Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86559/20.5YIPRT.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: MEIO DE PROVA
DOCUMENTO
FATURA
INJUNÇÃO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Data do Acordão: 07/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – OLIVEIRA DO HOSPITAL – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 607.º, N.º 3 E 4 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
ARTIGOS 3º, N.º 1, 4º, 29º, N.º 1, ALÍNEA B) E 36º, DO CÓDIGO DO IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO, APROVADO PELO DL N.º 394-B/84, DE 26 DE DEZEMBRO, NA REDAÇÃO CONFERIDA PELA LEI N.º 83-C/2013, DE 31 DE DEZEMBRO
Sumário: 1. Os documentos não são factos, mas simples meios de prova dos factos alegados, pelo que, em cumprimento do disposto no art.º 607º, n.ºs 3, 1ª parte e 4, do CPC, deverá o juiz indicar os factos provados pelos documentos.

2. A faturação é, em regra, uma operação unilateral efetuada pelo vendedor ou prestador de bens e/ou serviços e não traduz, necessariamente, qualquer consenso ou acordo (do pretenso devedor) quanto ao seu teor.

3. O procedimento de injunção não é o adequado à exigência de crédito emergente de responsabilidade negocial/contratual.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Moreira do Carmo
              Luís Cravo
             

 *
             

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        

           I. Fernando A..., SROC, Lda., intentou contra B..., procedimento injuntivo, convertido em processo especial de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 6 071,04 (€ 4 920 + € 434,04 + € 615 + € 102 a título de serviços de revisão de contas prestados, juros de mora, outras quantias e taxa de justiça, respetivamente).

            Alegou, em síntese: celebrou com a Ré um contrato de prestação de serviços de revisão legal de contas, mediante o pagamento do preço de € 4 000 acrescido de IVA à taxa legal de 23 %, por cada exercício anual; no âmbito do contrato emitiu a fatura n.º 43/572 com data de vencimento no mesmo dia da emissão, 09.7.2019; a Ré não pagou, pelo que ao valor em dívida acresce a indemnização pelos custos suportados com a cobrança da dívida.

           A Ré opôs-se: invocou a preterição de tribunal arbitral voluntário; impugnou os factos alegados sobre a constituição do direito de crédito reclamado; concluiu que nada deve à requerente a título de Revisão Legal de Contas referente ao ano de 2019, uma vez que o serviço não foi prestado.

           Terminou pedindo: a) a sua absolvição da instância, pela dita preterição; b) ou, se assim não se entender, a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.

           Fixada a competência do Tribunal e realizada a audiência de julgamento, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, por sentença de 08.12.2024, julgou a ação  improcedente[1], absolvendo a Ré do pedido.

Dizendo-se inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Dando como reproduzidos os factos dados como provados sob os n.ºs 2, 4 e 5 da resposta à matéria de facto, do documento n.º 5 junto com o requerimento da A. de 08.4.2021 (onde invocou tal factualidade) resulta que:

             Após receber a fatura n.º 43/572, emitida pela Autora, a Ré - pela colaboradora AA - solicitou em 11-7-2019 / 11:57 à Autora que “Relativamente à fatura que me enviou, de forma a ser imputável aos projetos que temos a decorrer, será possível alterar o descritivo para: - "Serviços de ROC - 3i" ?”;

             Pela comunicação de 11-7-2019 / 13:52, a Ré solicitou então que tal fatura se mantivesse com o respetivo teor original, referindo expressamente aquela mesma colaboradora da Ré que “Boa tarde Dr.ª BB, … Deixe ficar assim”.

           2ª - No mesmo requerimento de 08.4.2021 a Autora veio requerer a final “a notificação da Ré para vir demonstrar aos autos se a fatura n.º 43/572, com data de 9-7-2019, emitida pela Autora, consta ou não da sua escrituração comercial.”.

