Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7854/24.3T8GMR-A.G1
Relator: JOÃO PERES COELHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
VOTO DESFAVORÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Não viola a regra da indisponibilidade dos créditos tributários, consagrada no artigo 30º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, aplicável “ex vi” do artigo 3º, alínea a), do Código do Regime Contributivo do Sistema Previdencial da Segurança Social, o plano de revitalização que prevê o mero pagamento em prestações dos créditos reclamados pela Segurança Social, dentro dos limites abstractamente permitidos por lei;
II – A aprovação desse plano sem o consentimento do Instituto da Segurança Social integra uma violação negligenciável das regras tributárias, que, como tal, não é subsumível à previsão do artigo 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável por força do artigo 17º-F, n.º 7 do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Inconformado com a sentença que, homologando o plano de revitalização da devedora “EMP01..., S.A.”, o considerou vinculativo relativamente aos créditos por si oportunamente reclamados, o “Instituto da Segurança Social, I.P.” interpôs o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

A. Atenta a descrição factual dos elementos constantes do presente processo e explanados na fundamentação deste recurso, que antecede, é de concluir que deveria o Tribunal a quo, declarar a ineficácia do plano quanto aos créditos da Segurança Social;
B. A homologação do Plano nos exatos termos explanados constitui, ainda, uma violação de normas legais de direito público e de natureza imperativas que, por isso, não podem ser derrogadas ou afastadas pela vontade dos intervenientes, designadamente dos credores.
C. Com tal conteúdo, o Plano homologado afasta o regime geral de regularização de dívidas à Segurança Social, violando normas imperativas, nomeadamente da LGT, da Lei n.º 55-A/2010, de 31-12, LOE 2011, bem como do Código Contributivo. Pois, viola abertamente o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, previsto no artigo 30.º n.º. 2 da LGT, com desrespeito pelos princípios da igualdade e da legalidade tributária. Princípio que a LOE 2011 veio fortalecer, fazendo-o prevalecer sobre qualquer legislação especial, conforme se determina no artigo 30.º n.º 3 da LGT e no artigo 125.º da LOE. Assim sendo, fica claro que um plano de pagamento que regule a matéria dos créditos fiscais e da Segurança Social de forma diversa, viola o disposto em normas imperativas, normas essa que não devem, pois, ceder perante a legislação especial contida no CIRE.
D. Ora, só em situações excecionais devidamente explicitadas e que respeitem a efeitos úteis dos mecanismos de viabilização acessíveis às empresas em recuperação, é que se permite a regularização de dívidas à Segurança Social através de pagamento prestacional, da isenção ou redução dos respetivos juros vencidos e vincendos, devidamente autorizados por deliberação do conselho diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., conforme previsto no artigo 190.º do Código Contributivo. E que, de acordo com o artigo 191.º do mesmo diploma legal, essas condições de regularização da dívida à Segurança Social não podem ser menos favoráveis do que o acordado para os restantes credores. Não pode o plano homologado, por isso, invocar o interesse dos credores para legitimar a violação de normas imperativas que tutelam os créditos da Segurança Social, quando a sua indisponibilidade exige tratamento diferenciado dos restantes créditos, de acordo com a legislação específica que os regula.
E. À semelhança do que sucede com a relação tributária há, assim, uma dupla vinculação aos princípios da legalidade e igualdade, princípios esses que estão enunciados nos artigos 13.º, 103.º e 104.º, todos da CRP, e que têm como consequência a indisponibilidade dos direitos a ele conexos.
F. É ilegal a sentença de homologação do Plano e a vinculação a este da Segurança Social, por terem sido violadas normas imperativas e princípios constitucionais.
G. O crédito da Segurança Social é indisponível e o seu reconhecimento e posterior pagamento não podem ficar sujeitos às condições de liquidação dos restantes credores.
