Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3658/23.9T8BRG.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
AGENTE DE EXECUÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
(i) Na fundamentação da sentença, apenas devem ser incluídos os factos que, tendo sido oportunamente alegados ou licitamente introduzidos no processo durante a instrução, se mostrem aptos a preencher a hipótese normativa aplicável e que, consequentemente, sejam relevantes para a resolução da causa, sob pena de a sua omissão ser uma deficiência capaz de alterar o juízo de direito; por isso, a omissão de um facto só constituirá uma verdadeira deficiência quando ele for suscetível de alterar o juízo de direito.
(ii) A responsabilidade civil do agente de execução no exercício da sua função enquadra-se no regime geral da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, sendo os seus deveres funcionais a matriz que delimita a ilicitude.
(iii) Incorre na obrigação de indemnizar o agente de execução que, violando os deveres estatutários de diligência e rigor, elabora uma nota discriminativa e justificativa em que desconsidera o direito de um dos executados a parte do remanescente do produto da venda do bem penhorado e, estando ainda em curso o prazo de reclamação para o juiz da execução, a entrega a outro executado.
Decisão Texto Integral:
I.
1) AA (Autor) intentou ação declarativa, sob a forma comum, contra BB (primeira Ré) e CC (segunda Ré), pedindo a condenação de ambas no pagamento, em regime de solidariedade, da quantia de € 16 132,80, acrescida dos juros legais vencidos desde 13 de janeiro de 2022 e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que: a Banco 1..., SA, intentou contra o Autor e o seu cônjuge, DD, a ação executiva que correu termos sob o n.º 1864/15.9T8VNF, na qual a primeira Ré (BB) exerceu as funções de agente de execução; no âmbito dessa execução, foi penhorado um prédio que integrava o património comum do casal formado pelos executados; perante a notícia do pretérito falecimento da referida DD, por decisão judicial de 17 de dezembro de 2018, o Autor e a segunda Ré (CC) foram habilitados, como seus sucessores; prosseguindo a execução, a primeira Ré concluiu a venda do prédio penhorado, obtendo um valor que excedeu em € 64 531,19 a quantia exequenda e as custas processuais e que, como tal, teria de ser entregue aos executados; a 1.ª Ré elaborou a nota discriminativa, datada de 13 de Julho de 2020, na qual apenas considerou a qualidade de cônjuge meeiro do Autor, desconsiderando que ele era também herdeiro da falecida DD, como tal tendo sido habilitado; apesar de alertada para esse erro,  a primeira Ré, quando ainda não estava esgotado o prazo para a relação da nota, entregou indevidamente à segunda Ré o montante de € 32 265,60, correspondente a metade do saldo remanescente; ainda assim, o Autor apresentou reclamação contra a nota discriminativa, a qual foi julgada procedente; em consequência, ficou estabelecido que o Autor tinha direito a receber o montante de € 48 398,40 (somatório da meação e do quinhão hereditário) e a segunda Ré os restantes € 16 132,80; não obstante, a primeira Ré apenas restituiu ao Autor a quantia de € 32 264,60; a segunda Ré, que recebeu indevidamente esse montante, apesar de ter sido notificada para o restituir, não o fez; a primeira Ré, por não ter efetuado a distribuição do remanescente do produto da venda de acordo com as regras gerais do direito aplicáveis, nem ter aguardado pelo decurso do prazo de reclamação contra a nota discriminativa, constituiu-se responsável, solidariamente com a segunda, pela devolução ao Autor da dita quantia de € 16 132,80.
Citadas as Rés, a primeira contestou dizendo, também em síntese, que: o pedido formulado pelo Autor já foi apreciado na ação executiva, em que foi proferida decisão, transitada em julgado, a condenar a segunda Ré na restituição da quantia de € 16 132,80, pelo que ocorre a exceção dilatória do caso julgado; na mesma ação executiva, o Autor apresentou requerimento, ainda pendente de decisão, em que pediu a condenação da primeira Ré na restituição da mesma quantia, pelo que também ocorre a exceção dilatória da litispendência; sem prejuízo, a transferência do montante para a segunda Ré foi efetuada após a elaboração da Nota Discriminativa, num momento em que a primeira Ré estava convicta da legalidade da sua atuação, não lhe competindo saber ou decidir qual o quinhão que cabia a cada parte, pelo que não agiu com culpa; a entrega do montante à segunda Ré ocorreu antes de o Autor ter apresentado qualquer reclamação contra a nota discriminativa, pelo que a primeira Ré não tinha fundamento legal para reter a restituição; quando foi decidida a reclamação, a primeira Ré já não era depositária da quantia; o prejuízo invocado pelo Autor é imputável exclusiva e unicamente à conduta da segunda Ré, que não cumpriu a ordem judicial de restituir o montante  que havia recebido em excesso; tal conduta configura um enriquecimento sem causa, não podendo a primeira Ré ser responsabilizada pelo incumprimento de uma obrigação da segunda Ré.
Pugnou pela absolvição da instância, com fundamento na verificação das referidas exceções dilatórias, ou, assim não sendo entendido, pela improcedência da ação e absolvição do pedido.
A segunda Ré apresentou, no prazo da contestação, requerimento em que declarou ter recebido o montante de € 16 132,80, que usou para pagar dívidas, e estar ciente da obrigação de o restituir ao Autor, propondo-se fazê-lo em prestações mensais de € 100,00.
Em resposta à contestação da primeira Ré, apresentada na sequência de despacho judicial, o Autor sustentou não estarem reunidos os pressupostos das exceções do caso julgado e da litispendência.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho, datado de 2 de outubro de 2024, no qual: (i) a exceção dilatória do caso julgado foi julgada procedente relativamente à segunda Ré, que assim foi absolvida da instância, e improcedente quanto à primeira Ré; (ii) a exceção dilatória da litispendência foi julgada improcedente; (iii) foi afirmada, em termos tabulares, a verificação dos demais pressupostos processuais; (iv) foi fixado, em € 17 043,51, o valor processual; (v) foi definido o objeto do litígio [“Direito do Autor ao ressarcimento das quantias que a Ré BB, na qualidade de agente de execução, entregou indevidamente à Ré CC”]; e (vi) foram enunciados os temas da prova  [“Apurar se a Ré BB atuou de forma negligente ao transferir a quantia de € 16 132,80 para a Ré CC”; e “Danos causados ao Autor”].
Realizou-se audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença, datada de 7 de março de 2025, a julgar a ação parcialmente procedente, no que tange à primeira Ré, que foi condenada a “pagar ao Autor a quantia de € 16 132,80, acrescida de juros de mora, à taxa civil de 4%, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento”, e absolvida do pedido de pagamento dos juros “vencidos anteriores à citação.” (sic)
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2). Inconformada, a primeira Ré (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

“1ª O presente recurso tem por primeiro fundamento a impugnação da matéria de facto e como segundo fundamento a aplicação/interpretação do direito.
2ª Entende a Recorrente que há factualidade relevante para aferir a responsabilidade do Recorrido no ocorrido que não consta dos factos provados.
3ª O facto provado 18 respeita à reclamação da nota discriminativa que foi apresentada pelo Recorrido ao Juiz do processo executivo, a qual foi acompanhada de um documento que até então não era conhecido da Recorrente e que, se tivesse sido, faria diferença na resolução da situação.
4ª No dia 29.07.2020 o Recorrido apresentou-se num Notário para outorgar escritura pública de habilitação de herdeiros, tendo aí declarado que os herdeiros da sua falecida esposa eram ele próprio e a filha de ambos (que foi Ré nestes autos), sendo esta factualidade relevante para a boa decisão dos autos na medida em que quando a Recorrente efetuou o pagamento à filha do Recorrido aquela informação não era do seu conhecimento.
5ª Aquele facto é relevante para se aferir a responsabilidade do Recorrido no ocorrido, pois se não fosse relevante para a reclamação à nota discriminativa não a teria feito ainda para mais quando se verifica que demorou 26 anos para outorgar a escritura de habilitação de herdeiros (note-se que a sua esposa faleceu em ../../1994).
6ª Tendo presente o doc. nº 1 junto com a p.i. requer-se a V. Exas., ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC, o aditamento à matéria de facto do seguinte facto provado: “32.º) No dia 29 de Julho de 2020 AA outorgou no Cartório Notarial ..., em ..., escritura de habilitação de herdeiros, na qual declarou o seguinte: “...que é cabeça de casal na herança aberta por óbito da sua esposa DD....que a mesma faleceu sem qualquer disposição de última vontade, tendo deixado por seus únicos herdeiros o viúvo AA, aqui declarante e uma filha, do casal, a saber CC”.
7ª Por se afigurar igualmente relevante para a boa decisão da causa, concretamente da culpa do Recorrido na produção do dano, deve ser dado por assente o alegado pela 2ª Ré na sua contestação quanto à proposta de devolução da quantia em causa em prestações mensais de € 100,00 e que foi rejeitada, razão pela [qual] se requer, ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC, o aditamento à matéria de facto do seguinte facto provado: “33.º) CC apresentou a AA proposta de devolução da quantia de 16.132,80 euros em prestações mensais de cem euros, proposta que este não aceitou”.
8ª A douta sentença recorrida considerou verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, proferindo em consequência juízo condenatório; no entanto, com o devido respeito, considera a Recorrente que dois dos pressupostos não se verificam e que não foi devidamente ponderado o contributo da conduta do Recorrido, enquanto lesado, na produção do dano.
9ª Como resulta do disposto no artigo 483º/nº 1 do CCiv., a ilicitude pode derivar ou da violação de normas de proteção ou da violação de direito subjetivo, tendo a sentença recorrida considerado que ocorreu a violação de direito subjetivo, no caso o direito de propriedade do Recorrido respeitante à quantia a que tinha direito, ainda que depois se reporte à violação de “deveres estatutários e processuais”.
10ª Não ocorreu a violação de qualquer norma de proteção, pois não existe dispositivo legal que imponha ao Agente de Execução a realização de pagamentos após o decurso do prazo para a reclamação da nota discriminativa e comprovativo do agora alegado é o facto da sentença não invocar a norma legal aplicável.
11ª Salvo melhor opinião, entende-se que quando a Recorrente efetuou o pagamento não violou o direito de propriedade do Recorrido porque este não era conhecido.
12º Até ao momento da elaboração da nota discriminativa a Recorrente apenas sabia da existência de dois herdeiros e como desconhecia o quinhão hereditário de cada um aplicou a regra da divisão em partes iguais até porque a habilitação de herdeiros feita no processo executivo é apenas nominativa (no sentido de apenas indicar os herdeiros) e nada dispõe quanto ao quinhão de cada herdeiro.
13ª Como decorre do artigo 2139º do CCiv. a quota do cônjuge pode variar, não podendo ser inferior a uma quarta parte da herança, pelo que a partir deste limite a Recorrente não tinha como concluir que o Recorrido teria direito a um quinhão superior até porque nos autos executivos não tinha informação que demonstrasse que o Recorrido teria direito a metade da herança.
14ª O Recorrido tinha conhecimento da importância decisiva da habilitação e foi, por isso, que se apressou a outorgá-la no prazo da reclamação da nota discriminativa senão não conseguiria provar no processo qual o seu quinhão hereditário.
