Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
753/21.2T8VVD.G2
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: DECISÃO SURPRESA
ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
EFEITOS DA ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O conceito de decisão-surpresa, quanto esteja em causa o aspeto jurídico da causa, pressupõe que a solução dada pelo tribunal não fosse, de todo, previsível para as partes. Assim sucederá quando a solução do juiz se apresente como inovadora, pelo seu caráter invulgar e singular, objetivamente considerado, e, bem assim, quando toda a discussão pretérita tenha sido feita à luz de um determinado instituto jurídico, ainda que na base de equívocos, sem qualquer alerta por parte do tribunal, e, na decisão, o juiz opte por outra via, nunca antes cogitada.
II – A anulação da deliberação da assembleia de condóminos que autorizou um condómino a realizar obras inovatórios em parte comum do edifício não implica, para o administrador do condomínio, o dever de proceder à prática dos atos materiais destinados à reposição do status quo ante.
III – Essa finalidade deve ser alcançada através da propositura de ação contra o condómino que realizou a referida inovação – ilícita por terem sido eliminados ex tunc os efeitos da deliberação que a autorizara –, ação essa que pode ser intentada por qualquer outro condómino ou pelo condomínio, representado em juízo pelo seu administrador.
IV – A propositura da ação pelo condomínio tem como condição necessária a tomada de deliberação em assembleia de condóminos nesse sentido, não podendo ser determinada pelo Tribunal.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra o Condomínio ... sito na Rua ..., ..., representado pela sua administradora, EMP01..., Lda., pedindo a declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral de condóminos realizada no dia ../../2021, “respeitantes às matérias constantes dos pontos 7, 8 e 9 da ordem de trabalhos, determinando-se ao Réu condomínio e à sua administração que, em consequência (…), tome as medidas necessárias e adequadas à imediata reposição do gradeamento do prédio no mesmo estado em que se encontrava antes da sua remoção, à imediata retirada do motor de exaustão colocado na cobertura do edifício e à imediata eliminação da quota extraordinária imposta ao Autor pela instalação dos painéis solares na mesma cobertura.”
Alegaram, em síntese, que: são proprietários da fração autónoma identificada pela letra ... do identificado prédio; na assembleia de condóminos realizada no dia ../../2021, em que o Autor esteve presente, foi deliberado “aprovar a remoção do gradeamento entre pilares existente na galeria, na parte frontal à loja ocupada pelo estabelecimento designado por EMP02... e a manutenção desta situação para o futuro (ponto 7 da ordem de trabalhos), aprovar a “manutenção do motor de exaustão instalado na cobertura do edifício, desde que sejam cumpridas as regras regulamentares para a instalação deste tipo de equipamentos” (ponto 8 da ordem de trabalhos), e aprovar a cobrança de “uma quota extraordinária pela instalação de painéis solares na cobertura ao proprietário da fração ..., AA, que produzirá efeitos a partir da data da realização da assembleia, incumbindo a administração de efetuar o cálculo do montante anual a pagar mediante a proporção dos espaços ocupados pelas mesas colocadas na galeria e a área ocupada pelos painéis solares instalados na cobertura, tendo em conta que a EMP02... paga o montante anual de € 500,00” (ponto 9 da ordem de trabalhos); as duas primeiras primeiras deliberações foram aprovadas por maioria simples e não por maioria qualificada representativa de dois terços do total do prédio, conforme exigido pelo art. 1222/3 do Código Civil, sendo, por isso, nulas nos termos do disposto no art. 294 do mesmo diploma; a terceira viola o regime imperativo fixado no art. 1424/2 do Código Civil, sendo, por isso nula, nos termos do disposto no art. 294 do mesmo diploma.
Na contestação, o Réu invocou a exceção dilatória da ilegitimidade passiva, a exceção perentória da caducidade do direito de pedir a anulação das deliberações; e a exceção perentória do abuso do direito.
Os Autores apresentaram articulado de resposta, em que pugnaram pela improcedência das referidas exceções e acrescentaram que as deliberações são ainda nulas por terem sido tomadas numa assembleia de condóminos em que o presidente da mesa assumiu também as funções de secretário. Concluíram pedindo a declaração de nulidade das deliberações e a condenação do Réu como litigante de má-fé “em multa exemplar e condigna indemnização.”
O Réu opôs-se à alteração do pedido e impugnou o pedido de condenação como litigante de má-fé.
Depois de rejeitado o pedido de declaração de nulidade das deliberações com o fundamento aduzido na resposta, foi dispensada a realização da audiência prévia e, na sequência, foi proferido despacho saneador em que se fixou o valor processual em € 30 000,01 e se concluiu estar verificada a exceção dilatória da ilegitimidade passiva. Em conformidade, o Réu foi absolvido da instância.
Na sequência de recurso de apelação interposto pelo Réu, este Tribunal da Relação, por Acórdão proferido no dia 6 de outubro de 2022, revogou a decisão de absolvição da instância, afirmando a legitimidade ad causam do Réu.
Dispensada a delimitação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova, realizou-se audiência final e, após o encerramento desta, foi proferida sentença, datada de ../../2023, com o seguinte segmento decisório: “Face ao exposto, e nos termos das disposições legais supra citadas, decide-se: a) Julgar improcedente a exceção de caducidade da ação; b) Julgar parcialmente procedente a ação e, em consequência, declarar a anulação das deliberações da assembleia de condomínio aprovadas em 17.05.2021, descritas em 4), em 6) e em 8) da factualidade provada; c) Absolver o réu dos demais pedidos formulados pelos autores; d) Julgar improcedente a exceção de abuso de direito; e) Julgar improcedente o pedido de condenação do réu como litigante de má fé e, em consequência, absolver o réu desse pedido formulado pelos autores.”
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2).1. Inconformados com o segmento decisório que julgou a ação parcialmente improcedente, os Autores (daqui em diante, Recorrentes) interpuseram o presente recurso, através de requerimento constituído por alegações e conclusões, estas do seguinte teor:

“1ª. Dispensada a audiência prévia, o despacho saneador não se pronunciou, como era devido, sobre a questão de Direito agora decidida na sentença sob recurso, de a causa de pedir que fundamenta a presente acção não permitir que o Tribunal condene o R. a adoptar as medidas peticionadas pelos AA. - imediata reposição do gradeamento do prédio no mesmo estado em que se encontrava antes da sua remoção, à imediata retirada do motor de exaustão colocado na cobertura do edifício e à imediata eliminação da quota extraordinária imposta ao A. pela instalação dos painéis solares na cobertura.
2ª. Nesse segmento, a decisão recorrida foi proferida sem que nada a fizesse prever, sem que às partes fosse dado o exercício do contraditório, tratando-se de uma decisão surpresa, com violação do princípio da participação das partes consagrado no artº 3, nº 3, o que gera a nulidade processual inominada prevista no artº 195º, nº 1 do CPC, pois que tal omissão é susceptível de influir no exame e decisão da causa, como sucede no caso em apreço.
