Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
281/18.3T8MGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS MIGUEL CALDAS
Descritores: ACÇÕES JUDICIAIS
APRECIAÇÃO DO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS
AUTORIDADE DE CASO JULGADO MATERIAL
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA– MARINHA GRANDE – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 577.º, AL. I), SEGUNDA PARTE, 580.º, 581.º E 619.º A 625.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Se duas acções judiciais, envolvendo as mesmas partes, foram julgadas separadamente, pressupondo, parcialmente, a apreciação do cumprimento ou incumprimento do mesmo contrato de empreitada, tendo uma das acções já sido decidida com trânsito em julgado, embora os factos provados ou não provados nessa acção não adquiram, isoladamente, autoridade de caso julgado, fica excluída a possibilidade de se provar, na segunda acção, qualquer situação de facto contraditória ou incompatível com aquela que já ficou definida na decisão transitada.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]

A..., S.A., instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B..., S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 21 532,02 (vinte e um mil quinhentos e trinta e dois euros e dois cêntimos) acrescida dos juros vincendos, calculados à taxa legal, bem como o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.

Para tanto e em síntese invocou o incumprimento contratual da ré, por suposto não pagamento integral do preço devido pelo fornecimento de peças em plástico injectadas em moldes fabricados que esta solicitou à autora.


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A ré contestou, tendo requerido, em primeiro lugar, a suspensão desta acção por prejudicialidade com o processo n.º 1153/18...., pendente no Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, alegando, outrossim, o cumprimento defeituoso do contrato pela autora, decorrente do incumprimento de prazos e de vícios e defeitos dos moldes e das peças de plástico fornecidas, a excepção de não cumprimento, o abuso do direito e, por fim, a compensação. A autora respondeu às excepções pugnando pela sua improcedência.

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O tribunal a quo, por decisão de 22-10-2018, transitada em julgado, após mencionar que “em ambas as ações acaba-se por envolver, necessariamente, a apreciação do eventual cumprimento ou incumprimento do contrato de empreitada, sendo que no presente processo não no seu todo mas parcialmente – fornecimento de peças em plástico, existindo assim uma coincidência parcial dos respetivos objetos” (sic), considerou inexistir causa prejudicial ou motivo justificado que impedisse o prosseguimento destes autos, tendo, assim, indeferindo o pedido de suspensão da instância.

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            Subsequentemente, a ré requereu a apensação do processo n.º 1153/18.... a esta acção, tendo o tribunal a quo, por decisão de 18-02-2019, transitada em julgado, após expender que “pese embora os sujeitos processuais em ambos os processos sejam os mesmos e haja uma conexão estreita entre o objeto dos dois processos, desde já se dirá que o Tribunal entende não existir conveniência na referida apensação, não só pela não admissão da reconvenção no âmbito do processo n.º 1153/18...., cuja decisão foi alvo de recurso, mas também por ambos os processos se encontrarem em fases distintas” e que “face ao estabelecido no n.º 2 e 3 do citado artigo 267º se retira que correndo os presentes autos num Juízo de Competência Genérica e o processo n.º 1153/18.... no Juízo Central, seria sempre o presente processo apensado ao Processo n.º 1153/18..... Nesse seguimento, o pedido de apensação das duas ações em discussão teria de ser requerido no âmbito do processo n.º 1153/18...., por ser perante este que o presente processo teria de ser apensado, em conformidade com o n.º 3 do mencionado dispositivo legal”, concluído pela inadmissibilidade legal e indeferido o pedido de apensação deduzido.

*

Realizada audiência final foi proferida sentença, em 11-07-2024, da qual consta a seguinte parte dispositiva:

“Nestes termos, e com os fundamentos invocados, este Tribunal decide:

3.1. Julgar a exceção de não cumprimento deduzida pela Ré B..., S.A., improcedentes por não provada:

3.2. Julgar a exceção de abuso de direito deduzida pela Ré B..., S.A., improcedentes por não provada;

3.3. Julgar a ação procedente, por provada, e consequentemente, mais decide condenar a Ré B..., S.A a pagar à Autora A... S.A., a quantia de € 21.532,02 (vinte e um mil quinhentos e trinta e dois euros e dois cêntimos) acrescida dos juros vincendos, calculados à taxa legal em vigor para os juros comerciais, a contabilizar desde aquela data, até integral pagamento;

Consequentemente, mais decide:

3.4. Condenar a Ré no pagamento das custas do processo (cfr. art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC) (…)”.


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            Inconformada com a decisão, a ré recorreu e, nas alegações de recurso, formulou as seguintes conclusões:

“1) A Recorrente não se conforma com a decisão final proferida nestes auto nem com a decisão sobre a matéria de facto, que também é impugnada neste recurso, sendo que esta não reflecte a prova feita nos autos, devendo tal decisão ser modificada em conformidade com o que se passa a expor.

2) Não pode deixar de se salientar que, precisamente sobre esses temas e envolvendo as mesmas partes nestes autos na mesma posição, já tinha sido proferida sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos, conforme resulta da certidão judicial junta aos autos em 22/02/2024 pela R. (requerimento Ref.ª Citius 48058153), sentença essa na qual se decidiu e bem pela improcedência da acção, designadamente, em virtude da existência dos múltiplos defeitos evidenciados nas peças fornecidas pela A. À R.

Posto isto,

Da impugnação da decisão da matéria de facto

3) Para efeitos de impugnação da decisão da matéria de facto, passam-se a indicar os concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorrectamente julgados e os concretos meios de prova que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, pois deveriam considerar-se como factos provados, sendo que se enunciam, numerados de 1 a 11, os factos que deveriam considerar-se provados (e não o foram na decisão recorrida) em itálico e sublinhado, logo seguidos dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.

1-A A. forneceu o primeiro lote de peças em Março de 2016.

-Este facto foi alegado no art. 6º da petição inicial e não impugnado, pelo que deve considerar-se aceite.

-Doc. 1 junto com a petição inicial: factura emitida pela A. na qual na descrição se refere “(1ªs

50%)”.

-Sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos (facto provado 25 dessa sentença).

-Depoimento de parte do representante legal da R. AA (gravação 20240130100525_3840114_2870999; passagem 00:09:04 a 00:10:21; págs. 21-23 da transcrição).

-Depoimento da testemunha BB (gravação 20240318152636_3840114_2870999; passagem 00:13:24 a 00:15:44; págs. 306-307 da transcrição).

2-Foi feita uma segunda produção em Junho de 2017 e as peças entregues à R.

-Este facto foi alegado no art. 8º da petição inicial e não impugnado, pelo que deve considerar-se aceite.

3-A fixação dos prazos referidos no ponto 9 dos factos provados era essencial para a R., que precisava apresentar o produto nos EUA em fevereiro de 2016 e iniciar as vendas online em março de 2016.

-Sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos (facto provado 12 dessa sentença).

-Doc. 8 junto com a contestação (email de 11/02/2016), no qual se fazia menção expressa à necessidade das peças finais para fechar a parceria com a Amazon e a Target (um dos maiores retalhistas dos EUA) e à participação no programa de aceleração HAX nos EUA.

-Depoimento de parte do representante legal da R. AA (gravação 20240130100525_3840114_2870999; passagem 00:24:07 a 00:25:29; págs. 40-42 da transcrição).