           3ª - Em sequência, pelo seu requerimento de 27-02-2023 e respetivo documento comprovativo aí junto, a Ré veio referir expressamente que “… tendo sido notificada para vir informar e demonstrar o destino da fatura n.º 43/572, conforme constante do despacho de admissibilidade dos requerimentos de prova, vem, mui respeitosamente, dar indicação de que o documento encontra-se registado nas dívidas dos fornecedores da B..., tal como demonstrado pelo Extrato de Contra que ora se junta.”

           4ª - De onde DEVERÁ SER DADO COMO PROVADO e aditado à matéria de facto dada como provada que a Ré registou na sua contabilidade a fatura n.º 43/572, emitida pela Autora e aludida nos factos provados n.ºs 4 e 5, como dívida a fornecedores.

            5ª - Por via disso, da conjugação daquele documento n.º 5 junto pela Autora em 8-4-2021, daqueles informação e documento apresentados pela Ré em 27-02-2023, e do disposto no art.º 236º, n.º 1, do Código Civil (CC), afigura-se indiscutível que, o facto de a Ré ter registado, incluído e processado a fatura n.º 43/572 (aludida nos factos provados n.ºs 4 e 5) na sua contabilidade como dívida a fornecedores, o que fez para os decorrentes efeitos contabilísticos e fiscais, faz concluir que a Ré aceitou inequivocamente tal fatura.

            6ª - Por sua vez, a aceitação da fatura por parte da Ré implica o reconhecimento da sua dívida e o correspondente crédito da Autora, nos termos conjugados do art.º 75º da Lei Geral Tributária (que consagra uma presunção de verdade e de boa fé nas declarações apresentadas pelos contribuintes, ao estabelecer que: “Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.”) e art.ºs 236º, n.º 1, 376º, n.º 2, 358º, n.º 2 e 799º, do CC.

            7ª - Com o que deverá ser julgada procedente a ação e, por via disso, revogada a sentença recorrida.

           8ª - Mesmo que não venha a ser julgada procedente a supra requerida alteração à resposta dada à matéria de facto, os factos dados como provados na sentença e os constantes dos autos deverão reconduzir à procedência da ação.

           9ª - Com a fundamentação constante dos Pontos 1 a 5, a sentença conclui: “Logo, improcede in totum o pedido de condenação da Ré no pagamento da fatura emitida.

           10ª - Além da factualidade descrita em 1 a 9 dos factos provados, do documento 5 junto pela Autora com o seu requerimento de 8-4-2021 resulta expressamente o já indicado na conclusão 1ª, supra.

           11ª - Acresce que, pelo seu requerimento de 27-02-2023 e respetivo documento comprovativo aí junto, a Ré veio referir expressamente o mencionado na conclusão 3ª, supra.

           12ª - Da conjugação de tal matéria dada como provada e constante dos autos só pode resultar que as partes celebraram um contrato em que a Autora se comprometeu à “prestação de serviços de auditoria e revisão de contas, consultoria no âmbito das matérias contabilísticas, fiscais e de auditoria e outros serviços considerados de interesse público”, que só não foi cumprido por parte da Autora por culpa exclusiva da Ré.

            13ª - O que acarreta a responsabilidade da Ré por tal falta de cumprimento e de onde decorre a sua obrigação de pagar à Autora o respetivo valor contratado, de € 4 000, acrescida de IVA à taxa de 23 %, o que resulta dos termos conjugados dos art.ºs 227º, n.º 1, 342º, n.º 2, 406º, n.º 1, 762º, 798º, 799º e 817º, do CC.

            14ª - De onde deverá sempre concluir-se pela procedência da ação e a revogação da sentença recorrida.

            A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

           1) A A. tem como objeto social a prestação de serviços de auditoria e revisão de contas, consultoria no âmbito das matérias contabilísticas, fiscais e de auditoria e outros serviços considerados de interesse público.

           2) Em 11.6.2019 a A. e a Ré, identificados como «Segundo Outorgante» e «Primeiro Outorgante», respetivamente, celebraram um acordo por documento escrito designado de «Contrato de Prestação de Serviços de Revisão Legal das Contas» que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde consta, nomeadamente:[2]

            3) Para a execução do contrato a A. contratou CC, que era o ponto de contacto com a Ré.