H. Será de questionar, portanto, se a Segurança Social tem ou não que autorizar expressamente o pagamento fracionado do seu crédito de que depende a homologação do plano. A questão já mereceu apreciação jurisprudencial em termos que aderimos e que, com a devida vénia, aqui seguiremos de perto, designadamente o plasmado na sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Guimarães no Processo n.º 3336/12.4TBGMR, pelo Tribunal Judicial de Braga, no Processo n.º 5547/12.3TBBRG que correu termos no ... Juízo Cível; e, no ... Juízo Cível, no âmbito do Processo n.º 7661/12.6TBBRG que pugnaram, fazendo alusão a vasto entendimento jurisprudencial, pela não homologação do plano.
I. Ora, no caso em apreço, a Segurança Social não deu o consentimento ao diferimento do pagamento de tais débitos. Pelo exposto, deveria ter sido oficiosamente declarada a não homologação do Plano por violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, designadamente, o artigo 196.º e, consequentemente, o artigo 215.º, ambos do CIRE.
J. Os credores, ainda que maioritários, no sentido do artigo 212.º, nº 1, não podem aprovar um plano que implique o pagamento fracionado, a redução ou extinção parcial, afetando créditos e contra a vontade do Instituto da Segurança Social.
K. Não é legalmente possível, contra a vontade do Instituto da Segurança Social, vinculá-lo ao plano homologado.
L. Ora, a falta de consentimento do ora Recorrente foi comunicada ao Sr. Administrador Judicial Provisório.
M. Em conformidade, por ilegal, deverá a Sentença de que ora se recorre ser substituída por outra que declare a ineficácia do Plano homologado aos créditos da Segurança Social.
N. Mesmo que não se ponha em causa a homologação do Plano, ainda assim esta homologação não deverá produzir efeitos em relação ao Recorrente, que não aderiu às medidas propostas no referido mesmo, sob pena de violação da lei – cfr. artigo 192.º, do CIRE e 190.º, do Código Contributivo.
O. Ou seja, a homologação do Plano deverá ser considerada ineficaz relativamente ao Recorrente, no seguimento do que foi decidido no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.11.2007 e na Sentença proferida no Processo n.º 628/07.8TYLSB, publicada no DR, 2.ª Série, n.º 69, de 08.04.2008 e, mais recentemente, no Acórdão do STJ de 09.06.2021, proferido no âmbito do Processo n.º 1412/20.9T8VNF.G1.S1.
P. Pelo exposto, atento o sentido de voto comunicado ao Sr. Administrador Judicial Provisório, deverá ser oficiosamente declarada a ineficácia do Plano perante a Segurança Social, nos termos supra expostos.
A devedora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código e Processo Civil).
No caso vertente, a única questão a decidir que releva das conclusões recursórias consiste em saber se o plano de revitalização aprovado e homologado judicialmente no âmbito do PER desencadeado pela devedora deve ser considerado ineficaz relativamente aos créditos reclamados pelo recorrente, por este não ter dado o seu consentimento ao esquema de pagamento em prestações estabelecido.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos
As incidências fáctico-processuais que relevam para a apreciação do recurso são as seguintes:
1 - Em 17.12.2024, a sociedade “EMP01..., S.A.” requereu, junto do Juízo de Comércio de Guimarães, um Processo Especial de Revitalização, a que foi atribuído o n.º 7854/24.3T8GMR.);
2 - Recebido o requerimento, o Tribunal, por despacho publicado no Portal Citius no dia 20.12.2024, nomeou administrado judicial provisório;
3 - Em 23.04.2025, a devedora apresentou nos autos o Plano de Revitalização proposto, no qual, relativamente ao IGFSS, se previa o seguinte:
A dívida à Segurança Social reconhecida no presente PER será regularizada através de plano prestacional a autorizar em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, no âmbito da execução fiscal;
O pagamento da primeira prestação vence-se no último dia do mês seguinte ao da votação do presente plano de recuperação.
Não haverá lugar a redução de coimas e custas.
Os juros vencidos e vincendos serão calculados à taxa legal aplicável às dívidas do Estado e demais entidades públicas.
Dispensa de prestação de garantia nos termos do artigo 199.º, n.º 13, do CPPT.
