Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | JOAQUIM BOAVIDA | ||
| Descritores: | PROPRIEDADE HORIZONTAL INUNDAÇÃO PRESUNÇÃO DE CULPA | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I – A presunção de culpa estabelecida no artigo 493º, nº 1, do Código Civil é indissociável da presunção da própria ilicitude. II – A inversão do ónus da prova decorrente da presunção aí estabelecida tem um âmbito mais amplo do que uma mera presunção de culpa, abrangendo ainda uma presunção de ilicitude: presume-se o incumprimento do dever de vigiar, decorrente de falta de vigilância ou de falta de diligência na vigilância. III – Demonstrando-se o evento e o nexo de causalidade, causando a coisa ou o animal um dano, e que sobre alguém recaía um dever de vigilância sobre a coisa ou o animal, deve presumir-se que ocorreu o incumprimento do dever de vigiar – a violação do dever de vigilância. IV – Tendo a autora provado que a inundação da sua garagem decorreu da rutura do cano de esgoto do prédio constituído em propriedade horizontal e que isso lhe causou danos patrimoniais, como sobre o réu recaía o dever de vigiar essa parte comum e não ilidiu a presunção estabelecida no artigo 493º, nº 1, do Código Civil, é este responsável pelos aludidos danos. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório 1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Condomínio do prédio sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., NIPC ...67, representado pela sua administradora, EMP01... – Administração de Condomínios, Unipessoal, Lda., pedindo que seja «o Réu condenado a pagar à Autora, mas também credora, a quantia de € 7.897,60 (sete mil oitocentos e noventa e sete euros e sessenta cêntimos), a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos até à data da entrada desta ação em juízo, e os juros vincendos até efetivo e integral pagamento do que for devido, bem como da taxa de justiça e todas as demais custas judiciais.» * O Réu apresentou contestação, concluindo pela improcedência da ação.* 1.2. Proferiu-se despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.Realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente e a «condena[r] o réu a pagar à autora a quantia de €5774,54, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, vencidos e vincendos, contados desde a data da entrada da acção até efectivo e integral pagamento.» * 1.3. Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação da sentença, aduzindo as seguintes conclusões:«I. O presente recurso, para além da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, versa ainda sobre matéria de direito. II. Foi proposta a presente acção contra o recorrente condomínio, pedindo a sua condenação a pagar à recorrida os prejuízos que esta sofreu em consequência da ruptura de uma canalização de esgoto que passava na sua garagem, onde tinha acomodados bens, designadamente mobiliário, enquanto decorriam as obras que trazia em curso no seu apartamento. III. O Tribunal a quo entendeu que a ré agiu culposamente, na modalidade de “culpa in vigilando”, na medida em que não foram tomadas as precauções necessárias para prevenir a ocorrência do dano – nomeadamente assegurando-se do estado de conservação das canalizações do imóvel. IV. A nosso ver, a prova testemunhal produzida, designadamente a testemunha BB, arrolada pela recorrida, é susceptível de impor uma diferente decisão sobre a matéria de facto. V. Desde logo, impunha uma resposta diferente ao ponto 3 dos factos provados, na medida em que em consequência do seu depoimento deveria ter-lhe sido dada a seguinte redacção: No dia 14/08/2023, a autora detectou uma inundação na sua garagem privativa, apenas acessível por si, com alguns centímetros de acumulação de água, na sequência da ruptura do tubo de esgoto do prédio que atravessa à vista o tecto do referido espaço, e que desce até ali entre paredes. – sublinhado nosso e que resulta do depoimento. VI. Essa testemunha prestou depoimento na audiência de julgamento do dia 25/01/2025, aberta pelas 14:43, encontrando-se o mesmo gravado entre os minutos 00:01’’ e 13:02’’, por referência à respectiva acta, sendo as concretas passagens em causa as seguintes: entre os minutos 08:25’’ e 09:45’’ e entre os minutos 12:00’’ e 12:55’’. VII. Daqui resulta que o sinistro ocorreu numa parte privativa e fechada do prédio à qual o administrador não tem acesso, como na parte superior do prédio a conduta desce oculta entre paredes, não estando à vista, falhando, assim, desde logo a verificação do primeiro pressuposto do n.