente fundamentação.
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As custas do recurso ficam a cargo do recorrente, dado ter ficado vencido.
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Notifique.
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Guimarães, 09 de outubro de 2025

José Alberto Moreira Dias – Relator
José Carlos Pereira Duarte – 1º Adjunto
Alexandra Maria Viana Parente Lopes – 2ª Adjunta
 

[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 797.
[3] Ac. STJ., de 29/10/2015, Proc. 233/09.4TBVNG.G1.S1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venham a citar sem referência em contrário.
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 798, em que salientam ser “objeto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso”. Adiantam: “O Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação (STJ 9/6/16, 6617/07, STJ 31/05/16, 1572/12, STJ 28/04/16, 10006/12, STJ 11/04/16, 449/410, STJ 19/02/15, 299/05 e STJ. 27/01-15, 1060/07). O STJ. tem afirmado que na verificação do cumprimento dos ónus de legação previstos no artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (STJ. 03/10/19, 77/06, STJ 12/07/18, Proc. 167/11 e STJ 21/03/18, 5074/15)” (sublinhado e destacado nosso”.
No mesmo sentido: Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 147, em que se lê: “A lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial. (…). As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 635º, n.º 3.” E fls. 152 a 159, em que conclui: A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, n.º 3 e 641º, n.º 2, al. b); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a)); c- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d- Falta de especificação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e- Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação” (sublinhado e destacado nosso).
Precise-se que o principal pomo da controvérsia jurisprudencial ao nível do Supremo Tribunal de Justiça prendia-se em saber se, a par dos concretos pontos da matéria de facto, o recorrente tem também de incluir nas conclusões de recurso o resultado pretendido relativamente a cada um dos pontos que impugna.
A referida polémica jurisprudencial encontra-se atualmente, pelo menos, parcialmente ultrapassada pelo acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) n.º 12/2023, de 17/10/2023, Proc. 8344/16.6T8STB.E1-A.S1, publicado no D.R., n.º 220/2023, Série I, de 14/11/2029, em que se uniformizou a seguinte jurisprudência: “Nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 640º do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
[5] Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1,
[6] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 153 e 290; Acs. R.G., de 29/10/2020, Proc. 2163/17.7T8VCT.G1; de 28/09/2023, Proc. 3343/19.6T8VNF-F.G.
[7] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 797, nota 4.
[8]Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609.
[9] Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, Compra e venda, Locação, Empreitada”, 2ª ed., Almedina, pág. 21.
[10] Pedro Romano Martinez, ob. cit., págs. 34 e 35.
[11] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 166.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 189.
[13] Acs. STJ., de 20/04/2022, Proc. 549/19.1T8PVZ.P1.S1; de 28/01/2003, Proc. 03A2672; R.G., de 20/01/2022, Proc. 7105/19.2T8GMR.G1; de 15/05/2001, Proc. 2900/2000.
[14] Acs. STJ., de 12/01/2021, Proc. 6612/18.9T8GMR.S1; de 17/12/2014, Proc. 971/12.4TCBBR.C1.S1; R.L., de 29/04/2025, Proc. 18114/23.7T8SNT.L1-7.
[15] Oliveira Ascensão, “Efeitos Substantivos do Registos Predial na Ordem Jurídica Portuguesa”, R.O.A., ano 34, págs. 43 a 46.
[16] Pedro Romano Martinez, ob. cit., págs. 42 e 43; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág.  173.
[17] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra, págs. 454 a 458.
[18] Ac. STJ. de 15/03/2013, Proc. 600/06.5TCGMR.G1.S1.
[19] Manuel de Andrade, “Teoria Geral das Obrigações”, 1958, pág. 63.
[20] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, pág. 563.
[21] Pires de Lima, ob. cit., vol. I, págs. 299 a 300.