As ações executivas pendentes para cobrança de dívida à Segurança Social não são extintas mantendo-se suspensas após aprovação e homologação do plano de revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos que venha a ser autorizado.
Manutenção das garantias já prestadas.
O plano será implementado pela Secção de Processo Executivo competente no mês seguinte ao da sentença de homologação do plano de revitalização”;
4 - O recorrente votou desfavoravelmente, por discordar do pagamento em prestações do crédito que lhe foi reconhecido e porque a devedora não procedera ao pagamento das contribuições vencidas após a nomeação do AJP, conforme explicitado num despacho do respectivo Conselho Directivo cuja junção concomitantemente solicitou;
6 - Tendo votado credores representativos de 91,69% dos créditos constantes da lista definitiva de credores, o plano recolheu o voto favorável de 83,90% e desfavorável de 16,10% dos votos emitidos;
7 - Em 27.05.2025, foi proferida a sentença recorrida, com o seguinte teor:
EMP01..., S.A., NIPC ...87, com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., veio ao abrigo do disposto no artigo 17.º- A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas intentar o presente processo especial de revitalização.
Foi nomeado administrador judicial provisório (Dr. AA), nos termos do disposto no artigo 17.º-C, n.º 3, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O Sr. Administrador juntou lista provisória de créditos, a qual foi convertida em definitiva, atento que a única impugnação inexistente foi julgada improcedente.
O prazo de dois meses para conclusão das negociações foi prorrogado por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre administrador judicial provisório nomeado e os devedores – cfr. n.º 7 do artigo 17º-D do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Concluídas as negociações foi concedido prazo para votação do plano apresentado pelos devedores tendo votado credores representando 91,60% dos créditos constantes da lista definitiva de credores, recolhendo o plano o voto favorável de 83,90% dos votos emitidos e o voto desfavorável de 16,10% dos mesmos. Dos votos emitidos por credores não subordinados 78,30% votaram favoravelmente.
A proposta de plano de recuperação conducente à revitalização da devedora aprovado não consubstancia qualquer violação não negligenciável de regras, procedimentos ou de normas aplicáveis ao seu conteúdo.
Foi apresentado parecer favorável pelo Sr. Administrador Judicial.
Assim sendo, nada obstando e tendo em conta o disposto no artigo 17.º-F, n.º 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, deverá o plano de revitalização ser homologado.
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Face ao exposto, nos presentes autos de processo especial de revitalização, homologo por sentença, nos termos do 17.º-F, n.ºs 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, o plano de revitalização da devedora EMP01..., S.A.
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A presente decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações – artigo 17.º-F, n.º 11, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Custas pela devedora – cfr. artigo 17.º-F n.º 12 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sem prejuízo da isenção de que beneficia nos termos do artigo 4.º n.º 1 al. u) do Regulamento das Custas Processuais.
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Registe, notifique e publicite.
(…)”.

O direito
Preliminarmente, importa salientar que, apesar de aflorada no corpo das alegações, a invocada falta de pagamento das contribuições vencidas após a nomeação do administrador judicial provisório – a que o Conselho Directivo do recorrente teria subordinado a emissão de voto favorável ao plano de revitalização, conforme despacho oportunamente junto aos autos, por constituir indício da inviabilidade económica da devedora, nos termos do artigo 190º, n.º 3 do Código do Regime Contributivo do Sistema Previdencial da Segurança Social (doravante CRCSPSS), aprovado pela Lei 110/2009, de 16/09 – não consta das conclusões do recurso, acima transcritas, pelo que não integra o objecto deste.
De qualquer modo, ainda que constasse da sobredita peça, essa questão não foi apreciada na decisão recorrida, que apenas se debruçou sobre o plano aprovado, pelo que seria uma questão nova, subtraída à cognição deste tribunal de recurso.
Com efeito, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa permitir a modificação destas, corrigindo eventuais erros, pelo que não se destinam a criar decisões sobre matéria nova, não apreciada pelo tribunal de categoria inferior, salvo se for do conhecimento oficioso.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa[1], vigora, no âmbito do processo civil, “um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso”.