º 1 do art.º 493º do CC – o demandado ter em seu poder as partes comuns do prédio. VIII. Depois, o condomínio não pode ser responsabilizado por acto de terceiro, que por dolo ou incúria, deixou um colherim no interior da conduta, causando a ruptura - trata-se de algo anómalo, excepcional e imprevisível que não é exigível ao administrador controlar, e que nada tem a ver com o estado de conservação das canalizações – mais do que uma responsabilidade objectiva, tal equivale a assumir culpa alheia. IX. Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida violou o disposto no artº 483º, nº2 e 492, nº1, 2ª parte ambos do Código Civil. Pelo exposto, revogando da douta sentença proferida, substituindo-a por outra que absolva a recorrente do pedido, farão, Vossas Excelências, justiça.» * A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido. O recurso foi admitido. * 1.4. Questões a decidirAtentas as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, constituem questões a decidir: i) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto – conclusões IV a VI; v) Não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil (erro na aplicação do direito à factualidade apurada) – conclusões VII a IX. *** II – Fundamentos2.1. Fundamentação de facto 2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos: «1. Encontra-se registado em nome da autora a titularidade do direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, pertencente ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na com Rua ...., ... ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ...32 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...17. 2. O réu condomínio é composto por um total de 12 fracções. 3. No dia 14/08/2023, a autora detectou uma inundação na sua garagem, com alguns centímetros de acumulação de água, na sequência da ruptura do tubo de esgoto do prédio que atravessa o tecto do referido espaço. 4. A autora contactou de imediato o condomínio réu, com o propósito de estagnar a queda de água e resolver os problemas derivados da dita inundação. 5. O condomínio réu contactou BB, técnico-canalizador, o qual se deslocou ao local e apurou que as causas de infiltração resultavam de um entupimento do tubo de esgoto provocada por uma colher de pedreiro encontrada no seu interior que, em consequência, provocou a ruptura de um troço do aludido tubo. 6. No dia 29/08/2023, a autora efetuou a participação do sinistro à seguradora »EMP02... – Companhia de Seguros, S.A«. 7. No dia 07/09/2023, a autora enviou um email a todos os condóminos, a informar do sinistro e a solicitar o acionamento dos respectivos seguros, por parte dos mesmos, por ausência de um seguro cujo tomador fosse o condomínio. 8. Somente as fracções »A« e »L« accionaram os respectivos seguros, tendo sido liquidadas as quantias respeitantes aos montantes apurados, na sua quota-parte. 9. O gabinete de peritagens EMP03... – Sociedade Peritagens Técnicas, Lda que presta serviços à seguradora »EMP02... – Companhia de Seguros, S.A« fixou o valor da indemnização correspondente à quota-parte da responsabilidade da fração segura, com permilagem de 85%, em €385,04. 10. No dia 10/10/2023, a autora e a seguradora da fracção »L«, EMP04... – Companhia de Seguros, S.A, fixaram, de comum acordo: a. o valor do prejuízo no total de €6750,00+IVA; b. na indemnização dos danos no recheio/mobília no valor total de €526,50+IVA, por efeito da quota parte de responsabilidade da fracção segura, no valor percentual de 8,7%; c. o montante de €24,56 referente aos danos no sistema de segurança e alarme. 11. Nos dias 17/10/2023 e 06/12/2023, a autora recebeu duas cartas de transferência da »EMP02...«, a notificar do depósito dos valores de €526,40 e de €24,56. 12. O gabinete de peritagens EMP03... – Sociedade Peritagens Técnicas, Lda que presta serviços à seguradora »EMP02... – Companhia de Seguros, S.A« aceitou o pagamento da indemnização correspondente à quota-parte da responsabilidade da fração segura, com permilagem de 8%. 13. No dia 15/01/2024, pelas 21h30, o condomínio réu reuniu em assembleia ordinária, com a presença da autora. 14. A assembleia referida em 13), foi lavrada a acta n.º ...7, em cujo ponto 5 consta a manifestação de vontade da autora em accionar os condóminos judicialmente caso não participassem o sinistro na garagem às respetivas seguradoras. 15. No dia 22/03/2024, a autora, representada pelo seu Ilustre Mandatário, enviou uma carta à administração de condomínio, a comunicar a intenção de avançar com uma acção judicial. 