15ª Como a Recorrente, no momento da elaboração da nota discriminativa, não possuía a informação relativa ao quinhão hereditário, não podia ter tomado outra decisão por desconhecer a extensão do direito de propriedade do Recorrido, motivo pela qual se considera que não se mostra provada a ilicitude.
16ª A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, no caso do artigo 483º/nº1 do CCiv.
17ª Considerou igualmente a sentença recorrida que existiu nexo causal, sendo o entendimento da Recorrente diverso porque o dano causado ao Recorrido advém da conduta da outra Ré que não devolveu a quantia em causa).
18ª A Recorrente não tinha (nem tem) forma de obrigar a outra Ré a devolver a quantia a que afinal não tem direito e se esta tivesse devolvido a quantia em causa o Recorrido já teria o seu dano reparado, razão pela qual se considera que a ação da outra Ré interrompeu o nexo causal.
19ª Não se mostra preenchido o requisito do nexo causal e ao decidir em sentido diverso a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito, no caso do artigo 483º/nº 1 do CCiv.
20ª Como resulta do facto provado 9 o cônjuge do Recorrido faleceu em ../../1994 e a habilitação de herdeiros foi outorgada em 29.07.2020, ou seja, 26 anos depois.
21ª O Recorrido foi negligente, não zelou pelos seus interesses, não cumpriu com a obrigação a que estava vinculado e bastaria ter outorgado a habilitação em momento anterior à elaboração da nota discriminativa para a Recorrente ter a informação necessária para conhecer o seu quinhão hereditário.
22ª Ao não ter outorgado a habilitação de herdeiros em momento anterior ao da elaboração da nota discriminativa o Recorrido contribuiu para o dano por não ter habilitado a AE com toda a informação que necessitava, tendo sido por sua culpa exclusiva que a Recorrente decidiu como decidiu.
23ª Nos termos dos factos provados 30 e 31 o Recorrido dispõe de título executivo contra a outra Ré e nada fez para receber o seu crédito, também podia ter apresentado participação criminal para receber o seu crédito e não o fez e inclusive não aceitou a proposta da Ré, sua filha, de lhe devolver a quantia em causa em prestações mensais de € 100,00, tal como resulta do facto provado 33.
24ª Entre a inação passada do Recorrido, que não fez a habilitação de herdeiros a tempo, e a inação presente, ao renunciar cobrar o seu crédito à sua filha, considera-se que o Recorrido decisivamente contribuiu para a produção do dano e para o seu agravamento, pelo que nos termos do disposto no artigo 570º/nº 1 do CCiv. deverá a indemnização ser totalmente excluída, sendo de notar que o Recorrido continua a poder cobrar o seu crédito junto de quem ficou com o seu dinheiro, não ficando assim desprotegido.
25ª Ao assim não se entender incorreu a sentença recorrida em erro de julgamento de direito, no caso do artigo 570º/nº 1 do CCiv.”

Pediu que, revogando-se a sentença recorrida, seja a ação julgada improcedente, com a consequente absolvição in totum do pedido contra si formulado.
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3). O Autor (daqui em diante, Recorrido) respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
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4). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos. Após a prestação de caução, foi-lhe atribuído efeito suspensivo, conforme requerido pela Recorrente, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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5). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
1). As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
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2). Tendo presente o que antecede, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos, seguindo a ordem lógica do seu conhecimento:

1.ª Erro quanto à decisão da matéria de facto, por omissão dos enunciados transcritos nas conclusões 6.ª e 7.ª [“No dia 29 de Julho de 2020 AA outorgou no Cartório Notarial ..., em ..., escritura de habilitação de herdeiros, na qual declarou o seguinte: “...que é cabeça de casal na herança aberta por óbito da sua esposa DD....que a mesma faleceu sem qualquer disposição de última vontade, tendo deixado por seus únicos herdeiros o viúvo AA, aqui declarante e uma filha, do casal, a saber CC” e “CC apresentou a AA proposta de devolução da quantia de 16.132,80 euros em prestações mensais de cem euros, proposta que este não aceitou”] no rol dos factos provados;
2.ª Violação da lei, mais concretamente do disposto no art. 483/1 do Código Civil, por não estarem preenchidos os pressupostos genéticos da obrigação de indemnizar – mais concretamente, os pressupostos da ilicitude e do nexo de causalidade –, e no art. 570/1 do mesmo diploma, por não ter sido considerado que o lesado “contribuiu para o dano” (sic).
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III.
1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto da sentença recorrida.
Assim, foram ali considerados como factos provados os seguintes enunciados (transcrição):

“1.º) Em 25 de Fevereiro de 2015 foi instaurada no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão- Juiz ..., uma execução sumária, registada sob o n.º 1864/15.9T8VNF, em que é exequente, a Banco 1..., S.A. e primitivos executados, AA, aqui A., e mulher, DD (conforme resulta da certidão judicial com o Código de Acesso: ...9, junta com o requerimento com a ref. ...81, de 12/06/2023 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais).
2.º) Nessa execução foi penhorado, para garantia de pagamento da dívida exequenda, juros de mora e demais acréscimos legais, a fração autónoma, identificada pelas letras ..., destinada a habitação, Apartamento ...5, localizada no ..., lado direito (Poente), voltada a Norte e a Sul, Bloco ..., inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob o Art. ...82/.../URBANO e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...31-.../....
3.º) Tal fração autónoma faz parte do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, denominado “Edifício ...”, sito no Lugar ... e Quinta ..., da freguesia ..., do concelho ....
4.º) A sobredita penhora foi registada definitivamente na Conservatória do Registo Predial através da Ap. ...3, de 26 de fevereiro de 2007.
5.º) A fração autónoma penhorada e vendida judicialmente nos autos de execução mencionados no ponto 1º, fazia parte do património comum do casal, formado que foi pelo executado, aqui A., AA e pela primitiva executada, DD.
6.º) Essa fração autónoma foi comprada pelos executados, aqui A. e pela primitiva executada, sua mulher, DD, em 19 de junho de 1991, através de escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, de 19 de junho de 1991, outorgada a fls. 49 a fls. 52 Verso, do LIVRO ...53-D, do extinto ... Cartório Notarial ..., junta ao requerimento executivo, conforme se alcança da certidão judicial junta aos autos.
7.º) O A. e a primitiva executada, DD, casaram um com o outro, no dia 29 de dezembro de 1979, sem convenção antenupcial (cf. a certidão do Assento de Casamento n.º ...04 ano 2020, da Conservatória do Registo Civil ..., junta como documento n.º 3 à Reclamação da Nota Discriminativa, constante da certidão da execução junta aos autos).
8.º) A referida fração autónoma, identificada pelas letras ..., encontrava-se registada definitivamente na Conservatória do Registo Predial ... em nome do A. e da primitiva executada, DD, através da Ap. ...1 de 1991/05/14 (cf. as certidões de descrição predial juntas ao requerimento executivo e a Reclamação da Nota Discriminativa, constante da certidão da execução junta aos autos).
9.º) Em ../../1994 faleceu a primitiva executada, DD (cf. a certidão do Assento de Óbito 1713, junto à certidão judicial junta aos autos).
10.º) Por sentença judicial, de 17 de dezembro de 2018, transitada em julgado em 5 de fevereiro de 2019, proferida nos autos de habilitação de herdeiros (Proc. n.º 1864/15.9T8VNF-A, do Tribunal Judicial de Braga, Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão- Juiz ..., Apenso A) foram julgados habilitados o executado, aqui A. e a filha, CC, para prosseguirem os ulteriores termos da execução na posição da executada, DD.
11.º) Tal sentença de habilitação de herdeiros foi notificada aos requeridos, AA, aqui A., e a CC, que não deduziram qualquer contestação ao incidente de habilitação de herdeiros deduzido pela exequente, Banco 1..., S.A.
12.º) Tendo a Senhora Agente de Execução, primeira Ré, sido notificada da sentença de habilitação de herdeiros por notificação elaborada em 18 de dezembro de 2018 (Ref.:...17), junta à certidão judicial anexa.
13.º) Por via da sentença de habilitação de herdeiros proferida passaram a figurar como executados, o aqui A., com a posição de duplo executado (quer em nome próprio como primitivo executado, quer como habilitado na posição da sua mulher, a falecida, DD) e a filha de ambos, a segunda Ré, CC.
14.º) Por requerimento que deu entrada, em 13 de Fevereiro de 2020, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão- Juiz ..., para junção aos autos de execução sumária, registados sob o número 1864/15.9T8VNF, o A. informou que a fração autónoma penhorada, identificada pelas letras ..., inscrita na matriz predial da freguesia ..., sob o Art. ...82.../Urbano, era bem comum do dissolvido casal, formado que foi pelo A. e pela falecida, DD, dado ter sido comprada na constância do matrimónio., contraído sob o regime de comunhão de adquiridos.
15.º) O sobredito requerimento foi notificado à Senhora Agente de Execução, primeira Ré, através de notificação elaborada em 13 de fevereiro de 2020 (Ref.: ...99), junto à certidão judicial anexa.
16.º) Por carta registada, com aviso de receção, de 10 de Fevereiro de 2020, remetida à Senhora Agente de Execução, primeira Ré, informou o A. que a aludida fração autónoma, identificada pelas letras ..., inscrita na matriz predial da freguesia ... sob o Art. ...82.../URBANO, era bem comum do dissolvido casal, formado que foi pelo A. e pela sua falecida mulher, DD, e que o A. era herdeiro da sua falecida mulher, para além da meação que tinha no património comum do ex-casal.
17.º) Na sequência da venda judicial da fração autónoma, identificada pelas letras ..., resultou um saldo remanescente no montante de € 64.531,19, conforme resulta da Nota Discriminativa junta à certidão judicial junta aos autos.
18.º) Da Nota Discriminativa inicialmente elaborada pela Senhora Agente de Execução, primeira Ré, em 13 de julho de 2020, apresentou o Autor reclamação, a qual deu entrada no Tribunal em 30 de julho de 2020, alegando que a mesma não teve em consideração a qualidade de herdeiro do A. da sua falecida mulher, primitiva executada, DD.
19.º) Tal reclamação da Nota Discriminativa foi comunicada à Agente de Execução, primeira Ré, pelo A. em 30 de julho de 2020.
20.º) Por decisão judicial, de 13 de janeiro de 2022, transitada em julgado em 1 de fevereiro de 2022, foi julgada totalmente procedente a reclamação da Nota Discriminativa apresentada pelo A., determinando-se a retificação da mesma Nota Discriminativa integrante da notificação efetuada ao executado, aqui A. (Ref.:...73-13/07/2021), de modo a que no item “quantias penhoradas em excesso”, do quadro “6. APURAMENTO FINAL”, passasse a constar que o reclamante, AA, tem direito à devolução da importância de € 48.398,40 e a co-executada, CC, tem direito a receber o valor de € 16.132,80.
21.º) Nessa decisão escreveu-se, além do mais, o seguinte:
22.º) “Por outro lado, com o devido respeito, não acompanhamento o entendimento exarado pela AE para justificar a não observância dos comandos legais acima mencionados, pois, se é certo que não lhe é exigível que tenha de efetuar as partilhas daquele extinto casal, a verdade é que a operação de distribuição do remanescente da venda nada tem a ver com a realização de uma ato de partilha, mas apenas com a necessidade de distribuir esse remanescente de acordo com as regras gerais do direito aplicáveis”.