Sublinhando a mesma ideia, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão datado de 17/11/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S2 e relatado por Ana Luísa Geraldes[2], sentenciou que “os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que antes não foram submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal recorrido”, acrescentando que “em sede recursória o que se põe em causa e se pretende alterar é o teor da decisão recorrida e os fundamentos desta. A sua reapreciação e julgamento terão de ser feitos no seio do mesmo quadro fáctico e condicionalismo do qual emergiu a sentença proferida e posta em crise” e bem assim que “devem circunscrever-se às questões que já tenham sido submetidas ao Tribunal de categoria inferior e aos fundamentos em que a sentença se alicerçou e que resultaram da prova produzida e carreada para os autos, salvo, naturalmente, as questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos imprescindíveis ao seu conhecimento”.
Sendo assim, a única questão a decidir consiste em saber se o plano de revitalização aprovado e homologado judicialmente no âmbito do PER desencadeado pela devedora deve ser considerado ineficaz relativamente aos créditos reclamados pelo recorrente, por este não ter dado o seu consentimento ao esquema de pagamento em prestações estabelecido.
Desde já se adianta que, na nossa perspectiva, a resposta deverá ser negativa.
É certo que a questão é muito controversa, verificando-se uma clara cisão ao nível dos Tribunais da Relação, polarizada nas Relações do Porto e de Lisboa, e prevalecendo até, ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a orientação contrária, de acordo com a qual, como se pode ler no sumário do acórdão de 17/10/2023 (proc. n.º 2395/22.6T8STR.E1.S1), relatado por Luís Espírito Santo, embora com um voto de vencido, (…) o plano de revitalização não pode produzir efeitos que se traduzam na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social, contra a sua vontade, o que constitui violação negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do artigo 215º do CIRE, extensivo ao processo especial de revitalização nos termos do artigo 17º-F, nº 7, do mesmo diploma legal”.
Acresce que, como se considerou no mesmo aresto, a solução para tal violação, ainda que consubstanciada num mero fracionamento em prestações dos créditos reconhecidos à Segurança Social, não será a de recusar a homologação do plano, mas antes a de “fixar a ineficácia” deste relativamente àqueles créditos.
Esse entendimento – ancorado na regra da indisponibilidade dos créditos tributários consagrada no artigo 30º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (DL 398/98, de 17/12), aplicável por força do artigo 3º, alínea a), do CRCSPSS, mormente na sequência da alteração daquele normativo operada pela Lei 55-A/2010, de 31/12, que veio aditar-lhe um novo número (3), segundo o qual o disposto no número precedente prevalece sobre qualquer legislação especial, aí se incluindo a legislação insolvencial – tem sido igualmente sufragado nos acórdãos mais recentes do Tribunal da Relação do Porto, nomeadamente nos proferidos em 19/12/2023 e em 11/12/2024 (processos números 532/23.2T8AMT.P1 e 464/24.7T8AMT.P1, respectivamente)[3].
Todavia, na esteira do voto de vencido emitido pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro António Barateiro Martins no acórdão do STJ a que acima fizemos referência e da orientação constante da 1ª Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa (defendida, entre outros, nos acórdãos proferidos em 09/04/2024, 01/10/2024 e 25/02/2025 no âmbito dos processos números 919/23.0T8BRR-A.L1-1, 11271/23.4T8LSB.L1-1 e 22592/23.0T8LSB-A-L1-1, respectivamente)[4], julgamos que quando apenas esteja em causa, como sucede no caso que nos ocupa, o pagamento em prestações dos créditos da segurança social, respeitando os limites estabelecidos nos artigos 189º e 190º do CRCSPSS, bem como no artigo 81º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011 de 03/01[5], sem afectar o conteúdo essencial dos mesmos, nomeadamente por via da sua redução ou da redução dos respectivos juros, deve entender-se que estamos perante uma violação negligenciável das regras tributárias[6], que, como tal, não é subsumível à previsão do artigo 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável por força do artigo 17º-F, n.º 7 do mesmo diploma legal.
