Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5/24.6T8MTR.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
DESEQUILÍBRIO NO EXERCÍCIO DE POSIÇÕES JURÍDICAS
DIREITO DE PROPRIEDADE
RESTITUIÇÃO DA COISA
BALDIOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O desequilíbrio no exercício do direito caracteriza-se pela desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.
II - Não configura uma situação de abuso de direito, a pretensão da parte que ao ver declarado o seu direito de propriedade quer que o prédio lhe seja restituído, causando com isso o atraso no arranque do projeto de exploração mineral da contraparte.
III - Desequilibrado seria esvaziar o reconhecimento do direito de propriedade de alguém, não lhe restituindo a coisa, porque outrem nela iniciou uma determinada exploração, por muito relevante economicamente que ela seja.
IV - A paralisação do exercício do direito pelo legitimo proprietário é que criaria uma situação de grave desequilíbrio em seu prejuízo, na medida em que tal implicaria a manutenção da ocupação do terreno pelo terceiro sem qualquer contrapartida ao titular do direito de uso e fruição do baldio.
V - A vantagem que o baldio pode proporcionar não pode ser resumida à que resulta da sua aptidão para a pastorícia e para a exploração da floresta, mas àquela que resulta também de outras potencialidades rentáveis, como a que decorre da exploração de lítio.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. RELATÓRIO[1]

A Comunidade Local dos Baldios de ... instaurou ação, na forma de processo comum, contra AA e esposa BB e contra EMP01..., S.A.

Invocou que:
Por escritura de justificação e compra e venda, os 1º R.R. declararam que: a) são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico, por lhes ter sido doado verbalmente pelos pais do A. e o possuírem, há mais de 20 anos e que b) o vendiam à 2ª R.
O declarado na referida escritura de justificação é inverídico, já que o prédio em causa era usado pelos compartes da aldeia de ..., ..., para pastagem de gado bovino e caprino, recolha de lenhas, roçar estrume/mato e para madeira, desde tempos imemoriais, de forma ininterrupta, pacífica, à vista de toda a gente, com exclusão de outrem e na convicção de se tratar de terrenos comunitariamente possuídos.
A gestão/administração desse terreno esteve cometida primeiro à Junta de Freguesia e atualmente aos compartes de ....
Entretanto, a 2ª R. encetou obras no local, movendo terras e fazendo perfurações.

Pediu que:
a) Fosse declarado que o prédio justificado, descrito no artigo 1º da petição inicial, é baldio, propriedade comunitária dos compartes de ..., usufruído por estes, gerido pela Comunidade Local dos Baldios de ..., através dos órgãos respetivos;
b) Fosse declarada nula a escritura de justificação e compra e venda identificada nos artigos 1º a 7º da petição inicial;
c) Fosse ordenada a restituição da posse da área baldia apossada pelos RR aos compartes de ...;
d) Fossem os R.R. condenados os RR a respeitar os direitos do autor e seus representados sobre o terreno em questão e a absterem-se, no futuro, de praticar quaisquer atos de apropriação desse terreno;
e) Fosse condenada a segunda ré a retirar do terrenos máquinas, materiais, equipamentos, vedações e outros que lhe pertençam deixando o mesmo livre de pessoas e bens e repondo o terreno no estado em que se encontrava;
f) Fosse ordenado o cancelamento de qualquer registo a favor dos primeiros réus e segunda ré na Conservatória do Registo Predial ... sobre o terreno justificado, descrito no artigo primeiro.

Contestaram os 1º R.R.
Invocaram a ilegitimidade ativa.
Impugnaram grande parte da factualidade invocada pela A.

Deduziram reconvenção.

Invocaram que:
Há mais de 100 anos que os R.R., por si e seus antecessores, possuem o prédio em causa, tendo adquirido o respetivo direito de propriedade por usucapião.

Pediram que:
a) Se reconhecesse e, fosse a A. condenada a reconhecer, o direito de propriedade dos R.R. sobre o prédio sito na ..., inscrito na matriz rústica da freguesia ... sob o art. ...38;
b) Fosse a A. condenada no pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais provocados, acrescida de juros calculados à taxa legal, desde a data de notificação da contestação.

Contestou a 2ª R.
Impugnou grande parte da factualidade invocada pela A.
Deduziu reconvenção.

Invocou que:
Os 1º R.R. e antes deles o pai do R., possuíram o prédio em causa, desde 1933, tendo adquirido o respetivo direito de propriedade por usucapião.

Pediu que:
Se declarasse a R. como sendo titular do direito real de propriedade, plena e exclusiva, sobre o prédio descrito no Registo Predial sob o número ...20 da freguesia ..., direito este adquirido por usucapião, através de acessão na posse dos ora demais Réus, e dos Pais do Réu AA, CC e DD, posse esta vigente desde, pelo menos, 1930, sendo em consequência, inscrita a propriedade da autora junto do registo predial nestes termos, ordenando-se o cancelamento de todas as inscrições registrais porventura em oposição, com todas as legais consequências.

Replicou a A.
Invocou a inadmissibilidade das reconvenções.
Impugnou a matéria reconvencional.
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Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual, designadamente, se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade ativa, se admitiu os pedidos reconvencionais d) e e) formulados pelos 1º R.R. e o pedido reconvencional formulado pela 2ª R., se absolveu a A. da instância relativamente ao pedido reconvencional f) apresentado pelos 1º R.R., se julgou improcedentes os pedidos reconvencionais d) e e) formulados pelos 1º R.R., absolvendo-se a A. desses pedidos, se identificou o objeto do litígio e se enunciou os temas a prova.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“DECISÃO
Julgamos a reconvenção apresentada pela 2ª R. improcedente, absolvendo a A. do pedido reconvencional;
Julgamos a ação procedente e, em consequência:
a) Declaramos ineficaz a escritura de justificação e compra e venda identificada nos artigos 1º a 7º, da p.i.;
b) Declaramos que o prédio justificado, descrito no artigo 1º, da p.i., é baldio, propriedade comunitária dos compartes de ...;
c) Ordenamos a restituição do prédio, por parte da 2ª R., à A.;
d) Condenamos os R.R. a respeitarem o direito da A. sobre o prédio em questão e, a absterem-se, no futuro, de praticar quaisquer atos de apropriação desse terreno;
e) Condenamos a 2ª R. a retirar do terreno: máquinas, materiais, equipamentos, vedações e outros que lhe pertençam, deixando-o livre de pessoas e bens e repondo o terreno no estado em que se encontrava;
f) Ordenamos o cancelamento do registo efetuado pela Ap. ...54 de 2023/03/20, relativamente ao prédio em causa.
g) Condenamos, os 1º R.R., como litigantes de má fé, no pagamento de uma multa de 5 UC (cinco unidades de conta).
Após trânsito, proceda ao registo da decisão proferida - arts. 2º, n º 1, a), 3º, n º 1, b) e c), 8º-A, n º 1, b) e 8º-B, n º 3, a), do CRP.
Custas pelos R.R. - art. 527º, do C.P.C.
Registe - art. 153º, n º 4, do C.P.C.
Notifique - art. 220º, n º 1, do C.P.C.”
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Inconformados com esta decisão, os réus AA e BB dela interpuseram recurso e formularam, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões que se transcrevem:
[…]
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Igualmente inconformada, a ré EMP01..., S.A. interpôs recurso e formulou, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões que se transcrevem:
[…]
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Foram apresentadas contra alegações, defendendo a recorrida a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.      
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR

As questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1. da admissibilidade da junção de documentos com o recurso;
2. das invocadas nulidades da sentença;
3. da impugnação da matéria de facto;
4. se deve a sentença apelada ser anulada ou revogada.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Factos provados na sentença sob recurso são os seguintes:

1 - O terreno correspondente ao prédio rústico, composto de lameiro, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 5.762,30 metros quadrados, a confrontar do norte, sul, poente e nascente com baldio, inscrito na matriz sob o artigo ...38 da dita freguesia, foi usado pelos habitantes da aldeia de ..., ..., para apascentarem o gado bovino e caprino e roçarem estrume/mato;
2 - O que ocorreu desde tempos imemoriais, até pela década de 1980, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição, com exclusão de outrem e na convicção de se tratar de terreno comunitário.
3 - A gestão/administração desse terreno estava cometida à Junta de Freguesia ... e/ou aos serviços florestais do Ministério da Agricultura e atualmente aos compartes de ... que, para o efeito, se constituíram como Comunidade Local dos Baldios de ..., NIPC ...74, elegendo os seus órgãos próprios, nomeadamente o respetivo conselho diretivo.
4 - Na década de 1980, os R.R. foram autorizados pela Junta de Freguesia ... e pela Direção Geral das Florestas, a cultivarem o prédio em causa.
5 - Desde então, continuamente, os R.R. entravam, estavam e saíam, pública, pacifica, contínua e livremente do prédio em causa, à vista de todos, sem oposição de ninguém;
6 - E até há uns 3/6 anos, os R.R. cultivaram, designadamente milho, batatas e centeio, no prédio em causa;
7 - Represaram a água, através de uma poça, de uma nascente existente no prédio;
8 - E colocaram pedras soltas em parte dos limites do prédio em causa;
9 - O que fizeram à vista de todos, sem oposição;
10 - Sabedores de que o prédio não lhes pertencia.
11 - Os R.R. praticam uma agricultura, essencialmente, de subsistência.
12 - Foram feitas plantações florestais nos “prédios adjacentes” e não no prédio em causa.
13 - Por escritura de justificação e compra e venda de 22 de novembro de 2022 celebrada no Cartório Notarial ..., da Notária EE, os 1º R.R. declararam, que são donos e legítimos possuidores com exclusão de outrem do seguinte imóvel, não descrito na Conservatória do Registo Predial ...: prédio rústico, composto de lameiro, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 5.762,30 metros quadrados, a confrontar do norte, sul, poente e nascente com baldio, inscrito na matriz sob o artigo ...38 da dita freguesia, e com o valor patrimonial e atribuído de 869,21€.
14 - Mais declararam os 1º R.R., que o prédio veio à sua posse por doação verbal dos pais do justificante marido, CC e DD no ano de 1977, que desde esse ano, ou seja, há mais de 20 anos, entraram na posse do mencionado bem e de imediato o ocuparam e passaram a usufruí-lo, sendo que exerceram de imediato e de aí em diante todos os atos de posse, vedando-o, lavrando-o, semeando-o, cultivando-o, colhendo frutos, pagando impostos, isto é, gozando de todas as utilidades, direitos e benefícios por eles proporcionados, que desconhecem os segundos ante- possuidores aos mencionados CC e DD e que desconhecem, ainda, devido à distância temporal, se o prédio esteve inscrito na matriz, que não contêm documento algum onde possam verificar a proveniência do artigo, para além do indicado.
15 - Declararam ainda que, do ato de aquisição verbal e da posse que, em consequência, eles, têm vindo a exercer no prédio rústico, não decorreu qualquer fracionamento proibido por lei porquanto os ante-possuidores de quem os justificantes adquiriram o referido prédio não possuíam outros prédios rústicos contíguos.
16 - Mais declararam que sempre administraram o bem, sem qualquer interrupção, com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e com o ânimo de querer exercer direito próprio, ou seja, exercendo essa mesma posse de forma pública, pacífica e de boa fé.
17 - No mesmo ato notarial, os 1º R.R. declararam vender à R. o identificado prédio, pelo preço de 5.000,00 €, que receberam, destinando-se a aquisição à prossecução do objeto social da R. no âmbito do contrato de cadastro C-152 e denominação de “...”, celebrado com o Estado Português de concessão de exploração de depósitos minerais de lítio e minerais associados.
18 - A R. vedou o terreno com rede, colocou uma cancela para aceder ao mesmo, que mantém fechada, dentro da vedação colocou um pré-fabricado/estaleiro, máquinas e equipamentos (retroescavadoras e outros), movimentou terras, instalou sinais de acesso proibido e “Propriedade Privada” e montou guarda/segurança permanente ao mesmo.
19 - Pela Ap. ...54 de 2023/03/20, está regista a aquisição, por compra, a favor da 2ª R., do prédio identificado em 13.
20 - É inverídico que:
a) Desde 1930 até 1977, os pais do R. entravam, estavam e saíam publica, pacifica, contínua e livremente do prédio dos autos, como “proprietários” do mesmo, à vista de todos, sem oposição de ninguém;
b) Desde 1930 até 1977, os pais do R. cultivavam, designadamente milho, batatas e centeio, pública, pacifica, contínua e livremente o prédio dos autos, como proprietários do mesmo, à vista de todos, sem oposição de ninguém;
c) Os pais do R. minaram no prédio dos autos um poço, cuja água usavam para regar as culturas que nele faziam, designadamente milho, batatas e centeio;
d) O R. auxiliava os seus pais nas limpezas do terreno, plantação de batatas, milho e centeio e outros afazeres agrícolas, no prédio em causa;
e) Em 1977, os pais do R. “doaram-lhe” o prédio em causa;
f) Estando, então, o R., convencido de que os seus pais eram os proprietários do prédio;
g) Desde 1977, ocorreu o constante de 6 e 7.
h) Os R.R. atuaram nos termos constante de 6 a 8, convictos de serem proprietários do prédio.

