Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2065/24.0T8GMR-A.G1
Relator: JOÃO PERES COELHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
CONTA BANCÁRIA
COMPENSAÇÃO BANCÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Decisão: DESATENDIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A suspensão a que se refere o n.º 1 do artigo 17º-E do CIRE abrange a compensação bancária, convencionada no contrato celebrado, em momento anterior à instauração do PER, entre um Banco e a devedora/revitalizanda, pelo que aquele não pode pagar-se do seu crédito por débito na conta desta durante o período ali estabelecido e, fazendo-o, deve ser intimado a devolver os montantes correspondentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

No processo especial de reviltalização por si desencadeado, a devedora “EMP01..., S.A”, apresentou, em 15/07/2024,  o seguinte requerimento:
“(…)
● No âmbito dos presentes autos foi, no dia 02.04.2024, publicado o anúncio do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, nos termos do art. 17º-C n.º 5 do CIRE.
Em momento posterior à prolação da decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C, o Banco 1...:
- a 8 de abril de 2024 procedeu à compensação parcial de uma livrança desconto subscrita por € 15.000,00 e vencida desde 7 de março de 2024 através de um depósito a prazo no valor de € 1.000,00 e de um saldo à ordem de € 13.864,53,
- a 12 de abril de 2024 procedeu a nova compensação através do saldo à ordem de € 360,97, que permitiu a regularização integral da livrança. Ou seja, sem que tenha obtido autorização da Devedora para o efeito, o credor Banco 1... pagou-se (através de compensação) da quantia de €15.000,00 relativa a uma livrança desconto subscrita vencida a 7 de março de 2024.
● Tendo tomado conhecimento destes factos, o Sr. Administrador Judicial Provisório, por comunicação dirigida ao credor Banco 1..., de 3 de julho de 2024, interpelou o Banco para o seguinte (cfr. doc. n.º 1):
Considerando o exposto, vimos solicitar a V. Ex.as que, não só, todos os valores que tenham sido deduzidos/bloqueados à devedora desde a data do início do processo especial de revitalização, isto é, desde ../../2024, sejam restituídos à devedora, como também, se inibam de continuar tal prática por violação clara da igualdade dos credores no processo de recuperação, agravada por ser feita em benefício próprio.
● Em resposta a esta comunicação veio o Banco 1..., por comunicação datada de 12 de Julho de 2024 defender que (cfr. doc. n.º 2):
O ato de compensação efetuado pelo Banco 1... não viola qualquer disposição legal, uma vez que, já antes da prolação do despacho de nomeação de administrador judicial provisório, o mesmo podia proceder ao débito nas contas bancárias tituladas pela Devedora, conforme estava contratualmente autorizada a fazer, ato esse que não estava na disponibilidade dos demais credores, nem então, nem depois da prolação do referido despacho.

SUCEDE QUE,
Contrariamente à posição manifestada pelo credor Banco 1... a compensação operada pelo Banco é ilegal.
De acordo com os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores definidos na Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011:
A conduta do devedor e dos credores durante o procedimento extrajudicial de recuperação de devedores deve orientar -se pelos seguintes princípios: (…)
Segundo princípio. — Durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos.”
Nesse sentido prevê-se no Artigo 17.º-E n.º 1 que a decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade.
Trata-se de um “balão de oxigénio” para o devedor, com alguma tranquilidade, poder negociar com os seus credores.
Este normativo, com este sentido e conteúdo – vulgarmente designado por efeito ou período de “standstill” – é uma consequência/efeito imposto pela própria lógica do PER, na medida em que concede ao devedor um “escudo protetor”, um “período de graça”, que irá permitir ao devedor negociar com os credores com alguma “tranquilidade (…).
Versando sobre a abrangência do efeito standstill do PER, decidiu-se de forma absolutamente esclarecedora no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 6521/16.6T8LRS.L1.S1, de 13-04-20212:
Iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial consistente na compensação convencional está incluído no “efeito paralisador” (efeito “standstill”) consagrado no art 17.º-E, n.º 1, do CIRE, ou seja, num PER, após a prolação do despacho a nomear o administrador judicial provisório e durante o tempo em que perdurarem as negociações (mais exatamente, até à sentença de homologação do plano de recuperação), está o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades entretanto vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER.
Atento o supra exposto, Uma vez que o Banco 1... procedeu à cobrança de um crédito vencido, através de compensação realizada em momento posterior a decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C, em evidente violação do efeito standstill do PER, deve o Banco ser notificado para proceder à anulação das compensações operadas e à devolução à Devedora das quantias compensadas”.
Notificado, o “Banco 1..., S.A.” respondeu pela seguinte forma:
“(…)
1. A Devedora EMP01..., Lda. entende que a compensação efetuada pelo Banco Credor é ilegal por ser violadora do efeito standstill do Processo Especial de Revitalização, tendo requerido que seja ordenada a anulação das compensações efetuadas e devolvidas as quantias compensadas.
2. Contudo, conforme oportunamente informou o Senhor Administrador Judicial Provisório, o Banco 1..., S.A. entende que as compensações por si efetuadas não são violadoras de qualquer disposição legal, razão pela qual deve ser julgado improcedente o requerimento apresentado pela Devedora.
Senão vejamos,
3. A 2 de abril de 2024 foi proferido despacho de nomeação de administrador judicial provisório da devedora “EMP01..., Lda.”;
4. A 18 de abril de 2024, o Banco 1... reclamou créditos no montante global de € 76.400,26 (setenta e seis mil, quatrocentos euros e vinte e seis cêntimos) referente às seguintes responsabilidades:
a) € 16.835,63 relativo ao contrato de mútuo celebrado em ../../2016 pelo montante de € 50.000,00;
b) € 21.159,70 relativo ao contrato de mútuo celebrado em ../../2023 pelo montante de € 25.000,00;
c) € 18.002,83 relativo à letra aceite por “EMP02..., Unipessoal, LDA.” e à letra aceite por “EMP03..., LDA.” e sacadora a devedora a “EMP01..., Lda.”;
d) € 20.386,30 relativo à livrança desconto de € 20.000,00 com data de vencimento em 23/04/2024;
e) € 15,80 relativo ao cartão de crédito n.º ...01.
5. A 8 de abril de 2024, antes de ter reclamado créditos, o Banco 1... procedeu à compensação legal e parcial de uma livrança desconto subscrita por €15.000,00 e vencida desde 7 de março de 2024 através de um depósito a prazo no valor de € 1.000,00 e de um saldo à ordem de € 13.864,53.
6. Posteriormente, mas ainda antes da reclamação de créditos, a 12 de abril de 2024, o Banco 1... procedeu a nova compensação legal através do saldo à ordem de € 360,97, que permitiu a regularização integral da livrança referida no artigo anterior.
7. A referida livrança desconto, no valor de € 15.000,00, vencida a 7 de março de 2024, não foi reclamada pelo Banco 1... no processo especial de revitalização da devedora EMP01..., Lda..
8. Com efeito, à data da reclamação de créditos, em 18 de abril de 2024, a referida livrança desconto compensada já se encontrava liquidada, conforme se demonstrou, razão pela qual não foi a mesma reclamada nos autos pelo Banco 1....