3ª. Essa decisão-surpresa, enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”, surpreendendo as partes com o conhecimento dessa questão de Direito - que poderia e deveria ter sido decidida em audiência prévia a ser convocada para o efeito, ex vi artº 591º, nº 1, al. b), do CPC -, não se circunscreve ao estrito âmbito da mera nulidade processual do artº 195º do CPC, mas constitui até uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do artº 615º, nº 1, al. d), 2ª parte do CPC..
4ª. Os pedidos formulados pelos recorrentes e julgados improcedentes não pressupõem uma substituição do Tribunal à assembleia de condóminos, no sentido de modificar ou substituir as deliberações anuladas, antes assentam na consequência legal da declaração de anulação, da restituição ao status quo ante às deliberações anuladas, ex vi artº 289º, nº 1 do Cód. Civil, o que confere o direito dos AA. a que o condomínio, através da sua administração, seja compelido a cumprir o seu poder/dever de realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns do condomínio, a que o mesmo se encontra adstrito por força do conjugadamente disposto nos artºs 1430º, nº 1 e 1436º, nº 1, als. g) e m), do Código Civil.
5ª. Atendendo à configuração dada pelos AA. à presente acção, bem como aos pedidos formulados, a cuja cumulação nada obsta, deverá a decisão de 1ª instância, na parte sob recurso, ser revogada e substituída por outra que, como consequência da declaração de anulação das deliberações identificadas na douta sentença recorrida, condene o R. condomínio a tomar as medidas necessárias e adequadas à imediata reposição do gradeamento do prédio no mesmo estado em que se encontrava antes da sua remoção, à imediata retirada do motor de exaustão colocado na cobertura do edifício e à imediata eliminação da quota extraordinária imposta ao A. pela instalação dos painéis solares na cobertura.
6ª. A douta sentença recorrida violou, para além do mais, o disposto no artº 3º, nº 3 do CPC, gerando a nulidade prevista no artº 195º, nº 1 do mesmo diploma, e não teve em consideração as funções e deveres previstos nos artºs 1430º, nº 1 e 1436º, nº 1, alíneas g) e m), do Código Civil, pelo que se impõe a sua revogação e substituição por decisão que julgue procedentes tais pedidos e determine a condenação do R. condomínio, através da sua administração, nesses pedidos.”
Pediram que, na procedência do recurso, seja revogado o referido segmento decisório e proferido Acórdão que julgue procedentes todos os pedidos formulados na petição inicial.
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2).2. O Ré (daqui em diante, Recorrido) não respondeu.
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2).3. Depois de ter emitido pronúncia acerca da questão da nulidade da sentença, concluindo que a mesma deve improceder, o Tribunal a quo admitiu o recurso como de apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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2).4. Foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, as questões que se colocam neste recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª: Saber se o Tribunal a quo devia ter observado, antes da prolação da sentença, o contraditório especificamente quanto aos fundamentos com que julgou improcedente o pedido de condenação do Réu à tomada “das medidas necessárias e adequadas à imediata reposição do gradeamento do prédio no mesmo estado em que se encontrava antes da sua remoção, à imediata retirada do motor de exaustão colocado na cobertura do edifício e à imediata eliminação da quota extraordinária imposta ao Autor pela instalação dos painéis solares na mesma cobertura” e, em caso afirmativo, se a omissão desse ato tem como consequência a nulidade da sentença;
2.ª: Em caso de resposta negativa à questão anterior, saber a sentença recorrida incorreu em error iudicando ao decidir absolver o Réu daquele pedido.
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III.
1) Como resulta do que antecede, não foi colocada em causa a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, à luz da qual será conhecido o recurso, em especial no que tange à segunda questão enunciada. Aqui a respigamos:
“Factos provados:
1. O prédio sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho ..., encontra-se constituído em propriedade horizontal, é composto por 39 frações autónomas com a permilagem global de 1000, correspondente ao capital total do prédio, e esse prédio está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...14.
2. Encontra-se registada a favor dos autores a aquisição da fração autónoma designada pela letra ... destinada a habitação do prédio em regime de propriedade horizontal identificado em 1), aquisição registada na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...14....
3. Por escritura outorgada em ../../2015, CC e DD declararam transmitir a AA e a BB a fração autónoma identificada em 2) pelo preço de € 97.500,00.
4. No dia ../../2021, a assembleia de condomínio do prédio identificado em 1) reuniu em segunda convocatória com um quórum de 804/1000 (oitocentos e quatro num total de mil) correspondente a 80,40% do capital investido no prédio e deliberou o seguinte sobre o ponto 7 da ordem de trabalhos “Apresentação, análise e deliberação sobre o pedido de retirada do vão do gradeamento entre pilares que serve de proteção à galeria do prédio, para acesso à esplanada aberta colocada em espaço público de estacionamento não concessionado, pertencente ao estabelecimento designado por “EMP02...””:
Colocado o assunto a votação, foi deliberado por maioria dos condóminos presentes aprovar a remoção do gradeamento entre pilares existente na galeria, na parte frontal à loja ocupada pelo estabelecimento designado por “EMP02...” e a manutenção desta situação para o futuro”.
5. A deliberação referida em 4) foi aprovada com 532 votos favoráveis, representativos das frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., 169 votos contra representativos das frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., e 103 votos de abstenção representativos das frações ..., ... e ....
6. A assembleia de condomínio realizada em 17.05.2021 deliberou o seguinte sobre o ponto 8 da ordem de trabalhos “Apresentação, análise e deliberação sobre o pedido de instalação do motor de exaustor na cobertura do prédio, após a realização das alterações de melhoria das condições de insonorização e anti-vibração, de acordo com as orientações fornecidas pela empresa certificada que acompanhou os trabalhos”:
A assembleia deliberou por maioria dos presentes aprovar a manutenção do motor de exaustão instalado na cobertura do edifício, desde que sejam cumpridas as regras regulamentares para a instalação deste tipo de equipamento”.
7. A deliberação referida em 6) foi aprovada com 557 votos favoráveis, representativos das frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., 98 votos contra representativos das frações ..., ..., ... e ... e 149 votos de abstenção representativos das frações ..., ....
8. A assembleia de condomínio realizada em 17.05.2021 deliberou o seguinte sobre o ponto 9 da ordem de trabalhos “Apresentação, análise e deliberação sobre o pedido de reapreciação sobre a ocupação do conjunto de painéis solares para beneficio próprio do Sr. AA, instalados a título gratuito em parte comum do prédio (cobertura) contrariando o principio da igualdade, se estabelecermos a comparação com o deliberado em assembleia de condóminos, aquando da ocupação do espaço comum do prédio (galeria) para a colocação de mesas em beneficio próprio do estabelecimento designado por “EMP02...””:
Debatido o assunto, a assembleia deliberou por maioria, aprovar cobrar uma quota extraordinária pela instalação de painéis solares na cobertura, ao proprietário da fração ..., AA, que produzirá efeitos a partir da data da realização da assembleia, incumbindo a administração de efetuar o cálculo do montante anual a pagar mediante a proporção dos espaços ocupados pelas mesas colocadas na galeria e a área ocupada pelos painéis solares instalados na cobertura, tendo em conta que a EMP02... paga o montante anual de 500,00€”.
