Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6716/24.9T8GMR-B.G1
Relator: JOÃO PAULO PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PACTO DE JURISDIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Decidida a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses com base em factos notórios - que não carecem, por isso, de alegação - não se verifica a violação do princípio do contraditório por prolação de decisão surpresa se aquela excepção foi alvo de debate pelas partes nos respectivos articulados e se o enquadramento e solução jurídicos não foram surpreendentes.
II – É válido como pacto de jurisdição a menção escrita em facturas proforma, assinadas por ambas as partes, «em caso de litígio, a questão será julgada em qualquer tribunal do Paquistão.», não sendo para a empresa portuguesa a escolha desse foro um inconveniente grave gerador da sua ineficácia.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães, 
 
I – Relatório
 
EMP01..., LDA., com sede na Avenida ..., Pousada ..., ..., instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra EMP02... LIMITED, com sede em ..., ..., ..., ..., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total de € 169.011,80, acrescida de juros de mora vincendos contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou o cumprimento defeituoso por parte da Ré de dois contratos de fornecimento de diversas quantidades de fio encomendadas pela Autora, que não apresentavam a qualidade esperada.
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Na sua contestação, a Ré invocou, além do mais, a incompetência dos tribunais portugueses para a preparação e julgamento da acção, alegando, para o efeito, que tem a sua sede no Paquistão e que, nos dois contratos de compra e venda, assinados por ambas as partes, incluíram a menção “Em caso de litígio, o assunto será julgado em qualquer tribunal do Paquistão”, o que constitui uma convenção de jurisdição exclusiva dos tribunais do Paquistão para dirimir qualquer litígio eventualmente emergente dessa relação contratual.
Concluiu, pedindo a sua absolvição da instância.
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A Autora respondeu, alegando que o único elemento de conexão da relação contratual externo a Portugal é a sede da Ré ser no Paquistão, sendo certo que o direito invocado pela Autora não pode tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território nacional, para além de que se verifica uma apreciável dificuldade na propositura dessa mesma ação no Paquistão.
Alega, ainda, que não foi celebrado entre a Ré e a Autora um pacto privativo e atributivo de jurisdição exclusiva aos tribunais do Paquistão, desde logo porque não se mostram cumpridos todos os requisitos legais previstos no artigo 94º, nº3 do CPC, concretamente os fixados nas alíneas c) e e).
Quanto ao inconveniente grave na propositura da acção no Paquistão, invoca a existência naquele país de uma grande instabilidade social e política, onde as garantias de salvaguarda dos direitos da Autora sempre seriam muito limitadas.
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Finda a fase dos articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi negado provimento à excepção de incompetência internacional que havia sido suscitada pela Ré.
Na fundamentação desta decisão, após analisar s pressupostos e as condições de validade do pacto de jurisdição, o tribunal de 1.ª instância concluiu ser do conhecimento público que ocorreram conflitos armados entre o Paquistão e a Índia (situação que ainda não está estabilizada), para além de se tratarem de estados que possuem, ambos, armamento nuclear, pelo que foi entendido que esta circunstância integra a ressalva contida na parte final da alínea c) do n.º 3 do art.º 94.º, do CPC (inconveniente grave), com a consequente ineficácia do pacto de jurisdição celebrado entre as partes.
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Inconformado com esta parte do despacho saneador, dele interpôs a Ré o presente recurso, pugnando pela incompetência internacional dos tribunais portugueses.

Para o efeito, formulou conclusões que aqui se sintetizam
a) o tribunal de 1.ª instância pronunciou-se sobre factos que não haviam sido invocados pelas partes, o que, mesmo que se tratem de factos notórios, surpreendeu a recorrente com consequências processuais desfavoráveis com as quais, razoavelmente, não contava, constituindo uma violação do princípio constitucional do processo equitativo e a nulidade prevista no art.º 195.º n.º 1 do CPC;
b) o inconveniente grave a que se refere o artigo 94º, n 3, alínea c), do CPC tem de ser atual, sendo certo que existe um acordo de cessar-fogo que foi comunicado no dia 10 de maio de 2025 e não existiu novo conflito entre ambos os Estados desde essa data;
c) a situação no Paquistão encontra-se totalmente normalizada, encontrando-se todas as instituições, incluindo as judiciais, funcionais; toda a actividade comercial, industrial e financeira no território do Paquistão encontra-se a operar normalmente sem qualquer restrição/interrupção, pelo que não se verifica inconveniente grave para a recorrida em instaurar a acção no tribunal acordado em sede de pacto de jurisdição;
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A Autora apresentou resposta às alegações de recurso da Ré, considerando que deve ser mantida a decisão recorrida e reafirmada a competência dos tribunais portugueses pelos seguintes motivos:
a) Não foi celebrado um pacto de jurisdição que atribua competência exclusiva aos tribunais do Paquistão;
b) Tratando-se a Ré de uma entidade sediada no Paquistão sem qualquer filial, sucursal ou delegação em Portugal, país aquele com uma grande instabilidade social e política, onde as garantias de salvaguarda dos direitos da Autora sempre seriam muito limitadas, é manifesto que a atribuição de competência exclusiva aos tribunais daquele país configuraria um inconveniente grave para a Autora, amplamente justificado não só com o conflito armado com a Índia, mas também com o recente conflito entre o Irão (país com o qual faz fronteira) e Israel;
c) Não existe qualquer inconstitucionalidade, nem nulidade consubstanciada numa decisão surpresa do tribunal de 1.ª instância, dado que a decisão recorrida não foi alicerçada em quaisquer factos novos porquanto, todos os factos constam do processo e de notícias que são públicas em todo o mundo, não só em Portugal.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
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Nesta Relação foi considerado o recurso corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Das questões a decidir

O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC). 

Assim, as principais questões que importa apreciar e decidir, neste recurso, são as seguintes:
- saber se foi ou não proferida pelo tribunal de 1.ª instância decisão surpresa, por se ter pronunciado sobre factos que não haviam sido invocados pelas partes;
- apreciar se entre as partes foi celebrado um pacto de jurisdição e, caso afirmativo, se o mesmo é ineficaz por se verificar a ressalva da existência de inconveniente grave da propositura da acção nos tribunais paquistaneses.  
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III – Fundamentação
 
III – I. Da Fundamentação de facto
Os factos que aqui importa considerar e que, em função dos elementos constantes dos autos, se mostram provados, são os acima descritos no relatório desta decisão, os quais, por razões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
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III - II. Do objeto do recurso
             
a) Decisão surpresa
Passemos, então, ao tratamento da primeira questão enunciada.
Alega a recorrente que o tribunal de 1.ª instância fundamentou a decisão (no sentido de negar provimento à excepção de incompetência internacional) com base em factos  -  terem existido conflitos armados entre o Paquistão e a Índia, situação ainda não estabilizada, tratando-se de estados que possuem armamento nuclear  -  que não haviam sido invocados pelas partes e, mesmo que se possam considerar factos notórios, foi surpreendida por consequências processuais desfavoráveis com as quais, razoavelmente, não contava, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre esses factos.
Invoca, assim, a nulidade da decisão de 1.ª instância, nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 1, do CPC e a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo tribunal de 1.ª instância, por violação dos princípios do processo equitativo e da confiança.
Vejamos:
A decisão desta questão reconduz-se a saber se, ao fundamentar a decisão naqueles termos, o tribunal de 1.ª instância proferiu ou não uma decisão surpresa. Esta, por sua vez, é a proferida sem observância do princípio do contraditório e em violação do disposto no art.º 3.º n.º 3 do CPC.
Prevê esta norma que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
O que se pretende é impedir, a coberto deste princípio, que as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão (neste sentido, cfr. António Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3.ª edição, em anotação ao art.º 3.º do CPC).
Como resulta da ressalva prevista no citado n.º 3 do art.º 3 do CPC, a audição das partes pode, porém, ser dispensada em casos de “manifesta desnecessidade”, ou seja, sempre que as partes não possam, objetivamente e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respetivas consequências (neste sentido, Ac. da R.L., de 24/04/2018, Rel. Luís Filipe Sousa, in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/2018116294416).
No caso em apreço, a fundamentação da decisão de primeira instância centra-se no facto de ter existido recentemente de um conflito armado entre o Paquistão e a Índia, situação ainda não estabilizada e no facto de se tratarem de estados que possuem armamento nuclear, factos que são do conhecimento público, como também é aí referido.
Estamos, pois, perante factos notórios, factos que são do conhecimento geral, tal como os caracteriza o art.º 412.º n.º 1 do CPC, os quais não carecem de prova, nem de alegação, podendo por isso ser convocados pelo julgador na decisão sem quaisquer restrições (cfr. Art.º 5.º n.º 2 al. c) do CPC).
Ora, não carecendo de alegação e de prova e não podendo as partes alegar o desconhecimento destes factos, a desnecessidade da sua audição quanto aos mesmos é manifesta, pois não poderia levar a que não fossem considerados verificados.
Por outro lado, a invocação destes factos notórios não determinou que as partes fossem confrontadas com uma solução jurídica inesperada
Como se escreveu no Ac. do STJ. de 12/01/2021, Rel. Graça Amaral (Proc. n.º 3325/17.2T8LSB-B.L1.S1, in https://www.dgsi.pt/jstj) «Só se justificará a audição prévia das partes quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável de forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso».
Porém, tal não sucedeu no caso em apreço.
A excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses foi alvo de debate pelas partes nos respectivos articulados. Por outro lado, o enquadramento jurídico dado pelo tribunal de 1.ª instância não emerge de factualidade nova que carecesse de alegação e prova ou que as partes não devessem ter pleno conhecimento, nem a solução jurídica de atribuição de competência foi surpreendente.
Assim, conclui-se que não foram violados quaisquer princípios constitucionais ou jurídico-processuais, nomeadamente os princípios do processo equitativo, o princípio da confiança ou o princípio do contraditório, nem a interpretação efectuada pelo tribunal de 1.ª instância viola os princípios constitucionais mencionados pela recorrente.
Questão diversa e que trataremos a seguir é a de saber se a convocação destes factos notórios é susceptível de conduzir à solução jurídica a que chegou o tribunal de 1.ª instância.
Em face do exposto, nega-se provimento à nulidade invocada pela recorrente e
conclui-se pela não verificação da inconstitucionalidade suscitada, julgando improcedentes as respectivas conclusões de recurso.
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b) Pacto de Jurisdição
A segunda questão a decidir está em saber se entre as partes foi celebrado um pacto de jurisdição e, caso afirmativo, se o mesmo é ineficaz por se verificar inconveniente grave da propositura da acção nos tribunais paquistaneses.
Na decisão sob recurso entendeu-se que entre as partes foi, efectivamente, celebrado um pacto de jurisdição, mediante o qual foi atribuída aos tribunais do Paquistão a competência para dirimir os litígios emergentes da relação contratual que vigorou entre recorrente e recorrida.
No entanto, o tribunal de 1.ª instância entendeu que este pacto é ineficaz, julgando verificada a ressalva contida na parte final da alínea c) do n.º 3 do art.º 94.º do CPC: a existência de inconveniente grave na eleição do foro do Paquistão.
Na sua resposta às alegações de recurso, a recorrida, apesar de referir que não corresponde à verdade ter sido celebrado um pacto de jurisdição, invoca que apenas não se encontram verificados os requisitos de validade previstos nas als. c) e e) do n.º 3 do art. 94.º do CPC.

Vejamos:
De harmonia com o disposto no art.º 94.º n.º 1 do CPC, «As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.».

O n.º 3 do mesmo artigo estabelece os requisitos legais cumulativos para a validade da eleição do foro:
a) Dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;
b) Ser aceite pela lei do tribunal designado;
c) Ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde
que não envolva inconveniente grave para a outra;
d) Não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
e) Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.

No caso em apreço e como bem se referiu na decisão recorrida, consta das facturas proforma, assinadas por ambas as partes e juntas pela Ré na Contestação, a estipulação segundo a qual «em caso de litígio, a questão será julgada em qualquer tribunal do Paquistão.», pelo que não há quaisquer dúvidas de que o pacto jurisdição existiu de facto.
Também não merece contestação que observou a forma escrita e foi aceite por ambas as partes, de forma expressa, mediante a aposição das respectivas assinaturas (aliás, esta aceitação poderia, até, ser tácita, mediante adesão sem reservas  -  cfr. o Ac. do STJ de 08/10/2009, Rel. Serra Baptista, Proc. n.º 5138/06.8TBSTS.S1, in www.dgsi.pt).
Assim, nada mais é necessário para se considerar verificado o requisito de validade previsto na al. e) do n.º 3 do art.º 94º do CPC, sendo também suficiente a nomeação genérica da jurisdição (dado que as respetivas regras de competência interna indicariam depois o tribunal concretamente competente  -  J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, pág. 219, obra citada na decisão recorrida), que foi, em exclusivo, a paquistanesa. 
No presente recurso, está também em causa apurar se se verifica ou não o requisito constante da al. c): ser a escolha justificada por um interesse sério de ambas as partes; ou de apenas uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra.
O interesse sério a que se refere esta norma resulta óbvio desde que se reporte ao domicílio ou à sede de uma das partes em litígio. No caso, a escolha recaiu pelo domicílio da sede da recorrente, sendo inquestionável o seu interesse em fixar este foro.
Porém, há que averiguar se esta escolha não envolve inconveniente grave para a outra parte, a recorrida.
Este requisito destina-se essencialmente a salvaguardar a posição da parte mais fraca, pretendendo-se evitar que a escolha recaia sobre um tribunal com o qual a causa e as suas partes não possuam qualquer conexão relevante (Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 2.ª edição, 2007, pág. 127).
No caso em apreço, dos elementos constantes do processo e da alegação das partes nada permite concluir que uma parte possa considerar-se mais fraca do que a outra, sendo ambas sociedades comerciais. Por outro lado existe conexão de uma das partes com o foro escolhido, pelo que neste plano não existe inconveniente em validar a escolha.
O tribunal de 1.ª instância, como já vimos, entendeu que o inconveniente grave resultaria do facto de terem existido conflitos armados entre o Paquistão e a Índia, situação ainda não estabilizada e com a circunstância de estarmos perante estados que possuem armamento nuclear.
Ora, embora estes sejam, como já foi decidido, factos notórios do conhecimento geral, a verdade é que, ao contrário do que entendeu a 1.ª instância, os mesmos não podem de maneira nenhuma fundamentar a existência de inconveniente grave na escolha do foro paquistanês.
Como é do conhecimento público, o conflito Índia-Paquistão tem por base a disputa pela região de Caxemira, território situado a Norte de ambos os países e administrado parcialmente por cada um deles.
Esta disputa, porém, não é recente e já ocorre há várias décadas (desde 1947!), existindo desde então focos de confrontos armados periódicos, embora restritos a essa região, como aconteceu uma vez mais em Abril e Maio passados.
Esta realidade não podia, pois, ser ignorada pelas partes quanto efectuaram o pacto de jurisdição, tratando-se de um conflito que já se iniciou há quase 80 anos. Nem a recorrida manifestou qualquer tipo de reserva na validade desse pacto até à instauração da presente acção.
Ora, para que um conflito armado possa ser susceptível de causar inconveniente grave na escolha do foro nacional é necessário que seja de tal forma agudo, violento e persistente que cause ou seja susceptível de causar sério risco de que o direito não possa tornar-se efectivo nos tribunais do país escolhido, seja porque as instituições públicas não funcionem por aquela razão, ou até porque a dimensão do conflito impede a deslocação em segurança de magistrados, funcionários, advogados, peritos e testemunhas. É o que, certamente, se passa em países e territórios em guerra aberta, como acontece na Ucrânia, em Gaza ou no Sudão.
Substancialmente diferente é a situação que se vive na Paquistão, onde não há relatos de que as instituições, em particular as judiciais, não se encontrem em pleno funcionamento em razão da existência do conflito regional em Caxemira.
Também o facto da Índia e do Paquistão terem armamento nuclear não é, naturalmente, argumento válido para este efeito, pois a entender-se de forma contrária nenhum contraente poderia validamente escolher como foro os tribunais, por exemplo, dos Estados Unidos, Reino Unido, França ou China.
Assim, ao contrário do decidido pela 1.ª instância, a existência desta disputa territorial, que periodicamente gera conflitos armados, embora circunscritos à região acima referida, não pode considerar-se inconveniente grave na escolha dos tribunais paquistaneses através de um pacto de jurisdição.
Refira-se, ainda, reforçando o já afirmado, que a sede da Ré se situa na cidade ..., localizada bem longe das zonas de conflito.
Afastado o fundamento utilizado pala 1.ª instância para julgar ineficaz o pacto de jurisdição, vejamos, agora, o que foi alegado pela recorrida, na resposta à excepção, com vista a afastar a validade do pacto.
A este respeito, a recorrida limitou-se a concluir que se verifica uma “apreciável dificuldade” de sua parte na propositura da acção no Paquistão, que este é um país com uma grande instabilidade social e política e que as garantias de salvaguarda dos seus direitos serão muito limitadas.
Ora, entende-se que, para a Autora/recorrida, seja bastante mais difícil a tarefa de instaurar uma acção no Paquistão, ao invés de Portugal. Porém, trata-se quanto muito de um mero constrangimento, uma adversidade ou contratempo, mas a verdade é que nada impede ou impossibilita a Autora de o a fazer, sendo certo que não se vê de que forma as suas garantias possam ficar limitadas por esse facto.
Perante tão escassa e pouco relevante alegação, facilmente se constata que a mesma não constitui inconveniente grave para tornar ineficaz o pacto de jurisdição formalizado pelas partes sem reservas.
Em suma, a competência para dirimir o litígio mostra-se, pois, validamente atribuída pelas partes aos tribunais do Paquistão, concluindo-se assim pela incompetência absoluta dos tribunais portugueses para a apreciação e decisão do litígio e, consequentemente, pela procedência da excepção invocada pela Ré, o que determina a absolvição desta da instância (art.ºs 96.º al. a), 99.º n.º 1, 576º nºs 1 e 2, 577º al. a), todos do CPC).
Nesta conformidade, procede a apelação, revogando-se a decisão de 1.ª instância.
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As custas da acção e do presente recurso ficam a cargo da autora/recorrida, por a elas ter dado causa (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC)
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IV – Decisão 
 
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar a decisão proferida, julgando procedente a excepção de incompetência absoluta dos Tribunais portugueses arguida pela ré/recorrente, absolvendo-se esta da instância.
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Custas da acção e do presente recurso pela autora/recorrida.
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Notifique.  
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09/10/2025
 
Relator: João Paulo Pereira
1.º Adjunto: José Manuel Flores
2.ª Adjunta: Sandra Melo
(assinado eletronicamente)