Factos não provados:

1 - A população de ... apanhava lenha e madeira no prédio identificado em 1 dos factos provados.
2 - O veio da água da nascente de ... ou ... que abastece a localidade de ... atravessa o prédio identificado em 1 dos factos provados.
3 - O constante de 1 e 2, dos factos provados, ocorreu após a década de 1980.
4 - Desde 1930 até 1977, que os pais do R. entravam, estavam e saíam publica, pacifica, contínua e livremente do prédio dos autos, como “proprietários” do mesmo, à vista de todos, sem oposição de ninguém.
5 - Desde 1930 até 1977, que os pais do R. cultivavam, designadamente milho, batatas e centeio, publica, pacifica, contínua e livremente o prédio dos autos, como proprietários do mesmo, à vista de todos, sem oposição de ninguém.
6 - Os pais do R. minaram no prédio dos autos um poço, cuja água usavam para regar as culturas que nele faziam, designadamente milho, batatas e centeio.
7 - O R. auxiliava os seus pais nas limpezas do terreno, plantação de batatas, milho e centeio e outros afazeres agrícolas, no prédio em causa.
8 - Os pais dos R. eram “pequenos agricultores”.
9 - Em 1977, os pais do R. “doaram-lhe” o prédio em causa.
10 - Estando, então, o R., convencido de que os seus pais eram os proprietários do prédio.
11 - Desde 1977, ocorreu o constante de 6 e 7, dos factos provados.
12 - Os R.R. atuaram nos termos constante de 6 a 8, dos factos provados, convictos de serem proprietários do prédio.
13 - Os R.R. utilizaram a água do poço para regar as suas culturas.
14 - Durante mais de 20 anos, os 1º R.R. pagaram os impostos relativamente ao prédio em causa.
15 - O prédio dos autos sempre esteve vedado e demarcado das “propriedades confinantes”, com muro de pedra solta, lá colocado por antepassados do R.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Junção de documento com o recurso
Com as alegações de recurso a recorrente EMP01... juntou três documentos, a saber, Declaração e Impacto Ambiental (doc. 1), Título Único Ambiental (Doc. 2) e Programa de Trabalhos (doc. 3).
Justifica que “…. a junção apenas se torna necessária face à omissão da apreciação da questão (necessidade do prédio) em primeira instância, que não só devia ter sido apreciada, mas julgada como provada. Assim, torna-se necessário juntar estes documentos aos autos, de modo a assegurar a prova do facto, uma vez que, do ponto de vista do Tribunal, nada assegura, sequer, a relevância do facto, e muito menos a sua prova. A junção que ora se requer é, também, para instrução do requerimento de atribuição de efeito suspensivo que se encontra a final.”
Resulta do disposto no art. 651.º, n.º 1, do CPC que as partes podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art. 425.º, do CPC, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
Por sua vez, o art. 425.º, do CPC estabelece que depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Da articulação lógica destes preceitos resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excecional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.
Quanto à primeira situação, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objetiva ou superveniência subjetiva.
Objetivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjetivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado.[2]
No caso de superveniência subjetiva é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis.
Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento.
Quanto à junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância, tal pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.
Nesta circunstância “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância”.[3]
O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.
E daí o documento tornar-se necessário só por virtude desse julgamento, quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperado junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado”.[4]
No caso, a Declaração e Impacto Ambiental (doc. 1), não tem data, o Título Único Ambiental (Doc. 2) tem a data de 7.09.2023 e o Programa de Trabalhos (doc. 3) a data de 23.03.2023, não sendo, pois, documentos objetivamente supervenientes.
Quanto à segunda situação, salvo o devido respeito, não pode ser entendido que a junção do documento se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância, sendo desprovida de fundamento, para este propósito, a alegação da omissão da apreciação da questão da necessidade do prédio para dar cumprimento ao contrato de concessão e ao Título Único Ambiental a que está vinculada.
A situação em que o argumento da necessidade é admissível relaciona-se com a novidade ou a imprevisibilidade da decisão, “com a eventualidade de a decisão ser de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo”.[5]
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa advertem que “a junção de documentos às alegações só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”. [6]
Tal significa que não é admissível a junção de documentos quando tal junção se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma direta e com a questão suscitada.
Sufragamos inteiramente o que, a propósito se escreveu no Ac. da Relação de Porto de 23.02.2023 “O que releva, portanto, é que a necessidade do documento não seja preexistente à decisão da 1.ª instância, não seja um dado com o qual a parte devesse contar já antes da decisão e independentemente desta, mas antes algo resultante da própria decisão, no sentido de que é a abordagem feita nesta que torna indispensável o documento e justifica que a parte não devesse contar antecipadamente com essa exigência. Quando, pelo contrário, a junção do documento corresponde a um dever de diligência que já antes a parte sabia ou devia saber que a onerava e a decisão de 1.ª instância é uma das que a parte tinha a obrigação de contar que pudessem ser proferidas, por mais que esperasse que a decisão fosse diferente, a junção do documento não se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância»[7]
Ora, na situação em apreço, a questão da necessidade do prédio para dar cumprimento ao contrato de concessão era matéria alegada na sua contestação, relacionando-se com factos que já antes da decisão da 1.ª instância a recorrente tinha consciência de que estavam sujeitos a prova.
Não há, pois, fundamento para a junção dos documentos.
Pelo exposto, não se admite a junção dos documentos apresentados pela recorrente em sede de alegações de recurso.
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2. Das invocadas nulidades da sentença

Invoca a recorrente EMP01... a nulidade da sentença. por omissão de pronúncia e falta de fundamentação.

Quanto ao primeiro vicio, considera que um dos temas da prova nos autos consistia no seguinte:
1 - Uso dado ao prédio e, quem lho deu, ao longo do tempo e com que caraterísticas - incluindo a passagem pelo prédio em causa, de água corrente, para abastecimento da localidade de ....
Face a este tema da prova, são pertinentes todos os factos alegados pelas partes relativos ao uso dado ao prédio, à identidade de quem deu esse uso, à duração desse uso, e às caraterísticas desse uso.
Entende ter alegado factos pertinentes para este tema da prova nos arts. 3º, 30º a 42º, 44º a 46º, 48º a 8 º, 53º e 54º da contestação, que não constam da decisão de facto.   
Vejamos.
O que se alega nestes artigos é que o prédio em causa fez parte de um couto mineiro. Não se invocou, porém, qualquer uso dado então ao prédio, nomeadamente, que ali houvesse sido feita qualquer mineração.
Analisada a contestação, o uso que a recorrente invoca ter sido dado ao prédio é o que lhe foi dado pelos réus e, antes, pelos pais do réu, desde data anterior a 1930 e, tal factualidade consta do elenco dos factos provados e não provados.
Como decorre do disposto n o artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608º, nº2, do CPC, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Tal norma reporta-se à falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar e não de argumentações, razões ou juízos de valor aduzidos pelas partes, aos quais não tem de dar resposta especificada ou individualizada, conforme tem vindo a decidir uniformemente a nossa jurisprudência.
Donde, no caso, não ocorre omissão de pronúncia.
Invoca, ainda, a recorrente EMP01... a nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto.
Esta nulidade visa especificamente a fundamentação da decisão (negativa) sobre a exceção de abuso do direito.
O Tribunal considerou que não se alegou/demonstrou "nada de concreto/objetivo, que permita concluir por uma manifesta desproporção entre as vantagens para a A. da entrega do prédio e o prejuízo que daí advirá à 2ª R.".