23.º) Acrescente-se, ademais, que para além disso, tendo sido elaborada nota discriminativa, impunha-se-lhe que aguardasse pelo decurso do prazo concedido às partes para apresentação de relação à mesma, antes de proceder à imediata entrega de qualquer valor aos sujeitos processuais, sobretudo quando, como aqui, já em 13 de fevereiro de 2020, o reclamante havia alertado a AE para esta circunstância (Ref. ...74”).
24.º) Na sequência da referida decisão judicial, de 13 de Janeiro de 2022, dando cumprimento ao nela decidido e determinado, elaborou a Senhora Agente de Execução, primeira Ré, a Nota Discriminativa retificada, junto aos autos em 1 de Fevereiro de 2022, passando a constar do item “ A devolver ao executado (quantias penhoradas em excesso) AA”, do quadro “6.APURAMENTO FINAL”, o valor de € 48.398,40, correspondendo tal valor ao somatório do montante da meação, no montante de € 32.265,60, e da quantia de € 16.132,80, referente ao montante do quinhão que o A. tem por morte da sua mulher.
25.º) Apesar disso, a Agente de Execução, primeira Ré entregou à executada, segunda Ré, em 17 de julho de 2020, a importância de € 32.265,60, correspondente a metade do saldo remanescente resultante da venda judicial do imóvel (fração autónoma identificada pelas letras ...), no valor de 64.531,19, conforme se alcança da “Ordem de Pagamento”, de 17 de julho de 2020, (Documento oAxzX2VflrE), junta à certidão judicial anexa.
26.º) Tendo levantado para si, em 10 de julho de 2020, a importância de € 3.197,71, constante da “Ordem de Pagamento” emitida na mesma data (Documento D62nzzdlkjy), não obstante da Nota Discriminativa inicialmente elaborada e posteriormente retificada constar a quantia de € 2.947,71.
27.º) Tendo entregue ao executado, aqui A., a importância de € 32.264,60, conforme se alcança da “Ordem de Pagamento” emitida em ../../2022 (Documento g2EpxDaClqO), junta à citada certidão judicial anexa.
28.º) A segunda Ré foi, por diversas vezes, notificada judicialmente para restituir aos autos a quantia de € 16.132,80, que lhe foi indevidamente entregue pela primeira Ré, o que até presente data não fez, conforme resulta da decisão judicial, de 13 de janeiro de 2022 (Ref.:...89 e do despacho judicial, de 12 de outubro de 2022 (Ref.:...22), juntos à certidão judicial anexa.
29.º) Tal quantia de € 16.132,80 não foi até à data entregue ou devolvida ao A.
30.º) O autor não instaurou processo executivo contra a 2ª Ré; e
31.º) Nem apresentou participação criminal contra a 2ª Ré pela prática de um crime de abuso de confiança e de apropriação ilegítima de coisa alheia.
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2). Depois de exarar que, “[c]om relevância para a decisão da causa, não existem factos não provados”, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão, nesta parte, do seguinte modo:

“O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nos documentos juntos aos autos e nas regras da experiência comum e da lógica.
Assim, importa referir que apenas foi produzida prova documental.
Desde logo, os pontos 2º, 3º, 9º, 10º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º e 28º, correspondentes aos artigos 2º, 3º, 11º, 12º, 14º, 15º, 17º, 18º, 20º e 29º da PI, foram aceites pela ré BB na Contestação (cf. art. 21º da contestação apresentada).
Os pontos 1º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º ,11º, 14º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º e 27º, resultam da certidão do processo executivo n.º 1864/15.9T8VNF e do apenso A, junta aos autos com o requerimento com a ref. ...81, de 12/06/2023 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. A referida factualidade espelha a cronologia do referido processo executivo.
O ponto 29º foi aceite pelas rés.
Os pontos 30º e 31º foram confessados pelo autor no requerimento com a ref. citius 16734348, de 03/10/2024.”
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IV.
1).1. Vejamos a resposta a dar à primeira questão, na qual está em causa uma alegada deficiência da decisão da matéria de facto, que a este Tribunal ad quem cumpre conhecer atento o disposto no art. 662/1 e 2, c), do CPC.
Como é sabido, a sentença deve ser fundamentada através da exposição dos factos relevantes e das razões de direito em que se estriba a decisão, como impõem, por mandamento do n.º 1 do art. 205 da CRP, os arts. 154/1 e 607/3 e 4 do CPC.
No que tange à primeira parte da fundamentação (a enunciação discriminada dos factos pertinentes), o juiz deve começar por discriminar os factos licitamente admitidos por acordo, provados por documento e por confissão, com força probatória plena, dos factos provados em resultado da prova livre produzida, declarando ainda os factos julgados não provados.
Essa tarefa suscita, no entanto, problemas metodológicos, técnicos e práticos, que Manuel Tomé Soares Gomes (“Da sentença cível”, AAVV, O Novo Processo Civil, Lisboa: CEJ, 2015, pp. 331-386): enumera nos seguintes termos:
“a) o critério de seleção dos factos a enunciar: factos essenciais, simples e complexos, e factos instrumentais;
b) o critério de aferição da relevância dos factos para a resolução do litígio;
c) a questão da necessidade de se formular ou não um juízo probatório específico sobre os factos instrumentais;
d) a textura vocabular dos enunciados de facto;
e) a segmentação dos factos.”
Centrando a nossa atenção no primeiro problema (o do critério de seleção dos factos a enunciar), importa começar por dizer que, sendo a sentença um “ato de racionalidade prático-jurídica” (Manuel Tomé Soares Gomes, loc. cit., p. 329), a sua valia assenta na correta articulação entre a base fáctica e a base normativa. Deste modo, apenas podem ser considerados pelo juiz os factos essenciais que tenham sido alegados pelas partes nos respetivos articulados ou na audiência prévia, bem como aqueles cujo conhecimento seja lícito nos termos do n.º 2 do art. 5.º, do CPC. Estão aqui em causa os factos instrumentais que resultem da decisão da causa (a)), os factos complementares ou concretizadores de outros oportunamente alegados e que tenham decorrido da instrução, desde que as partes sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar (b)) e os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (c)).
A primeira conclusão que retiramos é de que apenas há que atender aos factos que, tendo sido oportunamente alegados ou licitamente introduzidos durante a instrução, se mostrem relevantes para a resolução da causa, devendo ser excluídos todos aqueles que se mostrem inequivocamente desnecessários para tal efeito (Manuel Tomé Soares Gomes, loc. cit., p. 341). Funciona aqui um filtro teleológico da relevância jurídica dos enunciados de facto adrede introduzidos, à luz do qual apenas importam aqueles que sejam aptos ao preenchimento da hipótese normativa que se pretende aplicar, de modo que a omissão de um enunciado só constituirá uma verdadeira deficiência quando ele for suscetível de alterar o juízo de direito. É este o critério proposto, a propósito do objeto da prova, por Michele Taruffo (La prueba de los hechos, Madrid: Editorial Trotta, 2002, pp. 96-113), para quem a prova não se deve dirigir a quaisquer factos, mas apenas àqueles que se revelem normativamente pertinentes (normatively relevant).
Por outro lado, importa ter presente que, como ensina Manuel Tomé Soares Gomes (loc. cit., pp. 341-342), há que ter em consideração que, as mais das vezes, os factos respeitam a factualismos complexos tendentes a preencher conceitos de direito indeterminados ou cláusulas gerais, como sejam os de culpa, necessidade do locado para habitação, justa causa, abuso do direito, boa fé, alteração anormal das circunstâncias, posse, sinais visíveis e permanentes para efeitos de servidão de passagem, etc.. Nessas hipóteses, “o facto essencial não é consubstanciado num núcleo definido e cerrado, mas irradia-se numa multiplicidade de circunstâncias moleculares que, na sua aglutinação, preenchem o conceito indeterminado ou a cláusula genérica da facti species normativa.” Como o autor explica, “[é] no âmbito deste tipo de factos complexos que podem ocorrer concretizações ou complementaridades dimanadas da produção da prova em audiência, suscetíveis de levar ao ajustamento do contexto narrativo dos articulados ao contexto histórico do litígio.”
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1).2. Tendo isto presente, vejamos se os enunciados de facto que a Recorrente pretende que sejam aditados foram devidamente introduzidos no objeto processual e se são suscetíveis de influenciar a decisão jurídica da causa.
Quanto ao primeiro [“No dia 29 de Julho de 2020 AA outorgou no Cartório Notarial ..., em ..., escritura de habilitação de herdeiros, na qual declarou o seguinte: “...que é cabeça de casal na herança aberta por óbito da sua esposa DD....que a mesma faleceu sem qualquer disposição de última vontade, tendo deixado por seus únicos herdeiros o viúvo AA, aqui declarante e uma filha, do casal, a saber CC”], estamos perante um facto alegado pelo Recorrido, na petição inicial, o que não obsta à sua aquisição processual, ainda que tal possa ser favorável à tese defensional da Recorrente.
Neste sentido, a Recorrente sustenta que no momento em que elaborou a nota discriminativa e, com base nela, entregou (indevidamente) a quantia de € 16 132,80 à segunda Ré, não tinha sido ainda feita a habilitação notarial dos herdeiros da falecida DD. Por essa razão, não lhe era exigível que soubesse que o Recorrido, para além de ser titular de uma quota de metade na herança, era também o cônjuge meeiro sobrevivo, tendo assim direito a ¾ do remanescente da venda.
Esta argumentação tem, porém, evidentes aporias.
Em primeiro lugar, assenta no pressuposto, ostensivamente errado, conforme veremos por ocasião da resposta à segunda questão, segundo o qual o agente de execução não tem o dever de, previamente à entrega de quantias que estão depositadas à sua ordem, cuidar de saber quem são os titulares do direito ao seu recebimento. Em segundo lugar, olvida que o prédio penhorado era um bem comum do casal que fora constituído pelo Recorrido e pela executada falecida (a referida DD) e que, conforme foi adquirido e consta da fundamentação de facto (pontos 10, 11, 12 e 13), teve lugar, nos autos de execução, um incidente de habilitação dos sucessores desta última, o qual culminou com a habilitação dos seus dois únicos herdeiros – o Recorrido, cônjuge sobrevivo, e a segunda Ré, descendente –, nos termos do despacho de 17 de dezembro de 2018, notificado tanto aos habilitados como à Recorrente, na sua qualidade de agente de execução.
Deste modo, a potencial relevância normativa do enunciado, quando perscrutado numa dimensão atomística e abstrata, sempre seria de rejeitar no plano concreto, porquanto o mesmo se apresenta desnecessário face aos demais enunciados que foram considerados como factos provados.
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1).3. No que tange ao segundo enunciado [“CC apresentou a AA proposta de devolução da quantia de 16.132,80 euros em prestações mensais de cem euros, proposta que este não aceitou”], a Recorrente sustenta que ele permite concluir que o dano foi produzido, ou, pelo menos, agravado, pelo facto de o Recorrido ter recusado o pagamento em prestações da quantia reclamada na ação que lhe foi oferecido pela segunda Ré, assumindo relevo, no quadro do disposto no n.º 1 do art. 570 do Código Civil, para efeitos de exclusão ou redução da indemnização.