-Depoimento da testemunha BB (gravação 20240318152636_3840114_2870999; passagem 00:13:24 a 00:15:44; págs. 306-307 da transcrição).

4-Pese embora a A. nunca haja formalizado a assinatura do contrato, as partes obtiveram consenso sobre uma minuta do contrato.

-Sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos (facto provado 6 dessa sentença).

-Doc. 6 junto com a contestação.

5-As primeiras amostras das peças plásticas, previstas para 30 de novembro de 2015, foram entregues parcialmente no final de Março 2016.

Dá-se como reproduzido o referido a propósito do facto 1.

6-As amostras entregues apresentavam os seguintes aspetos:

a. Fechos das caixas não uniformes e deformados;

b. Manchas nas caixas;

c. TPE borrado na zona dos pogopins e dentro das gotas desenhadas no botão;

d. Chupões no botão;

e. Manchas com círculos e canais das gotas na parte rígida;

f. As peças não encaixavam

g. Não vedavam completamente

- Sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos (factos provados 23 e 32 dessa sentença).

-Doc. 9 junto com a contestação, correspondente a email 04/04/2016 contendo relatório discutido em conjunto pelas partes relativo a reunião de verificação de defeitos ocorrida em 01/04/2016, no qual são abordados múltiplos defeitos, entre outros os acima referidos, reconhecidos como existentes pela A. nos comentários que faz ao relatório, designadamente nos pontos do relatório seguintes: 1 (fechos), 2 (manchas), 4 (TPE borratado, peças não encaixam, caixas não vedadas), 8 (chupões no botão), 9) (manchas com círculos e canais das gotas na parte rígida).

-Relatório da 1ª perícia objecto da notificação às partes de 04/09/2020.

-Ambos os relatórios periciais, notificados às partes em 04/09/2020 e 26/09/2023, nos quais ao quesito o) (“Pode entender-se que as características enunciadas permitem afirmar que as peças plásticas não correspondem à qualidade expectável no contexto de produção industrial do sector?”), a resposta foi unânime no sentido de que, com os defeitos verificados, as características / qualidade global das peças plásticas “não correspondem à qualidade expectável no contexto de produção industrial do sector”.

-Depoimento do perito CC (gravação 20240318100708_3840114_2870999; passagem 00:19:17 a 00:21:15 - págs. 122-123 da transcrição).

-Depoimento do perito DD (gravação 20240318104441_3840114_2870999; passagem 00:02:34 a 00:04:11 - págs. 140-141 da transcrição; passagem 00:05:08 a 00:06:05 pág. 142 da transcrição).

-Depoimento de parte do representante legal da R. AA (gravação 20240130100525_3840114_2870999; passagem 00:20:49 a 00:12:50 - págs. 25-26 da transcrição; passagem 00:22:39 a 00:22:59 - pág. 38 da transcrição).

-Depoimento da testemunha BB (gravação 20240318152636_3840114_2870999; passagem 00:02:41 a 00:05:27; págs. 300-301 da transcrição)

7-As peças com os defeitos provados eram inutilizáveis.

-Sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos (factos provados 33 e 35 dessa sentença).

-Doc. 13 junto com contestação, no qual a A. dá indicação expressa “para serem destruídas”.

-Depoimento de parte do representante legal da R. AA (gravação 20240130100525_3840114_2870999; passagem 00:06:19 a 00:06:33 - pág. 58 da transcrição).

-Depoimento da testemunha EE (gravação 20240318122533_3840114_2870999; passagem 00:06:00 a 00:07: pág. 243 da transcrição).

8-Tendo em conta os defeitos e as peças formarem um conjunto, resultou o total de 100% de rejeição de peças.

-Sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos (facto provado 35 dessa sentença).

-Depoimento de parte do representante legal da R. AA (gravação 20240130100525_3840114_2870999; passagem 00:06:19 a 00:06:33 - pág. 58 da transcrição).

-Depoimento da testemunha BB (gravação 20240318152636_3840114_2870999; passagem 00:08:36 a 00:06:40; pág. 303 da transcrição).

9-Os defeitos provados foram reconhecidos pela A.

-Sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos (facto provado 36 dessa sentença).

-Doc. 9 junto com a contestação, correspondente a email 04/04/2016 contendo relatório discutido

em conjunto pelas partes relativo a reunião de verificação de defeitos ocorrida em 01/04/2016, no qual são abordados múltiplos defeitos, entre outros os acima referidos, reconhecidos como existentes pela A. nos comentários que faz ao relatório, designadamente nos pontos do relatório seguintes: 1 (fechos), 2 (manchas), 4 (TPE borratado, peças não encaixam, caixas não vedadas), 8 (chupões no botão), 9) (manchas com círculos e canais das gotas na parte rígida).

10-A R. não conseguiu apresentar um produto perfeito perante a Portugal Ventures e no programa “HAX” nos EUA.

-Sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos (factos provados 12 e 13 dessa

sentença).

-Doc. 8 junto cm a contestação (email de 11/02/2016), no qual se fazia menção expressa à necessidade das peças finais para fechar a parceria com a Amazon e a Target (um dos maiores retalhistas dos EUA) e à participação no programa de aceleração HAX nos EUA.

-Depoimento de parte do representante legal da R. AA (gravação 20240130100525_3840114_2870999; passagem 00:24:12 a 00:24:53; págs. 40-41 da transcrição).

-Depoimento da testemunha BB (gravação 20240318152636_3840114_2870999; passagem 00:13:46 a 00:14:55; pág. 306 da transcrição).

11-A R. não conseguiu vender na “Amazon”, “Target” e sua loja online.

Dá-se como reproduzido o referido a propósito do facto 12.

4) Deverá, pois, a decisão da matéria de facto ser modificada em conformidade com o acima exposto, considerando-se a referida factualidade provada.

Sem conceder,

Dos outros fundamentos de recurso

5) Sem conceder, à luz dos factos provados, a sentença deveria ter decidido pela improcedência da presente acção.

6) Nos termos do art. 1208.º, Cód. Civil, o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.

7) O empreiteiro encontra-se adstrito a uma obrigação de resultado (art. 1154.º, Cód. Civil).

8) O empreiteiro deve não só obedecer, na realização da obra, às prescrições do contrato, mas respeitar também as regras da arte ou profissão em cujo âmbito se integre a execução dessa obra e as normas técnicas (cfr. Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra, 1997, pág. 864; Acórdão Tribunal Relação de Évora, de 24/10/2019, Proc. 909/13.1TBPTG.E1.).

9) Em caso de incumprimento do contrato por parte do empreiteiro, presume-se a culpa (art. 799.º, n.º 1, Cód. civil).

10) Ora, é manifesto que

• A A. não cumpriu os prazos a que se vinculou;

• A A. não executou as peças de acordo com que foi acordado, pois tinham defeitos (funcionais e estéticos);

• A A. não respeitou também as regras da arte ou profissão em cujo âmbito se integre a execução dessa obra - veja-se a este propósito as respostas nos dois relatórios periciais juntos aos autos na resposta ao quesito o) (“Pode entender-se que as características enunciadas permitem afirmar que as peças plásticas não

correspondem à qualidade expectável no contexto de produção industrial do sector?”), em que foi unânime que, com os defeitos verificados, as características / qualidade global das peças plásticas “não correspondem à qualidade expectável no contexto de produção industrial do sector”;

• Os defeitos das peças fornecidas pela A. excluem o valor das mesmas; sem conceder, reduzem o valor das mesmas;

• Os defeitos das peças fornecidas pela A. excluem a sua aptidão para o uso ordinário.