16. A fracção »D« procedeu à participação do sinistro à seguradora »EMP05... – Companhia de Seguros, S.A«. 17. No dia 27/03/2024, o gabinete de peritagens »EMP06..., S.A«, prestadora de serviços de peritagem à respectiva seguradora, elaborou um relatório de peritagem patrimonial, ao qual foi aposto o n.º ..., o qual concluiu que: a. as causas de infiltração resultavam de um entupimento do tubo de esgoto provocada por uma colher de pedreiro encontrada no seu interior que, em consequência, provocou a ruptura de um troço do aludido tubo; b. os prejuízos indemnizáveis à autora ascendiam ao valor de €571,50, correspondente à quota-parte da responsabilidade da fração segura, com permilagem de 9%, o que veio a liquidar; 18. Em consequência da inundação referida em 3), a autora: a. ficou com a mobília depositada na garagem inutilizada, estando a sua reparação orçamentada em €6350,00; b. ficou com o sistema de segurança e alarme da garagem inutilizado, estando a sua reparação orçamentada em €400,00; c. teve que suportar as despesas de desentupimento e limpeza da conduta geral das casas de banho, remoção da colher de trolha presa na conduta e ainda a reparação do tubo partido na garagem devido a colher presa, no montante de €147,60». * 2.1.2. Factos não provadosO Tribunal a quo considerou não provado: «19. Que a autora tenha sentido stress, desespero, frustração, revolta, desassossego pela situação descrita supra.» ** 2.2. Do objeto do recurso2.2.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto O Réu impugna a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância quanto ao ponto nº 3 dos factos provados (conclusão V). Com base no depoimento da testemunha BB, sustenta que «a redacção do ponto 3. dos factos provados, deveria ser a seguinte: 3. No dia 14/08/2023, a autora detectou uma inundação na sua garagem privativa, apenas acessível por si, com alguns centímetros de acumulação de água, na sequência da ruptura do tubo de esgoto do prédio que atravessa à vista o tecto do referido espaço, e que desce até ali entre paredes.» Analisados todos os documentos juntos aos autos e ouvida a gravação da audiência final, com especial incidência no depoimento da testemunha BB, técnico (canalizador) que se deslocou ao local para apurar as causas da inundação e que procedeu à reparação do tubo de esgoto do prédio que se encontrava, verifica-se que esta descreveu os elementos que o Recorrente pretende que sejam aditados. A garagem também foi caraterizada, de modo semelhante, pela testemunha CC, que mora no ... andar, por cima da garagem da Autora. É uma garagem individual, vedada, e apenas a Autora lhe pode aceder. A testemunha BB referiu igualmente que o tubo de esgoto atravessa o teto da garagem, onde está à vista, e que desce até ali entre as paredes do prédio. Por isso, na procedência da impugnação, o ponto 3 dos factos provados passará a ter o seguinte teor: 3. No dia 14.08.2023, a Autora detetou uma inundação na sua garagem privativa, apenas acessível por si, com alguns centímetros de acumulação de água, na sequência da rutura do tubo de esgoto do prédio que atravessa à vista o teto do referido espaço, e que desce até ali entre paredes. ** 2.2.2. Reapreciação de DireitoA ação foi configurada na petição inicial como uma demanda fundada na responsabilidade civil extracontratual, reclamando a Autora o ressarcimento dos danos que lhe foram causados por uma rutura de um tubo de esgoto que constitui parte comum do prédio. Na sentença entendeu-se que o Réu se encontrava vinculado ao dever de vigiar o tubo de esgoto que se rompeu, por se tratar de uma parte comum do edifício, pelo que o incumprimento daquele dever, por omissão negligente de zelo, constitui-o na obrigação de indemnizar a condómina Autora dos danos que sofreu no seu património como consequência direta dessa omissão ilícita e culposa, uma vez que não ilidiu a presunção de culpa que sobre si recai nos termos artigo 493º, nº 1, do Código Civil (CCiv). O Recorrente defende que não pode ser responsabilizado com base em dois argumentos. Por um lado, por a rutura do cano esgoto ter ocorrido numa parte privativa e fechada do prédio à qual o administrador não tem acesso, sustentando, por isso, que falta a verificação do primeiro pressuposto do nº 1 do artigo 493º do CCiv, em virtude de o demandado não ter em seu poder aquela parte comum do prédio (conclusão VII). Por outro lado, entende que o condomínio não pode ser responsabilizado por ato de