Este enunciado contém, em rigor, dois factos. No primeiro, está em causa a apresentação, pela 2.ª Ré ao Recorrido, de uma proposta de repetição do indevido em prestações. No segundo, a oferta dessas prestações e a sua recusa pelo Recorrido.
O primeiro facto é do conhecimento do tribunal em virtude do exercício das suas funções: a emissão da declaração de vontade está plasmada num requerimento que, após a citação, a segunda Ré assinou e dirigiu aos autos, conforme é referido no Relatório deste Acórdão. Já o segundo facto não foi alegado em qualquer peça processual anterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância (cf. art. 611/1 do CPC), pelo que não pode integrar o quadro factual relevante definido pela sentença.
De qualquer modo, estamos perante factos que não têm qualquer interesse para a decisão da causa.
É fácil explicar a razão desta afirmação.
Para que a indemnização possa ser excluída ou reduzida é pressuposto que para a produção ou agravamento do dano tenha concorrido uma conduta culposa do lesado nos termos do disposto no art. 570/1 do Código Civil. Isto pressupõe, conforme melhor veremos na resposta à segunda questão, que o lesado tenha inobservado um ónus jurídico ou, noutra formulação, um encargo ou incumbência que outra pessoa, com idênticas características pessoais, teria observado. Consequentemente, a tese da Recorrente, segundo a qual o Recorrido contribuiu para o dano ao recusar o recebimento da quantia em prestações, apenas seria atendível se fosse possível sustentar que o direito impõe ao credor o ónus de aceitar o cumprimento inexato do lesante, o que, de jure, não é defensável: como corolário do princípio da pontualidade no cumprimento das obrigações, o devedor tem o dever de realizar a prestação debitória integralmente (art. 763/1 do Código Civil), donde resulta que, quando assim não suceda, o credor tem a faculdade – e não o ónus, encargo ou incumbência – de recusar o ato de cumprimento.
Sem necessidade de outras considerações, concluímos que a resposta à primeira questão é negativa.
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2).1. Avançamos para a resposta à segunda questão.
Como vimos, na sentença recorrida foi considerado que a Recorrente, no exercício das suas funções de agente de execução, por ter descurado deveres funcionais, entregou à segunda Ré uma quantia em dinheiro que pertencia ao Recorrido, causando, assim, um dano patrimonial a este. Consequentemente, depois de se enquadrar a situação no regime geral da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, entendeu-se estarem verificados os pressupostos genéticos da obrigação de indemnizar, enunciados no n.º 1 do art. 483 do Código Civil, e, como forma de imputar o referido dano na esfera jurídica da Recorrente (lesante), condenou-se esta a pagar ao Recorrido (lesado) montante equivalente, acrescido de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos até integral e efetivo pagamento.
A Recorrente questiona a bondade do assim decidido por entender que não violou qualquer dever e que, em qualquer caso, o dano não teve como causa uma conduta sua, mas a interação de uma conduta do próprio Recorrido (lesado) com uma conduta da segunda Ré.
Quid inde?
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2).2. Resulta da lei adjetiva (art. 719/1 do CPC) que ao agente de execução (AE) cabe “efetuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz, incluindo, nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos."
Esta extensa atribuição de competências confere ao AE uma singularidade funcional. Como escrevem António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2020, p. 61), “[o] agente de execução pratica atos executivos e profere decisões sobre a relação processual (v.g. art.º 855.º, n.º 2, al. a) ) e ainda sobre a realização coativa da prestação (v.g. art.ºs 763.º, n.º 1, 803.º, n.º 1 e 849.º). Os atos executivos podem ser vinculados (v.g. modo de realização da penhora), discricionários (v.g. art.ºs 812.º, n.º 5 e 833.º, n.º 1) ou de mero expediente (v.g. fixação da data da venda) (...).”
O art. 162/1 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (EOSAE), aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14.09, define-o como um auxiliar da justiça que, “na prossecução do interesse público, exerce poderes de autoridade pública no cumprimento das diligências que realiza nos processos de execução, nas notificações, nas citações, nas apreensões, nas vendas e nas publicações no âmbito de processos judiciais, ou em atos de natureza similar que, ainda que não tenham natureza judicial, a estes podem ser equiparados ou ser dos mesmos instrutórios.”
Apesar de nomeado por uma das partes, o AE “não é mandatário desta nem a representa” (art. 162/3 do EOSAE). O seu exercício funcional exige uma estrita independência, devendo “agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos seus colegas, ao tribunal, a exequentes, a executados, aos seus mandatários ou a terceiros” (art. 119 do EOSAE).
Do seu estatuto decorre uma densa teia de deveres, salientando-se a obrigação de ter um comportamento “adequado à dignidade e à responsabilidade associadas às funções”, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consagrados no presente Estatuto e todos aqueles que as demais disposições legais e regulamentares, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe imponham (art. 121.º, n.º 1, EOSAE), bem como a obrigação de "atuar com zelo e diligência relativamente a todas as questões ou processos que lhes sejam confiados" (Artigo 121.º, n.º 3, EOSAE). O AE está ainda adstrito a “pugnar pela boa aplicação do direito, pela rápida administração da justiça” (art. 124/1 do EOSAE).
No que concerne à gestão patrimonial, constitui dever fundamental “[s]er rigoroso na gestão dos valores que lhe são confiados ou que administra no exercício das suas funções” (art. 124/2, d), do EOSAE), bem como “entregar prontamente as quantias (…) de que sejam detentores por causa da sua atuação como agentes de execução” (art. 168/1, c), do EOSAE). Para este efeito, o agente de execução deve ter, pelo menos, duas contas-cliente à sua ordem, uma com a menção da circunstância de se tratar de uma conta-cliente dos exequentes e a outra com a menção de se tratar de uma conta-cliente dos executados, nas quais deve depositar: (i) nas contas-clientes dos exequentes, todas as quantias destinadas a taxas de justiça, despesas e honorários; (ii) nas contas-clientes dos executados, todas as quantias recebidas e destinadas ao pagamento da quantia exequenda e aos demais encargos com o processo (arts. 122/1 e 171/1 e 2 do EOSAE e art. 3.º do Regulamento de Contabilidade e Conta-cliente de Agente de Execução n.º 52/2017, da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, publicado do DR, II Série, de 20.01). As quantias depositadas em tais contas não constituem património próprio do agente de execução, mas patrimónios autónomos (arts. 122/2 e 171/1 e 10 do EOSAE). Quando haja lugar à sua liquidação, o saldo credor que venha a ser apurado: (i) da conta-cliente dos executados, destina-se a ampliar a verba disponibilizada pelo fundo de garantia para pagamentos dos valores devidos pelo agente de execução; (ii) da conta-cliente dos exequentes, destina-se ao agente de execução ou aos seus herdeiros, após serem pagas as despesas de liquidação e as taxas e impostos devidos (art. 171/10 do EOSAE).
Estes deveres funcionais delimitam a matriz da responsabilidade civil do agente de execução. Como observa Maria Olinda Garcia (A responsabilidade do exequente e de outros intervenientes processuais – Breves considerações, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pp. 35-36), “o agente de execução, no cumprimento das múltiplas tarefas que a lei lhe determina, essencialmente na prática de atos de penhora, caso atue dolosa ou negligentemente, causando, consequentemente, danos (patrimoniais ou morais) ao executado, incorrerá também em responsabilidade civil, nos termos gerais, quando se encontrem preenchidos todos os requisitos do artigo 483.º do CC.” A ilicitude da sua atuação surge quando esta “extravase de tal propósito [a satisfação do interesse do credor], traduzindo-se na violação culposa de direitos do executado ou de normas que protejam interesses deste sujeito, na medida em que seja causadora de danos” (Maria Olinda Garcia, idem., p. 36). O que inclui não “agir contra o direito, não usar meios ou expedientes ilegais ou dilatórios” (art. 124/2, l), do EOSAE). Dizendo de outra forma, a responsabilidade civil do agente de execução exige o preenchimento dos pressupostos do art. 483 do Código Civil, devendo o AE, na ótica da distribuição de riscos, suscitar a questão da improcedência ou erro perante o juiz quando detetar vícios processuais graves (Catarina Monteiro Pires, “A responsabilidade do exequente na nova ação executiva: sentido, fundamento e limites”, Cadernos de Direito Privado, n.º 10, abr.-jun. 2005, p. 28) ou quando tenha fundadas dúvidas sobre os procedimentos a adotar, o que encontra arrimo no disposto no art. 723/1, d), do CPC.
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2).4.1. Precisando melhor o que escrevemos a propósito da responsabilidade civil do agente de execução, diremos que não existe consenso, ao nível da doutrina e da jurisprudência, quanto ao regime jurídico a observar – se o da responsabilidade civil pública, se o da responsabilidade civil privada.
Na doutrina, uma corrente sustenta que a responsabilidade civil do Agente de Execução deve ser enquadrada no regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas. Esta tese fundamenta-se, primacialmente, na natureza pública da função exercida pelo AE.
A título de exemplo, para Miguel Teixeira de Sousa (“Novas tendências de desjudicialização na ação executiva: o agente de execução como órgão da execução”, Cadernos de Direito Privado, Número Especial 1, pp. 7 e ss.), a análise da posição do AE como órgão de execução e o seu estatuto prevalece sobre a ligação contratual com o exequente. Daí resulta que “a responsabilidade que importa averiguar não é a responsabilidade do agente de execução designado pelo exequente, mas a responsabilidade do agente de execução enquanto titular de um dos órgãos da execução. Neste sentido, não há nenhum motivo para distinguir entre o exequente e outros interessados: o agente de execução responde perante todos eles como titular de um órgão de execução.” Nesta perspetiva, a responsabilidade do Agente de Execução só pode ser extracontratual, visto que “no desempenho da sua função para-jurisdicional exerce prerrogativas de poder público”, o que atrai a aplicação do regime da responsabilidade civil do Estado.
Em linha semelhante, José Lebre de Freitas (“A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Geslegal, pp. 34-35), qualificando o AE como “um misto de profissional liberal e de funcionário público, cujo estatuto de auxiliar da justiça implica a detenção de poderes de autoridade no processo executivo”, defende que a desjudicialização da ação executiva “não impede a responsabilidade do Estado pelos atos ilícitos que o agente de execução pratique no exercício da função, nos termos gerais da responsabilidade do Estado pelos atos dos seus funcionários e agentes, decorrente da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.”
Esta orientação é igualmente defendida por Rui Pinto (Manual da Execução e Despejo, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 134), que, ao afirmar que o AE “não está na causa como mandatário do exequente, ainda que sem representação, mas como auxiliar de justiça do Estado, escolhido pelo exequente” e que “não é a escolha de quem vai praticar o ato público que determina a natureza jurídica da relação com o agente desse ato”, admite a responsabilização do Estado pelas atuações dolosas ou negligentes do AE.