11) Deste modo, assiste à R. o direito de recusar o pagamento do peticionado na presente acção ao abrigo do regime de excepção de não cumprimento (art. 428.º e ss, Cód. Civil).

12) Sem conceder, sempre o peticionado na presente acção configuraria um manifesto abuso de direito (art. 334.º, Cód. Civil).

13) Sem conceder, caso o Tribunal alguma dúvida tivesse, sempre poderia reduzir o preço de acordo com a equidade.

Em face do exposto,

14) A sentença recorrida violou a Lei e o Direito, designadamente, os arts. 334.º, 428.º e ss., 799.º, n.º 1, 1154.º, e 1208.º, Cód. Civil.

15) Por conseguinte, deve a sentença recorrida ser revogada, julgando-se a presente acção totalmente improcedente.

Termos em que e nos mais que vossas excelências doutamente se dignarem suprir dentro do vosso mais alto saber e critério, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, deve a decisão recorrida ser revogada em conformidade, julgando-se a presente acção totalmente improcedente e absolvendo-se a recorrente.

Assim se fará Justiça.”


*

Contra-alegou a autora, formulando as seguintes conclusões:

“1. A decisão proferida foi-o em estrito respeito pela prova produzida.

2. Nada merece censura quanto à matéria de facto dada como provada ou a aplicação do direito.

3. Nada leva a que a decisão proferida seja modificada.

4. Mantendo-se a douta sentença tal como foi proferida far-se-á justiça”.


*

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, sendo as seguintes as questões a dirimir, por ordem de precedência:
1. Efeitos decorrente do trânsito em julgado da sentença exarada no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3 conclusões 1) e 2).
2. Impugnação da matéria de facto: consideração de 11 factos provados não atendidos na sentença – conclusões 3) e 4).
3. Erro no enquadramento jurídico da causa: incumprimento do contrato de empreitada pelo empreiteiro – direito de recusa do pagamento do preço; sem conceder, abuso do direito; sem conceder, redução do preço de acordo com a equidade – conclusões 5) a 15).

*

A. Fundamentação de facto.

Na 1ª instância consignou-se o seguinte no que tange à factualidade provada e não provada:

“2.1. De Facto:

2.1.1. Factos Provados:

1. A autora é uma sociedade comercial que fabrica moldes para injecção em plástico e peças plásticas.

2. A ré é uma sociedade dedicada à investigação, desenvolvimento, fabricação e comercialização de produtos e equipamentos tecnológicos, principalmente para geolocalização, além de assistência técnica, manutenção, consultoria, formação e gestão de projetos relacionados.

3. Em setembro de 2015, a ré solicitou à autora a fabricação de cinco moldes para injeção de peças em plástico,

4. … e a produção das peças plásticas a partir dos moldes, que se destinavam a acondicionar um sistema de localização para animais e crianças, composto por uma caixa que incorpora a parte eletrónica do sistema de localização; um carregador que incorpora a parte eletrónica para alimentação elétrica, e um clip.

5. A Autora comprometeu-se a fornecer 5 moldes com injeção de 3 materiais:

a) Módulos portáteis PARENT, CHILD, PET;

b) Módulo do carregador;

c) Clips PARENT, CHILD, PET.

6. A Autora comprometeu-se a fabricar e fornecer moldes conforme o projeto 3D das peças plásticas.

7. No circunstancialismo referido nos pontos 3 a 6, as partes convencionaram que a Ré pagaria € 96.000,00 mais IVA, sendo € 30.000,00 com a adjudicação do projeto; € 10.000,00 com as primeiras amostras; e € 56.000,00 em duas prestações iguais nos dois anos seguintes.

8. … e que a R. pagaria por cada conjunto de peças, conjunto A: € 0,77 mais IVA; conjunto B: € 0,34 mais IVA; e Conjunto C: € 0,35 mais IVA.

9. Os prazos de execução acordados entre as partes foram, até 30 de Novembro de 2015: as primeiras amostras; até 15 de Dezembro de 2015: primeiro lote de 4.500 peças (1.500 de cada conjunto);

10. A A. tinha conhecimento destes prazos.

11. A A. entregou à R. um total de 8668 peças.

12. As amostras entregues apresentavam picos na parte lateral das caixas, imperfeições na divisão entre TPE e plástico rígido.

13. As peças plásticas produzidas pela A. apresentavam rebarbas e manchas no ponto de injeção.

14. Algumas peças apresentavam cores não constantes com as requisições da Ré.

15. A R. vendeu produtos com redução do preço.

16. A R. enviou email de 24-09-2015 à Autora com o seguinte teor: “Por uma questão de celeridade, temos todo o interesse em adjudicar o projecto o mais rapidamente possível.”,

17. … Email de 27-10-2015 (Doc. 7), com o seguinte teor: “A data das primeiras amostras não é 31 de Dezembro de 2015, essa é a data para as peças finais injectadas. Temos ainda a questão para termos uma primeira amostra na primeira semana de Dezembro, para podermos apresentar na Portugal Ventures...”,

18. … Email de 15-04-2016 (9h20) (Doc. 11), com o seguinte teor: “... A fábrica que irá produzir a electrónica é a mesma que irá assembler o nosso produto, pelo que a dependência das caixas plásticas é evidente. Face aos atrasos sofridos até à data e aos adiamentos sucessivos da produção dos plásticos, venho reforçar que a produção está calendarizada para 20 de Abril, e que do nosso lado lado é incomportável sofrer mais atrasos neste processo, que já se arrasta há alguns meses. Além disso, a fábrica que assemblará o produto irá cobrar custos de armazenagem da electrónica e outros elementos do produto, enquanto não tiver todo o material para assemblar e entregar as caixas prontas para venda ao cliente.”

19. … Email de 15-04-2016 (9h50) (Doc. 12) com o seguinte teor: “Dada a situação, precisávamos de reunir na próxima segunda feira dia 18 de Abril da parte da manhã, já que a data apontada pelo FF (26 de Abril)para obtenção de novas peças é muito problemática para nós já que vai implicar sérios custos do lado dos outros fornecedores por mais um adiamento de produção. Estes custos em última análise poderão pôr em causa a viabilidade do nosso projecto. Desta forma, é crítico para nós que o prazo de 26 possa ser antecipado.”,

20. … Email de 15-05-2017 (Doc. 15), com o seguinte teor: “Na sequência do N/email anterior, dada a gravidade da situação, em especial pelos V/incumprimentos reiterados e prejuízos que estamos a sofrer....”,