Dito isto,
9. O despacho de nomeação do administrador judicial provisório não produz os mesmos efeitos que a sentença de declaração de insolvência, ou seja, não determina o vencimento imediato das obrigações do devedor nos termos do disposto no artigo 91.º do CIRE.
10. No processo especial de revitalização, as obrigações do devedor mantêm-se exatamente nos mesmos termos anteriormente existentes, sendo que, nos termos do n.º 10 do artigo 17.º-F do CIRE, somente o despacho de homologação do plano é que vincula os credores.
11. Sendo que o devedor não fica despojado dos seus poderes de administração e de disposição do seu património para a generalidade dos atos (artigo 81.º do CIRE), daí que mantenha a sua atividade e, inclusivamente, efetue pagamentos a credores precisamente de forma a manter essa atividade.
12. O ato de compensação efetuado pelo Banco 1... não viola qualquer disposição legal, uma vez que, já antes da prolação do despacho de nomeação de administrador judicial provisório, o mesmo podia proceder ao débito nas contas bancárias tituladas pela Devedora, conforme estava contratualmente autorizada a fazer, ato esse que não estava na disponibilidade dos demais credores, nem então, nem depois da prolação do referido despacho.
13. Como tal, em nosso entendimento, o ato de compensação efetuado pelo Banco não é ilegal e, como tal, não há que ser determinada a anulações das compensações efetuadas e a devolução à Devedora das quantias compensadas.
Não obstante, e caso assim não se entenda,
14. Caso venha a ser determinada a anulação das compensações e a devolução à Devedora das quantias compensadas, deverá ser admitido e reconhecido o crédito titulado pelo Banco 1... na referida livrança compensada no valor de € 15.000,00, acrescido dos juros, valor que deverá acrescer ao montante já reclamado pelo Banco Credor”
Sobre o aludido requerimento recaiu, extratado no essencial, o seguinte despacho:
“(…)
Foi apresentado requerimento pela devedora nos seguintes termos:
No âmbito dos presentes autos foi, no dia 02.04.2024, publicado o anúncio do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, nos termos do art. 17o-C n.o 5 do CIRE. Em momento posterior à prolação da decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C, o Banco 1...: - a 8 de abril de 2024 procedeu a compensação parcial de uma livrança desconto subscrita por € 15.000,00 e vencida desde 7 de marco de 2024 através de um deposito a prazo no valor de € 1.000,00 e de um saldo a ordem de € 13.864,53, - a 12 de abril de 2024 procedeu a nova compensação através do saldo a ordem de € 360,97, que permitiu a regularização integral da livrança.
Ou seja, sem que tenha obtido autorização da Devedora para o efeito, o credor Banco 1... pagou-se (através de compensação) da quantia de €15.000,00 relativa a uma livrança desconto subscrita vencida a 7 de marco de 2024. Tendo tomado conhecimento destes factos, o Sr. Administrador Judicial Provisório, por comunicação dirigida ao credor Banco 1..., de 3 de julho de 2024, interpelou o Banco para o seguinte (cfr. doc. n.º 1): Considerando o exposto, vimos solicitar a V. Ex.as que, não só, todos os valores que tenham sido deduzidos/bloqueados à devedora desde a data do início do processo especial de revitalização, isto é, desde ../../2024, sejam restituídos à devedora, como também, se inibam de continuar tal prática por violação clara da igualdade dos credores no processo de recuperação, agravada por ser feitaem benefício próprio.
Em resposta a esta comunicação veio o Banco 1..., por comunicação datada de 12 de Julho de 2024 defender que (cfr. doc. n.º 2): O ato de compensação efetuado pelo Banco 1... não viola qualquer disposição legal, uma vez que, já antes da prolação do despacho de nomeação de administrador judicial provisório, o mesmo podia proceder ao débito nas contas bancárias tituladas pela Devedora, conforme estava contratualmente autorizada a fazer, ato esse que não estava na disponibilidade dos demais credores, nem então, nem depois da prolação do referido despacho.
SUCEDE QUE,
Contrariamente a posição manifestada pelo credor Banco 1... a compensação operada pelo Banco é ilegal. De acordo com os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores definidos na Resolução do Conselho de Ministros n.o 43/2011: A conduta do devedor e dos credores durante o procedimento extrajudicial de recuperação de devedores deve orientar -se pelos seguintes princípios: (…)
Segundo princípio. — Durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos.” Nesse sentido prevê-se no Artigo 17.o-E n.o 1 que a decisão a que se refere o n.o 5 do artigo 17.o-C obsta a instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto a empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade.
Trata-se de um “balão de oxigénio” para o devedor, com alguma tranquilidade, poder negociar com os seus credores. Este normativo, com este sentido e conteúdo – vulgarmente designado por efeito ou período de “standstill” – é uma consequência/efeito imposto pela própria lógica do PER, na medida em que concede ao devedor um “escudo protetor”, um “período de graça”, que irá permitir ao devedor negociar com os credores com alguma “tranquilidade (…).
Versando sobre a abrangência do efeito standstill do PER, decidiu-se de forma absolutamente esclarecedora no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 6521/16.6T8LRS.L1.S1, de 13-04-20212: Iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial consistente na compensação convencional está incluído no “efeito paralisador” (efeito “standstill”) consagrado no art 17.º-E, n.º 1, do CIRE, ou seja, num PER, após a prolação do despacho a nomear o administrador judicial provisório e durante o tempo em que perdurarem as negociações (mais exatamente, até à sentença de homologação do plano de recuperação), está o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades entretanto vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER.
Atento o supra exposto, uma vez que o Banco 1... procedeu à cobrança de um credito vencido, através de compensação realizada em momento posterior à decisão a que se refere o n.o 5 do artigo 17.o-C, em evidente violação do efeito standstill do PER, deve o Banco ser notificado para proceder a anulação das compensações operadas e a devolução a Devedora das quantias compensadas.