A apelante defende que alegou e demonstrou factos objetivos dos quais resulta essa desproporção, nos artigos 293º a 300º e 316º a 325º da contestação, nomeadamente que:
• A execução imediata da sentença causaria prejuízo considerável e atrasos na operação da concessão, devido à necessidade de deslocar equipamentos, escritórios e zonas de apoio, impedindo a realização de sondagens necessárias ao cumprimento da Declaração de Impacto Ambiental.
• O prejuízo advém do atraso de um projeto de mina de Lítio, essencial para a União Europeia, enquanto a vantagem para a Autora (Comunidade Local dos Baldios de ...) seria o uso agrícola de meio hectare (0,5 ha).
Ressalvado o devido respeito, a sentença não padece de vício de falta ou insuficiência de fundamentação.
A nulidade em razão da falta de fundamentação, de facto e de direito, que é a prevista no art. 615.º, al. b), está relacionada com o dever de o juiz de discriminar na decisão, os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Ora, no caso concreto, a sentença encontra-se amplamente fundamentada, de facto e de direito.
No que respeita especificamente ao abuso do direito, a sentença concluiu que não foi alegado, nem demonstrado nada de concreto ou objetivo que permitisse concluir por uma manifesta desproporção entre as vantagens para a autora e o prejuízo para a 2ª ré.
A discordância da recorrente face aos fundamentos da sentença, por não aceitar as consequências que a mesma extraiu do conhecimento da questão, efetuando uma diversa leitura, não configura juridicamente a nulidade invocada.
Assim, não padece a sentença das nulidades invocadas.                                     
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3. Impugnação da decisão da matéria de facto
Impugnam os apelantes a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Começando pela impugnação de AA e BB.
Entendem os recorrentes que a decisão proferida relativamente à matéria de facto, face à posição das partes nos seus articulados e face às provas documental, testemunhal e demais sinais dos autos, padece de erros graves, existindo, por isso, erro na apreciação das provas.
Defendem que as declarações prestadas na escritura de justificação e compra e venda são verdadeiras, e que a prova testemunhal produzida comprova a posse do prédio por si e seus antecessores.
Concretizam os seguintes depoimentos:
. depoimento de parte do réu AA, que afirmou que o prédio sempre lhe pertenceu, adveio à sua posse por doação dos pais para sustento da casa, e que sempre foi cultivado por eles e, antes, pelos seus pais. Afirmou que o terreno tem pedras soltas em volta e uma regueira;
. depoimento de parte da Ré BB, que disse que o terreno pertencia aos seus sogros e que eles ficaram a cultivá-lo, nunca ninguém tendo reclamado e sempre tendo sido deles "toda a vida".
. depoimentos das testemunhas FF, GG e HH, que afirmaram ter trabalhado o terreno para o autor AA, cultivando batatas, milho e centeio, e que o prédio tinha pedras em volta.
Em face destes elementos pedem que sejam alterados os factos não provados para os seguintes factos provados:
A. Os Réus e seus antecessores no domínio, designadamente os pais do Réu marido, possuíram o prédio rústico, composto de lameiro, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 5.762,30 metros quadrados, a confrontar do norte, sul, poente e nascente com baldio, inscrito na matriz sob o artigo ...38 da dita freguesia à vista de toda a gente.
B. Sem oposição de quem quer que fosse.
C. Beneficiando-o.
D. Dele recolhendo todos os seus frutos.
E. E dele pagando os respetivos impostos, taxas e contribuições. F. Dele gozando de todos os seus rendimentos.
G. Sempre assim agindo na convicção de serem os seus únicos dono.
H. E estarem, por isso, a exercer um direito próprio e exclusivo.
J. Os réus adquiriram o prédio em causa por doação dos pais do Réu marido.
K. Os réus sempre respeitaram e viram respeitados por todos os habitantes das localidades os limites da propriedade, os quais lhes foram transmitidos pelos seus antecessores no domínio.
L. E estava, nesse delimitado dos prédios confinantes por pedra solta. O prédio dos autos sempre esteve vedado e demarcado das “propriedades confinantes”, com muro de pedra solta, lá colocado por antepassados do Réu marido.
N. Os pais do Réu marido entravam e saíam publica, pacifica, contínua e livremente do prédio dos autos, como “proprietários” do mesmo, à vista de todos, sem oposição de ninguém.
O. Desde 1930 até 1977, que os pais do R. cultivavam, designadamente milho, batatas e centeio, publica, pacifica, contínua e livremente o prédio dos autos, como proprietários do mesmo, à vista de todos, sem oposição de ninguém.
P. Os Réus, minaram no prédio dos autos um poço, cuja água usavam para regar as culturas que nele faziam, designadamente milho, batatas e centeio.
Q. O R. auxiliava os seus pais nas limpezas do terreno, plantação de batatas, milho e centeio e outros afazeres agrícolas, no prédio em causa.
R. Os pais dos R. eram “pequenos agricultores”.
S. Em 1977, os pais do R. “doaram-lhe” o prédio em causa.
T. Estando, então, o R., convencido de que os seus pais eram os proprietários do prédio.
U. A Autora sabe que o prédio rústico em causa sempre pertenceu aos Réus e seus antecessores no domínio.
V. Nunca, desde que há memória, a Autora exerceu quaisquer atos de posse sobre o prédio em causa.
W. Sendo certo que o prédio dos Réus sempre esteve perfeitamente delimitado com um muro de pedra solta dos prédios limítrofes.
Apreciando.
A impugnação apresentada é uma impugnação em bloco e genérica, visando uma reapreciação global da prova.
O que pretendem os impugnantes é alterar os factos não provados em provados.
Para o efeito, limitaram-se a discorrer sobre os determinados meios de prova (depoimentos de parte e testemunhas) sem indicar, separadamente e com exatidão, os meios de prova que, relativamente a cada facto, impunham uma decisão diversa.
Não indicaram com exatidão as passagens da gravação dos depoimentos em que fundam a impugnação, nem apresentaram uma apreciação crítica detalhada dessa prova.
Ora, quando se quer infirmar a apreciação da prova realizada pelo Tribunal, impõe-se ao recorrente que apresente as razões objetivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro que fluiu em sentido divergente, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro de sentido oposto, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados ou da interpretação do que por estes foi dito feita pelo recorrente, depoimentos que o juiz a quo analisou e ponderou na decisão tomada.
Impõe-se a quem impugna que precise numa análise crítica as razões pelas quais a impugnação deve prevalecer perante a apreciação feita na decisão impugnada e que não pode suportar-se apenas na diferente convicção sobre a prova produzida.
Tais asserções entroncam no princípio da livre apreciação da prova, com assento no art. 607º, n.º 5, CPC, ou seja, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sem prejuízo de tal apreciação estar vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum e da lógica através de um convencimento lógico e motivado da decisão.
Assim sendo, pese embora incumba ao Tribunal da Relação formular o seu próprio juízo probatório acerca dos factos questionados de acordo com as provas constantes nos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 2, e 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, não se pode obnubilar-se que o julgamento humano se rege por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta e que o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da Primeira Instância sobre a matéria de facto apenas deve acontecer quando seja possível, com segurança, concluir pela existência de imprecisões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação e/ou de um erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Porque a apreciação exigida em sede de reponderação não pode subverter ou anular a livre apreciação da prova feita pelo julgador a quo, construída dialeticamente com sustentação na imediação e na oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, que vê e ouve as partes e testemunhas, que aprecia os seus gestos, hesitações, espontaneidade ou a falta dela, diferentemente da Relação, cingida à gravação áudio,  a alteração apenas deve ser realizada quando seja possível concluir, com a certeza e segurança exigidas, que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em sentido distinto do de que foi decidido no Tribunal a quo.
Na motivação da sentença recorrida, depois de efetuar um resumo do que relevante foi declarado pelas testemunhas, incluindo as agora indicadas pelos impugnantes, frisou-se que “não houve uma única pessoa que viesse dizer ter algum dia visto os pais do R. a fazer o que quer que fosse no prédio - senão os R.R. - , quando - na tese dos R.R. - os pais do R. cultivaram o terreno até por 1977, circunstâncias em que era normal haver pessoas com 60/70 e mais anos, que pudessem ainda estar vivas e pudessem ter visto os pais do R. a fazer ali alguma coisa no prédio - tal como houve pessoas que viram o que se fazia no prédio antes de 1977 - . Ninguém viu os pais do R. a fazer ali nada, porque nunca estes ali fizeram nada”.
Ora, os recorrentes não põem em causa esta apreciação crítica feita pelo tribunal a quo quanto à prova produzida, cingindo-se a dissentir genérica e inconsequentemente da valoração que foi feita, não avançando sequer com concretas razões pelas quais a sua avaliação é melhor que a do Tribunal recorrido e muito menos que a decisão recorrida enferme de algum erro de avaliação.
Ouvidos quer os depoimentos de parte quer os depoimentos das testemunhas em causa e cotejando-os com a valoração que sobre os mesmos incidiu por parte do Tribunal a quo não se encontra qualquer deficiência na avaliação que foi feita dos mesmos, concluindo-se forçosamente pela não prova da matéria relativa à posse com animus (intenção de agir como proprietários) sobre o prédio, exercida pelos réus e pelos seus antecessores.
De salientar que na sua impugnação os recorrentes fazem tábua rasa do que foi afirmado designadamente pela testemunha II, que exerceu as funções de presidente da Junta de Freguesia ... de 1983 a 1997, e que explicou, de forma clara e segura, que por volta da década de 80, um cunhado da 1ª ré (JJ), que era membro da junta de freguesia, contactou consigo (enquanto presidente da junta), a dizer-lhe que o réu tinha regressado à terra e que tinha poucos terrenos, pedindo-lhe então que o autorizasse a usar a cavada - a cultivar o terreno em causa nos autos - o que aponta para que a junta de freguesia tivesse “uma palavra” na administração do terreno.
A junta de freguesia concedeu essa autorização, tendo emitido uma declaração a dizer que os réus eram pobres e que necessitavam de explorar o terreno em causa. Nessa sequência, os serviços florestais terão passado uma licença para que os réus pudessem explorar o terreno em causa.
Mais referiu que, antes de os réus terem passado a cultivar o terreno, este não era cultivado, sendo usado pelos habitantes de ... para pastorearem os animais.
Esta factualidade veio a ser confirmada pelo testemunho de KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ.
Nestes termos, a impugnação da matéria de facto feita pelos recorrentes AA e BB deve improceder.
Quanto à impugnação da decisão da matéria de facto da recorrente EMP01....
No essencial a impugnação das duas recorrentes converge.
A EMP01... pretende que sejam julgados como não provados os factos provados sob os n.ºs 1, 2, 3 e 4, e que sejam julgados como provados os factos 1 e 8 julgados como não provados.
A Recorrente visa afastar a qualificação do terreno como baldio, questionando os factos relativos ao uso comunitário e à gestão pública anterior.
Os factos provados 1 e 2 respeitam ao uso imemorial do prédio pela população de ... para pastoreio e recolha de mato/estrume até à década de 1980.
Sustenta a impugnante que a expressão "tempos imemoriais" traduz um conceito jurídico e não um facto, pelo que não pode ser julgado provado. Acrescenta que o Tribunal se enganou entre a Comunidade de Baldios de ... (Autora) e a de ..., e que o uso do terreno terá sido de uso mineiro desde o tempo dos Romanos até 1991, o que é incompatível com o uso comunitário agrícola.
Cremos que assim não é.
Nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e matéria de direito, mas é consensual que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.
A expressão "tempos imemoriais" é uma expressão correntemente utilizada, sobretudo no âmbito da dominialidade pública, assumindo uma representação fáctica, por respeitar ao apuramento de ocorrências da vida real.
É recorrentemente utilizada pela jurisprudência no sentido de significar que o uso perdura através dos tempos, de tal modo que não se sabe quando começou, ou seja, que “o mesmo é tão antigo que o seu início se perdeu da memória dos homens.” – neste sentido o acórdão da Relação de Coimbra de 13.09.2011, proferido no Proc. 125/08.4TBFCR.C1, e acessível em www.dgsi.pt.
Trata-se, pois, de uma questão de facto, que como tal deve manter-se.
Entende a impugnante que o prédio sempre teve uso mineiro desde os Romanos até 1991. Este uso mineiro é incompatível com o uso comunitário que foi dado como provado.
Ressalvado o muito respeito, o descritivo do histórico do antigo ..., para aferir do uso mineiro do prédio dos autos desde os Romanos até à atualidade alegado na contestação, ainda que acompanhado das imagens que ilustram a descrição, não tem a virtualidade, por si, de provar tal uso.
Nem o depoimento da testemunha RR, que mais não pode afiançar que a existência de registos reportados à existência do ..., concessões de explorações e a cessação de exploração nos anos 90, é de molde a afastar o uso comunitário.
É que, o uso comunitário do terreno foi detalhadamente testemunhado por pessoas que assim o usaram e em particular pelo aquele que foi presidente da junta desde 1983 a 1997.