21. … Email de 04-05-2017 (Doc. 14), com o seguinte teor: “À luz do acordado entre a B... e a A... devemos referir que o nosso relacionamento comercial tem sido pautado por inúmeros incumprimentos por parte da A.... Não podemos aceitar que a A... não cumpra com prazos (inclusivamente com meses de atrasos) nem com a entrega das quantidades encomendadas e, além do mais, quando bem sabe da essencialidade para a B... do cumprimento rigoroso das encomendas. Na verdade, como já foi por nós repetidamente referido existe uma incapacidade constante e generalizada no cumprimento dos prazos e as peças plásticas provenientes dos moldes por vocês produzidos têm sempre inúmeros defeitos, já por nós recorrentemente identificados. Relembro que necessitaram de mais de 5 meses para entregar uam encomenda de 3250 plásticos azuis escuros, 2200 plásticos amarelos e 2200 plásticos brancos, com vários problemas de mudanças de cores do vosso lado (problemas que nos são alheios mas que nos afectam constantemente) e ameaças de paragens de produção m caso de não aceitação das peças com defeitos...... sendo esta situação insustentável. Foram construídos moldes em aço no pressuposto de ter uma capacidade expectável de produção de milhões de unidades no seu tempo de vida, estando a constatar-se que necessitam de meio ano para tirar 7750 peças! Em face disso, e atentas as pressões comerciais de que estamos a ser alvo para entregas atempadas e com a qualidade desejada, solicitamos que no prazo máximo de 5 dias a A... se comprometa a: -cumprimento com o prazo máximo de 10 dias para a entrega das encomendas após recepção da N/encomenda, e -fabrico dos produtos sem defeitos. Alertamos para que o incumprimento da A... está a causar inúmeros prejuízos à B..., entre outros, por impossibilidade de satisfazer as encomendas que são solicitadas à B.... Lembramos que a B... é uma start-up e que imagem que dá no mercado é crucial na fase em que se encontra. O GG está agora a enviar-me uma lista de peças enviadas quando ainda nem foi concluída a encomenda feita. Não podemos, assim, aceitar que nos facturem o valor que estão a pretender facturar quando não cumprem o serviço que vos é contratado.”

22. … Email de 26-06-2017 (Doc. 16), com o seguinte teor: “Reiteramos que os V/incumprimentos são sistemáticos e definitivos. Sendo que já demos a V.ªs. Exas. inúmeras oportunidades de cumprimento. Vejamos: 1-Incumprimento de prazos. Tínhamos o vosso compromisso de produzir o mínimo de 50.000 peças por ano em produção em massa, e verificamos que necessitaram de meio ano para produzir parte da encomenda num total de 8.668 peças, ou seja, uma produção inferior em 82.6% à assegurada como capacidade de produção anual mínima. Tínhamos o vosso compromisso de resposta imediata às nossas encomendas e não o conseguem fazer. Basta comparar a nossa única encomenda de 9950 peças no dia 8 de Setembro de 2016 e as datas de entregas:

Data da entrega Quantidade entregue
4-Nov-2016 100
11-Nov-2016 540
18-Nov-2016 400
25-Nov-2016 1000
2-Dec-2016 600
6-Dec-2016 720
7-Dec-2016 720
14-Dec-2016 500
16-Dec-2016 500
20-Dec-2016 378
20-Jan-2017 720
23-Jan-2017 360
3-Feb-2017 160
7-Feb-2017 100
8-Feb-2017 200
10-Feb-2017 130
24-Feb-2017 360
3-Mar-2017 200
10-Mar-2017 150
17-Mar-2017 360
27-Mar-2017 470
Totais 8668

Note-se que os moldes foram construídos em aço de acordo com as vossas indicações, tendo Vªs. Exas. referido que eram assim construídos para se conseguir o volume de produção por nós pretendido.

Sintomático disso, é a ausência de resposta ao nosso pedido de compromisso da parte de Vas. Exas. de cumprimento com o prazo máximo de 10 dias para a entrega das encomendas após recepção da N/encomenda.

2-Peças defeituosos

As peças fabricadas por Vªs. Exas. apresentam inúmeros defeitos, entre outros, a cor não corresponde à pretendida, defeitos gerais da caixa apresentando rebarbas e com o ponto de injecção visível e formando uma mancha, fragilidade do botão, impossibilidade de carregamento em virtude de a divisória entre o plástico e a borracha estar mal acabada e/ou não fazer bom contacto com o carregador, fragilidade do clip do módulo, etc….

Tal foi-vos comunicado inúmeras vezes, e, como Vªs. Exas. aliás nos confirmaram, as peças defeituosas não podem ser recicladas nem reaproveitadas, pois os defeitos que apresentam tornam-nas definitivamente inutilizadas.

O número total de peças defeituosas que não puderam ser comercializadas ascende a um total de 5.176 peças.

Ou seja, tendo Vªs. Exas. produzido um total de 8.668 peças, considerando as peças defeituosas, temos 60% de peças defeituosas.

E, como se não bastasse, mantém-se a V/incapacidade de resolução dos defeitos que persistem.

Note-se que, em bom rigor, se considerarmos que a localização do ponto de injecção escolhida por Vªs. Exas. está numa zona visível da peça ao invés de uma zona interior enão visível da peça, criando uma mancha visível em todas as peças, a taxa de rejeição é de 100%.

Com efeito, esse defeito foi identificado em todas as peças que recebemos e diversas vezes foi reconhecido por Vªs. Exas. este defeito.

Apenas aceitamos comercializar algumas peças com defeitos menos visíveis nos termos abaixo referidos para minorar os nossos prejuízos.

Para terminar este ponto, lembramos que as peças usadas para controlo de qualidade foram fotografadas e até agora nunca nos foi enviado o relatório que ficaram de nos enviar.

3-Prejuízos

Tivemos inúmeras reclamações de clientes, muitas por escrito, com base nos defeitos atrás referidos e com base nos atrasos na entrega dos conjuntos.

Inicialmente, tentamos vender os conjuntos que tinham defeitos menores para minimizar os nossos prejuízos, mas, por causa dos defeitos, não foi possível lançar o preço previsto. Tivemos que lançar com o preço de $119 (cerca de € 106,00) em vez de $169 (cerca de € 151,00) por conjunto, suportando a diferença (cerca de € 45,00 por conjunto).

Ou seja, tendo em conta o número de 3.038 conjuntos vendidos, suportamos um prejuízo no valor de € 136.710,00 a este título (3.038 conjuntos x € 45,00).

Acresce que não conseguimos satisfazer encomendas por falta de conjuntos para entregar aos clientes, num total de 2.000 conjuntos, o que acarretou um prejuízo no valor de € 302.000,00 (2.000 conjuntos x € 151,00), sendo que, deduzidos os custos imputados a cada conjunto no valor de € 37,93 por cada conjunto, temos um valor de € 113,07 por conjunto, o que perfaz o valor global de € 226.140,00 (2.000 conjuntos x € 113,07).

Ainda, temos em stock material de electrónica comprado para colocar em conjuntos encomendados e não entregues por Vªs. Exas., material esse no valor global de € 60.000,00.

Isto para já e ao que acresce ainda o prejuízo que resulta para a nossa imagem comercial para mais na fase inicial de comercialização de um produto.

4-Rejeição de quantias reclamadas por Vªs. Exas.

Em face do atrás exposto, recusamo-nos a pagar a Vªs. Exas qualquer valor e solicitamos emissão urgente de nota de crédito relativa à V/factura FT 16A/200 de 2016-12-05.”