Por seu turno, Elizabeth Fernandez (Um Novo Código de Processo Civil? – Em busca das diferenças, Porto: Vida Económica, 2014, pp. 164-165) entende que o regime aplicável é o que vigora para a responsabilidade do Estado, ancorando a sua tese no n.º 5 do art. 1.º da Lei n.º 67/2007. Argumenta que, apesar de o AE ser uma entidade privada e profissional liberal, ao aceitar a função em determinado processo, exerce “uma função judicial administrativa não jurisdicional, contudo, de natureza inequivocamente pública.” Assim, conclui que “é inquestionável o caráter público e judicial das funções e das competências do agente de execução, pois o processo de execução constitui o instrumento que serve os interesses fundamentais do Estado de realização da justiça e da eficácia da ordem jurídica e de proteção dos direitos dos cidadãos, envolvendo uma clara dimensão coerciva que é monopólio do Estado e de poderes de autoridade que também constituem monopólio desse mesmo Estado e não podem ser delegados. Só o Estado ou alguém a quem este delegue o exercício destes poderes pode exercê-los, pelo que, independentemente do seu estatuto pessoal, o agente de execução exerce funções e poderes dos tribunais, o que significa que participa do exercício da função judicial própria dos tribunais e, por isso, do Estado.”
Para José Alves de Brito (“Inovações introduzidas ao estatuto do agente de execução pelo DL n.º 226/2008, de 20.11 (simplificação da ação executiva)”, Scientia Iuridica, ano 58, n.º 317 (janeiro-março 2009), pp. 159-177), o AE exerce “verdadeiros poderes de autoridade”, o que afasta a perspetiva meramente contratual e impõe um estatuto de impedimentos e suspeições “longe da perspetiva contratual.” Este entendimento sustenta-se em aspetos como a constituição da CPEE, o regime disciplinar e a faculdade de requerer auxílio policial, levando o Autor a concluir ser possível “aventar a hipótese de um novo auxiliar da justiça.” A consequência direta deste enquadramento é, na ótica do autor, “a responsabilização do agente de execução pode constituir o Estado numa obrigação de indemnizar –  cf. art. 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12.”
Ricardo Pedro (Responsabilidade Civil do Estado pelo Mau Funcionamento da Administração da Justiça: Fundamento, Conceito e Âmbito, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 43-45, 161-162 e 245-246) sustenta que o art. 22 da Constituição estabelece um critério orgânico-funcional, o qual apenas confere cobertura aos atos ou omissões dos “servidores públicos.” Por essa razão, a atuação de entidades privadas, por não se qualificarem como “titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado”, é insuscetível de convocar a responsabilidade direta da Administração, devendo estes privados assumir o “risco” inerente e “isentando o Estado de qualquer dever de indemnizar.” O autor defende, porém, que o dever de garantir a reparação dos danos prevista no art. 22 da Constituição, decorrente da natureza estatal da função de administração da justiça, impõe que o Estado assegure esse ressarcimento. A solução proposta é, por conseguinte, a de uma responsabilidade civil do Estado em segunda linha (subsidiária) – ou seja, vale um regime de responsabilidade civil direta do agente de execução, com o devido acionamento do contrato de seguro e, apenas em caso de inexistência de património suficiente, deve ser o Estado responsável subsidiariamente, ficando com o devido direito de regresso sobre o agente de execução (Ricardo Pedro, ob. cit. p. 582).
Esta posição reflete a necessidade de um regime que coadune o caráter público da atuação do agente de execução com o caráter privado da sua organização e da sua designação. Com efeito, o AE é detentor de uma parcela de autoridade pública e atua fazendo as vezes da secretaria judicial, sendo inquestionável a sua participação na administração da justiça. Conclui-se, assim, pela responsabilidade civil subsidiária do Estado pela atuação funcional danosa do agente de execução.
Para Pedro Edgar Mineiro (A Responsabilidade Civil pelo Exercício da função de Agente de Execução, Coimbra: Almedina, 2017, pp. 101-112), o Agente de Execução, embora seja um particular, participa diretamente no exercício de funções públicas, judiciais, de caráter não jurisdicional, e está investido de prerrogativas de poder público, o que o constitui como um particular participante direto no exercício de funções públicas de administração da justiça. O autor considera que a ênfase na sua natureza de profissional liberal é excessiva, pois que se corre o risco de obscurecer ou tornar menos óbvio o caráter público das funções e das competências do agente de execução e conclui que o AE exerce uma atividade pública, estando investido de poderes públicos de autoridade, tendentes à produção unilateral de efeitos prático-jurídicos imediatos na esfera jurídica de outrem. A sua atuação tem como fio condutor “a prossecução do fim da execução, no respeito do bloco da legalidade aplicável, incluindo os direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos de todos aqueles com quem o agente de execução se depara no exercício da sua atividade.” Nessa medida, cabe “também ao agente de execução acautelar a posição jurídica do executado, de outros sujeitos e intervenientes processuais e de terceiros, potencialmente afetados pela sua atuação, ainda que tal conduza a uma restrição ou limitação dos direitos e interesses do exequente.” O caráter público da função exercida, superando a dimensão da organização privada, torna legítimo o enquadramento da responsabilidade do AE no regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, solução que encontra arrimo no art. 1.º/5 da Lei n.º 67/2007, de 31.12, que estabelece que as disposições do diploma em que se insere são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público.
Em sentido divergente das teses que postulam a aplicação do regime da responsabilidade pública aos danos decorrentes da atividade funcional do Agente de Execução (AE), uma linha doutrinária sustenta a sujeição deste profissional ao regime geral da responsabilidade civil.
É o caso de Virgínio Ribeiro (“A responsabilidade civil do agente de execução”, AAVV, Responsabilidade Civil Profissional, Lisboa: CEJ, 2017, pp. 237-268), para quem a previsão estatutária de que o AE não é mandatário nem representante da parte (art. 163/3 do EOSAE) apenas tem como consequência imediata o afastamento do regime de solidariedade previsto no art. 500 do Código Civil. O Autor afasta a responsabilidade do Estado, argumentando que a atividade do AE não tem previsão no Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, regulado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12 e, por consequência, o Estado não deverá ser responsabilizado pelos danos causados pelos [agentes de execução] no exercício da respetiva profissão, ainda que esta tenha natureza pública. Esta exclusão fundamenta-se essencialmente em que: o AE, embora integrado na Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), atua a título individual, representando-se a si próprio enquanto profissional liberal; não é funcionário do Estado, não recebe ordens, instruções nem remuneração da entidade pública, nem pratica atos de natureza jurisdicional ou administrativa; a transferência da atividade para o setor privado visou precisamente a libertação do Estado dos custos a ela associados, cabendo os benefícios (honorários) apenas ao AE.
Na mesma orientação, Manuel Tomé Soares Gomes (“Balanço da Reforma da ação executiva: benefícios e desvantagens da alteração do paradigma da ação executiva” Sub Judice, ano 29, out. – dez., pp 27-32), assinalando a deficiente definição dos termos da responsabilidade civil, mormente do Estado, conclui pela necessidade de recorrer aos meios de tutela comuns devido à natureza do AE como profissional liberal independente e à ausência de disposição legal específica, acentuando a importância do seguro obrigatório de responsabilidade civil. Também Maria Olinda Garcia (A Responsabilidade Civil do Exequente cit., pp. 36-38) sustenta que a atuação dolosa ou negligente do AE o fará incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais, quando se encontrem preenchidos os requisitos do art. 483 do Código Civil.
***
2).4.2. Na jurisprudência, a questão foi tratada em TCAS 26.11.2015 (12257/15), Paulo Pereira Gouveia, a propósito da competência material do tribunal, num caso de falta de restituição ao executado de valores provenientes da penhora de vencimento uma vez julgada procedente a oposição à execução. Reconheceu-se que a competência para julgar ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil do agente de execução está atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, para o que se considerou, essencialmente, que a atividade legalmente cometida ao AE enquadra-se, materialmente, na função administrativa do Estado, sendo regida pelo Direito Administrativo e não pelo Direito Privado. O Agente de Execução atua como um oficial público, investido de amplos poderes de autoridade e confiança pública, e não em representação das partes. A sua função primordial é a defesa do interesse público na realização da justiça, concretizada no cabal cumprimento das decisões judiciais e na correta citação. O modo de designação do AE é secundário, dado que o seu estatuto o desvincula da representação das partes, confirmando o seu papel na prossecução do interesse público. O grau de autonomia funcional perante o juiz é, igualmente, menos relevante do que a materialidade da sua atuação, que é essencialmente análoga às funções que competiam a outros oficiais públicos com poderes de autoridade antes das reformas processuais de 2004. No que respeita aos honorários, estes constituem uma mera forma de financiamento ou consignação pelo Estado para custear esta atividade administrativa judiciária, não interferindo com a sua natureza pública. Da mesma forma, as regras de substituição e destituição decorrem da organização que o Estado impôs a esta atividade de interesse público, através do mecanismo da devolução de poderes à Administração Pública autónoma. A obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil não descaracteriza a natureza administrativa da função, mas serve um propósito distinto. Enquanto os advogados (profissão liberal sem poderes de autoridade) se limitam a uma atividade privada, o AE exerce amplos poderes de autoridade antes reservados a juízes e oficiais de justiça. O seguro funciona, neste contexto, como uma garantia de ressarcimento aos lesados, assegurando, simultaneamente, o direito de regresso do Estado. Por fim, o recrutamento, inspeção e ação disciplinar exercidos pelas ordens profissionais não significam a exclusão da Administração, visto que estas integram a Administração autónoma do Estado e prosseguem interesses públicos, conforme previsto na Constituição (arts. 165/1, s), e 267/1 e 4).
Os Tribunais da jurisdição comum têm, porém, entendido de forma diversa, dando especial ênfase à autonomia do agente de execução relativamente ao Estado.
Assim, em STJ 6.07.2011 (85/08.1ITLSB.L1.S1), Fonseca Ramos, sustentou-se a sujeição do AE ao regime geral da responsabilidade civil extracontratual de direito privado com base, grosso modo, nos seguintes argumentos: o AE é um profissional liberal, com formação própria e sujeito a um estatuto deontológico e disciplinar específico, sendo supervisionado e respondendo perante a Ordem (anteriormente Câmara dos Solicitadores), e não perante o juiz; a classe profissional foi instituída para operar fora das secretarias judiciais, com um grau de autonomia similar ao das profissões liberais, cabendo-lhe suportar os custos e arrecadar os correspondentes benefícios; o AE promove e executa diligências em nome próprio, sem subordinação ao Tribunal, e sem que o juiz detenha o poder soberano de orientação ex ante; o AE não atua como mandatário das partes, sendo a sua designação um ato que incumbe ao exequente ou à secretaria, sem intervenção decisiva do juiz do processo; o AE, na sua qualidade de pessoa singular e profissional liberal, não se enquadra de forma inequívoca no âmbito subjetivo da Lei n.º 67/2007, a qual abrange primariamente pessoas coletivas públicas e de direito privado que exerçam poderes de autoridade, bem como os seus agentes ou auxiliares.