O Banco 1... S.A., Credor nos Autos à margem devidamente identificados em que é Devedora EMP01..., LDA., tendo sido notificado do Requerimento apresentado pela Devedora, com a Ref.ª ...57, veio expor e requerer o seguinte:
(…)
Notificado do nosso despacho, bem como dos requerimentos juntos aos autos pela devedora e pelo Banco 1..., S.A., veio, o senhor Administrador Judicial Provisório, dizer o seguinte:
Veio a devedora alegar que, em data posterior à publicação do anúncio do despacho de nomeação do administrador judicial provisório no portal Citius, o Banco 1..., S.A. procedeu, unilateralmente, à  compensação de valores existentes em contas à ordem e a prazo da devedora para pagamento de uma livrança no valor de 15.000,00€ (quinze mil euros);
Nessa medida, requer a devedora a notificação do Banco para proceder à anulação das compensações operadas e à devolução à devedora das quantias compensadas; Por seu turno, o Banco 1..., S.A. veio admitir a compensação, defendendo, contudo, que a mesma não seria ilegal; Assim, podemos dizer que o thema decidendum é o seguinte: é admissível que, depois de iniciado o processo especial de revitalização, um banco possa proceder à compensação das responsabilidades existentes com recurso aos saldos bancários do devedor?;
A nosso ver, pelas razões que indicaremos em seguida, a resposta é negativa; De facto, importa relevar que, de acordo com o art. 17.º-E, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) a decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade; O art. 17.º-E, n.º 1 do CIRE consagra o denominado período de standstill;
Como salienta Ana Prata, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, p. 70, o período standstill é uma consequência/efeito imposto pela própria lógica do processo especial de revitalização na medida em que concede ao devedor um “escudo protetor”, um “período de graça”, que permite ao devedor negociar com os credores com alguma “tranquilidade”, sem ser interrompido por ações de cobrança de dívidas que continuamente agridam o seu património e que inviabilizam a possibilidade da condução bem-sucedida das negociações com os credores;
Dito de outro modo: relevando que quem inicia um processo especial de revitalização está em situação económica difícil (cfr. art. 17.º-B do CIRE), este período de standstill funciona como uma espécie de «balão de oxigénio» para o devedor;
Na verdade, para que uma sociedade devedora possa sobreviver durante as negociações, é indispensável que disponha dos meios financeiros para conservar a sua atividade económica e, assim, pagar aos seus trabalhadores e aos seus fornecedores e prestadores de serviços, bem como os seus impostos e contribuições;
Ora, se os credores bancários, que dispõem de acesso às contas bancárias da devedora, pudessem, unilateralmente, operar compensações com créditos existentes, seria criado um desequilíbrio financeiro potencialmente fatal para empresas em frágil situação económica e financeira, como são aquelas que recorrem ao processo especial de revitalização;
Devemos, ainda, repisar que um dos efeitos do início do processo especial de revitalização é o de proibir a instauração ou o de suspender as execuções para cobrança de dívidas;
De sorte que todos os credores que tenham execuções a corer termos contra o devedor verão as suas execuções suspensas; Significa isto (com interesse para a questão sub judice) que não poderão ser realizadas penhoras de saldos bancários durante a pendência do processo especial de revitalização;
Ora, se assim é, se os depósitos bancários não poderão ser penhorados, a fortiori, por respeito ao princípio da igualdade, o banco onde o devedor tem sediados os seus saldos bancários, também não poderia proceder a esse débito;
A ser admitida, a compensação criaria uma situação de desigualdade entre credores na medida em que, enquanto decorrem as negociações para a reestruturação do passivo, teríamos um credor que recebeu por inteiro um dos seus créditos, sendo que os demais apenas veriam os seus créditos ressarcidos em função do disposto no plano de revitalização;
Assim, relevando que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (cfr. art. 9.º, n.º 1 do Código Civil), temos para nós que o procedimento extrajudicial de compensação bancária, consistente no unilateral mesmo, é um procedimento que, em substância, é idêntico a um ato executivo;
Com efeito, tal procedimento agride o património do devedor do mesmo modo que um ato executivo, pelo que seria aplicável a ratio legis do efeito standstill; Acrescentamos que nesta matéria seguimos de perto o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/4/2021, proferido no processo n.º 6521/16.6T8LRS.L1.S1, onde foi determinado o seguinte: “Iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial consistente na compensação convencional está incluído no “efeito paralisador” (efeito “standstill”) consagrado no art 17.º-E, n.º 1, do CIRE, ou seja, num PER, após a prolação do despacho a nomear o administrador judicial provisório e durante o tempo em que perdurarem as negociações (mais exatamente, até à sentença de homologação do plano de recuperação), está o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades entretanto vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER.”
Refere, ainda, o citado aresto: “O efeito Standstill, concorde-se ou não, é um “escudo protetor” concedido pela lei ao devedor/revitalizando, que, todavia, não fica impedido de dele prescindir e de, caso a caso, cumprir as suas obrigações e movimentar, para tal, as suas contas/saldos bancárias; mas – é o ponto – não pode servir nem pode ser usado como “escudo protetor” a favor dos credores que estão autorizados, sem a casuística manifestação de vontade do devedor/revitalizando, a debitar unilateralmente os seus saldos bancários e que, por isso, durante o período do Standstill, se assim poderem proceder, ficam até em melhor situação do que estavam antes (uma vez que ficam, durante tal período, protegidos do “concurso” da generalidade dos credores).”
Assim, atentas as razões expostas, entendemos que a compensação em causa não é admissível, devendo o Banco restituir os valores indevidamente debitados à devedora;
Cumpre decidir:
• Os presentes autos tiveram início em 26 de Março de 2024.
• O despacho nestes autos, a nomear o senhor AJP foi proferido em 2 de Abril de 2024.
• A 8 de abril de 2024, antes de ter reclamado créditos, o Banco 1... procedeu à compensação legal e parcial de uma livrança desconto subscrita por € 15.000,00 e vencida desde 7 de março de 2024 através de um depósito a prazo no vlor de € 1.000,00 e de um saldo à ordem de € 13.864,53.
• Posteriormente, mas antes da reclamação de créditos, a 12 de abril de 2024, o Banco 1... procedeu a nova compensação legal através do saldo à ordem de € 360,97, que permitiu a regularização integral da livrança referida no artigo anterior.
• A referida livrança desconto, no valor de € 15.000,00, vencida a 7 de março de 2024, não foi reclamada pelo Banco 1... no processo especial de revitalização da devedora EMP01..., Lda.
• À data da reclamação de créditos, em 18 de abril de 2024, a referida livrança desconto compensada já se encontrava liquidada, conforme se demonstrou, razão pela qual não foi a mesma reclamada nos autos pelo Banco 1....
O processo especial de revitalização é um processo com uma natureza híbrida, misto de negociação extrajudicial e aprovação judicialmente homologada. Destina-se a permitir ao devedor que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas ainda susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização.
É pois, um processo negocial, tendente à obtenção de um acordo que conduza à revitalização do devedor que decorre, essencialmente, entre o devedor e os seus credores, com intervenção de um administrador judicial provisório nomeado pelo Tribunal.
Há que ter em conta que a decisão que o legislador exige do julgador é apenas aquela que permita saber se determinado plano está ou não aprovado e se determinado acordo deve ou não ser homologado.
Assim sendo, essa decisão não determina o valor dos créditos a pagar (isso é o plano ou acordo que têm que fazer) e não declara a existência/inexistência de qualquer crédito.
Com efeito, a lista de créditos no âmbito do PER tem como única e exclusiva finalidade permitir a identificação dos credores com direito de voto bem como o número de votos que a cada um corresponde em sede de votação do Plano de Recuperação, no que se consubstancia o seu objecto que se prende com a pretendida aprovação de Plano de Recuperação.
Para além da dita funcionalidade, não cabe no objecto do PER a apreciação e composição definitiva do litígio que subsista relativamente a cada crédito (entre o titular que a ele se arroga e o devedor ou entre credores), contrariamente ao que sucede no âmbito do processo de insolvência, em que a lista de créditos provisória se converte em lista de créditos definitiva sem intermediação de qualquer acto/decisão judicial, pois que aquela lista não é objecto de uma qualquer sentença homologatória.
Por outro, o facto é que o art. 17º-F n.º 10 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estatui expressamente que a decisão do juiz (de homologação), vincula os credores, mesmo que não hajam participado das negociações, sem qualquer distinção de se não o fizeram porque não quiseram ou de se não o fizeram porque a tanto não foram chamados ou admitidos.