Como naquele voto de vencido, impressivamente, se ponderou “É conhecida a polémica que a homologação do “Plano” que modifique os créditos tributários (designadamente, do Estado e das Instituições de Segurança Social) tem gerado.
Por o “Plano” – convenção ou negócio jurídico próprio do direito da insolvência – ter a força jurídica especial de afetar os direitos dos credores (aparentemente, todos os credores, com exceção das entidades referidas no art. 196.º/2 do CIRE, em que se incluem o BCE e os Bancos Centrais dos Estados membros), passou a entender-se neste STJ1, pese embora a regra da “indisponibilidade” dos créditos tributários estabelecida nos art. 30.º/2, 36.º/2 e 3 da LGT, que as dívidas fiscais e as dívidas à segurança social podiam ser comprimidas pelo “Plano” (argumentou-se que não existia, no caso do “Plano” prever perdões, reduções ou moratórias no pagamento das dívidas fiscais e da segurança social, violação das normas fiscais imperativas por vontade das partes ou dos credores, mas sim a necessidade de observar um regime especial, consagrando-se a igualdade de tratamento para todos os credores, criado pelo próprio legislador.)
Face a tal contexto e entendimento jurisprudencial, a Lei do Orçamento de 2011 veio dizer, nos seus arts. 123.º e 125.º, que a regra geral tributária constante do art. 30.º/2 – que estabelece a indisponibilidade do crédito tributário e que diz que só no respeito pelos princípios da igualdade e da legalidade tributárias o mesmo poderá ser comprimido – não é alterável por uma qualquer legislação ou regime especial, querendo referir-se, não há qualquer dúvida, ao CIRE.
Temos pois, a partir de tal Lei do Orçamento, que o mesmo legislador que impõe aos particulares um regime de exceção, obrigando-os a um “Plano” (seja de recuperação seja de insolvência) que inclui o perdão ou a redução dos seus créditos sem ou contra o seu acordo, se pretende abster, ele próprio, de contribuir para a prossecução dos fins que visou atingir com o processo de insolvência, pretendendo manter intocáveis os seus créditos e impondo aos demais credores todo o esforço de recuperação do insolvente.
E é neste ponto – perante a desarmonia e inconciliabilidade das leis, perante o Estado que produz legislação insolvencial com a função de recuperação de empresas (e que anuncia medidas legislativas de recuperação e revitalização das empresa), mas não quer participar nos sacrifícios que tais medidas representam – que este STJ (sem embargos de reconhecer a referida desarmonia e inconciliabilidade) excogitou a “tese da ineficácia relativa”, que, segundo o Conselheiro Fonseca Ramos (no local e artigo referidos no Acórdão), “(…) a par de constituir a solução que melhor satisfaz a conciliação dos interesses em jogo e supera a intransigência do legislador fiscal, obviando às drásticas consequências da não homologação do plano de insolvência, possibilitando a recuperação do insolvente, as mais das vezes à custa de pesados sacrifícios”.
Sucede, a nosso ver e com todo o respeito – quando, como é o caso, o “Plano” (seja de insolvência ou de recuperação) viola normas tributárias (o art. 30.º/2 e 3 da LGT), ou seja, quando, sem a autorização/acordo do Estado ou Seg. Social, reduz os juros ou dilata prazos de pagamento das obrigações tributárias – que não se está perante uma situação juridicamente configurável como de possível “ineficácia relativa”, mas sim perante uma invalidade/nulidade, na medida em que um tal “Plano” infringe uma norma imperativa (o referido art. 30.º/2 e 3 da LGT) e, para tal, a sanção é a nulidade (cfr. art. 294.º do C. Civil)3.