9. Aquando da deliberação do ponto 9 da ordem de trabalhos, o proprietário da fração autónoma designada pela letra ..., EE, colocou à apreciação da assembleia o facto de o proprietário da fração autónoma designada pela letra ... ter instalado painéis solares na cobertura do edifício a título gratuito e não haver nenhuma contrapartida para o condomínio, por se tratar da ocupação de um espaço considerado parte comum, e lembrou à assembleia que lhe é cobrada uma quantia pela ocupação da galeria para a colocação de mesas.
10. Aquando da deliberação do ponto 9 da ordem de trabalhos, AA expôs aos presentes que a ocupação da cobertura e da galeria não se comparam, uma vez que a área de cobertura não é acessível aos condóminos e a área de galeria é um espaço acessível e utilizável pelos condóminos.
11. A deliberação referida em 8) foi aprovada com 558 votos favoráveis representativos das frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., 26 votos contra representativos da fração ... e 220 votos de abstenção representativos das frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ....
12. Por deliberação da assembleia de condomínio realizada em 03.07.2020, foi deliberado confiar a administração do condomínio do prédio identificado em 1) a EMP01..., Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., para o exercício de 2020/2021.
13. Por carta datada de ../../2021, a administradora de condomínio do réu remeteu aos autores cópia da ata da assembleia de condomínio referida em 4), assembleia na qual o autor esteve presente.
14. EE titular da fração autónoma designada pela letra ... do prédio identificado em 1) possui um estabelecimento de restauração denominado EMP02... e retirou o gradeamento da galeria do prédio para facilitar o acesso à esplanada a instalar na zona frontal desse estabelecimento comercial.
15. O proprietário da fração autónoma designada pela letra ... colocou, na cobertura do prédio referido em 1), um motor de exaustão de cheiros e fumos provenientes do estabelecimento EMP02... sem pagar qualquer contrapartida monetária ao
condomínio.
16. A assembleia de condomínio referida em 4) deliberou o seguinte sobre o ponto 11 da ordem de trabalhos “Apresentação, análise e deliberação sobre a remoção do aparelho de ar condicionado instalado na cobertura e respetiva instalação elétrica pelo proprietário da fração ... sem autorização prévia do condomínio”:
A assembleia deliberou por maioria dos presentes aprovar a instalação do aparelho de ar condicionado na cobertura do edifício, ou seja, pelo interior da platibanda, ficando o condómino FF obrigado à remoção da máquina exterior do aparelho de ar condicionado e respetiva tubagem de alimentação e escoamento de águas do aparelho do lugar onde se encontra instalado, bem como a reparação do condutor de águas pluviais”.
17. O autor AA esteve presente na assembleia de condomínio referida em 4).
18. Os autores instalaram painéis solares na cobertura do prédio identificado em 1) para seu uso exclusivo.
19. Na assembleia de condomínio do prédio referido em 1), realizada em ../../2016, “a Assembleia deliberou por unanimidade dos presentes autorizar a colocação de painéis solares fotovoltaicos na cobertura do sótão da fração ..., nas condições aqui indicadas, ficando a Administração encarregada de acompanhar os trabalhos, sendo da responsabilidade do proprietário da referida fração todos os custos provenientes de danificações que daí advenha, quer nas partes comuns, quer no interior das frações, bem como a obtenção de licenças e demais elementos que venham a ser solicitados pelas entidades competentes”.
20. A presente ação deu entrada em juízo em 01.09.2021.
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b) Factos Não Provados

Com relevância para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:
A. A deliberação referida em 6) respeita à remoção do motor de exaustão inicial e à colocação de um novo motor em substituição daquele e esse novo motor é de dimensões e peso superiores ao anterior, tem uma base de apoio na cobertura do edifício de dimensões superiores, o que provoca uma maior superfície de contacto com a cobertura e uma maior superfície de propagação dos ruídos e das vibrações para todo o edifício e frações que o integram;
B. O motor referido em 6) afeta o arranjo estético do edifício;
C. Ao proprietário da fração autónoma designada pela letra ... do prédio identificado em 1) não lhe foi exigido o pagamento de qualquer contraprestação ao condomínio pela ocupação da cobertura;
D. A deliberação referida em 8) foi efetuada por intuito persecutório do condómino EE por o autor se ter insurgido contra os maus cheiros, ruídos e vibrações causados pelo motor de exaustão de fumos e cheiros colocado por aquele na cobertura do edifício e pelos equipamentos de ar condicionado instalados nas traseiras da fração autónoma designada pela letra ...;
E. A ata da assembleia de condomínio realizada em 17.05.2021 foi notificada a todos os condóminos ausentes e nenhum deles manifestou a sua discordância quanto às deliberações aí tomadas.
F. O autor não suscitou qualquer irregularidade ou falta de quórum das deliberações na assembleia realizada em 17.05.2021.
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IV.
1).1. Avançamos para a primeira questão, começando por lembrar que, segundo os Recorrentes, a sentença recorrida é nula, ut art. 615/1, d), do CPC, por nela o Tribunal a quo ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento.
Para justificar esta afirmação, os Recorrentes sustentam que o segmento decisório que pretendem reverter – aquele que absolveu o Réu do pedido de condenação na tomada das “medidas necessárias e adequadas à imediata reposição do gradeamento do prédio no mesmo estado em que se encontrava antes da sua remoção, à imediata retirada do motor de exaustão colocado na cobertura do edifício e à imediata eliminação da quota extraordinária imposta ao Autor pela instalação dos painéis solares na mesma cobertura – deveria ter sido precedido de contraditório. Não o tendo sido, representa uma decisão-surpresa, proibida nos termos do art. 3.º/3 do CPC.

Quid inde?
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1).2.1. Diz o art. 615/1, d), do CPC que a sentença é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Esta norma está diretamente relacionada com a o art. 608/2 do CPC, segundo a qual “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” Deve ser conjugada, também, com outras normas que impedem o juiz de tomar conhecimento de determinadas questões, como sejam aquelas que foram já concretamente apreciadas, com o consequente esgotamento do poder jurisdicional (art. 613/1 do CPC), e, eventualmente, a constituição de caso julgado (arts. 619 e 620 do CPC).
A nulidade por excesso de pronúncia reconduz-se, assim, a um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da decisão.
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1).2.2. Como se constata, a nulidade ocorre quando o juiz conhece de questões de que não podia tomar conhecimento. Sobre este conceito, pode ler-se, no Acórdão desta Relação de 7.12.2023 (5542/19.1T8VNF.G1), relatado por Maria João Matos:
Questões, para este efeito, são «todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer ato (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes» (Antunes Varela, RLJ, Ano 122.º, pág. 112); e não podem confundir-se «as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, pág. 143).