De qualquer das formas, como resulta do disposto no art. 17.º-D, n.º 2, do CIRE, qualquer credor, no prazo de 20 dias, contados da publicação no portal citius do despacho a que se alude na al. a), do n.º 3, do artigo anterior, pode reclamar créditos, tal como pode alegar nos autos o que tiver por conveniente quanto a determinadas circunstâncias susceptíveis de levar à não homologação desse plano (cfr. art. 17.º-F, n.ºs 2 e 3).
Contudo, sem prejuízo dessa actuação, sempre a empresa, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquela ser uma pessoa colectiva, serão solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorrecção das comunicações ou informações a estes prestadas, correndo autonomamente ao presente processo a acção intentada para apurar as aludidas responsabilidades (cfr. art. 17.º-D, n.º 11).
Neste caso concreto, suscitam-nos as partes (credor, devedora e A.I.Provisório), que profiramos decisão relativamente à suspensão da cobrança de créditos por parte do credor, durante a vigência do processo negocial. Defende o credor de que o crédito cobrado se venceu antes do despacho que deu inicio aos presentes autos, suspendendo as execuções e como tal, não se encontra privado de cobrar os créditos.
Quanto aos efeitos processuais da decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artº 17.º-C, esta “ obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.
Referente a esta questão, a doutrina e a jurisprudência nacionais continuam divididas, defendendo, em síntese, uns que os efeitos enunciados no referido diploma não se aplicam às acções declarativas, enquanto outros entendem que igualmente abrangem tais acções.
Concretamente, na doutrina, Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis in PER, o Processo Especial de Revitalização”, Coimbra Editora, 2014, pags 97 e sgs consideram que a “expressão acções para cobrança de dívidas a que se refere o artigo 17.º-E, n.º 1, abrange apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa (e as demais execuções sempre e quando se verifique a conversão das mesmas nos termos previstos no artigo 867.º ou 869.º do Código de Processo Civil) e os procedimentos cautelares antecipatórios das acções que deveriam ser suspensas ao abrigo do citado normativo legal. Encontram-se excluídas, pois, do âmbito de aplicação do nº 1 do artigo 17.º-E, as acções declarativas, as acções executivas para entrega de coisa certa, as acções executivas para prestação de facto e a generalidade dos procedimentos cautelares”. No entendimento destes autores, “a expressão utilizada – cobrança de dívidas – remete-nos imediatamente para uma acção destinada a obter o pagamento coercivo duma quantia pecuniária. Aliás, a expressão cobrança de dívidas é habitualmente utilizada ou encontra-se associada à realização coactiva de uma prestação em dinheiro”.
E acrescentam que a diferente redacção utilizada nos artigos 17º-E e 88º do CIRE (mais restritiva no primeiro caso), leva a concluir que se pretendeu limitar a aplicação da norma aqui em apreço às acções executivas para cobrança de dívida, deixando de fora as acções declarativas, até porque “apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa podem ser consideradas como verdadeiras acções para cobrança de dívida para os efeitos do artº 17º-E, nº 1” .
Em sentido diverso, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 2ª edição, Lisboa, 2013, página 164, entendem que “o despacho em questão obsta à instauração de quaisquer novas acções dirigidas à cobrança de dívidas pelas quais responde o devedor; além disso, importa a suspensão das que estiverem em curso com idêntica finalidade, incluindo os processos em que tenha já sido proferida sentença declaratória.
Apesar das similitudes com as soluções do artigo 88.º, n.º 1, são manifestas, várias e significativas as diferenças, para que importa advertir”. E mais à frente: “... diferentemente do que ocorre em sede de processo de insolvência, a paralisação aqui determinada deve abranger todas as acções para cobrança de dívidas e não apenas as executivas, incluindo-se, assim, as acções declarativas condenatórias. Mas comunga com ele o facto de se abrangerem também acções com processo especial e procedimentos cautelares”.
A razão para tal extrai-se ainda da explanação de outros Autores, como por exemplo Madalena Perestrelo de Oliveira, in RDS, IV, 2012, 3, pg.718 e segs., ‘Processo Especial de Revitalização: O Novo CIRE’, quando nos alertam para o seguinte: O objectivo deste processo é “facultar ao devedor o espaço necessário para levar a cabo a recuperação, com a consequente proibição da prossecução de outras acções, até das próprias acções executivas, como forma de protecção do devedor que fica com a faculdade de tentar a recuperação da empresa, liberto de todas as tentativas de os credores se fazerem pagar e da pressão do mercado que os levou até aquela situação económica depauperada e de insolvibilidade”.
Já na jurisprudência, é amplamente dominante o entendimento de que a expressão “acções para cobranças de dívidas” abrange qualquer acção judicial – declarativa ou executiva – destinada a exigir o cumprimento de um direito de crédito resultante da actividade económica do devedor e que, por isso, contenda com o seu património – cfr. neste sentido aponta-se o Ac. do STJ, publicado na dgsi, com o n.º 172724/12.6YIPRT.L.S1, entre muitos outros aí citados.
Aí se aponta, para se manter esse entendimento maioritário, o objectivo fundamental que subjaz ao PER, de possibilitar a recuperação económica do devedor cuja finalidade ficaria seriamente comprometida se qualquer credor pudesse continuar a exigir judicialmente os seus créditos, bem como o facto de não ser permitido ao intérprete distinguir onde o legislador não procedeu a qualquer distinção, contra as regras fundamentais da interpretação das leis contidas no artº 9º, nºs 1 a 3, do CC, sem um mínimo de ressonância na letra da lei.
Aliás, outro dos argumentos avançados prende-se com o facto do preceito mencionar, na segunda parte, em “acções com idêntica finalidade” sem se referir à espécie de acção, mas à sua finalidade concreta, de “cobrança de dívidas”.
Sufragando este mesmo entendimento escreveu-se no Ac. Do STJ, publicado também na dgsi, de 17-11-2016, que os efeitos decretados não se confinam ao processo especial de revitalização, mas como o próprio normativo consagra, estendem-se “às acções em curso com idêntica finalidade” e a “quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor”.
Assim, acrescenta-se que, sendo o objectivo fundamental que subjaz ao PER, o de possibilitar a recuperação económica do devedor cuja finalidade ficaria seriamente comprometida se qualquer credor pudesse continuar a exigir judicialmente os seus créditos, somos a concordar com a posição do senhor Administrador Judicial Provisório e da devedora, determinando a imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito.
Tal não o privará dos montantes a que direito tem, quer sendo aprovado o plano, quer na hipótese da sua recusa. Mas a manutenção desta cobrança, que efectua atenta a sua posição privilegiada, retirando da conta bancária as quantias quando a mesma se encontra aprovisionada para tal, prejudica todos os demais credores, que não detêm a mesma faculdade e que para a cobrança regular dos seus créditos, tal como a EMP04..., as àguas, etc teriam de intentar acções, que agora ficariam suspensas, podendo em ultima análise e conforme declarações da devedora, vir a inviabilizar a recuperação da devedora e as negociações.
Notifique, não se ordenando a devolução das quantias cobradas, uma vez que as mesmas (apenas se não fossem devidas) não foram retiradas ilicitamente, não sendo o objecto destes autos a apreciação, eventual, desta conduta da entidade bancária.
Assim como tal crédito também não foi reclamado nestes autos e a divida tinha vencimento anterior ao despacho do 17º -C do CIRE”.