terceiro, que deixou um colherim no interior da conduta e com isso causando a rutura, por se tratar de algo anómalo, excecional e imprevisível, não sendo exigível ao administrador controlar algo que nada tem a ver com o estado de conservação das canalizações (conclusão VIII). O prédio encontra-se constituído em propriedade horizontal, é composto por 12 frações autónomas e a Autora é proprietária da fração ... e possui a garagem onde se verificou a rutura do tubo de esgoto que causou a inundação e com isso produziu os danos discriminados no facto nº 18. O Recorrente não questiona que o tubo de esgoto em causa constitui uma parte comum, tal como foi qualificado na sentença. Discorda, isso sim, que estejam preenchidos os pressupostos da sua responsabilização ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 493º do CCiv. Os factos apurados permitem a conclusão que ocorreu a rutura do tubo de esgoto do prédio e que a consequente inundação da garagem da Autora causou-lhe danos patrimoniais. Liminarmente, estão inequivocamente demonstrados alguns dos pressupostos da responsabilidade civil: o facto, traduzido na rutura da conduta de águas residuais, o dano e o nexo de causalidade entre aquele facto e o dano, pois a rutura do cano causou a inundação da garagem da Autora, estragando bens desta que aí se encontravam. Mas para que o Réu possa ser responsabilizado necessário se torna a verificação da ilicitude e da culpa. Importa debruçarmo-nos sobre o binómio constituído pelo dever de vigilância e a obrigação de conservar as partes comuns do edifício e de manter a sua aptidão para serem fruídas pelos condóminos, que podemos sintetizar como sendo a obrigação de garantir a normal conservação e fruição das partes comuns. A realização de obras de reparação das partes comuns em ordem a evitar danos em frações autónomas do edifício ou a terceiros incumbe ao condomínio, enquanto conjunto composto por todos os condóminos, contitulares dos direitos relativos a essas partes comuns e responsáveis pela respetiva conservação e reparação. No que respeita à obrigação de realização obras de conservação e reparação das partes comuns e de indemnização pelos danos causados, se tivéssemos que resumir o regime jurídico aplicável, diríamos que responde pela sanação das deficiências nas estruturas que causaram danos quem tem a obrigação de zelar pela sua conservação. Essa responsabilidade emerge, em primeira linha, do artigo 493º, nº 1, do CCiv, onde se dispõe: «Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.» Anote-se que, nos termos do nº 1 do artigo 492º do CCiv, o proprietário ou possuidor de edifício ou obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados; segundo o nº 2 desse artigo, «a pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou obras responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação.» Na qualidade de proprietário de uma fração autónoma, o condómino responde pela violação dos deveres de conservação do seu imóvel e, consequentemente, pelos danos que daí advierem para os restantes vizinhos. No entanto, a responsabilidade já será do condomínio quando os danos resultarem de deficiências em partes comuns do edifício. Como cada condómino é comproprietário das partes comuns do edifício (art. 1420º, nº 1, parte final, do CCiv) e não lhe é lícito renunciar a uma parte do edificado que seja comum, assim se desonerando «das despesas necessárias à sua conservação ou fruição» (art. 1420º, nº 2, CCiv), nenhum dos condóminos se pode alhear das despesas necessárias à fruição de todas as partes comuns. Cabe aos condóminos, na proporção do valor das suas frações, suportar os custos com «as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício» - art. 1424º, nº 1, do CCiv. Por isso, a oneração de todos os condóminos, isto é, do condomínio, com a realização destas obras extrai-se do apontado preceito. Mas vejamos onde se funda o dever de zelar pelas partes comuns do edifício. A administração das partes comuns do edifício compete à assembleia dos condóminos e a um administrador (art. 1430º, nº 1, do CCiv). Do confronto do regime jurídico do nº 1 do artigo 1430º com o do artigo 1436º, ambos do CCiv, extrai-se que a assembleia de condóminos é o órgão deliberativo do condomínio e o administrador é o órgão executivo daquela assembleia. De harmonia com o primeiro preceito citado, os poderes da assembleia circunscrevem-se a poderes de administração das partes comuns do edifício. Quanto ao administrador, enquanto órgão executivo da assembleia de