O facto 3 tem a seguinte redação:
“A gestão/administração desse terreno estava cometida à Junta de Freguesia ... e/ou aos serviços florestais do Ministério da Agricultura e atualmente aos compartes de ... que, para o efeito, se constituíram como Comunidade Local dos Baldios de ..., NIPC ...74, elegendo os seus órgãos próprios, nomeadamente o respetivo conselho diretivo.
Defende a impugnante que a alegação de que a gestão do terreno estava cometida à Junta de Freguesia e/ou aos Serviços Florestais do Ministério da Agricultura constitui matéria de Direito, e não matéria de facto.
Carece de fundamento tal asserção, nem a mesma vem sustentada.
A factualidade relativa à gestão/administração do terreno foi confirmada pelos próprios responsáveis, as testemunhas II que foi presidente da Junta de Freguesia ... e PP, administrador florestal da Direção Geral das Florestas.
Quanto ao facto 4, autorização para cultivo na década de 1980, entende a impugnante que uma autorização administrativa é um ato administrativo, não sendo admissível a prova por testemunhas.
Também este ponto carece de fundamento.
Não está em causa a análise da validade ou impugnação de qualquer ato administrativo. Demonstrou-se que a junta de freguesia autorizou os réus a cultivar o terreno, tendo formalizado essa autorização por meio de uma declaração escrita.
Igualmente se demonstrou que a Direção Geral das Florestas concedeu licença para o cultivo do prédio.
A conclusão relevante para o efeito da decisão da causa é a que foi extraída pelo Tribunal a quo e constante do facto provado 4.
Os factos não provados 1 e 8.
Quanto ao ponto 1, o alcance pretendido pela impugnante de que o uso não era exclusivo da Recorrida (Comunidade de Baldios de ...) é contrário ao sentido dos depoimentos prestados, confirmatórios de que o terreno é baldio, propriedade comunitária dos compartes de ..., usufruído por estes e gerido pela Comunidade Local dos Baldios de ....
O ponto 8 que deu como não provado que os pais dos réus eram “pequenos agricultores”, tem de manter-se.
As testemunhas a que se deu total credibilidade, pela sua razão de ciência, afirmaram unanime e perentoriamente que os pais dos réus nunca cultivaram aquele terreno, a maior parte delas tendo declarado nunca os ter conhecido.
Apresenta-se de meridiana compreensão que a circunstância de se ter dado como provado que os réus praticam agricultura essencialmente de subsistência, não leva, necessariamente, a que se julgue provado que os seus pais eram "pequenos agricultores" (como pretendido pelos impugnantes).
Em face de todo o exposto, improcede a impugnação da matéria de facto.
*
4. Do mérito da sentença
Sendo improcedente a impugnação da matéria de facto, cabe agora verificar se a solução alcançada na sentença recorrida é de manter.
A sentença concluiu pela procedência da ação e declarou a ineficácia da escritura de justificação e compra e venda, declarando que o prédio justificado é baldio, propriedade comunitária dos compartes de ..., ordenando a sua restituição por parte da ré EMP01... à autora. Condenou ainda os 1ºs réus como litigantes de má fé.
Os réus discordam desta decisão.
Os réus AA e BB, defendem o seu direito de propriedade e a validade da venda subsequente na aquisição originária por usucapião (prescrição aquisitiva).
Como resulta das conclusões do recurso, a pretendida alteração da decisão, na parte da matéria de direito, dependia totalmente da modificação/alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, o que se não verificou.
Nesta medida, considerando o disposto pelo art. 608.º nº2 aplicável ex vi do nº2, do art. 663.º, ambos do CPC, e não se nos impondo tecer quaisquer considerações quanto à bondade e acerto da decisão da primeira instância no âmbito da subsunção dos factos às normas legais correspondentes, temos que a apelação dos Recorrentes AA e BB terá de inevitavelmente improceder.
Importará apreciar a litigância de má-fé.
Foram os 1.ºs réus condenados como litigantes de má fé, por se ter considerado que alegaram factos de natureza pessoal (relativos à posse dos seus pais, à doação e à convicção de serem proprietários) que sabiam ser inverídicos e, ainda assim, invocaram-nos.
Os recorrentes, ao tentarem provar a veracidade desses factos na apelação, pretendem demonstrar que não alteraram a verdade dos factos nem omitiram factos relevantes, pelo que não devem ser condenados como litigantes de má-fé.