Inconformada, a devedora interpôs recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
1º – Vem o presente recurso interposto da decisão que, pronunciando-se sobre a ilicitude e ilegalidade da cobrança/compensação operada pelo credor bancário, durante a pendência do PER, das responsabilidades vencidas com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER, decidiu pela sua ilicitude e ilegalidade, tendo:
- ordenado a “imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito.”, e
- contraditória e erradamente, “não se ordenando a devolução das quantias cobradas, uma vez que as mesmas (apenas se não fossem devidas) não foram retiradas ilicitamente, não sendo o objecto destes autos a apreciação, eventual, desta conduta da entidade bancária.”
2º - O Tribunal, expressa e concretamente decidiu a ilicitude e ilegalidade do acto de cobrança operado pelo Banco, tendo sufragado a posição manifestada nos autos pela Devedora e pelo Sr. Administrador de Insolvência segundo o qual, iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial de compensação está incluído no efeito “standstill” previsto no art 17.º-E, n.º 1, do CIRE, ficando o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER.
3º - O Tribunal, apesar de considerar que o acto praticado pelo Banco viola os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores definidos na Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011 e, bem assim, a norma do Artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE, estando o Banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER,
Decidiu surpreendentemente, e de forma absolutamente contraditória, “a imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito”, “não se ordenando a devolução das quantias cobradas, uma vez que as mesmas (apenas se não fossem devidas) não foram retiradas ilicitamente, não sendo o objecto destes autos a apreciação, eventual, desta conduta da entidade bancária. Assim como tal crédito também não foi reclamado nestes autos e a divida tinha vencimento anterior ao despacho do 17º -C do CIRE.”.
Pelo que a decisão em crise é nula nos termos do art. 615.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão e na medida em que ocorre ambiguidade.
4º - Tendo o Tribunal concluído, e bem, que iniciado um PER, o banco está impedido de proceder à compensação das responsabilidades vencidas com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER, o Tribunal tinha, necessariamente, de concluir que a compensação operada é ilícita e ilegal e, como tal, o Banco tinha de ser notificado para proceder à sua devolução.
5º - Mal andou, porém, o Tribunal recorrido ao decidir, de forma absolutamente contraditória, que (i) as quantias não foram retiradas ilicitamente pelo banco e que (ii) não é de ordenar a devolução das quantias cobradas.
7º - Sendo inequívoco que a actuação do Banco viola o efeito standstill imposto pelo PER, viola os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores e viola a norma do Artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE, só se pode concluir que o Banco tinha de ser notificado para proceder à restituição das quantias ilegal e ilicitamente cobradas/compensadas, pelo mal andou o Tribunal recorrido ao decidir em sentido contrário.
8º - Cabe no objecto destes autos a apreciação da conduta da entidade bancária e, tanto assim é, que o tribunal se pronunciou concreta e efectivamente sobre a licitude e legalidade da conduta do Banco face à norma do Artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE, pelo que a decisão recorrida, na exacta medida em que não ordenou a restituição das quantias ilegal e ilicitamente cobradas/compensadas, padece de erro de julgamento.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, deve ser declarada a nulidade da decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Por decisão do relator, foi julgada procedente a apelação, tendo-se declarado nulo o despacho recorrido por contradição entre os fundamentos e a decisão e, suprindo tal nulidade, ordenado a notificação do “Banco 1..., S.A.” para devolver à recorrente as quantias que debitou nas contas desta por compensação com o crédito que sobre ela detinha.
Irresignado, o recorrido “Banco 1..., S.A.” reclamou para a conferência, alegando que:
1.O Tribunal de Primeira Instância entendeu que o Banco 1... deve suspender as cobranças regulares do seu crédito, mas não ordenou a devolução das quantias cobradas por entender que não foram as mesmas retiradas ilicitamente.
2. Por não concordar com a referida decisão, a Devedora EMP01... interpôs recurso para o Tribunal da Relação com fundamento na nulidade do despacho por contradição entre os fundamentos e a decisão.
3. O referido recurso foi admitido e devidamente remetido para o competente Tribunal da Relação de Guimarães.
4.O Exmo. Desembargador-Relator do Douto Tribunal da Relação de Guimarães proferiu agora decisão sumária, nos termos do artigo 656.º do atual CPC, julgando procedente o recurso interposto pela Devedora EMP01..., Lda.
5. No recurso apresentado, a Devedora EMP01... invocou a nulidade do despacho proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, por contradição entre os fundamentos e a decisão e por ambiguidade, porquanto, tendo sido julgada ilegítima a compensação operada pelo Banco 1..., não ordenou a notificação deste para proceder à devolução dos montantes correspondentes.
6.O Exmo. Juiz Desembargador-Relator considerou que o despacho recorrido apresentava uma construção viciosa, violadora do silogismo judiciário, porquanto, ao considerar que o Banco não podia operar a compensação, tinha necessariamente de ordenar a devolução à devedora das quantias ilegitimamente debitadas, mostrando-se, por isso, a decisão contraditória.
7.No entanto, salvo o devido respeito e melhor entendimento, o Credor Banco 1..., S.A. não pode concordar com tal interpretação, razão pela qual requer, pelo presente, que sobre a matéria do despacho singular proferido recaia um acórdão, conforme disposto nos artigos 643.º, n.º 4, parte final, e 652.º, n.º 3, ambos do CPC.
Senão vejamos,
8.O Exmo. Juiz Desembargador-Relator do Tribunal da Relação de Guimarães entende, por um lado, que o despacho recorrido, ao considerar que o Banco 1... não podia efetuar a compensação, deveria ter ordenado a devolução das quantias debitadas da conta bancária da devedora.
9. Por outro lado, o Exmo. Senhor Juiz Desembargador-Relator, socorrendo-se do Acórdão proferido por este Tribunal da Relação, em 9 de março de 2023, entende que o PER se sobrepõe à relação contratual privada.
Acontece que,
10. Por um lado, não se pode considerar que exista uma nulidade do despacho recorrido por contradição entre os fundamentos e a decisão final, uma vez que o Douto Tribunal da Primeira Instância não considerou ilícita a compensação efetuada pelo Banco 1....
11. O Tribunal de Primeira instância apenas determinou, daí em diante, uma suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito, razão pela qual não ordenou a devolução das quantias cobradas por considerar que as mesmas “não foram retiradas ilicitamente”.
12. Não se pode, por isso, concordar com a posição de que o despacho recorrido enferma de uma nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.
13.Por outro lado, também não se pode concordar com a posição de que o processo especial de revitalização sobrepõe-se às relações contratuais privadas, pois que, neste processo, as obrigações do devedor mantêm-se, tal como se mantêm os poderes de administração e disposição do património do devedor.
14. O ato de compensação efetuado pelo Banco não viola qualquer disposição legal, razão pela qual não há que ser determinada a anulação das compensações e devolução das quantias cobradas pelo Banco à devedora.
15. Por todo o exposto, não se pode concordar com a decisão singular proferida pelo Exmo. Juiz Desembargador Relator ao ordenar que o Banco 1... proceda à devolução à devedora das quantias debitadas na conta por compensação.
16. Para o Exmo. Juiz Desembargador-Relator tomar uma decisão sumária, nos termos do artigo 656.º do CPC, torna-se necessário que se trate uma questão simples e já tenha “sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado”, o que não sucedeu, conforme se demonstrou.