Esta linha de argumentação foi desenvolvida em STJ 11.04.2015 (5548/09.9TVLSNB.L1.SA), António Abrantes Geraldes, que, destacando a natureza predominantemente privatística e liberal da atividade do agente de execução, mesmo em contexto de cooperação com a Administração da Justiça cível, chamou a atenção para o grau de autonomia do AE que as sucessivas reformas legislativas foram aumentando, designadamente através da tipificação das intervenções judiciais em substituição de um poder geral de controlo, da transferência integral do poder de destituição do juiz para o órgão disciplinar de natureza corporativa (CPEE), da atribuição ao exequente do poder de  livre substituição do agente, o que reforça o caráter privatístico do seu estatuto. Acrescentou-se que o legislador não manifestou qualquer intenção de equiparar os agentes de execução aos agentes administrativos, o que seria necessário para a sua subordinação ao regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e à competência dos tribunais administrativos, e que a prevalência da vertente liberal é manifesta em aspetos como o modo de recrutamento, a forma de designação, o grau de autonomia em relação ao juiz e a dependência em relação ao exequente, a faculdade de delegar a execução de atos, o regime de honorários indexado aos resultados e a atribuição da função inspetiva e disciplinar a órgãos autónomos. A submissão ao regime de responsabilidade dos servidores do Estado exigiria um grau de interferência externa e controlo elevado, descaracterizando o perfil estatutário pretendido. Em grande parte das diligências (penhora, venda, pagamentos, etc.), os agentes agem com autonomia quase total fora dos limites da secretaria judicial. Não faria sentido aplicar-lhes o regime específico do Estado, que assume a responsabilidade em determinadas circunstâncias, apesar do seu grau de autonomia e ausência de um controlo externo e efetivo por entidades públicas. A opção pela desjudicialização não implica automaticamente a responsabilidade do Estado, a menos que o legislador o estabeleça inequivocamente.
Esta tem sido a orientação seguida em arestos ulteriores, de que citamos, a título de exemplo, STJ 18.02.2021 (35/19.0T8ODM-A.E1.S1), Manuel Capelo, RE 6.04.2017 (69/15.3T8ALR-A.E1), Isabel Peixoto Imaginário, RL 16.11.2017 (12597/15.6T8LSB.L1-6), Cristina Neves, RP 11.05.2020 (1421/12.1T2AVR.P1), António Mendes Coelho, e RL 24.11.2022 (3002/19.0T8CSC.L1-2), Carlos Castelo Branco, sendo, também, a por nós perfilhada.
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2).5. Prosseguindo, vejamos então se é possível afirmar o preenchimento dos pressupostos da obrigação de indemnizar com base no instituto comum da responsabilidade civil extracontratual ou se, como sustenta a Recorrente, a sua conduta não pode ser considerada ilícita nem a causa do dano sofrido pelo Recorrido.
A este propósito, diz o art. 483/1 do Código Civil que “[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” O n.º 2 acrescenta que “[s]ó existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”
Deste modo, na base da responsabilidade por factos ilícitos está necessariamente uma conduta da pessoa sobre quem vai recair a obrigação de indemnizar – um facto voluntário –, o que significa que só quanto a factos controláveis pela vontade humana têm cabimento os requisitos da ilicitude e da culpa.
Tal facto, que pode consistir numa ação ou, em certos casos, numa omissão (art. 486 do Código Civil), não carece, pois, de ser intencional, assim como se não mostra necessário que o agente possua capacidade de exercício de direitos e admite-se até a responsabilização de pessoas sem capacidade natural de entendimento ou de vontade (arts. 488 e 489).
Mas nem sempre o facto voluntário obriga à reparação dos interesses alheios que lesa; é necessário também que se trate de um facto ilícito ou contrário ao direito.
A ilicitude pode, tal como resulta do preceito legal citado, revestir duas formas: (i)) a violação de um direito de outrem; e (ii)) a violação de um preceito da lei tendente à proteção de interesses alheios.
Naquela primeira forma incluem-se, especialmente, as ofensas de direitos absolutos, de que constituem exemplo os direitos reais (arts. 1251 e ss.) e os direitos de personalidade (arts. 70 e ss.).
Na segunda forma de ilicitude, trata-se da infração das leis que, embora protejam interesses particulares, não conferem aos respetivos titulares um direito subjetivo a essa tutela, bem como das leis que, tendo também ou até principalmente em vista a proteção de interesses coletivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes (de indivíduos ou de classes ou grupos de pessoas) (Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Coimbra: Almedina, 1989, pp. 237 e ss.). A previsão da lei abrange ainda a violação das normas que visam prevenir, não a produção do dano em concreto, mas o simples perigo de dano, em abstrato (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 1996, p. 555). A infração de uma destas normas só constituíra um facto ilícito quando o dano dela decorrente ocorra no círculo de interesses privados que por ela são tutelados.
Em síntese, esta categoria de ilicitude exige três pressupostos: (i)) a não adoção de um comportamento, definido em termos precisos pela norma; (ii)) que o fim dessa imposição seja dirigido à tutela de interesses particulares; e (iii)) a verificação de um dano no âmbito do círculo de interesses tutelados por esta via.
Ressalvados os casos excecionais de responsabilidade objetiva, pressupõe-se ainda a culpa do agente, o que significa que só haverá lugar à obrigação de indemnizar quando, em face das circunstâncias do caso, se conclua que o agente podia e devia ter agido de outro modo. A culpa implica, pois, uma ideia de censura ou reprovação da conduta do agente.
O problema não se reduz, obviamente, à imputabilidade do lesante; há que averiguar se a conduta deste é reprovável e em que medida.
São duas as modalidades da culpa: (i)) o dolo, em que o agente representa o resultado danoso, praticando o ato com a intenção de produzi-lo, ou apenas aceitando reflexamente esse efeito ou ainda correndo o risco de ele se produzir; e (ii)) a negligência ou mera culpa, em que o resultado danoso se deve à falta cuidado.
“A culpa, diz o art. 487/2, é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.
Constituindo a culpa do agente elemento essencial da obrigação de reparar o dano, aquele que exige a indemnização tem o ónus de alegar e provar que existem os pressupostos dela, salvo existindo presunção legal de culpa (art. 487/1).
Isto significa que ao autor cabe provar que o réu praticou o facto do qual faz derivar a responsabilidade e, como a ilicitude depende da culpa do agente, terá também de provar que este procedeu com culpa.
Embora caiba ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo nos casos em que é consagrada uma presunção legal de culpa, a regra do n.º 1 do art. 487 do Código Civil deve ser entendida cum grano salis, sob pena de se lançar sobre o lesado um ónus de prova excessivamente gravoso ou até incomportável. Para que tal não aconteça tem-se defendido que, nas ações de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, a posição daquele será frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples). A este propósito, escreve Vaz Serra (BMJ 68, p. 87), baseando-se na doutrina alemã de Enneccerus-Lehman, que “a jurisprudência tem facilitado a prova da culpa: basta, para provar a culpa, que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem muito verosímil a culpa. Mas o autor do prejuízo pode afastar esta chamada prova prima facie, demonstrando, por seu lado, outros factos que tornem verosímil ter-se produzido o dano sem culpa sua. Com isto, destrói a aparência a ele contrária e força o prejudicado a demonstrar completamente a culpa, já que ao admitir-se a prova prima facie, só se dá uma facilidade para a produção de prova e não uma total inversão do encargo da prova.
Temos assim que existem dois tipos de prova: a suficiente, que forma a plena convicção do juiz devido ao alto grau de probabilidade do facto objeto da prova, e a prova de primeira aparência ou prima facie, que não produz a plena convicção do juiz, mas em que o menor grau de probabilidade do facto ainda é bastante para obrigar o adversário a contraprova. Ou seja, as presunções simples, também chamadas judiciais ou de experiência, ao contrário das legais, isto é, das estabelecidas na lei, assentam no simples raciocínio de quem julga, inspiram-se nas máximas de experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, pelo que a sua força persuasiva pode, por isso mesmo, ser afastada por simples contraprova. Quer dizer, se a prova prima facie ou por presunção judicial, produzida pelo lesado, apontar, nos termos que temos vindo a referir, no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contraprova, ou seja, fazer prova que invalide aquela, que a neutralize, criando no espírito do juiz um estado de dúvida ou de incerteza (convicção negativa), sem que, no entanto, careça de persuadir o juiz de que o facto em causa não é verdadeiro (convicção positiva). Daí que Michele Taruffo (La Prueba de los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, p. 515) afirme que “não se está no âmbito da prova (nem sequer no de uma prova inferior ou débil) mas no da mera alegação de um facto que resulta qualificável como correspondendo à normalidade ou à tipicidade do esquema recorrente no id quod plerumque accidit relativo a esse sector da experiência.”
Finalmente, mesmo demonstrando-se a existência de um facto ilícito e culposo, pode não surgir a obrigação de indemnizar; para que esta surja é essencial que, como consequência direta e necessária daquele facto, ocorra um dano (art. 563).
Tradicionalmente, tem sido entendido que o art. 563 consagra a variante negativa da causalidade adequada como se infere da própria formulação literal da norma (“danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”). Na variante positiva, o facto é causa adequada do dano quando é previsível – de acordo com as circunstâncias concretas em que o agente atua e de si conhecidas – e quando, pela experiência comum, ao facto se siga a produção daquele dano. Exige-se, portanto, aqui, a previsibilidade do agente quer quanto à ocorrência do facto quer quanto à produção do efeito danoso. Inversamente, na variante negativa, a previsibilidade do agente contenta-se com o facto prescindindo dos efeitos danosos. Nesta, muito próxima da teoria da equivalência das condições, o facto é causa adequada quando é uma das condições sem a qual o dano não teria ocorrido. Só se exclui, nesta variante, o nexo causal quando a condição é de todo indiferente à ocorrência do efeito de acordo com o conhecimento que a experiência comum nos fornece. Isto significa que a variante negativa é muito mais abrangente que a positiva. Daí que a seja preferida na esfera da teoria indemnizatória civil ao passo que a variante positiva (que pressupõe eticidade maior na previsibilidade dos efeitos danosos) é utilizada no âmbito do direito criminal.
Mais recentemente, por influência alemã, nomeadamente a propósito do debate sobre a relevância do âmbito de proteção da norma para a imputação, tem vindo a ser defendido que a causalidade adequada não esgota o problema da imputação, devendo ser complementada por este critério normativo, de forma a garantir que a finalidade da regra de conduta violada corresponde à prevenção do dano ocorrido. Neste enquadramento, Mafalda Miranda Barbosa (Responsabilidade Civil Extracontratual. Novas Perspetivas em Matéria de Nexo de Causalidade, Cascais: Princípia, 2014, pp. 34 e ss.) defende a transição de um critério meramente factual (como a simples conditio sine qua non) para um critério marcadamente normativo e de imputação jurídica. Assim, em linha com a doutrina alemã, defende a cisão do nexo causal em dois níveis distintos: a causalidade fundamentadora da responsabilidade (Haftungsbegründende Kausalität), que corresponde ao nexo entre o comportamento (o facto ilícito) e a lesão (a violação do bem jurídico); e a causalidade preenchedora ou extensão da responsabilidade (Haftungsausfüllende Kausalität), que corresponde ao nexo entre a lesão (o dano inicial) e as suas consequências ulteriores (a extensão do dano).