Apreciemos.
A pretendida alteração da decisão da matéria de facto, não se verificou. Logo, os factos a atentar são os descritos na sentença.

Atente-se nos factos invocados pelos réus e que se demonstraram serem inverídicos:
a) Desde 1930 até 1977, os pais do R. entravam, estavam e saíam publica, pacifica, contínua e livremente do prédio dos autos, como “proprietários” do mesmo, à vista de todos, sem oposição de ninguém;
b) Desde 1930 até 1977, os pais do R. cultivavam, designadamente milho, batatas e centeio, pública, pacifica, contínua e livremente o prédio dos autos, como proprietários do mesmo, à vista de todos, sem oposição de ninguém;
c) Os pais do R. minaram no prédio dos autos um poço, cuja água usavam para regar as culturas que nele faziam, designadamente milho, batatas e centeio;
d) O R. auxiliava os seus pais nas limpezas do terreno, plantação de batatas, milho e centeio e outros afazeres agrícolas, no prédio em causa;
e) Em 1977, os pais do R. “doaram-lhe” o prédio em causa;
f) Estando, então, o R., convencido de que os seus pais eram os proprietários do prédio;
g) Desde 1977 que ocorreu o constante de 6 e 7.
h) Os R.R. atuaram nos termos constante de 6 a 8, convictos de serem proprietários do prédio.
Demonstrou-se, ao invés, que na década de 1980, os réus foram autorizados pela Junta de Freguesia ... e pela Direção Geral das Florestas, a cultivarem o prédio em causa.
Isto posto.
A lei atribui aos sujeitos processuais o direito de solicitar ao Tribunal uma determinada pretensão, todavia esta deve ser apoiada em factos e razões de direito de cuja razão esteja razoavelmente convencido, sob pena de haver lugar à sua responsabilização (princípio da auto-responsabilidade das partes).
É nestes princípios que assenta o instituto da litigância de má-fé, consagrado nos artigos 542.º e seguintes do Código Processo Civil o qual visa sancionar uma conduta processual das partes censurável, por desconforme ao princípio da boa-fé pelo qual as mesmas devem reger a sua conduta.
Corresponde o instituto da litigância de má-fé a uma responsabilidade agravada, que assenta na negligência grave ou dolo do litigante.
Se a parte atuou de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a sua conduta é lícita e é condenada apenas no pagamento das custas do processo, como risco inerente à sua atuação.
Se a parte procedeu de má-fé, na medida em que sabia ou devia saber que não tinha razão, ou não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume-se como ilícita, configurando um ilícito processual a que corresponde uma sanção, que pode ser penal e/ou civil (multa e indemnização à parte contrária), e cujo pagamento acresce ao pagamento das custas processuais.