           4) Em 09.7.2019, a A. emitiu a fatura n.º 43/572, com vencimento em igual data no âmbito do contrato celebrado em 2), com a descrição «Serviço de revisão oficial de contas referente ao ano de 2019» no valor de € 4 000, acrescida de IVA à taxa de 23 %.

           5) A fatura foi emitida antes da conclusão da prestação de serviços de auditoria e a pedido da Ré.

            6) Em data não concretamente apurada, mas em setembro/2019, a Ré remeteu mensagem de correio eletrónico a CC, onde consta:[3]

           7) Em 26.9.2019, CC enviou mensagem de correio eletrónico em resposta à mensagem 6):[4]

           8) A Ré não enviou à A. os balancetes finais de 2018 e o de abertura de 2019.

           9) Em 30.9.2020, a A. emitiu declaração de impossibilidade de certificação legal das contas e que aqui se reproduz:[5]

            10) Em 27.10.2020[6] a Ré foi citada para deduzir contestação na presente ação.

            2. E deu como não provado:

            a) A requerente procedeu à revisão legal de contas da requerida relativamente ao exercício de 2019.

            b) A A. teve como custos para cobrança da fatura o valor de € 500, acrescido de IVA à taxa legal.

            3. Cumpre apreciar e decidir.

           Sem quebra do respeito sempre devido por opinião em contrário, dir-se-á que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo não elaborou a sentença segundo o disposto, nomeadamente, no art.º 607º, n.ºs 3, 1ª parte [“Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados (...)”] e 4 [“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (...)”] do CPC.[7]

           Na verdade, os citados normativos sobre a elaboração da sentença não foram devidamente observados quanto à factualidade a que se alude em II. 1. 2), 6), 7) e 9), supra, sabendo-se que “os documentos não são factos, mas simples meios de prova dos factos alegados”, razão pela qual, na fixação da matéria de facto, sempre importará indicar, expressamente, os factos provados pelos documentos, não bastando “dar como reproduzidos” os documentos ou realizar uma simples “cópia e colagem” do seu teor.

            Ademais, se, eventualmente, a alegação dos factos tiver sido feita com remissão para os documentos, deverá o juiz selecionar os factos incluídos ou decorrentes de tais documentos que importem à decisão da causa, e, se assim não suceder, nada obstará a que, em sede de recurso, essa tarefa seja assumida pela Relação que também conhece da matéria de facto[8], explicitando ou concretizando o teor de tais documentos que releve para a dilucidação da lide e a decisão do recurso.[9]

            4. Em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a A./recorrente alude a parte do arrazoado do seu requerimento de 08.4.2021[10], às comunicações eletrónicas de 11.7.2019 (aparentemente, elaboradas pelas responsáveis da contabilidade de cada uma das empresas em causa), à posição manifestada pela Ré no requerimento de 27.02.2023 (“… tendo sido notificada para vir informar e demonstrar o destino da fatura nº 43/572, conforme constante do despacho de admissibilidade dos requerimentos de prova, vem, mui respeitosamente, dar indicação de que o documento encontra-se registado nas dívidas dos fornecedores da B..., tal como demonstrado pelo Extrato de Contra que ora se junta.”) e à junção, pela Ré, de um extrato de conta (revelando “saldo credor” relativo à A., no montante de € 4 920), concluindo, baseada apenas em tais elementos (sobretudo, de natureza contabilística), que deverá ser aditado à matéria de facto dada como provada que “a Ré registou na sua contabilidade a fatura n.º 43/572, emitida pela Autora e aludida nos factos provados n.ºs 4 e 5., como divida a fornecedores” (cf. “conclusão 4ª”, ponto I., supra).