Ao nível da causalidade fundamentadora, propõe que se substitua o tradicional nexo de causalidade pelo nexo de imputação. A questão fundamental não é saber se o facto causou o dano, mas sim se o dano deve ser imputado à esfera de responsabilidade do agente. Neste sentido, escreve (ob. cit. pp. 42-43) que “[p]odemos, portanto, concluir que a pessoa, ao agir, porque é livre, assume uma rol responsability, tendo de, no encontro com o seu semelhante, cumprir uma série de deveres de cuidado. Duas hipóteses são, então, em teoria, viáveis: ou a pessoa atua investida num especial papel/função, ou se integra numa comunidade de perigo concretamente definida e, neste caso, a esfera de risco apta a alicerçar o juízo imputacional fica a priori desenhada; ou a esfera de risco/responsabilidade que abraça não é suficientemente definida para garantir o acerto daquele juízo. Exige-se, por isso, que haja um aumento do risco, que pode ser comprovado, exatamente, pela preterição daqueles deveres de cuidado. Estes cumprem uma dupla função. Por um lado, permitem desvelar a culpa (devendo, para tanto, haver previsibilidade da lesão e exigibilidade do comportamento contrário tendo como referente o homem médio); por outro lado, alicerçam o juízo imputacional, ao definirem um círculo de responsabilidade a partir do qual se tem de determinar, posteriormente, se o dano pertence ou não ao seu núcleo.” E acrescenta (ob. cit., pp. 62-64): “Para que haja imputação objetiva, tem de verificar-se a assunção de uma esfera de risco, donde a primeira tarefa do julgador será a de procurar o gérmen da sua emergência. Rememorando os fundamentos da responsabilidade civil e chamando à colação o conceito de liberdade positiva (…), bem como o de ação juridicamente relevante (…), compreendemos facilmente (…) que, ao agir, qualquer sujeito mobiliza uma esfera de responsabilidade, uma vez que esta mais não é do que o correlato axiologicamente natural de uma liberdade que se torna atuante. Violados que sejam determinados deveres de conduta para com o outro – o que viabiliza, em simultâneo, o proferimento de um juízo de censura em que se vem a traduzir a culpa –, a pessoa atualiza aquela responsabilidade, passando a encabeçar um sucedâneo da role responsability, uma outra esfera de responsabilidade em que a primeira se transforma. Ora, enquanto não se cristaliza, esta responsabilidade firmada a jusante deve ser entendida como uma esfera de risco. No fundo, o agente chama a si o risco de suportar todas as consequências da lesão ou lesões que se venham a verificar.”
Assim, este juízo de imputação é feito através da edificação e confronto de esferas de risco. O dano será imputado ao agente se e na medida em que seja a concretização de um risco ilícito que o agente criou ou aumentou e se encontre dentro do âmbito de proteção da norma ou do dever de cuidado que foi violado, aplicando a lógica da imputação objetiva. A responsabilidade é estabelecida não porque o facto foi uma condição do dano, mas porque o dano representa o perigo típico que a conduta ilícita visava evitar.
O conceito de causalidade adequada (ou seja, o juízo de probabilidade segundo a experiência comum) mantém-se relevante, mas é relegado a um papel de critério de limitação do nexo de causalidade preenchedora. Dito de outra forma, neste segundo momento, a teoria da causalidade adequada serve para delimitar quais das consequências subsequentes da lesão inicial (por exemplo, a lesão corporal) devem ser juridicamente imputadas ao agente, excluindo as que são demasiado anormais, remotas ou que resultam de uma intervenção de terceiros ou da vítima que consuma o risco. Aplicando este ensinamentos, STJ 30.09.2014 (368/04.0TCSNT.L1.S1), Maria Clara Sottomayor, e STJ 27.04.2023 (19096/19.5T8LSB.L1.S1), João Cura Mariano. Nesta Relação, o recente RG 25.09.2025 (529/22.0T8BGC,G1), elisabete Coelho de Moura Alves.
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2).6. No caso vertente, não são suscitadas quaisquer dúvidas quanto à existência de um ato voluntário da Recorrente – a entrega à segunda Ré de parte do produto da venda executiva que era pertença do Recorrido, feita com base num erro por si cometido na nota discriminativa e quando ainda estava em curso o prazo de reclamação para o juiz – e de um dano produzido na esfera jurídica do Recorrido – a perda daquela quantia.
Ao escrevermos isto, damos como adquirido o que a propósito do destino do remanescente do produto da venda executiva foi entendido, por decisão transitada em julgado – o despacho de 13 de janeiro de 2022, na sede própria – os autos de execução.
As dúvidas colocadas pela Recorrente situam-se ao nível da ilicitude e do nexo de causalidade.
Na sentença recorrida, o Tribunal de 1.ª instância entendeu, a um tempo, que a Recorrente, no exercício da sua função de AE, ao praticar o referido ato – a entrega à segunda Ré do montante que pertencia ao Recorrido–, violou, por um lado, o direito de propriedade do Recorrido e, por outro, os deveres a que estava vinculada de ser rigorosa na gestão dos valores que lhe foram confiados de praticar diligentemente os atos processuais, deveres esses que foram retirados do disposto, respetivamente, na alínea d) do n.º 2 do art. 124 e na alínea a) do n.º do art. 168, ambos do EOSAE.
A Recorrente contrapõe que não violou o direito de propriedade do Recorrido, uma vez que tal direito “não era [por si] conhecido” (conclusão 11), pelo que, sabendo apenas que havia dois herdeiros e ignorando os respetivos quinhões, “aplicou a regra da divisão em partes iguais” (conclusão 12) e não violou “qualquer norma de proteção, pois não existe dispositivo legal que imponha ao AE a realização de pagamentos após o decurso do prazo para a reclamação da nota discriminativa” (conclusão 10).
Não há muito a dizer sobre isto, tão evidente é a fragilidade da argumentação da Recorrente.
Como é sabido, a fase de liquidação e pagamentos marca a passagem da ação executiva da apreensão e venda dos bens do executado para a satisfação efetiva dos credores e a subsequente extinção do processo, conforme decorre do 849/1, b), do CPC.
A gestão desta fase cabe ao AE, que atua, nos termos sobreditos, como um delegado da função jurisdicional na distribuição do quantum obtido. A sua conduta é pautada por estritos deveres de rigor, diligência e transparência, conforme bem salienta a sentença recorrida que se destinam não apenas a tutelar a integridade do processo, mas também algo de que esta é instrumental: os direitos subjetivos de natureza patrimonial das partes. Daí que as normas, supra referidas, que consagram tais deveres não possam deixar de ser consideradas, para efeitos da previsão do n.º 1 do art. 483 do Código Civil, como normas destinadas à proteção de interesses alheios.
O instrumento fulcral desta fase é a nota discriminativa e justificativa de custas e contas. Longe de ser um mero mapa contabilístico, constitui a peça processual que formaliza a liquidação da dívida e a distribuição do produto da execução.
Com efeito, a nota materializa a ordem de pagamento, determina o destino das verbas, aplicando a hierarquia de créditos prevista na lei (privilégios creditórios e garantias reais), após a satisfação dos encargos e custas processuais. Ademais, corporiza a transparência da gestão, ao detalhar as receitas e as despesas, liquidando as custas de parte e as custas de execução, nos termos do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
A sua correta elaboração é, portanto, um imperativo de justiça processual, pois dela depende a correta satisfação do exequente e, de forma crucial, a proteção do património e dos direitos do executado.
Para esse efeito, após a venda dos bens penhorados, o AE deve proceder à liquidação e aos pagamentos segundo a ordem legal. O remanescente, se o houver – e houve no caso de que nos ocupamos –, substitui, por sub-rogação real, os bens penhorados, ingressando, assim, no património do executado.
Essa nota é necessariamente notificada às partes (exequente, credores reclamantes e executado) que contra ela podem reagir através de reclamação para o juiz, a apresentar no prazo de dez dias, o que encontra fundamento legal na alínea c) do n.º 1 do art. 723 do CPC.
Apesar de não estar expressamente previsto que a apresentação de reclamação suspende os efeitos da nota, cremos que se chega a essa solução a partir da própria teleologia da norma que, como não podia deixar de ser, sob pena de infração ao princípio da tutela jurisdicional efetiva (art. 20/1 da Constituição), consagra implicitamente a provisoriedade da nota. Dito de outra forma, a nota é um ato do AE, mas só se torna definitiva após o decurso do prazo de reclamação, quando não haja oposição, ou, havendo-a, após a decisão judicial que a homologue ou reformule. A sua execução (o pagamento) antes desse momento é prematura. O direito de reclamação seria ineficaz se o AE pudesse pagar as quantias objeto de litígio antes de o juiz se pronunciar. A suspensão é, por isso, a consequência jurídica necessária para garantir que a decisão judicial, caso favorável ao executado, possa ter um efeito prático, impedindo a consumação do prejuízo.
Perante isto, não podemos deixar de concluir que a violação deste dever estatutário de diligência, que exige a espera pela definitividade da nota, constituiu um ato ilícito, por ação prematura, suscetível de configurar a responsabilidade civil da Recorrente, tal como foi considerado pelo Tribunal de 1.ª instância. E constitui, ainda, uma violação do direito de propriedade do Recorrido sobre a parte do remanescente do produto da venda que foi indevidamente entregue à segunda Ré.
Note-se ainda que afirmação da Recorrente no sentido de que desconhecia o direito do Recorrido, a relevar já não em sede de ilicitude, mas de culpa, é absolutamente carecida de sentido. É que, por um lado, resulta evidente, perante os factos provados dos pontos 8, 10, 12, 14 e 15, que a Recorrente tinha conhecimento de que a fração autónoma penhorada e objeto da venda executiva era um bem integrado no património do casal que fora constituído pelo Recorrido e pela DD, dissolvido por morte desta, pelo que a segunda Ré não tinha qualquer direito a metade dele – rectius, a metade do remanescente do produto da sua venda em execução. Quando muito poderia discutir-se se o Recorrido tinha direito a metade, por ser o cônjuge meeiro sobrevivo, acrescido de ¼, enquanto herdeiro, ou se, de modo diverso, o direito de propriedade sobre a fração e o direito ao remanescente sub-rogado no seu lugar integravam o património comum do casal[1] e o património hereditário[2], ainda não partilhados, questão que, todavia, ficou exaurida com o despacho do juiz da execução que deferiu a reclamação apresentada pelo Recorrido, reconhecendo-lhe a titularidade daquele direito. Ainda que, por mera hipótese, fosse de admitir que a Recorrente desconhecia (sem culpa) o direito do Recorrido, sempre seria caso para contrapor que uma atuação minimamente diligente lhe teria permitido evitar o erro cometido na elaboração da nota discriminativa. Bastaria, para tal, que tivesse recorrido ao mecanismo de auxílio previsto na alínea d) do n.º 1 do art. 723 do CPC. No limite, teria evitado o pagamento indevido se tivesse observado o cuidado de aguardar pelo decurso da reclamação contra a nota discriminativa.
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2).7. Vejamos agora a questão do nexo de causalidade que, tal como foi entendido pelo Tribunal de 1.ª instância, se afigura de verificação evidente.
A este propósito, a Recorrente sustenta, nas conclusões 17 a 19, que a causa do dano sofrido pelo Recorrido não foi a sua conduta ilícita e culposa, mas um facto ulterior da segunda Ré: a apropriação da quantia que lhe foi indevidamente entregue. Acrescenta que o Recorrido também contribuiu para o (agravamento do) dano quando rejeitou a oferta de restituição em prestações que lhe foi feita pela segunda Ré.
Salvo o devido respeito, há, no primeiro argumento, uma clara inversão da ordem dos fatores: a perda da quantia que pertencia ao Recorrido consumou-se quando a Recorrente a entregou à segunda Ré (e não ao Recorrido). A apropriação subsequente será, quando muito, uma concausa (sucessiva) do dano.
Sobre o segundo argumento já nos pronunciamos aquando da resposta à primeira questão, pelo que para lá remetemos brevitatis causa.