Nos termos do disposto no art. 542.º, n.º 1 do CPC, tendo uma ou ambas as partes litigado de má-fé, será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária. E nos termos do n.º 2 diz-se litigante de má-fé quem com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;   
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Enquanto as alíneas a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má fé material ou substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má fé processual ou instrumental - neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º., 3ª edição, pag. 457.
Resulta desta disposição legal que não só as condutas dolosas, como também as gravemente negligentes, são sancionáveis.
O legislador deixou ainda clara a desnecessidade, quanto à prova, da consciência da ilicitude do comportamento e da intenção de conseguir objetivos ilegítimos (atuação dolosa), bastando que seja possível formular um juízo de censurabilidade.[8]
No entanto, não deve confundir-se litigância de má-fé com:
- a mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento;
- a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
- discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos;
- a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr convencer; ou
- a ousadia de apresentação de determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada.
Constitui hoje entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do art. 542º do CPC. Haverá sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, recomendando-se na formulação do juízo sobre essa má fé uma certa prudência e razoabilidade.[9]
Conformemente, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave.
Exige-se, pois, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade de determinada conduta praticada no exercício de um direito processual, se houver manifesto abuso, traduzindo-se esse exercício em termos clamorosamente ofensivos da boa fé e da cooperação. Revela um desajustamento evidente e insuportável a estes princípios a invocação de argumentos cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar, mas de tal modo que estes sejam repelidos pelo sistema jurídico globalmente apreciado à luz das regras da boa fé.
Daí que a conclusão no sentido da litigância de má fé não pode ser extraída mecanicamente da verificação de comportamento processual recondutível à tipicidade das várias alíneas da norma legal. A delimitação dessa responsabilização impõe uma apreciação casuística.
No caso, os réus trouxeram ao processo factos de natureza pessoal que sabiam não serem verdadeiros e, ainda assim, invocaram-nos, tendo atuado dolosamente, sabendo e querendo invocar factos essenciais para a decisão da causa, que sabiam serem inverídicos.
Note-se que os réus alegaram que o prédio lhes foi doado pelos seus pais, quando se demonstrou que foi a junta de freguesia que os autorizou a usar aquele prédio.
Como defende a recorrida, a conduta dos 1ºs réus não foi um mero caso de não demonstração de alegações, mas sim de alteração da veracidade de factos pessoais e alegação concomitante de factualidade que bem sabiam não corresponder à verdade.
Tal conduta implicou que houvesse toda a atividade processual que não teria havido se os factos inverídicos não fossem invocados, e o processo poderia ter conduzido a uma decisão desconforme com a realidade, fruto da invocação desses factos inverídicos.
Impõe-se, concluir, que os réus deduziram defesa cuja falta de fundamento não deviam ignorar e alteraram a verdade dos factos. E fizeram-no de forma culposa, com elevada censurabilidade, atenta a natureza pessoal dos factos de que eram conhecedores. 
Impõe-se, nestes termos, a confirmação do decidido.
Consequentemente, o recurso dos 1.ºs réus terá de improceder em toda a sua extensão.
*
Quanto ao recurso da 2ª ré, o quadro factual arreda a construção argumentativa alicerçada na evolução legislativa reguladora dos baldios, pois que se demonstrou que existe um prédio rústico; que esse prédio rústico é um baldio desde tempos imemoriais, sendo usado e fruído pelos moradores de determinado local, de acordo com os usos e costumes reconhecidos pela comunidade.
No caso, a gestão ou administração desse terreno estava cometida à Junta de Freguesia ... e/ou aos serviços florestais do Ministério da Agricultura e atualmente aos compartes de ... que, para o efeito, se constituíram como Comunidade Local dos Baldios de ..., elegendo os seus órgãos próprios, nomeadamente o respetivo conselho diretivo.
Como bem se refere na sentença, tal factualidade, traduz a prática imemorial, de atos de uso e fruição, de posse útil e gestão, por parte dos compartes do lugar onde se situa, sobre o prédio em causa, podendo assim concluir-se, fazer tal terreno parte do baldio de ... e ser o mesmo propriedade comunitária dos compartes do referido baldio.
A questão do registo e oponibilidade de baldios suscitada pela recorrente, é afastada dada a inaplicabilidade ao caso do invocado art. 5º do Código de Registo Predial. À luz deste preceito, e de acordo com o seu nº4, terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Não é o caso.
Isto posto.
Assente que está a ineficácia da escritura de justificação e compra e venda e a questão da titularidade do prédio, propriedade comunitária dos compartes de ... - uma vez que a decisão de facto que contendia com esta matéria não foi alterada -, cumprirá apreciar se deve ser ordenada a restituição do prédio.
Para impedir a restituição do prédio a recorrente invoca a exceção de abuso de direito, baseando-se numa manifesta desproporção entre as vantagens da Autora (uso agrícola de meio hectare), e as desvantagens de atrasar a concessão, atrasando a obtenção de lítio para a União Europeia. 
Considera, pois, a recorrente que o efeito pretendido de restituição do prédio deve ser paralisado pelo instituto do abuso de direito, na modalidade de desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.
A justificação do instituto do abuso do direito, normativamente previsto no artigo 334.º da lei civil, assenta em razões de justiça e de equidade, podendo-se afirmar que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um direito, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.
As situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, assenta em diferentes tipologias as quais permitem, em termos jurídicos, enquadrar parâmetros de atuação aptos a concretizar os conceitos indeterminados em que está ancorado o instituto do abuso do direito.
Uma dessas tipologias é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
O abuso de direito na modalidade de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas está já bem sedimentado na dogmática jurídica, sendo definido como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objetivo).
Este tipo de comportamento abusivo diz respeito à desproporcionalidade que se pode verificar entre o exercício de posições jurídicas e os seus efeitos.

Esta categoria pode ser preenchida pelos seguintes subtipos:
a) O exercício danoso e inútil, segundo o qual será abusivo, por contrariedade à boa-fé, todo o comportamento que tem como propósito causar dano a outrem sem que o titular exercente dele tire qualquer utilidade. Este tipo de comportamento abusivo resulta da associação entre o exercício inútil (atos chicaneiros) e a intenção de prejudicar (os emulativos), e manifesta-se abusivo porque contrário a valores fundamentais do sistema.
b) O dolo agit, age com abuso aquele que exige algo que terá de restituir imediatamente.
c) A desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício imposto a outrem. Integram esta submodalidade de abuso situações como o desencadear de poderes-sanção por faltas insignificantes, a atuação sem direito com lesão intolerável de outras pessoas e o exercício jurídico subjetivo sem consideração por situações especiais[10].