17.Com efeito, pretende o Requerente que sobre a presente questão seja proferido Acórdão, nos termos do artigo 652.º, n.º 3 do CPC, uma vez que a decisão sumária do Exmo. Senhor Desembargador Relator não corresponde a uma questão uniformemente apreciada jurisdicionalmente e violando a mesma norma e princípios jurídicos.
Notificada para se pronunciar, querendo, sobre a reclamação, a recorrente “EMP01...” fê-lo nos seguintes termos:
- De acordo com os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores definidos na Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, a conduta do devedor e dos credores durante o procedimento extrajudicial de recuperação de devedores deve orientar -se pelos seguintes princípios: (…) Segundo princípio. — Durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa -fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos.”
No Artigo 17.º-E n.º 1 prevê-se que a decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade, medida que consubstancia num “balão de oxigénio” para o devedor, com alguma tranquilidade, poder negociar com os seus credores.
O efeito ou período de “standstill” – é uma consequência/efeito imposto pela própria lógica do PER, na medida em que concede ao devedor um “escudo protetor”, um “período de graça”, que irá permitir ao devedor negociar com os credores com alguma “tranquilidade (…).1
Para que uma sociedade devedora possa sobreviver durante as negociações, é indispensável que disponha dos meios financeiros para conservar a sua atividade económica e, assim, pagar aos seus trabalhadores e aos seus fornecedores e prestadores de serviços, bem como os seus impostos e contribuições; Se os credores bancários, que dispõem de acesso às contas bancárias da devedora, pudessem, unilateralmente, operar compensações com créditos existentes, seria criado um desequilíbrio financeiro potencialmente fatal para empresas em  frágil situação económica e financeira, como são aquelas que recorrem ao processo especial de revitalização;
Iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial consistente na compensação convencional está incluído no “efeito paralisador” (efeito “standstill”) consagrado no art 17.º-E, n.º 1, do CIRE, ou seja, num PER, após a prolação do despacho a nomear o administrador judicial provisório e durante o tempo em que perdurarem as negociações (mais exatamente, até à sentença de homologação do plano de recuperação), está o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades entretanto vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER
O efeito ou período de “standstill” assegura que não possam ser realizadas penhoras de saldos bancários durante a pendência do processo especial de revitalização; Por maioria de razão, se os depósitos bancários não poderão ser penhorados, a fortiori, por respeito ao princípio da igualdade, o banco onde o devedor tem sediados os seus saldos bancários, também não pode proceder a esse débito;
A ser admitida, a compensação criaria uma situação de desigualdade entre credores na medida em que, enquanto decorrem as negociações para a reestruturação do passivo, teríamos um credor que recebeu por inteiro um dos seus créditos, sendo que os demais apenas veriam os seus créditos ressarcidos em função do disposto no plano de revitalização;
Relevando que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (cfr. art. 9.º, n.º 1 do Código Civil), temos para nós que o procedimento extrajudicial de compensação bancária, consistente no unilateral lançamento a débito na conta do cliente duma responsabilidade contratual do mesmo, é um procedimento que, em substância, é idêntico a um ato executivo; tal procedimento agride o património do devedor do mesmo modo que um ato executivo, pelo que seria aplicável a ratio legis do efeito standstill;
A compensação operada é ilícita e ilegal.
Daqui decorre, contrariamente ao alegado pelo Banco 1..., que o Tribunal recorrido expressa e concretamente decidiu-se pela ilicitude e ilegalidade do acto de cobrança operado pelo Banco, tendo, em consequência, ordenado ao Banco a imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito.
Assim, este segmento da decisão é absolutamente contraditório, oposto, incoerente e ilógico com o segmento da decisão que optou por “não se ordenando a devolução das quantias cobradas, uma vez que as mesmas (apenas se não fossem devidas) não foram retiradas ilicitamente, não sendo o objecto destes autos a apreciação, eventual, desta conduta da entidade bancária. Assim como tal crédito também não foi reclamado nestes autos e a divida tinha vencimento anterior ao despacho do 17º -C do CIRE.”
Ou seja, verifica-se uma total contradição entre os fundamentos e a decisão.
Muito embora o Tribunal tenha sufragado do entendimento Segundo o qual o acto do Banco é ilícito e violador dos Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores e da norma do Artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE e, como tal, veio a ordenar “a imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito”,
Veio a considerar, de forma absolutamente contraditória, que as quantias não foram retiradas ilicitamente e que, como tal, “não se ordenando a devolução das quantias cobradas”.
Nos termos do art. 615.º n.º 1 a al. c) a decisão é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão contemplada no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
A nulidade da sentença prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier a ser expresso. Para efeitos da nulidade por ininteligibilidade da decisão, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. e), 2.ª parte do CPC, ambígua será decisão à qual seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente e, obscura será a decisão cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido.
Ora,
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica, contudo, in casu, na fundamentação da decisão, o julgador seguiu a linha de raciocínio segundo a qual, iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial consistente na compensação está incluído no efeito “standstill”- art 17.º-E, n.º 1 do CIRE- , estando o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER, o que apontava para a conclusão de que tal acto de cobrança é ilícito e ilegal (tanto mais que o Tribunal ordenou “a imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito”).
Contudo e, em vez de tirar essa conclusão, o Tribunal decidiu, divergentemente, que as quantias não foram retiradas ilicitamente…
Ora,
Tendo o Tribunal concluído, e bem, que iniciado um PER, o banco está impedido de proceder à compensação das responsabilidades vencidas com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER,
O Tribunal tinha, necessariamente, de concluir que a compensação operada é ilícita e ilegal e, como tal, o Banco tinha de ser notificado para proceder à sua devolução.
ASSIM, É evidente que a decisão recorrida incorreu em vício de contradição e ambiguidade, sendo, como tal, nula nos termos da al. c) do n.º 1 do art. 615º do Código de Processo Civil,
E que, em consequência, a decisão singular proferida pelo Sr. Juiz Desembargador Relator não merece qualquer censura.

DO DEMÉRITO DA DECISÃO RECORRIDA
Em sede de reclamação, veio o Banco 1... alegar que:
Por outro lado, também não se pode concordar com a posição de que o processo especial de revitalização sobrepõe-se às relações contratuais privadas, pois que, neste processo, as obrigações do devedor mantêm-se, tal como se mantêm os poderes de administração e disposição do património do devedor.
O ato de compensação efetuado pelo Banco não viola qualquer disposição legal, razão pela qual não há que ser determinada a anulação das compensações e devolução das quantias cobradas pelo Banco à devedora.
A verdade é que, a par destas conclusões, o Banco 1... não foi capaz de aditar qualquer argumento suscetível de justificar a sua discordância com a decisão reclamada.
Vejamos,
Iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial de compensação está incluído no efeito “standstill” consagrado no art 17.º-E, n.º 1 do CIRE, estando o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER.
Tendo em conta que a actuação do Banco - procedimento bancário extrajudicial de compensação/cobrança – viola os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores e norma do Artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE,
Tal actuação comporta a prática de um acto ilícito e ilegal que não pode manter-se na ordem jurídica.