Por outro lado, a decisão de julgar ineficazes as cláusulas do “Plano” que afetem créditos tributários é, na realidade, uma recusa de homologação de parte do “Plano” aprovado pelos credores: é uma decisão de recusa de homologação da cláusula que prevê a modificação dos créditos fiscais. E, a nosso ver, o art. 215.º do CIRE não consente, em relação a um mesmo Plano, uma decisão de homologação em relação a uma parte dele e uma decisão de não homologação em relação a outra parte.
Ademais, a prolação de duas decisões – uma a homologar parte do Plano e outra a recusar a homologação de outra parte – coloca em causa as formas de satisfação dos credores no processo de insolvência.
Efetivamente, segundo o art. 1.º/1 do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores por uma de duas formas: pela forma prevista num plano de insolvência baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente; ou, quando tal não se afigure possível, através da liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
A ideia do CIRE é a de que todos os credores fiquem sujeitos ou ao regime do plano de insolvência ou ao regime do procedimento de liquidação, não estando prevista uma “terceira via”, nem que o “Plano”, uma vez aprovado, não estenda os seus efeitos a todos os credores.
E, admitindo-se a não homologação parcial do “Plano”, em relação aos credores tributários, tal significaria que a satisfação de tal crédito não seria feita nem pela forma prevista no plano nem através da liquidação do património do devedor insolvente, ou seja, seria feita por uma forma diferente, ao arrepio do prescrito no CIRE (e o objetivo tido em vista com o Plano poderia ser frustrado com a liberdade de que dispunham os credores tributários para exercerem os seus direitos contra o devedor sem quaisquer restrições).
Enfim, a questão da homologação ou não do Plano, no seu todo, passa pela aplicação do art. 215.º do CIRE.
Quando o conteúdo do “Plano” viola o art. 30.º/2 e 3 da LGT deve, em princípio, a meu ver, em face da referida imperatividade de tal preceito, ser recusada a homologação de todo o “Plano”.
E dizemos “em princípio”, na medida em que deve haver algum espaço/margem para, por interpretação, poder “sair/resultar” uma solução que respeite minimamente a unidade e harmonia do sistema jurídico.
Dispondo-se no art. 215.º do CIRE (para que remete o art. 17.º-F/5 do CIRE) que o juiz só deve recusar a homologação em caso de “violação não negligenciável (…) das normas aplicáveis ao seu conteúdo”, deve considerar-se ser possível entender, em certos e concretos casos de violação do art. 30.º/2 e 3 da LGT, que estaremos tão só perante violações negligenciáveis das normas tributárias.
Vem-se entendendo, é certo, que devem ser consideradas como não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretam a produção dum resultado que a lei não autoriza; todas as violações de normas que interfiram com a justa salvaguarda dos interesses/posições dos credores.
Mas será o caso – violação não negligenciável – se a violação se traduzir numa mera modificação dos prazos de pagamento e numa redução das taxas de juros, que reflitam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva e se tal modificação dos prazos e redução de juros não estiver à partida e em abstrato proibida pelas disposições tributárias convocáveis e invocáveis (no que acompanhamos o Acórdão deste STJ de 24 de Março de 2015, referido no texto deste Acórdão).
Todos estão de acordo – veja-se o que o que o Conselheiro Fonseca diz no seu já referido artigo – em dizer que não se justifica manter o credor tributário totalmente à margem dos deveres de cooperação e solidariedade económica e social que devem recair sobre todos os credores, no sentido de possibilitar a recuperação da empresa e evitar o seu encerramento e as consequências económicas que tal pode gerar, nomeadamente, fomentar a insolvência de outras empresas, o acréscimo de desemprego, entre outras consequências nefastas para a economia, enfim, todos dizem que o legislador já devia ter “deslindado” esta desarticulação de objetivos e de diplomas legais, mas, volvidos 12 anos sobre a Lei do Orçamento de 2011, o certo é que o legislador não fez.