Logo, questões são aqui os pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as exceções, e não também as razões ou os argumentos invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas (Ac. do STJ, de 21.12.2005, Pereira da Silva, Processo n.º 05B2287…).
Compreende-se, por isso, que se afirme que «as questões suscitadas pelas partes e que justificam a pronúncia do tribunal terão de ser determinadas pelo binómio causa de pedir-pedido, e o tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1979, pág. 220).”
Dito de outra forma, não há excesso de pronúncia se o tribunal, para decidir, usar de fundamentos jurídicos diferentes dos invocados pelas partes, dado o art. 5.º/3 do CPC o permitir. Muito menos se o tribunal aduzir argumentos que a parte não apresentara, já que, uma coisa são as questões e, outra, são os argumentos que suportam a resolução daquelas, como se disse.
Sem prejuízo, do que antecede, parte da doutrina e da jurisprudência vêm entendendo que ocorre também excesso de pronúncia quando o juiz decide questão adrede colocada pelas partes ou do conhecimento oficioso com base em argumentos nunca antes ponderados, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre eles se pronunciarem, constituindo uma decisão-surpresa, proibida nos termos previstos no art. 3.º/3 do CPC.
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1).3. O princípio da proibição das decisões-surpresa constitui uma manifestação do princípio do contraditório. Este, por sua vez, é uma emanação do princípio da equidade previsto no art. 20 da Constituição da República, próprio do carácter democrático do processo.
O CPC de 1961, na sua versão anterior à reforma de 95/96, levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, e pelo DL n.º 180/96, de 25.09, apenas previa o sentido clássico do princípio do contraditório, situando-o num plano estritamente horizontal, assim explicado por Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 379): “[o] processo reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), muito embora se admita que as deficiências e os transvios ou abusos da atividade dos pleiteantes sejam supridos ou corrigidos pela iniciativa e autoridade do juiz. Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras.” É com este sentido – o de defesa, oposição, resistência aos factos, às provas e aos fundamentos jurídicos do processo invocados pela contraparte e a respetiva exceção – que o princípio do contraditório está enunciado nos números 1 e 2 do art. 3.º do atual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, redundando assim numa proibição de indefesa (Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 16).
Com a referida Reforma, a previsão do princípio do contraditório na lei ordinária foi ampliada a uma dimensão vertical, através da introdução da seguinte fórmula legal: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Esta foi mantida, ipsis verbis, no art. 3.º/3 do atual CPC.
Impõe-se, assim, ao juiz a audição das partes quando pretenda tomar uma decisão inesperada sobre qualquer questão de direito ou de facto. Dito de outra forma, o juiz não pode tomar uma decisão que não seja previsível pelas partes sem antes lhes dar oportunidade de se pronunciarem, com isso participando no processo decisório.[1] Nas palavras de Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais à luz do Novo Código, 4.ª ed., Coimbra: Gestlegal, 2021, pp. 126-127), “[s]ubstitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” Daqui decorre que, nesta dimensão, o contraditório é, também, influência na decisão, como se reconhece em RG 5.12.2019 (858/15.9T8VNF-A.G1) e 22.06.2023 (3731/21.8T8BRG-A.G1), ambos relatados por José Alberto Moreira Dias, aqui segundo Adjunto.
A consagração legal do princípio impõe a sua observância, tanto no que concerne à matéria de facto, com à matéria de direito. No que tange à primeira, implica que, nas situações em que é lícito ao juiz introduzir oficiosamente factos no processo (art. 5.º/2 do CPC[2]), deve ser permitido que ambas as partes se pronunciem sobre os seus pressupostos e a sua existência. Pressupõe também que as partes possam pronunciar-se, designadamente nos debates orais, sobre os termos em que a prova deve ser apreciada (art. 604/3, e), e 5 do CPC). No que tange à segunda, implica que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie” (Lebre de Freitas, Introdução cit., p. 126), de tal modo que se o juiz encontrar uma solução jurídica do litígio que não tenha sido vislumbrada pelas partes ao longo do processo – isto é, uma decisão para a qual as “exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração” (RC 13.11.2012, 572/11.4TBCND.C1, relatado por José Avelino Gonçalves) – deve, antes de proferir a sentença, informá-las e permitir-lhes a emissão de pronúncia.
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1).4. O que antecede serve de mote para definirmos o que deve entender-se por decisão-surpresa.
Sobre isto, seguindo a sistematização de Luís Correia de Mendonça (“O contraditório e a proibição das decisões-surpresa, ROA, ano 82, V. 1-2, pp. 185-239), encontramos essencialmente duas correntes: a anti-formalista e a Garantista.
Para a primeira, defendida por Pereira Baptista (Reforma do Processo Civil, Princípios Fundamentais, Lisboa: Lex, 1997, pp. 37-38), Carlos Lopes do Rego (Comentário cit., p. 33) e Paulo Ramos de Faria / Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, p. 32), a decisão-surpresa não se confunde com a suposição ou expectativa que as partes possam ter feito ou acalentado quanto à decisão. Assim, não se pode falar de decisão-surpresa quando as decisões, de facto ou de direito, devam ser conhecidas pelas partes como viáveis, como possíveis. Dito de outra forma, só há decisão-surpresa quando se trate de apreciar argumentos jurídicos suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada os tivesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre eles.
Para a segunda, defendida por Lebre de Freitas (Introdução cit., pp. 126-127), a contrariedade, no processo civil, deve ser perspetivada como “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. Caso exista algum argumento, não debatido pelas partes, em que o juiz entenda dever basear nela a sua decisão, deve previamente convidar ambas as partes a sobre ele tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art. 3.º/3), circunscrita às situações simples e em que não exista controvérsia.  O autor faz, porém, uma ressalva relativa aos arts. 552/1, d), e 572, b), que impõem que o autor, na petição inicial, exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à sua ação e que o réu, na contestação, exponha as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor, respetivamente. Estes dois preceitos consagram ónus cuja inobservância “pode ter como consequência a inaplicabilidade da vertente do princípio do contraditório ora considerada”, o que só acontecerá com a total omissão de tal indicação, sendo sancionada, em paralelismo com a situação de falta absoluta de causa de pedir.