Com efeito, tendo o Banco, em evidente violação do efeito standstill imposto pelo PER, em evidente violação dos Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores e em evidente violação da norma do Artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE, procedido à compensação das responsabilidades vencidas da Devedora EMP01... com os saldos bancários existentes na conta bancária desta,
Afigura-se evidente que as quantias objecto de compensação, sem prejuízo de serem devidas, foram retiradas ilegalmente.
Como está bom de ver, a compensação operada é ilícita e, como tal, as quantias foram retiradas ilicitamente.
Mas mais, como também está bom de ver, cabe no objecto destes autos a apreciação da conduta da entidade bancária e, tanto assim é, que o tribunal se pronunciou concreta e efectivamente sobre a licitude e legalidade da conduta do Banco face à norma do Artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE, tendo concluído que “concorda com a posição do senhor Administrador Judicial Provisório e da devedora, determinando a imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito”.
Ora, daqui decorre que o Tribunal efectiva e concretamente conheceu da conduta da entidade bancária, apesar dela não ter extraído todas as conclusões que as premissas anunciavam e que a justiça impunha.
Das duas uma,
Ou o tribunal considerava que não cabia no objecto destes autos a apreciação da conduta da entidade bancária e, nesse caso, pura e simplesmente, não conhecia da questão colocada à sua apreciação,
Ou o Tribunal, decidindo conhecer a questão colocada à sua apreciação – como sucedeu no caso dos autos – tinha de retirar da sua decisão as devidas consequências legais.
O Tribunal, pelo contrário, decidiu fazer meia justiça,
Determinando, por um lado, a imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito (isto quando (i) a decisão é proferida depois de decorridos quase 6 meses desde a data da compensação e quase 3 meses desde a data em que a Requerente apresentou o seu requerimento nos autos, e quando (ii) a decisão é proferida num momento em que o Plano já se mostra aprovado e homologado),
Mas, por outro, não ordenando a devolução das quantias ilicitamente compensadas……
Ou seja, o Tribunal acabou por proferir uma decisão que mais não é do que uma mão cheia de nada, não aplicando ao caso dos autos a justiça que se impunha.
Acresce que, muito embora o Tribunal tenha justificado a sua falta de decisão no facto de o “crédito também não foi reclamado nestes autos e a divida tinha vencimento anterior ao despacho do 17º -C do CIRE.”, importa esclarecer o Tribunal recorrido, e não certamente este Tribunal superior, que o facto de o crédito se mostrar ou não reclamado e/ou reconhecido em nada releva.
O que está em causa é a ilicitude e ilegalidade do acto de cobrança promovido pelo credor,
E não se o crédito cobrado existe e se é ou não exigível.
Não se olvide que em sede de PER “Há que ter em conta que a decisão que o legislador exige do julgador é apenas aquela que permita saber se determinado plano está ou não aprovado e se determinado acordo deve ou não ser homologado. Assim sendo, essa decisão não determina o valor dos créditos a pagar (isso é o plano ou acordo que têm que fazer) e não declara a existência/inexistência de qualquer crédito. Com efeito, a lista de créditos no âmbito do PER tem como única e exclusiva finalidade permitir a identificação dos credores com direito de voto bem como o número de votos que a cada um corresponde em sede de votação do Plano de Recuperação, no que se consubstancia o seu objecto que se prende com a pretendida aprovação de Plano de Recuperação.”
Assim, independentemente de o crédito existir ou não e ser exigível ou não, circunstâncias que não serão apuradas em sede de PER, o que está em causa é a legalidade do acto de compensação operado durante o PER, é a legalidade do acto de cobrança, durante o período de standstill, de responsabilidades (vencidas antes do PER ou vencidas durante o PER) com os saldos bancários existentes na conta bancária do requerente do PER.
A verdade é que, compulsadas as decisões judiciais proferidas sobre a matéria, constata-se os Tribunais têm vindo, unanimemente, a decidir, (i) no âmbito de autos de processo especial de revitalização, que (ii) o procedimento extrajudicial de compensação bancária está incluído no “efeito paralisador”(efeito “ ”) consagrado no art 17.º-E, n.º 1 do CIRE, estando o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do requerente do PER e que, em consequência, (iii) deve o credor ser condenado a restituir à devedora a quantia em causa.
Ou seja, compulsada a jurisprudência proferida sobre a matéria, constata-se que os Tribunais,
Em primeiro lugar têm concreta e efectivamente conhecido da legalidade do acto de compensação operado durante o PER, assumindo tal questão - legalidade da conduta da entidade bancária - como objecto dos autos de processo especial de revitalização,
Em segundo lugar têm concluído que procedimento extrajudicial de compensação bancária está incluído no efeito “standstill” previsto no art 17.º-E, n.º 1 do CIRE e que, como tal, o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades vencidas com os saldos bancários existentes na conta bancária do requerente do PER, e
Em terceiro lugar, têm, em consequência e como não podia deixar de ser, ordenado a devolução das quantias ilegalmente cobradas.
A decisão dos autos não podia ser diversa!
Em síntese, não devendo a interpretação “cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…)” (cfr. art. 9.º/1 do C. Civil), tem que se entender, por interpretação extensiva, que o procedimento extrajudicial de compensação bancária, consistente no unilateral lançamento a débito na conta do cliente duma responsabilidade contratual do mesmo (conforme o acordado na fase estipulativa do contrato que gera tal responsabilidade), é um procedimento que “em substância” é idêntico a um ato executive,  agredindo do mesmo modo que um ato executivo o património do devedor –sendo-lhe assim aplicável a ratio legis do efeito Standstill (que, fora de qualquer dúvida, obsta a tal agressão) consagrado no art. 17.º-E/1 do CIRE[.
Pugna, em conformidade, pela improcedência da reclamação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
No caso vertente, a única questão a decidir que releva das conclusões do recurso consiste em saber se o despacho recorrido enferma de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão e por ambiguidade, porquanto, tendo julgado indevidamente operada a extinção do crédito que o Banco 1... detinha sobre a devedora por compensação com os valores existentes em contas de que esta era titular, não ordenou a notificação daquele para proceder à devolução dos montantes correspondentes.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO:

Sustenta a recorrente que o despacho recorrido enferma de nulidade, por contradição entre os fundamentos e a decisão e por ambiguidade, porquanto, tendo julgado ilegítima a compensação operada pelo Banco 1..., não ordenou a notificação deste para proceder à devolução dos montantes correspondentes, em contradição flagrante com aquela premissa.
Vejamos então.
A lei sanciona com a nulidade a sentença que padece de vícios formais, decorrentes de um “erro de actividade”, aos quais se contrapõem os vícios substanciais, estes decorrentes de um “erro de julgamento”.
Como ensinava o Professor Alberto dos Reis[1], “o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional”.
Dispõe o artigo 615º do Código de Processo Civil (doravante CPC), no seu n.º 1, alínea c), aplicável aos despachos por força da remissão contida no artigo 613º, n.º 3, do mesmo diploma legal, que “É nula a sentença quando (…) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (…)”
Retomando a lição de Alberto dos Reis[2], a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão pressupõe que a construção da sentença seja “viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam, logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
Noutra formulação, esta fornecida pela jurisprudência, concretamente pelo acórdão da Relação de Lisboa de 05/11/2024 (processo n.º 5834/22.2T8LRS.L1-7), relatado por Edgar Taborda Lopes e disponível, tal como os demais adiante citados, em www.dgsi.pt, “A nulidade a que se reporta a 1.ª parte da alínea c) ocorre quando se detecta um vício lógico traduzido na incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, quando a fundamentação (as premissas) aponta num sentido que está em contradição com a decisão (a conclusão), violando o silogismo judiciário”.