            A Ré/recorrida opôs-se dizendo que nada mais deverá ser dado como provado [sendo suficiente o que consta dos pontos de facto 4) e 5)] e que o mencionado extrato de conta deriva da circunstância de a Ré ser “uma entidade para quem a contabilidade organizada é uma obrigatoriedade legal” (extrato emanado de um programa de contabilidade interno utilizado pela recorrida, por forma a serem lançadas as faturas emitidas pelos clientes e/ou fornecedores), sob pena de incorrer num ilícito fiscal, e sendo que, enquanto a A./recorrente não emitir a respetiva (e oportunamente pedida) “nota de crédito”, a recorrida é obrigada a manter a fatura no seu extrato de conta!

           Salvo o devido respeito por entendimento contrário, afigura-se que nada mais deverá ser dado como provado, pela simples razão de que as descritas (e efetivadas) operações contabilísticas não relevam para a questão a dilucidar, bem clara no plano fático (sem prejuízo do que, com base nos elementos disponíveis, se concretizará adiante).

           5. No tocante à fatura e sua relevância documental e/ou contabilística, dir-se-á, ainda, que é um mero documento particular com um escopo eminentemente contabilístico e fiscal (dada a obrigação que impende sobre os contribuintes de emitirem ou de exigirem recibos, faturas/recibo ou faturas), utilizado no exercício da atividade comercial e na prestação de serviços, no qual deverão ser discriminados os bens fornecidos/transmitidos e os serviços prestados, bem como o respetivo preço (cf. art.ºs 3º, n.º 1; 4º; 29º, n.º 1, alínea b) e 36º, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo DL n.º 394-B/84, de 26.12, na redação conferida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31.12)[11], sendo que, no domínio probatório, não é sequer indispensável à validade ou prova das respetivas transações (maxime, do objeto e execução de determinado contrato), matéria sujeita ao princípio da liberdade de prova e da prudente convicção do julgador, previsto no art.º 607º, n.º 5 do CPC.[12]

           Ademais, a faturação é, em regra, uma operação unilateral efetuada pelo vendedor ou prestador dos bens e/ou serviços (faturados) e não traduz, necessariamente, qualquer consenso ou acordo (do pretenso devedor) quanto ao que nela se faz constar; não significa qualquer acordo ou aceitação da obrigação de pagamento do preço a que respeita[13], ainda que, numa economia escorreita e amiga da boa fé contratual, possa/deva traduzir a realidade da execução e liquidação dos deveres contratuais.

            6. Decorre ainda dos autos:[14]

           a) Na sequência da comunicação eletrónica do legal representante da Ré, dita em II. 6)[15], a A. respondeu: “(...) / Confirmo a receção do seu e-mail, e manifestamos o nosso agradecimento pela atenção tida connosco. Contactá-lo-ão oportunamente para diligenciar a cessação das nossas funções, bem como para efeitos de acerto de contas, uma vez que se procedeu a duas certificações, bem como o planeamento dos trabalhos inclusive uma visita a ... - .... (...)”

           b) Fez-se constar do requerimento injuntivo (entregue a 10.10.2020), nomeadamente:

           - Que se tratava de “obrigação emergente de transação comercial” (DL n.º 62/2013, de 10.5);

            - Requerente e requerida celebraram um contrato de prestação de serviços, pelo qual a requerente se obrigou a proceder à revisão legal das contas da requerida, mediante o preço de € 4 000 (acrescido de IVA), por cada exercício anual;

           - A requerente procedeu à revisão legal de contas da requerida relativamente ao exercício de 2019 (período de 01.01.2019 a 31.12.2019), tendo emitido a fatura n.º 43/572, com data de 09.7.2019 e vencimento na mesma data, que a requerida não pagou.

           7. O Mm.º Juiz do Tribunal a quo apresentou a seguinte fundamentação de mérito:

            - Foi celebrado contrato de prestação de serviços/contrato de revisão de contas (art.º 1154º do CC e, nomeadamente, art.ºs 41º, 53º e 54º da Lei n.º 140/2015, de 07.9/EROC[16]).

            - Considerada a factualidade descrita em II. 1. 7) a 9), supra, e o regime jurídico dos art.ºs 49º e 54º do EROC, não existiu consenso quanto à cessação do contrato por revogação.