A nosso ver, uma adequada ponderação dos interesses que a questão convoca, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam (recuperação de empresas) e, por outro lado, o interesse público na arrecadação das receitas fundamentais à preservação e desenvolvimento do Estado Social (o dever geral que todos temos de contribuir para as receitas suficientes para fazer face às necessidades coletivas), tem que permitir, no respeito pelo princípio da proporcionalidade, uma interpretação, em certos casos, restritiva dos art. 30.º/2 e 3, 36.º/3 da LGT, uma interpretação que restrinja o seu pleno campo de aplicação à relação tributária e que permita, em certos casos de confronto com a legislação especial do direito falimentar, uma interpretação restritiva.

Repare-se:
- Uma das funções/princípios da nossa lei de insolvência é a recuperação de empresas;
- Tanto o Estado como a Segurança Social são, na maioria dos casos, titulares de créditos avultados sobre o devedor, pelo que, se não puderem participar no esforço de recuperação da empresa, o processo poderá ficar por vezes votado ao insucesso, o que contraria frontalmente a teleologia do PER (da reforma de 2012, confirmada em 2017), sendo certo que o direito deve ser (e é suposto que seja) um sistema harmónico e coerente;
- O princípio da indisponibilidade tributária e o que resulta do art. 103.º/1 e 2 da CRP tem que ser articulado com outras disposições constitucionais, designadamente das que tutelam a posição dos trabalhadores (53.º e 58.º/2/a) da CRP) e a manutenção do tecido económico e empresarial (100.º/d) da CRP);
- O próprio princípio da igualdade e legalidade tributária (cfr. art. 30.º/2 da LGT; do devedor, face aos outros contribuintes), perspetivado em sentido material, não será violado se se perceber que o Estado e a Segurança Social recebem mais (aceitando alguma modificação/redução do seu crédito) do que viriam a receber em caso insolvência (até poderá ser “bom” para os outros contribuintes, na medida em que o Estado cede facilmente à tentação de ir buscar dinheiro onde ele existe, no caso, perante a insolvência dum contribuinte, aos outros contribuintes).
Em face disto, ponderando tudo adequada e proporcionalmente, desde que a intervenção nos créditos do Estado e Seg. Social não evidencie uma modificação injusta e desproporcional – tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que eles abdicam, visando a recuperação da empresa pré-insolvente – entendemos que será de admitir que o “Plano” possa incluir alguma modificação dos prazos de pagamento ou das taxas de juros (ou mesmo, em casos muito extremos, desde que devidamente justificado/explicado, uma moratória e o perdão ou redução do valor do capital) dos créditos da AT ou da Seg. Social.
Enfim, entendemos, verificada/apreciada uma concreta, precisa e “exigente” conjugação de circunstâncias, que poderemos estar “apenas” perante uma violação negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do “Plano”.
Todos estão de acordo que a lei/legislador já devia ter previsto as situações, excecionais, em que uma “intervenção” nas dívidas tributárias pudesse acontecer nos processos que visem a recuperação económica do devedor, estabelecendo as condições em que tal poderia acontecer, quando tal se demonstre indispensável à viabilização da empresa, já que também constitui interesse público digno de proteção a continuidade das empresas que revelem a possibilidade de se recuperarem, pelo que o que se refere – e a que se procura chegar por interpretação restritiva dos art. 30.º/2, 36.º/2 e 37.º/2 da LGT – procura colmatar tal omissão legislativa.
Ora – é o ponto – o caso dos autos/recurso preenche, a meu ver, o concreto, preciso e “exigente” circunstancionalismo que leva a que se possa admitir que o “Plano” inclua, como é o caso, a modificação dos prazos de pagamento dos créditos da Seg. Social: não prevê qualquer perdão ou redução do crédito reclamado pela Seg. Social, prevendo-se a sua “regularização ao abrigo do CRCSPSS”, com modificação do prazo e pagamento em 150 prestações iguais, sem moratória, pelo que, tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que eles abdicam, visando a recuperação da devedora, a “intervenção” que o Plano faz nos créditos da Seg. Social não evidencia qualquer “redução injusta ou desproporcional”.