Na jurisprudência tem prevalecido a primeira corrente, conforme se pode constatar através dos arestos do STJ enumerados por Luís Correia de Mendonça (loc. cit., pp. 21-29). Acrescenta-se, ao nível das Relações, RP 4.05.2022 (475/21.4T8STS-B.P1), relatado por Manuel Domingos Fernandes, no qual se definiu decisão-surpresa como a “solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tinha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever que fosse proferida.” Parte-se aqui do pressuposto de que as partes têm o ónus de prever algumas questões. Nesta medida, escreve-se que “não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo por isso, de lhes ser dada a priori possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico”, o que faz todo o sentido, na medida em que, tal como o acórdão refere, o juiz não se encontra vinculado ao enquadramento jurídico feito pelas partes; tem ele mesmo o poder funcional de enquadrar juridicamente os factos. Evidentemente que, se no caso concreto, a figura a que o juiz chegou for previsível, pode considerar-se manifestamente desnecessário chamar as partes para se pronunciarem, pois as partes não foram diligentes, adotaram uma atitude negligente. Se esse novo enquadramento for marcadamente inesperado, já deve ser considerado que não é manifestamente desnecessário ouvir as partes. Acrescenta-se também o já citado RC 13.11.2012 (572/11.4TBCND.C1), no qual, depois de se ter considerado que o cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes, se concluiu que “a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.” Acrescenta-se, finalmente, no mesmo sentido, na jurisprudência desta Relação, os Acórdãos de 19.11.2029 (899/18.4T8VCT.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias, 21.01.2021 (1202/18.9T8BGC-A.G1), relatado por Rosália Cunha, 30.06.2022 (199/21.2T8EPS.G1), relatado por Alcides Rodrigues, 7.06.2023 (2155/22.4T8BRG.G1), relatado por Sandra Melo, e 21.09.2023 (2445/22.6T8GMR.G1), relatado por Paulo Reis.
A nosso ver, a tese garantista desvaloriza o princípio da autorresponsabilidade das partes, sobretudo nos casos em que estas estão representadas por advogado, sendo, assim, de exigir que nos momentos processuais próprios, designadamente nos articulados, se pronunciem sobre os cenários possíveis, dando-lhes o adequado enquadramento jurídico. Nesta medida, às partes apenas será legítimo invocar a surpresa quando, atentas as circunstâncias do caso, a decisão não fosse, de todo, previsível para elas. Assim sucederá quando a solução do juiz se apresente como inovadora ou, nas palavras de Paulo Ramos de Faria / Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas cit., p. 32), quando corporize “uma subsunção notada pela sua originalidade, pelo seu caráter invulgar e singular, objetivamente considerado”, e, bem assim, quando toda a discussão pretérita tenha sido feita à luz de um determinado instituto jurídico, ainda que na base de equívocos, sem qualquer alerta por parte do tribunal, e, na decisão, o juiz opte por uma outra via, nunca antes cogitada.
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1).5. Não há unanimidade, tanto na doutrina como na jurisprudência, acerca das consequências da infração ao princípio da proibição das decisões-surpresa. Na verdade, tem sido objeto de controvérsia saber se a omissão da audição das partes, quando tal se impõe, deve ser arguida nos termos gerais – isto é, por via incidental, ut art. 196, 2.ª parte, perante o Tribunal de 1.ª instância, onde ela foi cometida, sem prejuízo da subsequente interposição de recurso do despacho que dela conheça, recurso que terá sempre de passar pelo crivo do art. 630/2 do CPC[3] – ou se gera a nulidade da própria decisão que, na sequência, venha a ser tomada, nulidade que, assim, terá se de ser arguida no recurso interposto desta, em conformidade com o disposto no art. 615/4 do CPC.
Conforme é assinalado em STJ 23.06.2016 (1937/15.8T8BCL.S1), relatado por António Abrantes Geraldes, a solução acabada de expor, ajustada à generalidade das nulidades processuais, “revela-se, contudo, inadequada quando nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão (…), omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório. Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reação da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.” No mesmo sentido, STJ 13.10.2020 (392/14.4.T8CHV-A.G1.S1), relatado por António Magalhães, STJ 16.12.2021 (4260/15.4T8FNC-E.L1.S1), relatado por Luís Espírito Santo, RE 14.07.2021 (58/20.6T8LGA-C.E1), relatado por  Mário Coelho, RG 13.02.2020 (3496/18.0T8VCT.G1), relatado por Raquel Batista Tavares, e RL 9.22.2023 (7556/22.5T8LRS.L1-6), relatado por Maria de Deus Correia.
Neste último sintetiza-se o entendimento nos seguintes termos: “Não há dúvida de que estamos perante o caso descrito nos excertos doutrinários supra mencionados, em que a nulidade decorrente de uma omissão de ato que a lei prescreve é totalmente coberto por decisão judicial que se pronunciou sobre questão sobre a qual naquele momento não podia pronunciar-se.
Assim, nestas especiais circunstâncias, a nulidade cometida comunica-se ao despacho saneador-sentença, inquinando-o, ficando a decisão judicial (que não deveria ter sido proferida), contaminada por um vício que atinge o próprio ato jurisdicional de julgamento. A decisão enferma, pois, de um excesso de pronúncia enquadrável no disposto no art.º 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, não se limitando a uma simples omissão de uma diligência que deveria ter tido lugar e que, por falta imputável ao juiz da causa, não sucedeu.
Com efeito, o que verdadeiramente releva no caso é a pronúncia sobre uma questão que pôs fim ao processo, sem respeito pelo princípio do contraditório (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) tendo o Tribunal a quo decidido em momento no qual a lei não lhe permitia proferir sentença, culminando numa verdadeira e proibida decisão surpresa, que consumiu a omissão da audiência prévia, por si só, também passível da invocação de nulidade nos termos gerais.”
Na doutrina, Miguel Teixeira de Sousa (Audiência prévia; dispensa; nulidade processual; consequências – Jurisprudência 163”, disponível no Blog do IPPC), diz que “são possíveis três situações bastante distintas:
- Aquela em que a prática do ato proibido ou a omissão do ato obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
- Aquela em que o ato proibido é praticado ou o ato obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um ato obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso, (…) o meio de reação adequado é a impugnação da decisão através de recurso. (…).
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões. (…) Se, apesar da omissão indevida de um ato, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do ato omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do ato), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), CPC) (…).
O objeto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida – hipótese em que o recurso é procedente – ou não há vícios da decisão impugnada – situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam atos obrigatórios ou que impõem a realização de atos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do ato.
É, aliás, porque o objeto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objeto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula – isto é, padece de um vício que se integra no objeto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer – ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual – situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objeto do recurso.”
Num outro escrito (“Audiência prévia; dispensa; conhecimento do mérito no despacho saneador; nulidade processual – Jurisprudência 250”, disponível no Blog do IPPC) Miguel Teixeira de Sousa considera, mais especificamente, que “o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC); a nulidade do processo só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que revela a nulidade processual) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um ato, mas também com o conteúdo do despacho).”
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1).5.1. Acaso seguíssemos o 1.º entendimento, diríamos que os Recorrentes deviam ter arguido a nulidade decorrente da não consulta prévia junto do Tribunal a quo, o que objetivamente não fizeram.
Estaríamos então perante uma situação de erro no meio processual, enquadrável no art. 193/3 do CPC.
Em geral, erros deste tipo podem e devem ser sanados pelo Tribunal da Relação, determinando-se a convolação do recurso de apelação em incidente de arguição de nulidades e determinando-se a baixa do processo à 1.ª instância para que tal incidente ali seja apreciado e decidido, orientação que se sustenta na regra de que, seguida via processual errada, o tribunal procede oficiosamente à convolação para a via adequada, posto que seja possível a utilização do requerimento apresentado. Este poder do tribunal refere-se ainda ao plano processual e insere-se, portanto, no âmbito dos poderes de condução do processo, sem afetar a relação substantiva subjacente, como frisa Maria dos Prazeres Beleza, “A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis”, Jurismat, 2022, n.º 15, pp. 219-232. Trata-se de um poder oficioso que também pertence ao tribunal de recurso (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online cit., p. 76). Não se diga em contrário que o poder jurisdicional da 1.ª instância ficou esgotado com a prolação da sentença (art. 613/1 do CPC). É que aquilo que está em causa é uma nulidade pretérita, não apreciada, que inquina necessariamente o ato decisório subsequente, permitindo ao tribunal suprir esse vício, mesmo que depois de proferida a sentença (cf. art. 613/2 do CPC).
Simplesmente, a possibilidade de convolação não é ilimitada. O seu exercício pressupõe, a um tempo, que o ato processual praticado pela parte tenha respeitado os requisitos de ordem formal previstos para o meio processual adequado à finalidade pretendida (STJ 14.05.2019, 12/12.1TBGMR-F.G1.S2) e, a outro, que tenha sido praticado dentro do prazo perentório fixado para este. Não é admissível que, através desta convolação oficiosa, a parte consiga praticar um ato processual cujo prazo para o seu exercício (atuando sem erros) já se encontraria expirado e, nessa medida, precludido. Neste sentido, expressamente, STJ 8.02.2018 (4140/16.6T8GMR.G1.S2), RP 5.03.2015 (3788/13.5YYPRT-A.P1) e RG 7.03.2019 (2305/17.2T8VNF-A.G1). Na doutrina, Maria dos Prazeres Beleza, “A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis”, Jurismat, 2022, n.º 15, p. 224, nota 16, Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, Artigos 130.º a 361.º, versão de 2023/10, p. 76, nota 8, e Luís Filipe Espírito Santo, Recursos Civis, Lisboa: Cedis, 2020, p. 239.
Não sendo a nulidade em causa do conhecimento oficioso, o prazo para a arguir é de dez dias (art. 149/1 do CPC). Se a parte não estiver presente no momento em que a nulidade é cometida, o prazo para a sua arguição conta-se a partir do momento em que a parte tem a obrigação de conhecer a nulidade (art. 194/1, 2.ª parte, do CPC). Se a parte interveio no processo, é a partir do momento dessa intervenção que se conta o prazo para a arguição da nulidade. “A lei parte do princípio de que uma intervenção cuidadosa implicará sempre o exame do processo e a verificação da (in)existência de uma qualquer nulidade” (STJ 4.02.2020, 805/16.0T8MTJ.L1.S1). Se a parte foi notificada para ou de (e não apenas “para”) qualquer ato no processo, o prazo para a arguição da nulidade conta-se a partir dessa notificação, embora apenas quando se possa presumir que, nesse momento, a parte tomou conhecimento da nulidade ou dela devesse ter tomado conhecimento. Como explica Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online cit., p. 82, nota 4), “a sequência de atos que caracteriza a tramitação do processo leva a que se possa concluir que a notificação da parte é suficiente para a alertar de que foi ou vai ser praticado um ato fora do momento legal ou de que foi omitido um ato que devia ter antecedido o ato notificado.”
No caso que nos ocupa, como é bom de ver, o prazo estaria esgotado quando foi apresentado o requerimento de interposição de recurso, o que significa que teria ficado precludido o direito processual à arguição da nulidade que, assim, estaria sanada.
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1).5.2. Aderindo, no entanto, aos ensinamentos expressos a propósito da segunda hipótese, tal como vem sendo entendido na jurisprudência desta Secção – inter alia, os já citados RG 5.12.2019 (858/15.9T8VNF-A.G1) e 22.06.2023 (3731/21.8T8BRG-A.G1), ambos relatados por José Alberto Moreira Dias, aqui segundo Adjunto, RG 15.02.2024 (123/15.1T8CBT.G1), relatado por José Carlos Pereira Duarte –, temos que a não observância do dever de consulta prévia às partes conforma uma patologia que se projeta na própria decisão proferida. Está-se assim a conhecer de uma questão que não podia ser conhecida, o que redunda num vício estrutural da decisão. Quer se considere que a nulidade processual é consumida pela nulidade da decisão por excesso de pronúncia, quer se considere que há apenas um vício – o da decisão –, será sempre este último que deverá ser atacado com arrimo no disposto no art. 615/1, d), do CPC.
A nulidade aqui prevista – em rigor, uma anulabilidade – não é, porém, do conhecimento oficioso, entendimento que se estriba na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) aludirem, em determinadas circunstâncias, à possibilidade do suprimento oficioso de nulidades da sentença de modo que indicia que o conhecimento desse vício constituirá a exceção e não a regra que, em contrapartida, é a necessidade de alegação. Neste sentido, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1), relatado por Maria da Graça Trigo, RG 1.02.2018  (1806/17.7T8GMR-C.G1), relatado por José Amaral, RG 17.05.2018 (2056/14.0TBGMR-A.G1), relatado por Maria João Matos, RG 4.10.2018 (4981/15.1T8VNF-A.G1) e RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1), relatado por Rosália Cunha; na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil  (artigos 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10. Assim, para que o tribunal ad quem possa conhecer dela impõe-se a sua arguição.
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1).6. Tendo isto presente, no caso em análise, é de afastar a hipótese de estarmos perante uma decisão-surpresa.
Com efeito, no segmento decisório da sentença recorrida em discussão no presente recurso estão em causa os fundamentos jurídicos do pedido que foi julgado improcedente, os quais foram conhecidos pelo Tribunal a quo, conforme se impunha, na sentença, em termos que nada têm de inovadores, baseando-se mesmo, conforme foi expressamente mencionado, na doutrina de reputados civilistas (Pires de Lima / Antunes Varela e Sandra Passinhas), bem divulgada e conhecida.
Por outro lado, os Recorrentes tiveram oportunidade de se pronunciarem sobre os fundamentos da referida pretensão e de aduzirem os argumentos que tivessem por pertinentes no sentido do seu reconhecimento quando, logo na petição inicial, a introduziram no objeto processual. Em bom rigor, tinham mesmo o dever de o fazer, dando assim cumprimento ao disposto na parte final do art. 552/1, d), do CPC.
Não podem, por isso, dizer-se surpreendidos pelo facto de o Tribunal a quo, cumprindo o seu dever de fundamentação (art. 607/3 do CPC), ter procedido, como procedeu, ao enquadramento jurídico da pretensão. Os Recorrentes sabiam que assim iria necessariamente suceder, sob pena de a sentença padecer de falta de fundamentação, o que seria causa da sua nulidade, enquadrável na alínea b) do n.º 1 do art. 615 do CPC.
Lembrando que o princípio da cooperação é transversal a todo o processo e se impõe também às partes – e não apenas ao Tribunal –, não podemos deixar de entender que é inaceitável, configurando mesmo um venire contra factum proprium, expressão do uso abusivo dos direitos processuais[4], que a parte que omitiu o seu dever de aduzir, no momento processual adequado, as “razões de direito” que fundamentam um concreto pedido, assim renunciando à possibilidade de influenciar a decisão, venha depois reagir a esta mediante a arguição da sua nulidade por o juiz não ter cuidado de previamente a ouvir sobre o enquadramento jurídico da pretensão.
Sem necessidade de outras considerações, improcede a invocada nulidade da sentença.
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2).1. Passamos para a segunda questão.
Como vimos, estamos perante uma ação em que, ademais da declaração de nulidade de três deliberações da assembleia de condóminos, foi pedido que o Tribunal tome “as medidas necessárias e adequadas à imediata reposição do gradeamento do prédio no mesmo estado em que se encontrava antes da sua remoção, à imediata retirada do motor de exaustão colocado na cobertura do edifício e à imediata eliminação da quota extraordinária imposta ao Autor pela instalação dos painéis solares na mesma cobertura.”
Depois de ter concluído que as referidas deliberações enfermam de vícios no seu processo formativo que têm como consequência a respetiva anulabilidade, o Tribunal a quo anulou-as e, não obstante, julgou improcedente o pedido acabado de transcrever com a seguinte fundamentação:
“Ora, no que respeita à eliminação da quota extraordinária imposta aos autores pela colocação de painéis solares na cobertura do edifício, julgamos que sendo declarada a anulação da deliberação que aprovou a criação dessa quota extraordinária, a mesma extingue-se ipso iure com a declaração de anulação dessa deliberação da assembleia de condomínio, nada mais havendo a determinar a esse propósito.
Não obstante, no que concerne aos pedidos de condenação do réu e da sua administração à adoção das medidas necessárias à reposição do gradeamento do prédio no estado em que se encontrava antes da sua remoção e à retirada do motor de exaustão colocado na cobertura do edifício e à imediata eliminação da quota extraordinária imposta aos autores,
julgamos que a causa de pedir que fundamenta a presente ação – invalidade das deliberações da assembleia de condomínio realizada em 17.05.2021 – não permite que o tribunal condene o réu a adotar essas medidas peticionadas pelos autores. Na verdade, julgamos que no âmbito da presente ação de impugnação de deliberação de assembleia de condomínio a pronuncia do tribunal cinge-se exclusivamente à apreciação da violação da lei ou dos regulamentos em vigor e “limita-se a uma simples fiscalização da legalidade da deliberação” (neste sentido, v.g., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2.ª ed. revista e atualizada reimpressão, págs. 449).
Por essa razão, julgamos que que no âmbito da ação de impugnação de deliberação da assembleia de condomínio “o juiz pode declarar nula ou anular a deliberação impugnada, mas não pode substituir-se à assembleia ao tomar uma medida, isto é, não pode modificar ou substituir uma deliberação. O juiz não pode substituir a sua pronuncia de mérito à pronuncia nula ou anulável da assembleia, devendo ele limitar-se a declarar a nulidade ou a decretar a anulabilidade da mesma” (neste sentido, v.g., Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2.ª ed., Almedina, 2002, págs. 262 e 263).”
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2).2. Antes de avançarmos, não podemos deixar de notar que o pedido em questão impressiona pela sua natureza vaga e ambígua. Com efeito, os Recorrentes recorreram a um conceito indeterminado (medidas necessárias e adequadas) que compromete a possibilidade de uma decisão que o julgue procedente nos precisos termos em que foi formulado (e aos quais o julgador estás vinculado, sob pena de estar a condenar em objeto diverso do pedido): quais são, afinal, as medidas que os Recorrentes entendem ser necessárias e adequadas à reposição do status quo ante?
A resposta a esta questão sempre seria necessária por duas razões: em primeiro lugar, porque para impor uma concreta obrigação de facere a um sujeito é necessário encontrar a respetiva fonte, seja ela legal ou negocial; em segundo lugar, porque o conteúdo das obrigações tem de ser determinado – ou, pelo menos, determinável de acordo com um critério adrede definido pelas partes ou pela lei. Se assim não suceder, a obrigação é nula (cf. art. 280 do Código Civil). Compreende-se que assim seja: a um tempo, para que o devedor possa cumprir a obrigação, realizando a prestação debitória, é necessário que ele saiba aquilo que está obrigado a prestar; a outro, para que, havendo lugar à execução específica ou ao cumprimento coercivo, designadamente, tratando-se de obrigação de facto positivo infungível, através da imposição de uma sanção pecuniária compulsória, o tribunal possa determinar o comportamento a que o devedor está adstrito (para mais desenvolvimentos, vide o recente RG 14.03.2024, 368/22.4T8VNF.G1-A, do mesmo Relator).
Estamos, assim, perante uma situação similar aos exemplos dados por António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, I, Coimbra: Almedina, 1997, pp. 113-114, nota 108) de pedidos indetermináveis (v.g., proibir o réu de todo e qualquer ato ofensivo de interesses do autor, condenar o réu na abstenção de praticar qualquer ao ou operação lesivos). E com a agravante de, ao contrário do que sucede nos indicados exemplos, se visar um comportamento positivo e não um simples non facere.
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2).3. Sem prejuízo do que antecede, de modo a evitar conhecer nesta sede da possível ineptidão da petição inicial na parte em apreço, por ininteligibilidade do pedido ut art. 186/2, a), do CPC – o que, em conformidade com o que escrevemos na resposta à primeira questão, poderia ser uma decisão-surpresa –, sempre diremos que a identificação, nas conclusões do recurso, das normas constantes dos arts. 1430/1 e 1436/1, g) e m), do Código Civil, como sendo as pretensamente violadas, conjugada com afirmação, feita nas alegações, de que “o condomínio, através das sua administração, está obrigado a realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns”, permite-nos perceber que, no espírito dos Recorrentes, está em causa a realização de atos incluídos no feixe de competências do administrador do condomínio.
Isto suscita obstáculos intransponíveis à procedência da pretensão dos Recorrentes, justificando assim um juízo sobre o seu mérito.
Em primeiro lugar, a prática de atos daquele tipo, quaisquer que eles sejam, deve ser exigida do administrador e não do condomínio: estão em causa deveres do primeiro, no confronto com os condóminos, cujo cumprimento pode, inclusive, ser exigido pelo segundo. A propósito, Miguel Teixeira de Sousa, “Administrador do condomínio; funções do administrador; legitimidade processual. Jurisprudência 2021 (157)”, disponível no Blog do IPPC.
Em segundo lugar, aquilo que a norma da alínea g) do n.º 1 do art. 1436 impõe ao administrador é a realização de atos conservatórios relativos aos bens comuns, como tais entendidos aqueles que são destinados a evitar a deterioração ou a destruição dos bens e a perda dos direitos correspondentes (STJ 14.12.2017, 6056/15.4T8VNG.P1.S1, relatado por Fernanda Isabel Pereira).
A reposição do gradeamento do prédio e a retirada do motor de exaustão colocado na cobertura do edifício não configuram atos de conservação, mas atos de reposição do edifício no seu estado anterior. Anuladas as deliberações sociais que autorizaram a remoção do gradeamento e a colocação do motor de exaustão, estas obras representam inovações não autorizadas em partes comuns.
A reconstituição da situação anterior deve ser exigida ao condómino que levou a cabo tais atos ilícitos. Na verdade, como escreve Aragão Seia (Propriedade Horizontal, Coimbra: Almedina, 2001, p. 137), “a sanção correspondente à realização das referidas obras novas é a destruição delas, isto é, a reconstituição natural que não pode ser substituída por indemnização em dinheiro ao abrigo do princípio da equidade estabelecido nos art. 566/1, in fine, e 829/2, porque este princípio só vale para o não cumprimento das obrigações em geral e não para a violação do estatuto real do condomínio, em que estão em jogo regras de interesse e ordem pública atinentes à organização da propriedade, que bolem com os interesse de todos os condóminos do prédio.” O mesmo autor acrescenta que “tem legitimidade para propor ação judicial, com fundamento na construção ilegal em parte comum, qualquer condómino que defenda os seus direitos derivados da propriedade horizontal (…)”
A ação pode também ser proposta pelo condomínio, representado administrador (art. 1437/1 e 2), sendo, neste caso, necessariamente precedida de deliberação da assembleia que tem de ser tomada, em primeira convocação, por maioria dos votos representativos do capital investido (ar. 1432/5) e, em segunda convocação, por maioria dos votos dos condóminos presentes, desde que estes representem, pelo menos, um quarto do valor total do prédio. (art. 1432/6), hipótese em que assumem total pertinência as considerações feitas na sentença recorrida: pressupondo que a medida necessária e adequada pretendida pelos Recorrentes consiste na propositura de uma ação pelo condomínio contra o condómino que fez as referidas inovações, então a autorização tem de decorrer da vontade dos condóminos formada e expressa na assembleia, não podendo o Tribunal substituir-se a esta.
Finalmente, não se percebe que outra medida é necessária e adequada à eliminação da obrigação de pagar a quota suplementar aprovada pela terceira das deliberações. Como enfatizou o Tribunal a quo, esse é já o resultado da anulação das deliberações, com os efeitos ex tunc que atribuídos pelo art. 289/1 do Código Civil.
Poderíamos cogitar a hipótese de estar em causa a restituição de quotas que tivessem sido pagas pelos Recorrentes no hiato compreendido entre a aprovação e a anulação da deliberação, o que seria ainda enquadrável nos efeitos da anulabilidade. Simplesmente, uma resposta afirmativa a semelhante pretensão pressupunha, ademais da necessidade de um concreto pedido nesse sentido, que os Recorrentes tivessem alegado e provado o pagamento indevido, o que não sucedeu.
Improcedem, portanto, in totum as conclusões do recurso.
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3). Vencidos, os Recorrentes devem suportar as custas do presente recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Julgar o presente recurso de apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida;
Condenar os Recorrentes no pagamento das custas respetivas.
Notifique.
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Guimarães, 2 de maio de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2.º Adjunto: José Alberto Moreira Dias



[1] Para João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 97-98 e 102), o princípio da proibição das decisões-surpresa não surge como uma derivação do princípio do contraditório, mas como uma das vertentes do princípio da cooperação, mais concretamente enquanto dever de consulta do tribunal para com as partes. Segundo o autor, o “direito ao contraditório (…) possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma ação ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta.” Assim, o autor entende que o princípio do contraditório inclui o direito à audiência prévia e o direito de resposta, sendo que o tribunal apenas deve observar e fazer cumprir tal princípio (art. 3.º/3, 1.ª parte). Só muito impropriamente se pode afirmar que entre o tribunal e as partes existe um direito ao contraditório. Neste sentido, o dever de o juiz informar e consultar as partes sobre os aspetos de direito ou de facto que por elas não foram considerados, seja por enquadrar juridicamente a situação de forma diferente daquela que é a perspetiva das partes ou por conhecer oficiosamente determinada questão relevante para a decisão, não determina que tenha de ser exercido o contraditório, pois o responsável pela mutação não foi qualquer das partes, mas o tribunal e, portanto, a audiência prévia não terá como objetivo o exercício do direito de resposta de uma parte face às alegações da outra, mas a audiência das duas partes para estas tomarem posição quanto ao que o tribunal apresentou. Tendo isto presente, o autor conclui que a proibição das decisões-surpresa deve deixar de estar prevista no âmbito do contraditório, passando para a parte ode é tratado o princípio da cooperação.
[2] De acordo com o princípio do dispositivo, cabe às partes “alegar factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” (art. 5.º/1 do CPC). O encontra, porém, exceções, logo admitidas pelo n.º 2 do art. 5.º, de acordo com o qual, para além dos factos alegados pelas partes, o juiz considera ainda: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa; c) os factos notórios; e, d) os factos que o juiz tenha conhecimento por virtude das suas funções. Sendo que para a matéria que ora nos ocupa aqueles que relevam são os dois últimos, os factos notórios e aqueles que o juiz tome conhecimento por virtude do exercício das suas funções, na medida em que são introduzidos no processo oficiosamente.
[3] A propósito, António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022 pp. 24-25) escreve que “[a] ocorrência de nulidades processuais pode derivar da omissão de ato que a lei prescreva ou da prática de ato que a lei não admita, ou admita sob uma forma diversa daquela que foi executada. Sem embargo dos casos em que são do conhecimento oficioso, tais nulidades devem ser arguidas perante o juiz (arts. 196 e 197) e é a decisão que for proferida que poderá ser impugnada pela via recursória, agora com a séria limitação constante do n.º 2 do art. 630 (…).”
[4] De acordo com RG 4.04.2024 (4427/22.9T8OAZ-A.G1), do mesmo Relator, o abuso do direito pode verificar-se quer no acesso ao direito propriamente dito, com a propositura de uma ação ou de um procedimento cautelar, quer na própria defesa, no âmbito da contestação, invocação de exceções, pedidos de reconvenção e no recurso. As suas consequências devem ser apuradas casuisticamente, em especial no quadro dos institutos da litigância de má fé e da taxa sancionatória especial, podendo levar, em casos pontuais, à inadmissibilidade do concreto meio processual cujo exercício se revele abusivo.