condóminos, a lei atribui-lhe competência própria para praticar os atos que se encontram especificados, de modo não taxativo, no artigo 1436º, designadamente o de «realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns» (al. g)), o que abrange tanto os atos materiais destinados à proteção da integridade das coisas comuns, como os atos necessários à defesa dos direitos relativos aos bens comuns. No âmbito da referida primeira categoria de atos, o administrador tem competência própria para realizar as reparações normais ou correntes (de gestão corrente) nas partes comuns do edifício, necessárias a assegurar o seu uso, gozo e conservação, incluindo a manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético, e aquelas que se assumam como indispensáveis e urgentes (nº 1 do art. 1427º do CCiv), assumindo esta qualificação «as reparações necessárias à eliminação, num curto prazo, de vícios ou patologias existentes nas partes comuns que possam, a qualquer momento, causar ou agravar danos no edifício ou conjunto de edifícios, ou em bens, ou colocar em risco a segurança das pessoas» (nº 2 do art. 1427º). Quaisquer outras reparações ou questões que exorbitem do apontado âmbito de gestão corrente, são atos da competência da assembleia. Competindo aos órgãos administrativos do condomínio a administração das partes comuns, naturalmente que isso implica a obrigação de garantir a normal conservação e fruição das partes comuns. Esse dever de atuação tem uma componente de prevenção e outra de conservação ou manutenção do edificado, enfim de reparação para manter a respetiva utilidade, isto é, desempenhar a sua função. Por isso, é pacífico que sobre o condomínio, o mesmo é dizer os seus órgãos, recai o dever de zelar pela conservação e manutenção das partes comuns do edifício, vigiando o edificado. O encargo com a reparação das deficiências que surjam nas partes comuns cabe a todos os condóminos, isto é, ao condomínio. Se essas deficiências causarem danos nas frações autónomas, também o condomínio é responsável pela respetiva reparação. Sendo inequívoco que recai sobre o condomínio o dever de zelar pelas partes comuns, vigiando o edificado e que responde pelos danos causados pela coisa, importa analisar o significado da ressalva contida na parte final do nº 1 do artigo 493º do CCiv, na parte em que se refere «(…) salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.» Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[1], «estabelece-se neste artigo, como nos dois anteriores, a inversão do ónus da prova, ou seja, uma presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou de animais ou exerce uma actividade perigosa.» Mas não será de considerar que a aludida disposição, para além de uma presunção de culpa, estabelece uma presunção de ilicitude? Se bem repararmos na letra do nº 1 do artigo 493º do CCiv e excluirmos a previsão referente a animais por não ter qualquer relevo para o objeto do recurso, verificamos que quem pretenda efetivar a responsabilidade aí prevista tem de demonstrar que o demandado tem em seu poder a coisa, que tem o dever de a vigiar, que ocorreu um dano e que este foi causado pela coisa. Da previsão da norma não resulta que o autor tenha de demonstrar o incumprimento do dever de vigiar, designadamente a falta de vigilância da coisa ou a falta de diligência na vigilância. Sendo inequívoca a inversão do ónus da prova decorrente da presunção aí estabelecida (a presunção legal tem por efeito a inversão do ónus da prova quanto ao facto a que ela conduz - art. 350º, nº 1, do CCiv), parece que esta tem um âmbito mais amplo do que uma mera presunção de culpa, abrangendo ainda uma presunção de ilicitude: presume-se o incumprimento do dever de vigilância, englobando tanto a ilicitude como a culpa; ao presumir-se a culpa, presume-se igualmente a violação do dever de vigilância. Julgamos que isso resulta da letra do preceito e que se justifica ainda pela reconhecida dificuldade prática, no caso de omissão de ato devido, em destrinçar a ilicitude da culpa[2]. Assim, demonstrando-se o evento e o nexo de causalidade, causando a coisa ou o animal um dano e demonstrando-se que sobre alguém recaía um dever de vigilância sobre a coisa ou o animal, deve presumir-se que ocorreu o incumprimento do dever de vigiar ou, dito de outro modo, a violação do dever de vigilância. A presunção de culpa estabelecida no artigo 493º, nº 1, do CCiv apresenta-se como indissociável da presunção da própria ilicitude cometida por quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou animais, respondendo pelos danos que a coisa ou os animais causarem, a menos que demonstre o cumprimento do dever de vigilância ou que os danos se teriam igualmente produzido mesmo com a diligência devida. Como impressivamente se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 10.12.2013 (Nuno Cameira), proferido no processo 68/10.1TBFAG.C1.S1, «a norma do art. 493º, nº 1, do CC estabelece uma presunção de culpa que, em bom rigor, é simultaneamente uma presunção de ilicitude, de tal modo que, face à ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar». No mesmo sentido apontam os acórdãos do STJ de 14.09.2010 (Salazar Casanova) – processo 403/2001.P1.S1, de 30.09.2014 (Clara Sottomayor) – processo 368/04.0TCSNT.L1.S1, de 14.03.2019 (Maria da Graça Trigo) – processo 2446/15.0T8BRG.G2.S1 e de 11.01.2024 (Ataíde das Neves) – processo 888/20.9T8PVZ.P1.S1. Também a doutrina mais recente tem vindo a sustentar que a presunção de culpa estabelecida no artigo 493º, nº 1, do CCiv é indissociável da presunção da própria ilicitude. Assim, Menezes Cordeiro[3]: «Tal como vimos suceder a propósito do artigo 492º/1, também aqui a “presunção de culpa” é uma presunção de ilicitude, isto é: perante os danos, postula-se ter havido inobservância do dever de vigiar. Com isso, estando em causa animais, a lei visou prevenir o proliferar de danos: o proprietário, não usando os animais no interesse próprio, sairia da previsão do art.º 502º. Quanto a coisas: a não haver uma autónoma responsabilidade civil do vigilante, este poderia ser descuidado, com prejuízo para terceiros.» Por sua vez, Mafalda Miranda Barbosa[4]: «Ao presumir-se a culpa, presume-se a violação dos deveres que, atenta a situação em que surgem, não podem ser compreendidos senão por referência a um abuso de liberdade. Isto permite que se conexione o disposto no artigo 493º CC com a ilicitude assente num modelo híbrido. Tal não obsta a que possa haver, porém, violação de um direito absoluto. É, por isso, possível convocar o preceito no sentido de presumir a culpa e, concomitantemente, presumir a imputação objetiva.» Finalmente, Rui Mascarenhas Ataíde refere[5]: «(…) o artigo 493º se limita a consagrar uma presunção dita de “culpa” mas que, em rigor, é uma presunção de ilicitude, ou seja, da demonstração pelo lesado de que o dano foi causado pela coisa, extrai-se a ilação de o evento lesivo se dever ao incumprimento pelo detentor dos seus deveres de vigilância. (…) A demonstração desta materialidade que corporiza a ilicitude, desde que não se lhe oponha uma causa de justificação ou de desculpabilidade, permite formular o juízo ético-jurídico de reprovação a que a culpa dá lugar, segundo a doutrina modernamente dominante. Desde modo, a culpa constitui sempre matéria de direito, sujeito a controlo pelo Supremo, razão pela qual o sentido das presunções aquilianas de “culpa” não pode deixar de significar que alguns dos factos constitutivos da pretensão do lesado que, segundo as regras gerais da repartição do ónus da prova subjetivo, lhe cabia demonstrar diretamente por serem integrantes da ilicitude, se devem considerar indiretamente provados, desde que, primeiro, o lesado prove os competentes factos indiciários e, segundo, o réu não faça prova do facto contrário ao indiciado. Em suma, as chamadas presunções de “culpa” são realmente presunções (parciais) de ilicitude (…)». Revertendo ao caso dos autos, o Recorrendo sustenta que não tinha «em seu poder as partes comuns do prédio», pelo que não é «possível sustentar a violação dos deveres de vigilância do condomínio sobre as partes comuns do prédio.» Isto porque «não só a parte comum onde ocorreu o sinistro se encontrava fora do domínio e do controle do condomínio, por se situar numa parte privativa (garagem da recorrida) à qual o administrador não tinha acesso, como na parte superior do prédio a conduta desce oculta entre paredes, não estando à vista.» No fundo, o Recorrente alega que a coisa não se encontrava em seu poder e, por isso, não tinha o dever de a vigiar. Ressalvado o devido respeito, esta argumentação não procede. Primeiro, o cano de esgoto da conduta geral do prédio não se encontrava na posse da Recorrida. Aliás, a Autora nenhum interesse tinha na detenção do cano de esgoto, que apenas passava pelo teto da sua garagem, seguindo o seu encaminhamento para a rede de saneamento, como é próprio deste tipo de estruturas que existem nos prédios constituídos em propriedade horizontal. Mais, o Recorrente não