Estamos até perante uma “intervenção” que compreende uma modificação do prazo que é à partida (e em abstrato) viabilizada pelos arts. 189.º e 190.º do CRCSPSS, que “grosso modo” (e preenchidas certas condições) admite, quando tal for indispensável à viabilidade do contribuinte e este se encontre em processo de insolvência ou recuperação, que seja autorizado o pagamento prestacional da dívida e a redução dos respetivos juros vencidos e vincendos.
Em face de tudo isto, homologaria, como comecei por referir, in totum o Plano de Recuperação apresentado/aprovado”.

Em sentido próximo, agora na feliz síntese que integra o sumário do último aresto citado, relatado por Renata Linhares de Castro, “(…) II - No âmbito do PER, à luz do artigo 215.º ex vi do artigo 17.ºF, n.º 7, ambos do CIRE, pode o juiz, oficiosamente, recusar a homologação do acordo quando, não obstante ter sido aprovado em assembleia de credores, do mesmo resulte violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
III - O plano de revitalização deve respeitar o princípio da igualdade dos credores, com a salvaguarda de este último admitir tratamento diferente para situações, também elas, distintas e desde que assente em critérios objectivos e justificáveis.
IV - O princípio da indisponibilidade a que estão sujeitos os créditos da Segurança Social, decorrente do n.º 2 do artigo 30.º da LGT ex vi do artigo 3.º, al. a), do CRCSPSS, impede que sejam os mesmos extintos ou reduzidos fora das situações legalmente previstas para o efeito, impedimento esse que vigora também em sede de PER.
V - Contudo, tal proibição não abrange as situações nas quais o plano de revitalização assuma o pagamento total da dívida contributiva (capital e juros), pese embora acompanhado da sua regularização em prestações, desde que respeitados os limites abstractamente consignados nos artigos 189.º e 190.º do CRCSPSS, bem como no artigo 81.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011 de 03/01.
VI - Em face do constante do ponto anterior, tendo o plano sido aprovado com respeito pelas maiorias legalmente exigíveis, não obstante o voto desfavorável da Segurança Social, e prevendo o plano, quanto ao crédito desta última, a sua regularização através do pagamento de 72 prestações, mensais e sucessivas, sem extinção ou redução da dívida, estamos em face de uma violação negligenciável, não violadora do referido princípio da indisponibilidade, nessa medida não constituindo impedimento, não só à homologação do plano, mas também à sua vinculação, razão pela qual se assume o mesmo como eficaz perante a credora Segurança Social”.
Em suma, por nenhuma censura merecer, impõe-se confirmar a decisão recorrida, de acordo com a qual o plano de revitalização aprovado e homologado judicialmente é vinculativo para todos os credores, incluindo o “Instituto da Segurança Social, IP”.
Resta acrescentar que o recorrente, como parte vencida, suportará as custas do recurso, de acordo com a regra geral inscrita no artigo 527º do Código de Processo Civil.
*
IV – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Guimarães, 25 de Setembro de 2025

João Peres Coelho Relator
Gonçalo Oliveira Magalhães 1º Adjunto
Rosália Cunha 2ª Adjunta


[1]Estudos Sobre o Processo Civil”, 2ª edição, páginas 395 e seguintes.
[2] Consultado, tal como os demais adiante citados, em www.dgsi.pt.
[3] Bem como no único acórdão desta Relação que encontramos publicado em que tal questão foi tratada (acórdão de 30/03/2023, proferido no processo n.º 734/22.9T8GMR.G1 e relatado por Fernando Barroso Cabanelas).
[4] Bem como no único acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que encontramos publicado em que tal questão foi tratada (acórdão de 26/04/2022, proferido no processo n.º 840/21.7T8ACB.C1 e relatado por Maria João Areias).
[5] No último dos quais se estabelece um máximo de 150 prestações, precisamente o número de prestações em que foi desdobrado o pagamento dos créditos do recorrente no plano aprovado.
[6] De acordo com a definição proposta por Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, 3ª edição, 2015, páginas 781 e 782), “não são negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido”, pelo que “O que importará é, pois, sindicar se a nulidade observada é suscetível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição de credores do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável”.