Retomando o que escrevemos a propósito da questão da causalidade, diremos que a Recorrente violou deveres funcionais de diligência, rigor e gestão patrimonial, ao elaborar uma nota discriminativa incorreta, desconsiderando a dupla qualidade do Recorrido (meeiro e herdeiro) e ao entregar o remanescente do produto da venda a uma das partes  quando ainda não estava esgotado o prazo para a reclamação.
O dever de rigor e de aguardar que a nota se torne definitiva tem como objetivo primário prevenir o risco de distribuição indevida dos valores depositados à ordem do AE e a consequente perda patrimonial para o credor real. A perda da quantia de € 16 132,80, entregue indevidamente à segunda Ré, configura, precisamente, a materialização do risco específico que as normas violadas procuram evitar: a indevida despatrimonialização do ativo depositado. O facto de a segunda Ré não ter cumprido a ordem judicial de restituição é uma consequência direta e previsível da falha inicial da AE, que colocou o dinheiro fora do controlo do processo e o disponibilizou a uma parte que, como se provou, não tinha qualquer título que lhe conferisse o direito a recebê-lo e a integrá-lo no seu património.
É, portanto, inequívoco que se verifica o nexo de imputação: a conduta da Recorrente criou o risco e o dano sofrido pelo Recorrido constitui a concretização desse mesmo risco.
A conduta da segunda Ré – a apropriação e a recusa de restituição – não é um evento que rompa o nexo de imputação, mas sim uma concausa subsequente. Com efeito, a decisão da Recorrente (AE) de efetuar o pagamento antes do decurso do prazo de reclamação implicou a assunção do risco de que o pagamento viesse a ser considerado indevido e de que o recetor se furtasse à sua restituição. A não devolução pela segunda Ré não é uma circunstância extraordinária ou imprevisível, mas sim uma evolução normal e esperada na cadeia de eventos quando se liberta dinheiro indevidamente a um particular. O dano (a perda dos € 16 132,80) consumou-se no momento em que a Recorrente o entregou à segunda Ré, porque a partir desse momento a AE perdeu o controlo sobre o valor, e o Recorrido perdeu a garantia processual (lato sensu) que lhe era dada pelo facto de o dinheiro estar depositado à ordem de um órgão processual.
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2).8. E chegamos à questão da concorrência de um facto culposo do Recorrido para a produção do dano.
De acordo com a tese da Recorrente, assente num raciocínio verdadeiramente tautológico, esse facto consistiu, num primeiro momento, na não celebração da escritura de habilitação de herdeiros e, depois, na recusa da oferta de restituição da quantia em prestações que lhe foi dirigida pela segunda Ré (conclusões 20 a 25).
Diz o n.º 1 do art. 570 do Código Civil que “[q]uando o comportamento culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento do dano, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”
Este preceito consagra a ideia de que a responsabilidade pela reparação não deve recair integralmente sobre o autor do facto ilícito se o próprio lesado, por conduta própria e culposa, contribuiu causalmente para o resultado lesivo. Nessa medida, confere ao julgador um amplo poder discricionário, pautado por um juízo de equidade, para modular o quantum indemnizatório, o que pode conduzir a três consequências distintas: à concessão total da indemnização, se a culpa do lesado for insignificante ou a culpa do lesante for manifestamente mais grave e determinante; à redução da indemnização, na proporção da contribuição causal e da gravidade da culpa do lesado; à exclusão da indemnização, se a culpa do lesado for de tal modo preponderante que se tornou a causa exclusiva do dano, ou se a sua gravidade for extrema.
Estamos, portanto, perante uma norma de justiça comutativa que impede o enriquecimento injustificado do lesado e impõe a cada parte a responsabilidade pela sua esfera de atuação. A culpa do lesado atua como um corretivo ao princípio da integral reparação, exigindo do lesado não apenas o dever de não prejudicar terceiros, mas também um dever de autotutela e de minimização do próprio dano.
O fator primordial de aferição é o binómio entre a gravidade das culpas de ambas as partes e a causalidade das consequências geradas por cada uma delas, podendo estar em causa duas realidades diferentes: uma, em que o facto do lesante e o facto do lesado concorrem para a produção dos danos, falando-se a esse respeito de concorrência de causas, e outra, em que se verifica concorrência do facto do lesado apenas para o agravamento dos danos, verificando-se uma causalidade sucessiva. Dito de outra forma, a regra aplica-se quer às situações em que o lesado, por ação ou omissão negligente, contribuiu diretamente para a produção, como àqueles em que levou ao agravamento do dano. É o que sucede, por exemplo, se o transportado tiver omitido a colocação do cinto de segurança, sofrendo lesões que o uso deste mecanismo de segurança teria prevenido, ou se, após a prestação negligente de um cuidado de saúde, o doente recusar o tratamento subsequente, agravando assim a lesão inicial. É também o que sucede quando o facto lesivo consiste num ato jurídico relativamente ao qual o lesado tem ao seu dispor meios processuais de reação, situação exemplificativamente prevista, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado, na norma paralela do art. 4.º da já citada Lei n.º 67/2007, o que bem se compreende: o direito não se compadece com a inação injustificada do lesado; se um dano é causado por um ato que podia e devia ter sido impugnado ou corrigido por via judicial (como uma reclamação, a impugnação de um ato administrativo, a omissão culposa dessa diligência pode configurar a culpa do lesado. Seria o caso, no contexto vertente, se o Recorrido não tivesse reclamado da nota discriminativa apresentada pela Recorrente.
Em qualquer caso, para que exista culpa do lesado, pressupõe-se, no dizer de José Carlos Brandão Proença (A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Coimbra: Almedina, 1997, pp. 523-524), que este tenha omitido a observância de um ónus jurídico ou, noutra formulação (António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra: Almedina, 1984, pp. 766-767), de um encargo ou incumbência.
Finalmente, o exame ponderativo previsto na norma não se basta com a presença de duas condutas culposas; exige também que elas “tenham sido causalmente concorrentes para o evento lesivo ou para o agravamento dos danos” (José Carlos Brandão Proença, “Art. 570.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, reimpressão, Lisboa: UCE, 2021, p. 579).
Pois bem, conforme vimos, para o dano contribuiu apenas a conduta ilícita e culposa da Recorrente que não atentou que o Recorrido, além de ser herdeiro da referida DD, era também cônjuge meeiro sobrevivo, elaborando a nota de liquidação de forma errada e procedendo à entrega da quantia que era devida ao Recorrido de uma forma prematura, sem aguardar pelo decurso do prazo de reclamação. Dito de outra forma, não foi pelo facto de o Recorrido ter omitido a habilitação notarial do seu falecido cônjuge que o resultado danoso se produziu, uma vez que a informação necessária para o evitar constava já de peças processuais dos autos de execução de que a Recorrente não podia deixar de ter – rectius, tinha – conhecimento.
A tardiamente alegada recusa do recebimento da restituição da quantia indevidamente entregue à segunda Ré em prestações, sendo um facto ulterior ao dano, poderá, quando muito, ter contribuído para o seu dilatar no tempo. De qualquer modo, tal recusa, a ter existido, representa o exercício de uma mera faculdade do credor, pelo que a conduta deste nunca poderá ser considerada como culposa. Estamos mesmo em crer que ela também não poderá ser vista como causa do agravamento do dano. É que com ela coexistem a violação de duas obrigações que, não obstante terem fonte diversa, tendem à satisfação do mesmo interesse, havendo entre elas um nexo de solidariedade: por um lado, a obrigação da segunda Ré de restituir aquilo com que, sem causa justificativa, viu o seu património enriquecido; por outro, a obrigação (em sentido técnico) da Recorrente entregar ao Recorrido a parte que a este cabe no remanescente do produto da venda nos termos concretamente definidos na nota de liquidação definitiva – que é, precisamente, a que resultou da procedência da reclamação apresentada pelo Recorrido contra a nota discriminativa.
Esta última afirmação permite-nos chegar a uma outra conclusão: a causa de deferimento da pretensão do Recorrido pode ser, no confronto com a Recorrente, encontrada também – ou até preferencialmente – no instituto do incumprimento das obrigações consagrado nos arts. 798 e ss. do Código Civil.
A resposta à segunda questão é, pelo exposto, negativa.
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3). Improcedendo o recurso, as custas respetivas devem ser suportadas pela Recorrente: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em (i) julgar o presente recurso improcedente e (ii) confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 9 de outubro de 2025

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: João Peres Coelho
2.º Adjunto: Fernando Manuel Barroso Cabanelas


[1] Como se explica em RG 18.12.2024 (901/24.0T8GMR-B.G1), do presente Relator, a comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade coletiva. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de o direito dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património – mas sobre todo ele, como um todo unitário. Aos titulares do património coletivo não pertencem diretos específicos – designadamente uma quota – sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente, pelo que, na partilha dos bens destinada a pôr fim à comunhão, os respetivos titulares apenas têm direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objeto da partilha, o que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património. Até à respetiva divisão, sob a forma de partilha, os cônjuges são, pois, detentores de uma pars quota sobre uma universalidade em titularidade indivisa, uma quota ideal cujo conteúdo se concretiza em pars quanta depois da divisão. A situação de indivisão (pós-comunhão), embora por natureza transitória, destinada que está à liquidação, com a qual cada um dos ex-cônjuges adquirirá a sua meação nos bens comuns, pode perdurar indefinidamente, suscitando os problemas próprios das relações de contitularidade, pelo que se justifica, quanto à respetiva administração, a aplicação das regras da compropriedade, por força do disposto no art. 1404 do Código Civil, certo como é que já não vigoram as regras próprias do direito de família que disciplinam os regimes de comunhão. Isto não significa, porém, que com a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, na sequência do divórcio (ou da separação judicial de pessoas e bens), a comunhão se converte, ipso facto, numa situação de compropriedade; até que seja feita a partilha, existe uma situação de indivisão do património, tendo cada um dos ex-cônjuges direito a uma meação desse todo (indivision post-communautaire) e não a uma quota ideal de cada um dos bens que o compõem, atomisticamente considerado. A propósito, na doutrina, Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 485; Francisco Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Coimbra: UC, 2016., p. 767; Cristina Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade cit., pp. 922-923; Esperança Pereira Mealha, Acordos Conjugais para Partilha dos Bens Comuns, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 77-78; Eva Dias Costa, “Breves considerações acerca do regime transitório aplicável às relações patrimoniais dos ex-cônjuges entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal”, Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Ano 2 (2013), n.º 13, pp. 14813-14837, disponível em www.cidp.pt. Na jurisprudência: STJ 29.06.2004, 04A2062, Azevedo Ramos; STJ 26.04.2012, 33/08.9TMBRG.G1.S1, Serra Baptista; RC 8.11.2011, 4931/10.1TBLRA.C1, Henrique Antunes; RC 11.06.2016, 3146/12.9TBLRA.C1, Luís Cravo; RP 15.04.2021, 17294/18.8T8PRT-A.P1, Filipe Caroço; e RP 18.11.2021, 1403/20.0T8PVZ.P1, Paulo Dias da Silva; RG 19.01.2023 (191/21.7T8CMN.G1), Pedro Maurício.
[2] Como se sabe, enquanto se não fizer a partilha, os herdeiros são titulares de um direito indivisível, que recai sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta.