Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6333/23.0T8GMR-H.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: LIQUIDAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DE ATOS DO ADMINISTRADOR
DIREITO DE REMIÇÃO
VENDA EM LEILÃO ELETRÓNICO
COMPENSAÇÃO A FAVOR DO PROPONENTE
ANTERIORIDADE DO DEPÓSITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/14/2025
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
(i) O ato do Administrador da Insolvência (AI), praticado na fase de liquidação da massa insolvente, que exige o pagamento da indemnização de 5% sobre o preço de aquisição, no âmbito do exercício do direito de remição, tem natureza estritamente processual e define direitos e ónus para os intervenientes (remidor e proponente). Tal ato é, por isso, passível de impugnação mediante reclamação judicial.
(ii) A norma constante da parte final do art. 843/2 do CPC, que prevê a compensação de 5% a favor do proponente preterido, é aplicável, por interpretação teleológica e sistemática, às outras modalidades de venda (art. 843/1, b), do CPC), como o leilão eletrónico, por se tratar de um direito de natureza compensatória destinado a ressarcir o sacrifício financeiro do depósito integral.
(iii) A eficácia da referida compensação está subordinada ao pressuposto da anterioridade do depósito integral do preço pelo proponente, sendo que o conceito de depósito exige a prova da disponibilidade efetiva e incondicional da quantia à ordem do processo (a data-valor), não se bastando com a mera operação de pagamento.
(iv) O ónus da prova da anterioridade da disponibilidade efetiva do preço, enquanto facto constitutivo do direito à compensação, incumbe ao proponente.
(v) Não demonstrada tal anterioridade – como sucede quando o depósito da remidora se concretiza em data anterior à disponibilidade efetiva dos fundos do proponente (mormente por este ter usado cheque, que consubstancia uma dação pro solvendo), o pressuposto legal não se verifica, devendo o ato do AI ser revogado.
Decisão Texto Integral:
Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local de Comércio de Guimarães – Juiz ...
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Mantém-se o decidido pelo Tribunal de 1.ª instância quanto à admissibilidade, ao tipo, modo de subida e efeito do recurso.
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Considerando que as questões colocadas no recurso são simples, será proferida decisão sumária, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 656 do CPC.
= DECISÃO SUMÁRIA =
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1) Por sentença de 12 de fevereiro de 2024, foi decretada a insolvência da herança indivisa aberta por óbito de AA. Em virtude dessa declaração, o administrador da insolvência nomeado procedeu à apreensão do prédio urbano – composto por casa de cave, r/c e 1.º andar com logradouro, sito em ..., inscrito na matriz sob o art. ...52 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...28 – para a respetiva massa insolvente.
Iniciada a fase de liquidação, o administrador da insolvência comunicou, mediante requerimento apresentado a 20 de maio de 2025, a sua opção pela venda do imóvel através de leilão eletrónico, estabelecendo o valor mínimo de licitação em € 270 682,50. O leilão, que tivera o seu início a 18 de maio de 2025, estava previsto para decorrer até ao dia 17 de junho subsequente.
A 27 de junho de 2025, o administrador da insolvência informou que, durante o período do leilão, apenas fora apresentada uma proposta de aquisição do prédio, exatamente pelo valor mínimo anunciado. Consequentemente, procedera já à notificação do proponente para proceder ao depósito de 10% daquele valor, advertindo-o que o restante teria de ser pago nos 60 dias subsequentes e que só depois seria celebrado o contrato de compra e venda.
A 17 de julho de 2025, o administrador da insolvência informou que, entretanto, BB, filha do referido AA, apresentara-se, no dia 3 de julho de 2025, a exercer o direito de remição, tendo procedido de imediato ao depósito da totalidade do valor (€ 270 682,50), pelo que a escritura de compra e venda se encontrava agendada para o dia 5 de setembro de 2025.
No dia 23 de julho de 2025, a referida BB reclamou da decisão do Administrador da Insolvência que lhe exigiu o pagamento de um acréscimo de 5% sobre o preço de aquisição no exercício do direito de remição, pedindo a sua revogação e substituição por outra que ordene a devolução desse valor por si depositado.
Para sustentar o seu pedido, invocou, em síntese, que: exerceu o direito de remição, remetendo ao AI um requerimento por e-mail a 03 de julho de 2025, pelas 11:49, juntamente com o comprovativo da transferência do preço de € 270 682,50; embora o AI a tenha notificado para pagar os 5% de indemnização ao proponente com base no disposto no n.º 2 do artigo 843.º do Código de Processo Civil (CPC) , a Requerente entende que essa indemnização não é devida; o acréscimo de 5% destina-se a indemnizar o proponente quando o direito de remição é exercido após este já ter depositado a totalidade do preço; a Requerente (remidora) depositou o preço acertado para a venda em momento anterior ao depósito do preço efetuado pelo proponente vencedor; o depósito do cheque efetuado pelo proponente apenas ficou efetivamente disponível à ordem do AI na data-valor de 04/07/2025 ou posterior; a data a considerar deve ser sempre a "data-valor", pois é nesse momento que as quantias ficam efetivamente disponíveis à ordem do processo, e não o momento em que o proponente efetuou a operação (que o AI indicou ter sido a 03 de julho de 2025, às 10h27m); tendo a remidora colocado o preço à disposição do AI no dia anterior, 03/07/2025, e não estando o preço do proponente disponível nessa altura, a indemnização de 5% não se aplica ao presente caso; por cautela, e face à decisão do AI, a Requerente procedeu ao depósito do acréscimo de 5%, sendo que o AI decidiu, por carta datada de 17/07/2025, que o direito da Requerente foi validamente exercido.
O AI respondeu dizendo, também em síntese, que o proponente vencedor efetuou o depósito do preço integral no dia 3 de julho de 2025, às 10h27, antes do depósito do preço por parte da remidora, pelo que o exercício do direito de remição pressupunha o depósito dos referidos 5%, nos termos previstos no n.º 2 do art. 843 do CPC.
Foi proferido despacho, datado de 14 de agosto de 2025, a indeferir a reclamação.
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2). Inconformada, a reclamante (BB, daqui em diante Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor:

“1. A indemnização de 5% a que alude o art. 843º do CPC, apenas se aplica à venda por propostas em carta fechada, e já não às restantes modalidades de venda ( vide neste sentido o Ac. RG. de 03/11/2016, Proc. 141/14.7TBGMR-E.G1);
2. Na situação vertida nos presentes autos, a venda foi realizada por leilão eletrónico, no âmbito do incidente de liquidação da massa insolvente;
3. Pelo que que o Tribunal a quo ao decidir que essa indemnização era devida ao proponente, incorreu em erro, por violação do art. 843º nº 2 do CPC.
4. De todo o modo, não ficou demonstrado que o depósito efetuado pelo proponente foi realizado anteriormente ao exercício do direito de remissão pela recorrente;
5. A aplicação da indemnização de 5% , exige que o preço esteja já depositado à ordem do AI, e não que venha a estar disponível em momento posterior.
6. A recorrente desde o dia 2 de julho de 2025 que comunicou com o escritório do Exmo. Senhor Agente de Execução afirmando que iria exercer o direito de remissão e a solicitar o IBAN para onde poderia efetuar a transferência do preço.
7. Não foi feita qualquer prova da anterioridade do depósito do proponente em relação ao efetuado pela Recorrente, sendo que tal facto é constitutivo do direito à indemnização que o n.º 2 do art. 843º do CPC lhe reconhece e, portanto, sobre o proponente impende o ónus da prova dessa anterioridade (art. 342º, nº 1 do CC).
8. Não fazendo o proponente prova que do depósito foi anterior ao exercício do direito de remissão da recorrente, o douto despacho recorrido violou o disposto n.º 2 do art. 843º do CPC,
9. A Recorrente no dia 03.07.2025, remeteu ao Ex.mo Senhor Administrador de Insolvência, o requerimento com o direito de remissão, juntando o respetivo comprovativo da transferência do preço de 270.682.50€.
10. Tendo o Ex.mo Senhor Administrador de Insolvência, respondido à Recorrente, por mail de 3 de julho de 2025, pelas 13:21:13, alegando em síntese, que na data em que o preço foi depositado, o proponente já havia pago o preço integral, notificando-a para proceder ao depósito do acréscimo de 5%, nos termos do disposto no artigo 843º, nº 2 do CPC.
11. No entanto, não resulta provado que o fez anteriormente ao exercício do direito de remissão;
12. Além de que, o preço do proponente apenas ficou disponível após o dia 4 de julho.
13. Quer o proponente vencedor, quer a recorrente, efetuaram o depósito/transferência do mesmo dia, isto é, no dia 03/07/2025.
14. Nada mais, ou seja, não resulta provado a anterioridade do proponente, como supra se alegou.
Acresce que,
15. Ter-se-á de ter em conta que o preço, quer do proponente, quer da recorrente, ficaram disponíveis em datas distintas.
16. Até porque, o depósito do cheque efetuado pelo proponente apenas ficou efetivamente disponível na conta da massa insolvente em data de 04/07/2025 (data valor) ou posterior;
17. E o depósito da recorrente, ficou disponível no dia 03.07.2025;
18. Assim, o preço ficou à disposição do AI no próprio dia da transferência, ou seja, em 03/07/2025, anterior ao do proponente.
19. O douto despacho recorrido, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto no artigo 843º do CPC.
20. Pelo que, deve ser o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogado o douto despacho recorrido e, consequentemente,
proferido acórdão no sentido da procedência da pretensão da Recorrente, pois só
assim é de DIREITO e só assim será feita JUSTIÇA!”
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3). Não foi apresentada resposta.
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II.
1). As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (artes. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
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2). Tendo presente o que antecede, as questões a apreciar neste recurso podem ser condensadas do seguinte modo:
1.ª questão: saber se a norma constante do n.º 2 do art. 843 do CPC que prevê a indemnização de 5% a favor do proponente é aplicável à venda realizada por leilão eletrónico no âmbito do processo de insolvência, ou se está restrita apenas à venda por propostas em carta fechada;
2.ª questão: em caso de resposta afirmativa à questão anterior, saber se, no caso concreto, estão verificados os pressupostos constitutivos desse direito.
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III.
1). O Tribunal de 1.ª instância indeferiu a reclamação apresentada pela ora Recorrente por ter considerado, a um tempo, que a norma que prevê a indemnização de 5 a favor do proponente é aplicável à modalidade de venda realizada (leilão eletrónico), e, a outro, que o pressuposto legal para a exigência da indemnização estava preenchido, dado que o direito de remição foi exercido posteriormente ao depósito do preço pelo proponente.
Esse despacho não contém, porém, o enunciado dos factos em que se suportarem tais conclusões, em claro desrespeito pelo dever de fundamentação imposto, como corolário do processo equitativo (art. 20/4 da CRP), no art. 154/1 do CPC.
Com efeito, ensina Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online, CPC: art. 130.º a 361.º, Versão de 2023/10, pp. 31-32), a fundamentação da decisão abrange tanto a matéria de direito, como a matéria de facto.
Relativamente à última, sob pena de nulidade da decisão (arts. 613/3 e 615/1, b), do CPC), há que, por um lado, enunciar os factos provados e não provados e, por outro, justificar por que motivo determinada matéria se considera provada e outra não provada (art. 607/4, 1.ª parte, do CPC).
Diríamos, assim, que o despacho recorrido é nulo.
Acontece que a nulidade de que trata o art. 615/1, b), do CPC não é do conhecimento oficioso. Trata-se, em rigor, de uma anulabilidade, entendimento que se estriba na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) aludirem, em determinadas circunstâncias, à possibilidade do suprimento oficioso de nulidades da sentença de modo que indicia que o conhecimento desse vício constituirá a exceção e não a regra que, em contrapartida, é a necessidade de alegação. Neste sentido, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1),  Maria da Graça Trigo, RG 1.02.2018  (1806/17.7T8GMR-C.G1),  José Amaral, RG 17.05.2018 (2056/14.0TBGMR-A.G1),  Maria João Matos, RG 7.02.2019 (5569/17.8T8BRG.G1),  José Alberto Moreira Dias, RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1),  José Carlos Pereira Duarte; na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil  (artigos 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10.
Sem prejuízo, não podemos deixar de ter em consideração que distintas das situações de falta de fundamentação de facto são aquelas em que essa fundamentação existe, mas se apresenta como deficiente, obscura ou contraditória. Nestas, segue-se o regime do art. 662/2, c) e d), do CPC (assim, RG 7.12.2023, 1285/21.4T8VCT-G.G1, José Carlos Pereira Duarte; RG 7.12.2023, 455/18.7T8EPS.G1, Maria Amália Santos), cabendo à parte interessada, no recurso da sentença, o ónus de impugnar a decisão da matéria de facto e sustentar a presença desses vícios. Confrontada com essa arguição, ou mesmo oficiosamente, a Relação pode anular a decisão, mas apenas se não tiver à sua disposição todos os meios de prova que lhe permitiriam sanar, por si mesma, a deficiência, obscuridade ou contradição. Tendo esses meios de prova à sua disposição, a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância, cabendo-lhe sanar ela mesma o vício, exceto se se tratar de falta da “devida” fundamentação, caso em que poderá ordenar à 1.ª instância que acrescente a fundamentação em falta, prosseguindo depois com o conhecimento do objeto do recurso. No dizer de António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 798), “quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo [à 1.ª instância] deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova.”
Ora, o regime acabado de expor deve também ser observado quando, não obstante haver uma situação de verdadeira falta de fundamentação, geradora de nulidade, ut art. 615/1, b), esta não foi invocada pelo recorrente, ficando, assim, sanada. Neste sentido, RG 7.06.2023 (3096/17.2T8VNF-J.G1), Maria João Matos.
De acordo com a lição de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, IV, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 553), a decisão é deficiente quando aquilo que se deu como provado e não provado não corresponde a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado – i. é, não foram considerados todos os pontos de facto controvertidos, ou a totalidade de um facto controvertido; é obscura quando o seu significado não pode ser apreendido com clareza e segurança – i. é, os pontos de facto considerados na sentença são ambíguos ou poucos claros, permitindo várias interpretações; e é contraditória quando pontos concretos que a integram têm um conteúdo logicamente incompatível, não podendo subsistir ambos utilmente – i. é, diversos pontos de facto colidem entre si, de forma inconciliável. Logo, quando se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a “pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, possui uma “natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa”, ou revela “incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível” suprir tais vícios (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos cit., p. 356-357).
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2). Partindo do que antecede, entendemos que, no caso, é possível suprir o vício decorrente da falta de fundamentação considerando o teor dos documentos apresentados pela Recorrente e pelo AI a seguir referidos, os quais não foram impugnados por qualquer forma, deles resultando, ademais dos factos descritos no relatório que constitui a Parte I. desta decisão os seguintes:

(1). O leilão eletrónico destinado à venda do prédio apreendido para a massa insolvente, supra identificado, teve o início a 18 de maio e termo a 17 de junho de 2025, cf. documento apresentado como anexo C ao requerimento de 20 de maio de 2025;
(2). Durante o período do leilão, apenas fora apresentada uma proposta de aquisição do prédio, exatamente pelo valor mínimo anunciado, cf. documento apresentado como anexo A ao requerimento de 27 de junho de 2025;
(3). O AI procedeu à notificação do proponente para proceder ao depósito de 10% daquele valor, advertindo-o que o restante teria de ser pago nos 60 dias subsequentes e que só depois seria celebrado o contrato de compra e venda, cf. documento apresentado como anexo A ao requerimento de 27 de junho de 2025;
(4). Por email enviado ao AI pelas 11.49 horas do dia 3 de julho de 2025, a Recorrente declarou que “nos termos do disposto nos arts. 842.º e ss. do CPC e na qualidade de descendente dos insolventes (…), pretende exercer o direito de remir o imóvel apreendido nos presentes autos, pelo preço de € 270 682,50, correspondente ao valor da proposta entretanto aceite”, cf. documento que constitui o anexo A à reclamação apresentada pela Recorrente;
(5). Com esse requerimento, a ora Recorrente apresentou: cópia do cartão de cidadão; assento de nascimento; o comprovativo da transferência, para a conta bancária da massa insolvente, das seguintes quantias: € 100 000,00, € 100 000,00 e € 70 682,50:
(6). Todas essas transferências foram realizadas e creditadas na conta de destino no dia 3 de julho de 2025, tudo cf. documentos que constituem os anexos B a F à reclamação apresentada pela Recorrente;
(7). O apresentante da proposta de compra do prédio identificado emitiu, a favor da massa insolvente, o cheque n.º ...20, sacado sobre a conta ...01, do Banco 1...;
(8). Esse cheque foi apresentado para depósito na conta bancária da massa insolvente no dia 3 de julho de 2025, pelas 10.27 horas, tudo cf. anexo C ao requerimento de 13 de agosto de 2025;
(9). O montante nele inscrito depositado e ficou disponível na conta bancária da massa insolvente no dia 4 de julho de 2025, tudo cf. anexo B ao requerimento de 13 de agosto de 2025;
(10). No dia 14 de julho de 2025, foi transferida para a conta da massa insolvente a quantia de € 13 534,13, para garantia do pagamento da indemnização de 5% sobre o montante depositado pelo proponente,  na hipótese de ser entendido que a mesma é devida, cf. anexo E ao requerimento de 13 de agosto de 2025.
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IV.
1).1. Antes de avançarmos para o conhecimento da 1.ª questão, importa notar que estamos perante a reclamação de um ato praticado pelo AI na fase de liquidação do ativo apreendido para a massa insolvente.
Como é sabido, uma vez notificado da sua nomeação, que constitui competência do juiz (art. 52/1 do CIRE[1]), a exercer na sentença declaratória da insolvência (art. 36/1, d), o administrador da insolvência (AI) assume de imediato a sua função (art. 54), desempenhando as funções que lhe estão cometidas, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, caso tenha sido constituída (art. 55/1), e com a colaboração do próprio insolvente (art. 83).
No dizer do art. 2.º/1 do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ), aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26.02, na redação da Lei n.º 52/2019, de 17.04, o AI é a pessoa incumbida, no processo de insolvência, da gestão ou liquidação da massa insolvente, tendo competência para a realização de todos os atos que, nesse âmbito lhe são cometidos pela lei.
Neste sentido, para além das tarefas que lhe são atribuídas ao longo do CIRE, cabe em especial ao AI a preparação do pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, procedendo, para esse efeito, à alienação dos bens de diversa natureza que a integram (art. 55/1, a)), por si previamente apreendidos (arts. 149 e 150/1), a conservação e frutificação dos direitos do insolvente e a prossecução da exploração da empresa, evitando, na medida do possível, o agravamento da sua situação económica (art. 54/1, b)). Compreende-se assim que se afirme (Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 121) que o administrador da insolvência desempenha essencialmente funções de administração e liquidação da massa insolvente e de repartição do seu produto pelos credores.
No exercício dessas funções, o administrador da insolvência está sujeito à fiscalização, não só da comissão de credores (art. 55/1), como também do juiz, o qual pode, a todo o tempo, exigir-lhe que preste informações sobre quaisquer assuntos ou apresente um relatório sobre a atividade e sobre o estado da administração e da liquidação (art. 58).
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1).2. Concretizando a fiscalização do exercício das funções do AI pelo juiz, diremos que, em termos gerais, ele se traduz na faculdade de o juiz pedir a prestação das informações referidas no art. 61, na possibilidade de destituição do administrador com justa causa, prevista no art. 56, e na possibilidade de o juiz proceder à convocatória da assembleia de credores nos termos do art. 75, a fim de aí serem apreciados factos ou questões relevantes e do interesse geral.
Não cabe ao juiz dar ordens ou instruções ao AI. E se assim é, então parece também que não é possível impugnar junto do juiz os atos praticados pelo AI.
Neste sentido, entendeu-se em RP 29.05.2014 (615/11.1TYVNG-D.P1), Aristides Rodrigues de Almeida, que “fora dos casos em que o administrador está condicionado pelas deliberações dos credores e dependente do consentimento destes, onde se não inclui a escolha da modalidade da venda e dos procedimentos a adotar para a sua concretização, o administrador tem competências próprias para proceder, de acordo com o seu critério, a todos os atos de venda dos bens da massa insolvente, podendo para o efeito, realizá-los conforme bem entender, designadamente no tocante às modalidades e formalidades a adotar para concretizar a venda.
Nesses atos, o administrador está vinculado a atuar como administrador criterioso e ordenado, sob pena de responder pelos danos que a sua atuação cause aos credores. Contudo, os seus atos não podem ser impugnados perante o juiz, já que perante terceiros, em regra, se mantêm válidos e eficazes, sem prejuízo do dever de indemnização que façam recair sobre o administrador.”
Na sequência, concluiu-se que “[n]ão cabe na competência jurisdicional apreciar a regularidade dos atos praticados pelo administrador que motivaram o recurso”, que no caso concreto se traduziam na realização de diligências no âmbito da venda de bem da massa insolvente, estando em equação a eventual violação do prescrito nos arts. 161 e 162 do CIRE.
No mesmo sentido, RG de 31.03.2016 (8579/09.5TBBRG-E.G1), Espinheira Baltar, que, ao apreciar decisão recorrida que havia considerado ter sido praticada a nulidade prevista art. 195/1 do CPC, conjugado com o art. 164/2 do CIRE, entendeu que os atos do AI, apesar de serem fiscalizados pelo juiz, não se traduzem em atos judiciais, pelo que a violação dos deveres que lhe são inerentes não fundamenta irregularidade processual, que implique o preenchimento de nulidade secundária, podendo, apenas, “fundamentar responsabilidade civil extracontratual e, ou, destituição com justa causa.”
Na doutrina, este entendimento é sufragado por Maria José Esteves / Paulo Valério / Sandra Alves Amorim (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 4.ª ed., Lisboa: Vidaeconómica, 2015, p. 134), que, em anotação ao art. 58 do CIRE, escrevem que “[o]s atos praticados pelo AI não podem ser impugnados judicialmente, com exceção dos poderes de fiscalização previstos neste artigo e de destituição com justa causa previsto nos arts. 56º, 168º e 169º.” É Também sufragado por Carvalho Fernandes / João Labareda, (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª ed. 2015, Lisboa: Quid Juris, p. 136), que consideram decorrer do art. 58 “um ajustamento estratégico da posição do juiz, acentuando-se o vetor da crescente privatização do processo, significando isto que é deixada aos credores uma larga margem de intervenção para a melhor tutela dos seus interesses que, de resto, constitui a única finalidade expressamente assumida pela lei logo em sede do artº. 1º do Código”, acrescentando que “outro vetor complementar e não menos importante é o da crescente confinação do papel do juiz ao de garante da legalidade, aí em todos os aspetos em que ela se projeta. (…)
Mas o facto de não lhe caber a direção da administração tem como reflexo fundamental a circunstância de, fora dos poderes que lhe estão concretamente assinados, o juiz não dispor da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não poder impedi-lo de atuar, nem, por contrapartida, o administrador estar sujeito a cumprir indicações que, nesses domínios, o juiz seja tentado a dar-lhe.
Do mesmo modo, o juiz deixa de ter qualquer poder de censura dos atos do administrador praticados no exercício das suas funções, o que, aliás, é exaltado no Preâmbulo do diploma que aprovou o Código.”
O entendimento acabado de expor tem sido questionado, tanto na doutrina como na jurisprudência, a propósito de infrações cometidas pelo AI ao disposto no art. 164 do CIRE.
Na doutrina, é exemplo Nuno Ferreira Lousa (“Crónica de Jurisprudência dos Tribunais da Relação, 2015-2016”, Revista de Direito da Insolvência, n.º 1, p. 212), que escreve que[,] “[e]m matéria de atos praticados pelo AI, os credores e demais interessados no processo de insolvência são muitas vezes confrontados com a falta de ferramentas adequadas à sua sindicação e impugnação. A inexistência de um regime próprio de impugnação de atos praticados pelos administradores da insolvência, ou mesmo de sua revogação superveniente, a exemplo do que acontece em relação aos atos da comissão de credores que podem ser revogados pela assembleia de credores (artigo 80º do CIRE), entende-se num regime de separação de poderes entre os diversos órgãos da insolvência, que surge vincado pelo objetivo da desjudicialização do processo prosseguido pelo CIRE. Contudo, uma das consequências da adoção desse objetivo é uma quase impossibilidade de serem atacados os atos dos administradores da insolvência que padeçam de vícios de legalidade (sem prejuízo dos regimes especiais que se encontram previstos para algumas matérias, como por exemplo a impugnação do ato de resolução em benefício da massa insolvente).
A este respeito, as possibilidades de destituição e de responsabilização pessoal do AI não constituem remédios eficazes para reações contra atos ilegais, uma vez que não só não afetam os atos praticados, como também têm o nefasto efeito de, de facto, suspender o processo por um período mais ou menos alongado de tempo (particularmente quando está em causa um pedido de destituição do AI).
De modo semelhante, o recurso a ações de invalidade dos atos, nos termos gerais de direito, constitui uma opção pouco atrativa – mas a única porventura eficaz – para os credores que pretendem ver monetizado o seu crédito tão rapidamente quanto possível.”
Na jurisprudência, pode citar-se STJ 4.04.2017 (1182/14.0T2AVR-H.P1), Fonseca Ramos, onde se pode ler que “[o] processo de insolvência, que o legislador quis célere e desjudicializado, não pode erigir tais valores em objetivos em si mesmos, com prejuízo dos interesses que nele se jogam. A celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do AI, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o AI.
A interpretação que o douto Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela atuação violadora do AI, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar essa atuação ilícita perante o Juiz do processo, e que o despacho do julgador da 1ª Instância que apreciou tal arguição decretando a pedida nulidade, é ilegal por o ato ser eficaz, considerando que resta ao lesado intentar ação de responsabilidade civil contra o AI, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os atos ilegais praticados, viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata atuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa.
Efetivamente, “no balanceamento ou ponderação de interesses” do credor, alegadamente lesado, no seu interesse patrimonial, e as exigências de “simplificação, celeridade e desjudicialização”, que não permitem direta e imediata sindicância judicial de atos violadores da lei, fazem pender, desproporcionalmente, o equilíbrio processual e substantivo, não sendo compagináveis com aquele princípio constitucional – cf. Acórdão do Tribunal Constitucional, de 12.5.2015, Processo nº110/2015, I Série do Diário da República de 8. 6.2015.”
Em consequência, concluiu-se que “a interpretação que, no Acórdão recorrido foi acolhida do art. 163º do CIRE, sentenciando que “a decisão recorrida tem de ser revogada por o decidido [anulação da venda] exceder os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos atos praticados na liquidação do ativo”, é materialmente inconstitucional, por violar o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, do ponto em que não garante ao lesado tutela jurisdicional efetiva do seu direito, e, consequentemente, revoga o Acórdão recorrido.”
A linha orientadora do aresto foi seguida em STJ 15.02.2018 (4488/11.6TBLRA-M.C1.S1), Henrique Araújo, onde se concluiu que “as irregularidades cometidas pelo Senhor AI, oportunamente denunciadas pela credora EMP01..., S.A., consistentes na falta de identificação da entidade que ofereceu a melhor proposta (note-se que apenas foi enviado à recorrida o auto de licitação) e no incumprimento do prazo estabelecido para apresentação de eventual proposta mais favorável para a massa, configuram nulidade processual com influência na decisão da causa, nos termos dos artigos 195º e 197º, n.º 1, do CPC.”
Este juízo de inconstitucionalidade – reportado à norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.os 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada – foi confirmado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 251/2018, de 21.11.2018.
Nestes arestos afirma-se a possibilidade de ser decretada a anulação da venda, à luz do disposto no n.º 1 do art. 195 do CPC, aplicável ex vi do art. 17 do CIRE, se forem violadas regras procedimentais e não que o juiz tem poderes latos de intervenção na liquidação e muito menos que os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência não têm quaisquer limites. No mesmo sentido, na jurisprudência das Relações, RP 7.10.2021 (100/13.7TBVCD-R.P1), João Venade, RG 2.03.2023 (5468/19.9T8VNF-AJ.G1), José Carlos Pereira Duarte,   e RG 17.03.2022 (3904/19.3T8VCT-H.G1), Rosália Cunha.
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1).3. As considerações que antecedem, permitem-nos estabelecer uma linha delimitadora entre os atos de administração e liquidação da massa insolvente levados a cabo pelo AI e os atos de natureza processual por ele praticados, os quais podem, inclusive, ser ulteriores ao encerramento da liquidação, como sucede com aquele que está em causa no recurso.
Em relação aos primeiros faz sentido dizer-se, com o citado RG 17.03.2022, que, para além dos poderes avulsos que lhe são cometidos, designadamente nos arts. 157, b), 158/4 e 161/5, “ao juiz não cabe a direção da administração o que tem como reflexo fundamental a circunstância de (...) o juiz não dispor da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não poder impedi-lo de atuar, nem, por contrapartida, o administrador estar sujeito a cumprir indicações que, nesses domínios, o juiz seja tentado a dar-lhe (…)
Tudo isto se insere num objetivo que é claramente assumido pelo legislador no n.º 10 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18.3, que aprovou o CIRE, onde se refere que “a afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo. (...). Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz (...) os atos do AI (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa).
Assim, em primeira linha, o poder de fiscalização do juiz da atividade do AI traduz-se na faculdade de o juiz pedir a prestação das informações referidas no art. 61º. Mas tal fiscalização traduz-se também na possibilidade de destituição do administrador com justa causa prevista no art. 56º e na possibilidade de o juiz proceder à convocatória da assembleia de credores nos termos do art. 75º, a fim de aí serem apreciados factos ou questões relevantes e do interesse geral.”
Já em relação aos segundos, atenta a sua natureza processual, faz sentido afirmar-se que o juiz tem poderes concretos de controlo da sua legalidade em termos semelhantes aos que lhe cabem na ação executiva singular a propósito da atuação do agente de execução.
A resposta à primeira questão implica, portanto, que atentemos na natureza do ato em causa.
Como parece axiomático, a notificação para pagamento, dirigida pela administradora da insolvência aos Recorrentes, não se enquadra num mero ato de gestão ou liquidação. Trata-se de um ato processual – de resto, ulterior ao encerramento da liquidação – que determina uma obrigação para as Recorrentes e que, pela sua natureza, condiciona os seus direitos processuais.
Neste aspeto, como veremos mais à frente, o ato da administradora da insolvência é materialmente idêntico ao de um agente de execução numa ação executiva singular. Assim como o agente de execução, na ação singular, notifica o executado para, por exemplo, proceder ao pagamento ou para se pronunciar sobre a venda de bens, o AI, nesta fase do processo, notifica os credores para efetuarem pagamentos em falta ou receberem o produto da liquidação. Em ambos os casos, a atuação é levada a cabo por um órgão auxiliar do tribunal que age por sua conta e risco, mas no âmbito de um processo judicial. Na execução singular, não se prevê que o agente de execução possa atuar sem a fiscalização concreta do juiz quando o seu ato viola os direitos das partes. A reclamação do ato para o juiz é, naquele âmbito, o meio processual adequado para salvaguardar a tutela jurisdicional (art. 723/1, c), do CPC[2]). Por identidade de razões, a solução deve ser a mesma no processo de insolvência. O ato do AI, porque afeta de forma direta e imediata a esfera jurídica dos destinatários, deve poder ser sindicado pelo juiz, sob pena de, não se garantindo um meio imediato para um credor lesado defender os seus direitos no próprio processo, se estar a sufragar uma interpretação da lei que afronta o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20 da Constituição da República.
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1).4. Com o que antecede, fica aberto o conhecimento da 1.ª questão.
A alienação de ativos no curso de um processo de insolvência de pessoa singular confere ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, aos descendentes e aos ascendentes do insolvente a prerrogativa de remir a totalidade ou parcela dos bens adjudicados ou vendidos, mediante o exato preço da adjudicação ou da venda. Este direito encontra a sua consagração no art. 842 do CPC, aplicável ex vi do artigo 17 do CIRE. Neste sentido, na jurisprudência, inter alia, RC 14.07.2014 (2741/11.8TBPBL-I.C1), Henrique Antunes, no qual se pode ler que “[o] direito de remição deve ser admitido quando a venda de bens tenha o carácter coativo, de que se reveste no processo de execução e, portanto, também no processo de insolvência.” Na doutrina, Marco Carvalho Gonçalves, Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra: Almedina, 2023, p. 511.
O cerne teleológico do direito de remição reside na faculdade de manutenção dos bens na esfera patrimonial da família do insolvente, evitando a sua dispersão. Do exercício desta faculdade, verdadeiro potestativo, não advém qualquer prejuízo para a massa insolvente, porquanto o remidor sub-roga-se na posição do adquirente, efetuando o pagamento do preço pelo qual os bens foram transacionados.
A ordem de precedência para o exercício deste direito é estabelecida pelo art. 845 do CPC, de forma escalonada: em primeira linha, o cônjuge; em segundo lugar, os descendentes; em terceiro lugar, os ascendentes do insolvente.
No cenário de concorrência entre vários descendentes ou ascendentes, a lei estabelece um critério de proximidade de grau, preferindo-se os de grau mais próximo em detrimento dos de grau mais remoto. Verificando-se a igualdade de grau, proceder-se-á a uma licitação entre os interessados, conferindo-se primazia àquele que oferecer o preço mais elevado.
O momento da formalização do direito de remição impõe ao remidor o ónus de demonstrar documentalmente a sua relação de casamento ou o grau de parentesco com o insolvente. Em caso de dificuldade na junção imediata desta prova aos autos de insolvência, impõe-se a concessão, sob pena de nulidade, de um prazo razoável para o efeito, conforme estatui o art. 845/3 do CPC.
Importa sublinhar que os titulares do direito de remição não carecem de notificação específica para o exercício desta prerrogativa, dado que a lei estabelece uma presunção de que o insolvente comunicará a venda aos respetivos beneficiários
No que concerne ao limite temporal, o art. 843 do CPC delimita o exercício do direito de remição em função da modalidade de venda.
Assim, na venda mediante propostas em carta fechada (arts. 811/1, a), e 816 do CPC), o direito deve ser exercido até à emissão do título de transmissão dos bens a favor do proponente (art. 827 do CPC) ou no prazo e nos estritos termos previstos no art. 825/3, do CPC. Nas outras modalidades de venda, a remição apenas poderá ser exercida até ao instante da entrega material dos bens ou da assinatura do título que a documenta, em consonância com o disposto no art. 843/1, b), do CPC.
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1).2. Segundo diz o n.º 2 do art. 843 do CPC, “[a]plica-se ao remidor, que exerça o seu direito no ato de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, o disposto no artigo 824.º, com as adaptações necessárias, bem como o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 825.º, devendo o preço ser integralmente depositado quando o direito de remição seja exercido depois desse momento, com o acréscimo de 5 % para indemnização do proponente se este já tiver feito o depósito referido no n.º 2 do artigo 824.º, e aplicando-se, em qualquer caso, o disposto no artigo 827.º”
A questão fulcral reside em saber se a regra de compensação do proponente, topograficamente inserida no regime da venda por propostas em carta fechada, é aplicável, por analogia ou interpretação extensiva, às restantes modalidades.
Para uma corrente jurisprudencial, de que é exemplo RG 03.11,2016 (141/14.7TBGMR-E.G1), Isabel Silva, citado pela Recorrente, a norma do art. 843/2 do CPC, possui um caráter excecional e penalizador, devendo a sua aplicação ser estritamente limitada à modalidade para a qual foi expressamente prevista: a venda por propostas em carta fechada.
O argumento central apoia-se na taxatividade da lei processual e na topografia da norma. Se o legislador pretendesse a generalização dessa compensação, tê-lo-ia previsto no corpo do n.º 1 ou mediante remissão expressa e inequívoca do n.º 2 para a alínea b). A ausência dessa remissão seria, para esta tese, uma escolha deliberada de política legislativa.
Para outra corrente, justifica-se a aplicação irrestrita do art. 843/2 do CPC a todas as formas de venda que exijam o depósito do preço para o aperfeiçoamento da aquisição, como é o caso do leilão eletrónico.
O fundamento não é literal, mas sim teleológico e de justiça material.
Na verdade, conforme se pondera em RG 21.04.2022 (419/14.0T8VNF-J.G1), José Alberto Moreira Dias, a indemnização de 5% configura-se como uma compensação equitativa (iure proprio) e não uma mera sanção. Ela visa ressarcir o proponente que, tendo cumprido a sua obrigação negocial e processual de depositar integralmente o preço (art. 824/2 do CPC), vê a sua legítima expectativa de aquisição frustrada por uma causa legal (superveniente) que lhe é totalmente alheia.
Ademais, a ratio do ressarcimento é intrinsecamente ligada ao sacrifício financeiro imposto ao proponente pelo cumprimento do depósito, sacrifício esse que é estruturalmente idêntico e indiferente à modalidade de venda utilizada (propostas, leilão, ou negociação particular).
Esta tese é também sustentada em RC 8.07.2025 (1829/21.1T8ANS-A.C1), Chandra Gracias, e, na doutrina, por Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 548, nota 1881.
A ela aderimos tendo em conta a primazia que deve ser dada à interpretação teleológica e sistemática, pelo que a resposta à questão prejudicial é afirmativa: o art. 843/2 do CPC é aplicável à venda por leilão eletrónico.
A interpretação extensiva do art. 843/2 do CPC às modalidades de venda distintas da proposta em carta fechada não afronta o princípio da legalidade processual nem configura analogia proibida. Em primeiro lugar, não se trata de criar uma norma nova, mas de aplicar a existente segundo a sua ratio legis, que é compensar o sacrifício financeiro do proponente que já disponibilizou integralmente o preço. Este fundamento é comum às várias modalidades de venda previstas no art. 843/1, pelo que a extensão decorre de uma leitura sistemática e teleológica, conforme ao art. 9.º do Código Civil. Em segundo lugar, a analogia proibida ocorre quando se pretende aplicar uma norma a situações não previstas no mesmo instituto ou em que haja lacuna qualificada. Aqui, não há lacuna: o regime da remição é unitário e abrange todas as modalidades de venda judicial, sendo a diferença meramente procedimental. A interpretação extensiva respeita a estrutura normativa e não cria obrigações fora do quadro legal, apenas concretiza a finalidade expressa pelo legislador., não merecendo, nesta parte, a decisão recorrida qualquer censura.
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2).1. Uma vez afirmada a aplicabilidade da norma indemnizatória do art. 843/2 do CPC, por via da interpretação teleológica e sistemática, à modalidade de venda por leilão eletrónico, a segunda questão transporta-nos para o domínio da subsunção factual dos pressupostos materiais desse direito. O cerne da controvérsia reside na determinação rigorosa do momento em que o preço se considera depositado pelo proponente e na delimitação do ónus da prova desse facto constitutivo.
A exigência do acréscimo de 5% sobre o valor da proposta vencedora, a cargo do remidor e a favor do proponente, depende da verificação cumulativa de dois pressupostos cruciais, conforme a exegese da parte final do art. 843/2 do CPC: (i) o proponente preterido tem de ser o adjudicatário do bem vendido; (ii) o proponente tem de já ter feito o depósito a que se refere o n.º 2 do art. 824 do CPC no momento em que é exercido o direito de remição.
A interpretação da expressão já tiver feito o depósito,  requisito material da compensação, impõe uma leitura que transcende o mero ato formal de entrega ou de lançamento da operação bancária. A jurisprudência, nomeadamente a acolhida no citado RG 21.04.2022, estabelece que o critério decisivo é o da efetiva e incondicional disponibilidade da quantia à ordem do processo.
O legislador, ao reportar-se ao depósito, visa proteger o proponente que tornou os fundos operacionais para o processo, colocando-os na sua disponibilidade. Se o meio de pagamento utilizado for suscetível de reserva ou sujeição a um prazo de compensação (como é o caso do cheque), a obrigação de depósito integral só se considera cumprida quando o valor se encontrar efetivamente creditado e irrevogável na conta da massa insolvente (a data-valor), cessando assim o risco de incumprimento.
Esta interpretação harmoniza o regime da remição com o regime geral das obrigações, onde o pagamento por título de crédito, como o cheque, se qualifica como uma dação pro solvendo (dação para solver/pagar) – art. 840/1, do Código Civil), não extinguindo a obrigação principal senão com a realização efetiva do crédito.
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2).2. Temos como assente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.”
Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova.
Aplicando isto à questão, temos que, tratando-se a indemnização de 5% de um direito constitutivo e autónomo para o proponente, a prova da verificação dos seus pressupostos, em especial a anterioridade temporal do depósito efetivo, recai integralmente sobre o seu titular. Dizendo de outra forma, em estrita observância do art. 342/1 do Código Civil, o ónus da prova, expressão que deve ser entendida nos termos expostos, de que o depósito do preço foi efetuado pelo proponente em momento anterior ao exercício do direito de remição pela Recorrente impende sobre o próprio proponente (ou o AI que o representa nesse ato).
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2).3. No caso sub judice, embora o proponente tenha iniciado a operação (apresentação do cheque) em 03 de julho de 2025, pelas 10.27 horas, este facto não prova o cumprimento do pressuposto legal. A prova carreada para os autos demonstra que o valor apenas ficou disponível (data-valor) em 4 de julho de 2025. Por contraste, o depósito da Recorrente, realizado no dia 3 de julho de 2025, ficou imediatamente disponível (ou disponível no mesmo dia da transferência).
Deste modo, o proponente (rectius, o AI), ao não lograr demonstrar a anterioridade da disponibilidade efetiva do preço, falhou no cumprimento do ónus probatório do facto constitutivo do seu direito à compensação.
O pressuposto do art. 843/2 do CPC, não se verificou, pelo que a decisão que exigiu a indemnização de 5% à remidora enferma de erro de direito na aplicação da norma substantiva, procedendo, por esta razão, o recurso.
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3). Procedendo o recurso, com a consequente revogação de um ato praticado pelo AI, as custas devem ser suportadas pela massa (arts. 527/1 e 2 do CPC e art. 304 do CIRE).
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V.
Nestes termos, decide-se julgar o presente recurso procedente e, em consequência: (i) revogar o despacho recorrido; (ii) em substituição, deferir a reclamação apresentada pela Recorrente através do requerimento de 23 de julho de 2025 e, em conformidade, (iii) revogar a decisão do AI que lhe exigiu o pagamento de um acréscimo de 5% sobre o preço de aquisição no exercício do direito de remição e (iv) determinar a restituição ao respetivo depositante da quantia de € 13 534,13 (treze mil quinhentos e trinta e quatro euros e treze cêntimos), cautelarmente depositada a esse título.
Custas pela massa insolvente.
Notifique.
*
Guimarães, 14-11-2025

O Juiz Desembargador,
Gonçalo Oliveira Magalhães


[1] Diploma a que pertencem as disposições legais citadas sem menção expressa da sua proveniência.
[2] Diz o art. 723/1, c), do CPC de 2013, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, que “[s]em prejuízo de outras intervenções que a lei especificamente lhe atribui, compete ao juiz (…) julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de atos ou impugnações de decisões do agente de execução.”
Como tem sido entendido pela jurisprudência (a título de exemplo, RL 11.07.2019 (13644/12.9YYLSB-C.L1-2), Jorge Leal, a norma parte do pressuposto de que a atuação do agente de execução não envolve o dirimir de um conflito de pretensões, o que justifica um único nível de controlo jurisdicional. Em princípio, o ato de liquidação da responsabilidade do executado, efetuado pelo agente de execução na pendência da execução e tendo em vista a sua extinção pelo pagamento voluntário, nos termos dos arts. 846 e 847 do CPC, não envolve o dirimir de um conflito, mas uma mera operação aritmética de cálculo do que é devido, incluindo as custas. Assim, quando a execução inclua juros que continuem a vencer-se, o agente de execução procederá ao respetivo cálculo em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça ou, sendo caso disso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis (n.º 2 do art. 703 do CPC), não se exigindo, para essa tarefa, mais do que a mera leitura e interpretação do título executivo e do requerimento executivo, à luz das regras legais aplicáveis. Porém, se como sucedia no caso objeto do aresto e sucede no caso de que nos ocupamos, entre as partes houver controvérsia acerca da inclusão, ou não, no âmbito da obrigação exequenda, de juros remuneratórios, encargos, ou mesmo quanto à taxa de juro aplicável, a questão excede a mera dúvida sobre a correção de um cálculo aritmético, revestindo, antes, a natureza de um verdadeiro litígio, de um conflito acerca do alcance económico do poder de agressão do património do executado que cabe ao exequente. Partindo daqui, entendeu-se que a alínea c) do n.º 1 do art. 723 do CPC deve ser objeto de uma interpretação restritiva, “na medida em que uma ideia de irrecorribilidade absoluta colidiria, cremos, com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva (art.º 20.º n.ºs 1 e 4, da CRP).”  O mesmo entendimento foi seguido em RL 5.05.2020 (8073/11.4TBOER-D.L1-7), relatado por Micaela Sousa, e RL 22.11.2022 (4634/09.0TBALM.L1-7), Cristina Coelho. Na doutrina, António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, II, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 63) pronunciam-se também no sentido de uma interpretação restritiva da norma, ainda que em diferente dimensão, quando escrevem que “a decisão judicial proferida na sequência de reclamação de ato ou da impugnação de decisão do agente de execução admitirá recurso desde que o ato ou decisão do agente de execução sejam vinculados. Na verdade, a irrecorribilidade nestas situações colidiria com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva (art.º 20º, nº 1, da CRP), num contexto em que a direção e gestão do processo de execução está cometida ao agente de execução. Neste enfoque, a recorribilidade das decisões proferidas pelo juiz, ao abrigo da al. c) deste art.º 723º, que se traduzam na suspensão, extinção ou anulação da execução (art.º 853º, nº 2, al. b)), constitui o afloramento de uma regra de recorribilidade e não uma exceção, devendo admitir-se a impugnação da decisão judicial sempre que na sua génese esteja uma decisão vinculada do agente de execução. Preterir o recurso da decisão judicial incidente sobre reclamação de ato ou decisão vinculada do agente de execução, designadamente quando estes atos são suscetíveis de agredir o património das partes de forma equivalente ou ainda mais intensa do que o que decorra de um despacho interlocutório numa ação declarativa, constituiria uma restrição desproporcional ao direito de recorrer.” De igual modo, cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 599.