Em todos estes casos verifica-se uma desproporção entre as situações sociais típicas prefiguradas pelas normas jurídicas que atribuem as posições jurídicas e o resultado prático do exercício das mesmas. O desequilíbrio no exercício requer-se, em áreas de comportamentos danosos, ainda que dotados de legitimidade formal, o atender redobrado às dimensões cinéticas implicadas como forma privilegiada de controlar, em toda a sua extensão e não apenas a nível constitutivo, a compatibilidade dos exercícios com a ordem jurídica no seu todo[11].
A propósito desta tipologia de abuso de direito, escreveu-se no Acórdão do STJ, de 24.02.2015, que “na sua variante de exercício em desequilíbrio – desproporção grave entre o exercício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem – o abuso de direito resultará da prática de uma acção que pelas circunstâncias ultrapasse os limites razoáveis do exercício de um direito, provocando danos a um terceiro - apresenta-se, desta forma, como um resultado do princípio da proporcionalidade conatural à própria ideia de justiça, intuída como proporção ou justa medida”[12].

No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 15.06.2023 refere que “I- A figura do abuso de direito tem subjacente a intenção de assegurar que na aplicação do Direito, das normas positivas, se encontre uma ideia de justiça, que deve observar-se sempre em função das concretas circunstâncias de cada caso, observadas as especificidades da vida, sem que porém se entre numa ideia de discricionariedade; a aplicação da figura do abuso de Direito deve orientar-se por um critério objectivo, pela aplicação dos princípios gerais de direito, em especial o princípio geral da boa-fé, para que o resultado ou solução a que se chega possa servir melhor esse ideal de justiça. II – O desequilíbrio no exercício do direito caracteriza-se pela desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem, sem que se ponha em causa o direito do titular. III - A questão é saber se o exercício desse direito se revela, no caso concreto, desproporcionado; desequilibrado, em termos que ofendam outros princípios e valores validamente vigentes no nosso ordenamento jurídico, observada a situação material subjacente, ponderação que se tem de fazer através da análise das concretas circunstâncias de cada caso”[13].
No caso, a desproporção ou desequilíbrio alegado pela recorrente não obteve sustentação no quadro fáctico apurado.
Mas ainda que se admita o atraso no arranque do projeto de exploração de lítio, mesmo assim, a pretensão da autora, de ver declarado o seu direito de propriedade e consequentemente exigir que o prédio lhe seja restituído, não configura uma situação de abuso de direito.
Sendo certo que com a restituição do terreno a recorrente não poderá dar início à projetada exploração de lítio, admitindo-se que tal situação acarrete custos financeiros, também é verdade que este resultado não torna ilícito o exercício do direito da autora à restituição do baldio, consequência natural e querida pela ordem jurídica em decorrência do reconhecimento do direito de propriedade (art. 1311.º do Código Civil).
Desequilibrado seria esvaziar o reconhecimento do direito de propriedade de alguém, não lhe restituindo a coisa, porque outrem nela iniciou uma determinada exploração, por muito relevante economicamente que ela seja.
O único meio de tornar efetivo o direito dos compartes ao uso e administração do terreno baldio é a restituição do baldio livre e desocupado.
Na verdade, seria a paralisação do exercício do direito da autora que criaria uma situação de grave desequilíbrio em seu prejuízo, na medida em que tal implicaria a manutenção da ocupação do terreno pela ré sem qualquer contrapartida à titular do direito de uso e fruição do baldio.
A vantagem que o baldio pode proporcionar não pode ser resumida à que resulta da sua aptidão para a pastorícia e para a exploração da floresta, mas àquela que resulta também de outras potencialidades rentáveis, como a que decorre da exploração de lítio.
Donde, do cotejo entre a consideração da vantagem que pode ser auferida pelo titular do direito e a avaliação do sacrifício que é imposto pelo exercício do mesmo, não resulta a intolerável desproporcionalidade entre esses polos.
Faz-se notar, ainda a propósito desta matéria, que a recorrente veio pedir que ao recurso fosse atribuído efeito suspensivo, invocando que a execução imediata da sentença implicaria atrasos na operação da concessão, tornando necessário deslocar todos os equipamentos, incluindo escritórios e zonas de apoio aos trabalhadores e colaboradores, o que impediria a realização de sondagens necessárias ao cumprimento da declaração de impacte ambiental.
O Tribunal a quo considerou verificado o pressuposto em causa, de que a execução da decisão causaria prejuízo considerável à recorrente e atribuiu efeito suspensivo ao recurso, ficando, porém, a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução.
A verdade, é que a recorrente não prestou a caução.
Esta atuação, em certa medida, esvazia de sentido a sua argumentação quanto ao prejuízo que poderá sofrer com os efeitos do exercício do direito pela autora.
Cremos que se mostra contraditório pretender manter a ocupação do terreno com a invocação da desproporção entre as vantagens para a autora com a entrega do prédio e o prejuízo que daí adviria para a ré, quando a ré sequer cumpriu a condição que se lhe exigia para obstar à execução imediata da decisão.
Através do instituto do abuso de direito, o Direito procura evitar a verificação de um resultado que se apresente contrário ao sentido ético-jurídico de justiça e da justa medida das coisas.
Não há, na situação presente, um despropósito entre o exercício do direito e os efeitos que dele derivam, não resultando uma intolerável desproporcionalidade entre estes efeitos e o sacrifício que deles resultam para a contraparte.
Por tudo o que se deixa exposto, impõe-se a improcedência da apelação.
*
V. DECISÃO

Perante o exposto, acordam as Juízes que constituem este Coletivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar totalmente improcedentes as apelações e em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 9 de Outubro de 2025

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º - Adj. - Des. João Paulo Dias Pereira


[1] Elaborado com base no relatório da sentença apelada.
[2] Neste sentido, o Acórdão da relação de Coimbra de 18/11/2014, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Como afirmam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, In Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, p. 533.
[4] Assim o Acórdão da Relação de Coimbra de 27/11/2020, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 5.ª edição, pag. 242.
[6] Código Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, pag. 813.
[7] Proferido no processo nº 30/21.9T8PVZ.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., 3ª edição, pag. 341.
[9] Abrantes Geraldes, ob. cit, pag. 341.
[10] Gorki Salvador, “O exercício inadmissível de posições jurídicas: a exegese do artigo 334.º do Código Civil”. p. 210 e segs e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Volume VV, pp. 345 e segs.
[11] Ob. cit. p. 211.
[12] Proferido no processo n.º 283/2002.P2.S1, disponível em www.dgsi.pt
[13] Acórdão proferido no processo nº 147/06.0TCSNT-B.L1-6, disponível em www.dgsi.pt.