23. A R. enviou Carta de 04-09-2017 (Doc. 17) à Autora com o seguinte teor: “Acusamos a recepção das V/cartas com data de 17/07/2017 e 03/08/2017 (recepcionadas em data posterior) e ainda factura FT17/379 expedida em 12/07/2017. No entanto, rejeitamos em absoluto que tenha havido qualquer incumprimento da N/parte. Com efeito, incumprimentos houve, sim da V/parte, causadores de avultados prejuízos à N/empresa, como expusemos várias vezes, pelo que reiteramos o teor das N/anteriores comunicações, dando-as aqui como integralmente reproduzidas.

Posto isto, devolvemos as facturas que nos enviaram, pois não somos devedores de qualquer quantia.

Vªs. Exas é que são devedores à N/empresa de avultadas quantias, de valor superior a € 500.000,00 aliás já mencionadas nas N/anteriores comunicações, quantia esta que mais uma vez reclamamos.”

24. A A. enviou à Ré a Fatura FT FT17/379, datada de 01-06-2017, correspondente à produção de peças plásticas do projeto B..., relativas a 7.381 conjuntos módulo case/top/base, 3.581 conjuntos carregador, 4207 conjuntos clip cinto, 4245 conjuntos clip liso e 7020 conjuntos clip cão, no valor de 20.320,08, o qual se encontra por liquidar.

2.1.2. Factos Não-Provados:

1) Antes do referido no facto 3, a A. garantiu ter capacidade para fabricar os moldes com qualidade e produzir pelo menos 50.000 peças por ano e responder rapidamente após pedido.

2) Essas garantias foram essenciais para a celebração do contrato, o que era do conhecimento da A.

3) As partes convencionaram a entrega imediata das peças após recebimento do pedido.

4) A fixação dos prazos referidos no ponto 9 dos factos provados era essencial para a R., que precisava apresentar o produto nos EUA em fevereiro de 2016 e iniciar as vendas online em março de 2016.

5) Apesar das insistências da R., e pese embora a A. nunca haja formalizado a assinatura do contrato, as partes obtiveram consenso sobre uma minuta do contrato.

6) As primeiras amostras das peças plásticas, previstas para 30 de novembro de 2015, foram entregues parcialmente em 18 de janeiro de 2016.

7) As amostras entregues apresentavam os seguintes aspetos:

a. Fechos das caixas não uniformes e deformados;

b. Manchas nas caixas;

c. TPE borrado na zona dos pogopins e dentro das gotas desenhadas no botão;

d. Chupões no botão;

e. Manchas com círculos e canais das gotas na parte rígida;

f. Cores incorretas;

g. Defeitos na ponta do guia dos clips;

h. Dificuldade em retirar os clips.

8) A A. entregou à R. as peças referidas no ponto 11 dos factos provados, nas seguintes datas e nas seguintes quantidades:

Data da

Entrega

Quantidade

Entregue

4-Nov-2016
100
11-Nov-2016
540
18-Nov-2016
400
25-Nov-2016
1000
2-Dec-2016
600
6-Dec-2016
720
7-Dec-2016
720
14-Dec-2016
500
16-Dec-2016
500
20-Dec-2016
378
20-Jan-2017
720
23-Jan-2017
360
3-Feb-2017
160
7-Feb-2017
100
8-Feb-2017
200
10-Feb-2017
130
24-Feb-2017
360
3-Mar-2017
200
  10-Mar-2017
150
  17-Mar-2017
360
  27-Mar-2017
470
Total
8668

9) As peças plásticas produzidas pela A. apresentavam fragilidade do botão,

10) … Problemas de carregamento devido a acabamento inadequado;

11) … Fragilidade do clip do módulo;

12) … Alteração do design sem autorização da R.

13) As peças com os aspectos referidos nos pontos 12 a 14 dos factos provados eram inutilizáveis.

14) O total de peças que detinham os aspectos referidos nos pontos 12 a 14 dos factos provados e pontos 7) e 9) a 13) dos factos não provados foi de 5176.

15) A localização do ponto de injecção causou manchas visíveis, resultando em 100% de rejeição.

16) Esse defeito foi reconhecido pela A.

17) A R. recebeu reclamações por defeitos dos clientes HH, II, JJ;

18) A R. reclamações pelos atrasos pelos clientes KK, LL, MM,

19) Em resultado do referido nos pontos 12 a 18 dos factos provados, o preço de venda foi $119 em vez de $169, resultando em uma perda de €45 por unidade.

20) A R. teve um prejuízo de €136.710 devido à redução de preço (3.038 unidades x €45).

21) A R. não conseguiu satisfazer encomendas de 2.000 unidades, resultando em um prejuízo de €217.700.

22) A R. tem material de eletrónica em stock no valor de €60.000.

23) Esse material não foi reaproveitado.

24) Parte desse material, no valor de €7.689, tornou-se obsoleto.

25) A R. esperava vender no mínimo 50.000 unidades por ano.

26) A R. gastou €50.000 em investimento para melhorar a sua imagem junto a clientes, retalhistas e investidores.

27) A R. não conseguiu apresentar um produto perfeito perante a Portugal Ventures e no programa “HAX” nos EUA.

28) A R. não conseguiu vender na “Amazon”, “Target” e sua loja online.


*

A restante matéria alegada não foi considerada provada nem não provada, por constituir matéria vaga, conclusiva, argumentativa, ou de direito.”

*

B. Fundamentação de Direito.

Vista a factualidade provada, vejamos, per se, as questões a decidir, começando, evidentemente, pelos efeitos decorrentes da sentença proferida no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data do julgamento – conclusões 1) e 2).

A apelante aduz que:

“1. (…) [N]ão se conforma com a decisão final proferida nestes autos nem com a decisão sobre a matéria de facto, que também é impugnada neste recurso, sendo que esta não reflecte a prova feita nos autos, devendo tal decisão ser modificada em conformidade com o que se passa a expor.

2. Não pode deixar de se salientar que, precisamente sobre esses temas e envolvendo as mesmas partes nestes autos na mesma posição, já tinha sido proferida sentença no Proc. 1153/18.... do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, já transitada em julgado à data da audiência de julgamento nos presentes autos, conforme resulta da certidão judicial junta aos autos em 22/02/2024 pela R. (requerimento Ref.ª Citius 48058153), sentença essa na qual se decidiu e bem pela improcedência da acção, designadamente, em virtude da existência dos múltiplos defeitos evidenciados nas peças fornecidas pela A. à R.” (sic, sublinhado nosso).

Vejamos.

Perlustrada a sentença sob recurso, datada de 11-07-2024, é ostensivo que a 1.ª Instância não atendeu, minimamente, ao alcance decorrente da decisão – de facto e de direito – proferida no Proc. n.º 1153/18...., do Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3, prolatada em 14-12-2023 e transitada em julgado em 30-10-2024, ignorando olimpicamente o alcance daquela decisão judicial – e a factualidade ali debatida –, sendo certo que essa sentença foi junta ao processo ainda antes do início da audiência final.

Impõe-se recordar, aliás, a marcha deste processo e as considerações que o tribunal a quo teceu a propósito da estreita conexão processual entre este processo e o Proc. n.º 1153/18.....

Como o tribunal a quo assinalou no despacho de 22-10-2018: “(…) Na presente ação constatamos que a A. peticiona o valor global de 21.532,02 € (20.320,08 € a título de capital constante na fatura n.º ...79 e 1.211,97 € de juros de mora vencidos) referente ao contrato de empreitada celebrado com a R. que consiste na produção e entrega de peças em plástico injetadas nos moldes fabricados por si a pedido desta. Já na reconvenção deduzida no âmbito do processo n.º 1153/18...., a Reconvinte (aqui R.) peticiona o valor global de € 412.099,00 € a título de prejuízos causados pela Reconvinda (aqui A.) como consequência do incumprimento/cumprimento defeituoso por parte desta última no âmbito do contrato de empreitada que consiste no fabrico de cinco moldes e produção de peças plásticas a partir desses mesmos moldes. Enquanto nesta ação se discute se a A. tem direito a receber da R. o valor do fornecimento de peças em plástico, tendo a R. impugnado tal pretensão por exceção e impugnação, já na Reconvenção deduzida no outro processo está em causa decidir se a ora R. tem direito a receber da aqui A. uma indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento desta no âmbito do contrato de empreitada.

Quanto às partes envolventes nos dois processos verificamos que os sujeitos processuais são os mesmos, contudo em distintas qualidades jurídicas: a aqui A. figura no outro processo na qualidade de reconvinda, já a aqui R. encontra-se na qualidade de reconvinte no outro processo. Em relação aos pedidos formulados em cada um dos processos, embora tenham como fundamento o mesmo contrato de empreitada (sendo que na reconvenção é mais abrangente pois também engloba o de fabrico dos cinco moldes), o presente processo tem como causa de pedir o cumprimento desse contrato, já o pedido deduzido pela aqui R. tem como causa de pedir os danos originados pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte da aqui A. de que pretende vir a ser ressarcida”. E prosseguiu, mais adiante: Em ambas as ações acaba-se por envolver, necessariamente, a apreciação do eventual cumprimento ou incumprimento do contrato de empreitada, sendo que no presente processo não no seu todo mas parcialmente – fornecimento de peças em plástico, existindo assim uma coincidência parcial dos respetivos objetos. Essa questão torna-se evidente pela análise da contestação aqui apresentada pela R. e a por si deduzida no âmbito do processo n.º 1153/18...., constatando-se que os fundamentos são os mesmos, assim como os factos aí alegados, divergindo somente em ali ter sido deduzida reconvenção e aqui não. Deste modo, pode concluir-se que o objeto da presente ação acaba por ser parcialmente idêntico à reconvenção deduzida na ação n.º 1153/18...., na medida em que todas essas questões foram suscitadas e têm que ser analisadas aqui e na referida ação. A diferença existente nas duas petições iniciais cinge-se ao facto a aqui A. nesse processo ter peticionado o pagamento do fabrico de cinco moldes, enquanto aqui pretende o pagamento pelo fornecimento de peças em plástico produzidas por esses mesmos moldes, daí não se verificar um caso de litispendência” (sic, sublinhado nosso).

E, subsequentemente, o mesmo tribunal, no despacho de 18-02-2019, a respeito do pedido de apensação destas acções, e pese embora o tenha indeferido, considerou, logicamente, que “os sujeitos processuais em ambos os processos [eram] os mesmos” e que existia “uma conexão estreita entre o objeto dos dois processos”.

A verdade é que, como antes se aludiu, de forma pouco compreensível, a sentença em crise omitiu, por completo, qualquer alusão ao Proc. n.º 1153/18.... e à decisão nele proferida.

Recapitulando, naquela acção, emergente de uma causa de pedir tangente com aquela que aqui se debate (o contrato de empreitada é o mesmo), a autora – A..., S.A. – pedia a final: “Nestes termos e melhores de direito, designadamente dos artigos 762º, 806º e 829º-A todos do CC, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada e, em consequência, ser a ré condenada a pagar à autora a quantia global de 71.733,33 euros acrescida dos juros vincendos, calculados à taxa legal, e condenada no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória. Deve ainda a ré ser condenada nas custas e procuradoria”. E a ré – B..., S.A. – em sede de reconvenção, concluía: “Deve a reconvenção deduzida pela R. ser julgada procedente, condenando-se a A. a pagar à R. a quantia de € 412.099,00 (quatrocentos e doze mil e noventa e nove euros), acrescida de juros de mora desde a notificação deste articulado à R. até integral pagamento”.

O tribunal decidiu, a final, no Proc. n.º 1153/18...., na parte pertinente:

“1. Julga-se a acção totalmente improcedente e, em consequência,

2. Absolve-se a Ré B..., S.A., do pedido formulado pela Autora A..., S.A.

3. Julga-se a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência,

4. Absolve-se a Autora A..., SA., do pedido reconvencional formulado pela Ré B..., SA. (…).”.

Lendo a fundamentação daquela sentença consta, além do mais, que “é patente que, tendo ficado provado que existiam defeitos, que foram denunciados pela Ré à Autora, que apesar de prometer sucessivamente corrigi-los, tal nunca veio a suceder, a Ré tem direito de invocar a excepção de não cumprimento nos termos em que o fez. /Além disso, constata-se que, em vez de corrigir os defeitos invocados ou encontrar outra solução, a Autora decidiu comunicar à Ré a resolução do contrato. /Em suma, em virtude dos defeitos existentes, devidamente denunciados, a Autora não tem o direito de exigir da Ré a quantia pedida de €71.733,33, ficando consequentemente prejudicada a apreciação da pedida sanção pecuniária compulsória, bem como, fica de igual modo prejudicada a verificação do abuso do direito ou a compensação invocadas pela Ré, impondo-se assim absolver a Ré do pedido formulado pela Autora” (sic, sublinhados nossos).

A realidade, reitera-se, e que o tribunal a quo desconsiderou aquela decisão e a factualidade nela vertida subjacente ao silogismo judiciário.

Como é sabido o processo civil contempla duas figuras distintas relacionadas com os efeitos da sentença transitada: o caso julgado e autoridade de caso julgado.

Trata-se de matéria que o Código de Processo Civil regula, especialmente, nos arts. 577.º, al. i), segunda parte, 580.º, 581.º e 619.º a 625.º.

Na senda da lição de Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, “Revista Julgar Online”, Novembro de 2018, p. 2: “O caso julgado tanto designa a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como o conjunto dos efeitos jurídicos que têm o transito em julgado da decisão judicial por condição.

Comecemos pela primeira aceção de caso julgado.

Diz-se que a decisão transitou em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (cf. artigo 628.º1).

Trata-se, por conseguinte, de uma qualidade formal ou externa ao próprio teor da decisão.

Nas decisões proferidas na sequência de um pedido ou requerimento podemos distinguir, em razão do seu sentido, entre caso julgado positivo e caso julgado negativo.

O caso julgado é positivo quando a decisão julga procedente o pedido do autor; o caso julgado é negativo quando a decisão julga improcedente o pedido do autor”.

Prossegue o citado autor, op. cit., pp. 2/3: “A imutabilidade da decisão permite que esta alcance uma estabilidade, ou seja, uma continuidade, na emissão dos respetivos efeitos jurídicos.

O trânsito em julgado constitui uma técnica de estabilização dos resultados do processo, mas que não é única, integrando-se numa linha gradual de estabilização. Efetivamente, decorre, desde logo, do artigo 613.º, n.º 1, que, prolatada a sentença ou despacho, o tribunal não os pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais.

Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão.

No entanto, se o conteúdo da decisão é inalterável quanto ao órgão que a produziu, apenas o será para as demais instâncias, quando sobrevier o trânsito em julgado, nos termos do artigo 628.º. Aí, a decisão alcança um segundo nível de estabilidade alargada, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (cf.artigo 620.º), ou mesmo fora dele, perante outros tribunais (cf. artigo 619.º).”

Continua Rui Pinto, op. cit., p. 6: “A força obrigatória desdobra-se numa dupla eficácia, designada por efeito negativo do caso julgado e efeito positivo do caso julgado.

O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo «non bis in idem».

O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo «judicata pro veritate habetur».

Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.”

Deste modo – op. cit., pp 14/15 – “(…) o efeito negativo do caso implica, que transitada em julgado uma decisão judicial, o mesmo tribunal (caso julgado formal, do artigo 620.º) ou todos os tribunais (caso julgado material, do artigo 619.º) ficarão sujeitos tanto a uma “proibição de contradição da decisão transitada”, como a “uma proibição de repetição daquela decisão”, no dizer de Teixeira de Sousa.

Tal proibição constrói um sistema de estabilização das decisões judiciais que se resume ao enunciado seguinte: um tribunal não pode afastar ou confirmar uma anterior decisão já proferida (cf. artigo 580.º, n.º 2) independentemente de ser alheia ou ser sua (cf. artigo 613.º, n.º 1). Apenas em sede de impugnação de decisões judiciais (maxime, por recurso) pode um tribunal afastar ou confirmar uma decisão anterior; mais: apenas em sede de recurso extraordinário (cf. artigos 627.º, n.º 2, segunda parte, e 696.º, por ex.) pode ser afastada ou confirmada uma decisão já transitada em julgado.”

Ocorrendo casos julgados contraditórios – op. cit. pp. 15/16 – há que atender à “regra cardinal enunciada no artigo 625.º, n.º 1, sobre casos julgados contraditórios, nos seguintes termos:

– se a segunda decisão for contraditória com a primeira decisão, ou seja, se decretar efeitos jurídicos incompatíveis com os efeitos decretados pela primeira decisão, “cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar”, o que, obviamente, implica que a segunda decisão é inutilizada ou ineficaz e, não, nula; a respetiva ineficácia será declarada na respetiva instância;

– se a segunda decisão for conforme (repetir) com a primeira decisão, ou seja, se decretar os mesmos efeitos jurídicos decretados com a primeira, a melhor solução é entender que deve ser cumprida a segunda a decisão, inutilizando-se a mais antiga, ela, sim, ineficaz a partir da segunda decisão em diante.”.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-09-2023, Proc. n.º 2551/18.1T8VCT.3.G1, que acompanhamos: “O caso julgado é um instituto com raízes no direito fundamental, constitucional, intimamente ligado ao princípio do Estado de Direito Democrático, por ser uma garantia basilar dos cidadãos onde deve imperar a segurança e a certeza; é hoje um valor máximo de justiça, aliado ao princípio da separação de poderes”.[2]

“O fundamento do caso julgado reside, por um lado, no prestígio dos tribunais, o qual “seria comprometido em alto grau se a mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente” e, por outro lado, numa razão de certeza ou segurança jurídica, pois “sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa. (…) Seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu”.

“(…) Do caso julgado decorrem dois efeitos essenciais (distintos, mas provenientes da mesma realidade jurídica): um negativo (excepção dilatória de caso julgado), de impossibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida, isto é, impedindo que a causa seja novamente apreciada em juízo; e um positivo (força e autoridade de caso julgado), de vinculação do mesmo tribunal e, eventualmente de outros (estando em causa o caso julgado material), à decisão proferida [neste sentido, Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, págs. 92-93.].

  Logo (e face aos art.ºs 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, al. i), 580.º e 581.º, todos do CPC), a excepção dilatória de caso julgado pressupõe o confronto de duas acções (uma delas contendo uma decisão já transitada em julgado), e a tríplice identidade entre ambas de sujeitos, de causa de pedir e de pedido; e visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, por forma a evitar a repetição de causas.

Já a força e autoridade de caso julgado decorre de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão, e prende-se com a sua força vinculativa; e visa o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (podendo funcionar independentemente da tríplice identidade exigida pela excepção) (…)”.

Por sua vez, Lebre de Freitas – Um Polvo Chamado autoridade do Caso Julgado, “Revista da Ordem dos Advogados”, ano 79 n.ºs 3-4 (Jul.-Dez. 2019), p. 692 – considera: “Dentro do processo, a definitividade da decisão impede que nele ela seja contraditada ou repetida – trata-se dum efeito preclusivo intraprocessual. Fora do processo, produz-se um efeito preclusivo material: não só precludem todos os possíveis meios de defesa do réu vencido e todas as possíveis razões do autor que perde a ação, mas também, com maior amplitude, toda a indagação sobre a relação controvertida, delimitada pela pretensão substantivada (pedido fundado numa causa de pedir) deduzida em juízo.”.

Conforme se explica, de forma cristalina, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26-11-2024, Proc. n.º 835/22.3T8ANS-A.C1:

“«Em regra, o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da decisão; mais exatamente, os fundamentos não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial; não são vinculativos quando desligados da respetiva decisão. Mas valem (os fundamentos) enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 579/80).

Enfim, repetindo, os pressupostos da decisão (de facto e de direito) estão cobertos pelo caso julgado enquanto pressupostos da decisão – caso julgado relativo – ou seja, a força de caso julgado alarga-se aos pressupostos enquanto tais: o que está em causa no caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos; e só o raciocínio como um todo faz caso julgado.

Mas mais – e relacionado com esta ideia dos fundamentos, enquanto tal (ligados ao decidido), adquirirem valor de res judicata – o caso julgado também possui um valor enunciativo, ou seja, a eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada, ficando afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele efeito que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada.

Mais ainda, os fundamentos podem possuir um valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objeto decidido e um outro objeto; conexões que podem ser, designadamente, de prejudicialidade, o que significa, por ex., que, se numa compra e venda o comprador obtém a redução do preço atendendo aos defeitos da coisa, não pode questionar a validade do contrato em ação em que o vendedor requeira que ele lhe pague a quantia em dívida.

É ainda o que resulta do que é normalmente chamado de “efeito preclusivo”; que designa o efeito da sentença segundo o qual não se pode formular a mesma solicitação processual no futuro com base em factos não supervenientes ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância (art. 611.º/1 do CPC)”.

A questão que se debate aqui não se relaciona propriamente com a verificação da excepção de caso julgado relativamente aos factos provados e não provados, porquanto constitui entendimento praticamente unânime, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que os fundamentos de facto, por si só, não formam caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo – cf., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-11-2012, Pro. n.º 1360/20.2T8PNF.P1.S1.

Como ensinava Antunes Varela – Manual de Processo Civil, 1984, p. 697 – “os factos considerados provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”, posição que Miguel Teixeira de Sousa – Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 580 –, desenvolveu explicitando que “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”, porquanto “esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta”.

O mesmo autor, Miguel Teixeira de Sousa, mais recentemente, em anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-09-2024[3], após referir que “ao contrário da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado não pressupõe a tríplice identidade quanto às partes, ao pedido e à causa de pedir”, discorre: “O pedido e a causa de pedir da acção posterior não podem ser os mesmos da acção anterior, dado que isso originaria, em conjugação com a identidade de partes, a excepção de caso julgado; mas o objecto da acção posterior tem de ser coincidente, em parte, com o da acção anterior; a autoridade de caso julgado permite que, na segunda acção (acção dependente), se dê como assente o decidido na anterior acção (acção prejudicial) e nela se discutam apenas as consequências do decidido nesta acção”. Porém, adverte que “[d]eve evitar-se associar a autoridade de caso julgado a “matéria de facto dada como provada” numa acção; o caso julgado nunca se refere a factos adquiridos em processo (nomeadamente através de prova), mas, quando muito, a fundamentos de facto utilizados na sentença”.

Conforme se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-03-2010, Proc. n.º 690/09.9YFLSB: “A problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente”, desenvolvendo-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-10-2018, Proc. n.º 478/08.4TBASL.E1.S1, as seguintes conclusões:

“I. A autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

II. Embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

III. Assim, a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior no quadro da relação material controvertida aqui invocada.

IV. Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram.

V. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo.

VI. De resto, os factos dados como provados ou não provados no âmbito de determinada pretensão judicial não se assumem como uma verdade material absoluta, mas apenas com o sentido e alcance que têm nesse âmbito específico. Ademais, a consistência dos juízos de facto depende das contingências dos mecanismos da prova inerentes a cada processo a que respeitam, não sendo, por isso, tais juízos transponíveis, sem mais, para o âmbito de outra ação.”

Por fim, como sumariado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-05-2024, Proc. n.º 497/19.5BEPNF.P1.S1: “A autoridade de caso julgado, formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta a que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581º do Código de Processo Civil”.

Vista a doutrina e jurisprudência mencionadas e revertendo ao caso em tela é, pois, evidente que a decisão de facto tomada pela 1.ª instância no âmbito do processo sob recurso tem de atender e sopesar toda factualidade conexa e que foi já anteriormente debatida no âmbito do Proc. n.º 1153/18.... não a podendo omitir, nem, muito menos, contraditar.

Como a recorrente bem enfatiza na sua impugnação de facto, existe diversa factualidade relevante a considerar, que emerge daquele processo já findo e transitado, que foi escamoteada na decisão de facto deste processo e que assume pertinência para a decisão da causa.

O n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil prescreve que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.

O n.º 2, alínea c), do mesmo normativo, por seu turno, preceitua que “[a] Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.”.

            Por fim, o n.º 3, alínea c), do citado art. 662.º estabelece que “[n]as situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma: (…) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições.”.

Trata-se, pois, de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que o tribunal de recurso se confronte com uma omissão objectiva de factos relevantes, devendo a anulação da decisão da 1ª instância apenas ser decretada se não constarem do processo todos os elementos probatórios relevantes, pois, caso contrário, se esses elementos estiverem acessíveis, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que considerar oportunas – em sentido análogo, cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 5.ª edição, pp. 307/308.

No caso em apreço, como se registou, não foram avaliadas pelo tribunal a quo diversas questões de facto suscitadas pela recorrente, nem foi considerada a decisão vertida na sentença do Proc. n.º 1153/18...., sendo certo que esta Relação não possui, nesta apelação, todos os elementos de prova necessários a proferir, de imediato, uma decisão conscienciosa sobre as questões indicadas, atendendo, até, à extensão da factualidade analisada pelo tribunal a quo, devendo essa tarefa, pelos motivos expostos, ser relegada à primeira instância.

Está em causa, concretamente, apurar se, como alega a recorrente, os 11 factos seguidamente enumerados resultam provados em virtude da factualidade já apurada naquela outra acção:

1-A autora forneceu o primeiro lote de peças em Março de 2016;

2-Foi feita uma segunda produção em Junho de 2017 e as peças entregues à ré;

3-A fixação dos prazos referidos no ponto 9 dos factos provados era essencial para a ré, que precisava apresentar o produto nos EUA em fevereiro de 2016 e iniciar as vendas online em Março de 2016;

4-Pese embora a autora nunca haja formalizado a assinatura do contrato, as partes obtiveram consenso sobre uma minuta do contrato.

5- As primeiras amostras das peças plásticas, previstas para 30 de novembro de 2015, foram entregues parcialmente no final de Março 2016.

6- As amostras entregues apresentavam os seguintes aspetos:

a. Fechos das caixas não uniformes e deformados;

b. Manchas nas caixas;

c. TPE borrado na zona dos pogopins e dentro das gotas desenhadas no botão;

d. Chupões no botão;

e. Manchas com círculos e canais das gotas na parte rígida;

f. As peças não encaixavam

g. Não vedavam completamente;

7-As peças com os “defeitos” provados eram inutilizáveis;

8-Tendo em conta os “defeitos” e as peças formarem um conjunto, resultou o total de 100% de rejeição de peças.

9- Os “defeitos” provados foram reconhecidos pela autora.

10-A ré não conseguiu apresentar um produto perfeito perante a Portugal Ventures e no programa “HAX” nos EUA.

11-A ré não conseguiu vender na “Amazon”, “Target” e sua loja online.

Em consonância, impõe-se a anulação parcial do julgamento e a devolução dos autos à primeira instância, para que, ponderando a factualidade já antes provada no âmbito do Proc. n.º 1153/18...., proceda à apreciação da sua pertinência, avaliando aquela matéria de facto, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições, tal qual impõe o art. 662.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil.  

Em consonância com o decidido, fica prejudicada a apreciação das demais questões recursivas alinhadas pela recorrente, ficando o pagamento das custas processuais a cargo da parte vencida a final.


*

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do CPC): (…).

Decisão:

De harmonia com o exposto, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, decide-se julgar o recurso procedente, anulando-se (parcialmente) a decisão recorrida e o julgamento em primeira instância, determinando-se a devolução dos autos ao tribunal a quo a fim de que este, atendendo à decisão exarada no âmbito do Proc. n.º 1153/18...., profira nova decisão de facto que contemple os factos alegados pela ré e eventualmente outros factos que se demonstrem relevantes para a decisão final que vier a ser proferida.

As custas processuais desta apelação recairão sobre a parte que ficar vencida a final.

Notifique.


Coimbra, 16 de Setembro de 2025


Luís Miguel Caldas

Hugo Meireles

Luís Manuel Carvalho Ricardo



[1] Juiz Desembargador relator: Luís Miguel Caldas /Juízes Desembargadores adjuntos: Dr. Hugo Meireles e Dr. Luís Manuel Carvalho Ricardo.
[2] Acessível em htttp://www.dgsi.pt, como os restantes que se mencionarem na presente decisão.
[3] https://blogippc.blogspot.com/search?q=CASO+julgado+e+factos