Por sua vez, refere Abílio Neto[3]  que “Uma sentença sofre de ambiguidade quando a parte decisória propriamente dita tem mais do que um sentido, tornando-se, assim, incerto, indefinido ou duvidoso o respectivo comando; será obscura quando o seu exacto sentido não possa alcançar-se.
De todo o modo, essa ambiguidade ou obscuridade hão-de atingir um grau de tal modo elevado que a decisão proferida se torne ininteligível, ou seja, que não seja possível alcançar com segurança a forma como se quis resolver o litígio, o que de nenhum modo se confunde com um eventual erro de julgamento”.
Mais explicita que “estando em causa a inteligibilidade da decisão, os vícios da ambiguidade e/ou da obscuridade só a esta se podem reportar, com exclusão, portanto, dos fundamentos invocados”.
No despacho proferido ao abrigo do artigo 617º n.º 1 do CPC, a Senhora Juiz “a quo” indeferiu o requerimento de arguição de nulidade do despacho recorrido, argumentando que “O que entende este Tribunal é que a actuação da entidade bancária é ilegítima enquanto violadora dos Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores e da norma do Artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE e, como tal, ordenou a imediata suspensão por parte do Banco 1... das cobranças regulares do seu crédito, mas tais retiradas, apesar de não terem sido correctamente efectuadas pelo período em questão, não foram retiradas ilicitamente, sem qualquer justificação, antes no âmbito de contrato existente e que, como tal, não se ordenou, nem se ordena, a devolução das quantias cobradas, antes sendo apenas reduzido ao crédito da entidade bancária aqui reclamado”.
Não podemos acompanhar esse raciocínio, também subjacente ao despacho recorrido, que, como tal, apresenta uma construção viciosa, violadora do silogismo judiciário.
Desde que se considere – como, inequivocamente, se considerou no dito despacho – que o Banco 1... não podia operar a compensação, então a consequência que, logicamente, se imporia era a de ordenar a devolução à devedora das quantias ilegitimamente debitadas nas contas bancárias desta, mostrando-se contraditória com essa premissa a distinção ali efectuada entre as compensações já operadas e as que hipoteticamente viessem a ser declaradas, ordenando a suspensão destas e permitindo a subsistência daquelas.
De resto, a devedora, ora recorrente, nunca pediu a suspensão de hipotéticas compensações futuras, mas apenas a “anulação das compensações operadas e a devolução (…) das quantias compensadas”.
Nem, acrescente-se, procede a argumentação vertida nos pontos 10ª e 11ª da reclamação para a conferência apresentada pelo “Banco 1...”, aliás decalcada da aduzida no despacho acima transcrito, de acordo com a qual as “retiradas” por si efectuadas não seriam ilícitas, por terem sido autorizadas no contrato celebrado com a devedora em momento anterior à instauração do PER.
Repete-se.
A questão que a julgadora da 1ª instância foi chamada a apreciar foi, precisamente, a de saber se a compensação operada pelo ora reclamante violava ou não o efeito “standstill” associado à prolacção de despacho liminar no âmbito do processo de revitalização, nos termos do  n.º 1 do artigo 17º-E do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sendo axiomático que a resposta foi afirmativa, porquanto concluiu que “(…) sendo o objectivo fundamental que subjaz ao PER, o de possibilitar a recuperação económica do devedor cuja finalidade ficaria seriamente comprometida se qualquer credor pudesse continuar a exigir judicialmente os seus créditos, somos a concordar com a posição do senhor Administrador Judicial Provisório e da devedora (…)” (sublinhado nosso).
Sendo assim, é forçoso concluir que o despacho recorrido enferma da imputada nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.
Não obstante, impõe-se conhecer do objecto da apelação, atento o disposto no artigo 665º do CPC, onde se consagra a regra da substituição ao tribunal recorrido.
Ora, por ser a consequência da violação do efeito “standstill” e dos Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores, aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros 43/2011, de 25 de Outubro, reconhecidos no despacho recorrido, nessa parte não impugnado, terá de se ordenar a devolução à devedora dos montantes correspondentes, como tem sido decidido pelos nossos tribunais superiores em todos os arestos que se debruçaram sobre este assunto, citando-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão desta Relação de 09/03/2023 (proc. n.º 1982/22.7T8GMR.G1), relatado por  Afonso Cabral de Andrade, o acórdão da Relação de Lisboa de 21/05/2024 (proc. n.º 2500/23.5T8BRR-A.L1-1), relatado por Isabel Fonseca, e o acórdão da Relação do Porto de 04/06/2025 (proc. n.º 7475/24.0T8VNG-A.P1), relatado por Raquel Correia de Lima, no primeiro dos quais se desfez, aliás com inexcedível clareza, o equívoco que terá estado na origem da decisão sob censura, ao afirmar que “(…) a pendência do PER veio sobrepor à relação contratual privada (…) uma superestrutura jurídica constituída por feixes de relações, obrigações, proibições e imposições, que interfere (ou pode tendencialmente interferir) directamente naquela”, acrescentando que “a resposta à questão que a recorrente colocou (…) terá de emergir directamente do Regime Jurídico do Processo Especial de Revitalização, pois deste decorrem limitações, intrusões e distorções ao que seria o normal decorrer do feixe de relações contratuais privadas”.
No mesmo sentido, reportando-se concretamente ao ponto que constitui o cerne da argumentação do reclamante, ponderou-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/04/2021, proferido no processo n.º 6521/16.6T8LRS.L1.S1 e relatado por António Barateiro Martins, que “o efeito standstill, concorde-se ou não, é um «escudo protetor» concedido pela lei ao devedor/revitalizando, que, todavia, não fica impedido de dele prescindir e de, caso a caso, cumprir as suas obrigações  e movimentar, para tal, as suas contas/saldos bancárias; mas – é o ponto – não pode servir nem ser usado como «escudo protetor» a favor dos credores que estão autorizados, sem a casuística manifestação de vontade do devedor/revitalizando, a debitar unilateralmente os seus saldos bancários e que, por isso, durante o período do standstill, se assim puderem proceder, ficam até em melhor situação do que estavam antes (uma vez que ficam, durante tal período, protegidos do «concurso» da generalidade dos credores)”.
Procede, pois, a apelação, nos termos da decisão singular anteriormente proferida pelo relator.
Resta acrescentar que o “Banco 1..., S.A.”, como parte vencida, suportará as custas do recurso, nos termos do artigo 527º do CPC.
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IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam, em conferência, os juízes da 1ª Secção Cível deste Tribunal da Relação de Guimarães em desatender a reclamação apresentada e, em consequência, manter a decisão singular anteriormente proferidas pelo relator.
Custas pelo “Banco 1..., S.A.”.
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Guimarães, 09 de Outubro de 2025
                                                          
João Peres Coelho
Relator
Susana Raquel Sousa Pereira
1ª Adjunta
Rosália Cunha
2ª Adjunta


[1] Em “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, páginas 124 e 125.
[2] Obra citada, página 141 e seguintes.
[3] Em “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª edição, página 739.