alegou e muito menos demonstrou qualquer ato da Autora relativamente ao cano de esgoto. O simples facto de a conduta geral de saneamento passar pela sua garagem, assim como passava, antes disso, por outras frações autónomas, não faz da Autora possuidora ou detentora do cano de esgoto, assim como os demais condóminos não assumem tal qualidade pelo facto de tal conduta atravessar as suas frações. Portanto, a Autora não tinha em seu poder o cano de esgoto, pelo que, por exclusão de partes, apenas se pode considerar que o mesmo estava em poder do condomínio, como é inerente às partes comuns, designadamente aquelas cujo uso não se encontra afeto a qualquer fração autónoma e relativamente às quais não é exercido pelos condóminos qualquer espécie de poder de facto. Segundo, a circunstância de a garagem ser privativa da Autora não afasta o dever de vigilância que recaía sobre o Réu quanto à conduta geral da rede de águas residuais, designadamente a parte que atravessa a garagem da Autora. Nenhum facto foi aduzido pelo Réu quanto a um eventual impedimento no acesso à garagem para exercer o dever de vigilância sobre o cano de esgoto. A administração do condomínio podia solicitar à Autora, sempre que o entendesse conveniente, a abertura da garagem para exercer o dever de vigilância sobre a conduta dos esgotos do prédio. Por isso, se não exerceu tal faculdade, como confessadamente não fez, isso não constitui causa de exclusão da sua responsabilidade. Por conseguinte, o Réu tinha em seu poder a coisa que causou o dano à Autora e sobre ele recaía o dever de a vigiar. Terceiro, relativamente à questão ora em análise é irrelevante o argumento de que «na parte superior do prédio a conduta desce oculta entre paredes, não estando à vista.» Isto porque a rutura do cano de esgoto não ocorreu na parte superior do prédio, mas sim na garagem da Autora, onde o cano é plenamente visível e pode ser exercido, sem qualquer dificuldade de maior, o dever de vigilância. Alega ainda o Recorrente que «o condomínio não pode ser responsabilizado por acto de terceiro, que por dolo ou incúria, deixou um colherim no interior da conduta, causando a ruptura». Sobre este argumento importa fazer notar que nenhum facto foi alegado sobre como e quando o colherim (colher de trolha/pedreiro) foi introduzido no cano de esgoto e foi parar ao troço que atravessa o teto da garagem da Autora. Por conseguinte, ignora-se se isso ocorreu aquando da construção do prédio, em obras posteriores ou num outro qualquer circunstancialismo. Por isso, não é possível afirmar que se deveu a um ato de terceiro ou que foi feito com dolo ou por incúria. Depois, da matéria de facto não é possível retirar qualquer ilação sobre se, mesmo cumprindo o dever de vigilância com a diligência devida, os danos se teriam igualmente produzido, ou seja, a rutura sempre ocorreria, com a subsequente inundação da garagem e a danificação dos bens aí existentes. Do mesmo modo, ignora-se em que circunstâncias o colherim foi utilizado e se essa utilização está ou não relacionada com a conservação da conduta de esgoto. Por isso, o que objetivamente permanece é que a lesada provou que a inundação da sua garagem decorreu de uma rutura do cano de esgoto do prédio e que isso lhe causou os danos apurados na sentença. Como se trata de uma parte comum e sobre o Réu recaía o dever de vigilância sobre a mesma, não tendo sido ilidida a presunção estabelecida no artigo 493º, nº 1, do CCiv, que é uma presunção de culpa e de ilicitude, é responsável pelos danos causados à Autora[6]. Pelo exposto, improcedem as conclusões da apelação. ** 2.3. Sumário… *** III – DecisãoAssim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida. Custas, na vertente de custas de parte, a suportar pelo Recorrente. * * Guimarães, 02.10.2025 (Acórdão assinado digitalmente) Joaquim Boavida Alcides Rodrigues Ana Cristina Duarte [1] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 495. [2] Ana Prata, Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), vol. I, Almedina, pág. 639. [3] Tratado do Direito Civil, Direito das Obrigações, tomo III, Almedina, pág. 584. [4] Lições de Responsabilidade Civil, Princípia, 2017, págs. 244 e 245. [5] Responsabilidade civil por violação de deveres no tráfego, Almedina, 2015 (reimpressão em 2019), págs. 380, 863 e 864. [6] Numa ação deste tipo, ao autor incumbe provar a ocorrência do dano e o nexo causal entre o mesmo e a coisa sujeita a vigilância, enquanto que ao réu compete ilidir a presunção de culpa e de ilicitude. |