            - Não obstante e após a comunicação da falta de interesse da Ré no cumprimento do contrato, a A. limitou-se a cumprir a formalidade legal exigida sabendo de antemão que desde setembro/2019 não estava em condições de realizar a sua função - há muito que a A. sabia que não iria realizar a sua prestação e com tal situação se conformou, sendo que deveria ter reagido perante a falta de cooperação da Ré (ao não enviar os documentos e demais elementos solicitados e necessários à atividade de revisão de contas).

            - A A. não realizou a sua prestação por causas imputáveis à Ré, nunca tendo estado em condições de o fazer; tratando-se de um contrato bilateral, porque não realizou, ainda que sem culpa, a sua prestação, não tem o direito a exigir os honorários acordados.

            - A inamovibilidade das funções de revisor oficial de conta (art.º 54º do EROC) protege a posição da A. no exercício dos seus deveres, não lhe confere o direito a exigir os honorários se não realizou a prestação que lhe cabia. O valor peticionado corresponde a um contrato de revisão oficial de contas que não foi executado.

            - Se é certo que a A. nunca se eximiu à sua responsabilidade no cumprimento da obrigação assumida, nada fez perante a comunicação aludia em II. 1. 6), supra, e, mais importante, perante a omissão do envio de documentos necessários à revisão de contas, nunca suscitou a situação de mora do credor (art.º 813º, do CC), nem na presente ação.

           - Tratando-se de um contrato bilateral, o direito à contraprestação (honorários) reclamado pela A. apenas poderá ser exigido após realizada a obrigação que sobre si recaía (revisão de contas da Ré).

           - Perante a causa de pedir alegada e respetivo pedido, encontrando-se o Tribunal limitado pelo objeto admissível à ação especial de cumprimento de obrigações contratuais – não pode ser apreciada a responsabilidade contratual por mora do credor, por não ser admitido nesta ação –, conclui-se que não estando provada a realização da prestação a cargo da A., não se constituiu a seu favor o direito aos honorários, a título de contraprestação, improcedendo in totum o pedido de condenação da Ré no pagamento da fatura emitida.

           8. A A./recorrente não questiona que o valor faturado deveria corresponder à remuneração dos serviços prestados - cf. II. 1. 2), supra.

            E sabe que, em circunstâncias não inteiramente apuradas (e não compreendidas no objeto da ação), não procedeu à revisão legal de contas da Ré relativamente ao exercício de 2019 (período de 01.01.2019 a 31.12.2019), admitindo, inclusive, a cessação ou o malogro da relação contratual das partes e a inerente ou sequente «liquidação»[17] - cf., nomeadamente, II. 1. 6) e 9) (e respetivas “notas”) e 6. a) e b), supra.

            O que se apurou no domínio contabilístico e formal não encontra, pois, a necessária e adequada tradução (material) na relação jurídica e patrimonial das partes.

            9. Por conseguinte, resta apurar a (eventual) responsabilidade obrigacional/contratual, em ação própria[18], alegando e demonstrando os correspondentes elementos/requisitos[19] - obviamente, no pressuposto de que se revelará impossível alcançar uma (desejável) solução consensual/extrajudicial.

            Assim, a Ré será absolvida da instância.      

           10. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.         


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, absolvendo-se a Ré da instância.          

            Custas pela A./apelante.


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08.7.2025



[1] Retificado lapso manifesto de escrita (no segmento injuntivo), assim também considerado pelas partes em sede de recurso.
[2] Reproduziu-se, por simples cópia e colagem, o exórdio do referido contrato e o texto integral das cláusulas 1ª (“Âmbito”), 2ª (“Vigência”), 3ª (“Efetividade de funções”), 4ª (“Responsabilidade do Primeiro Outorgante”) e 9ª (“Honorários”), resultando da conjugação das duas primeiras o período de 1 (um) exercício” como sendo o período inicial do contrato; cabia à Ré, além do mais, “permitir ao Segundo Outorgante acesso a toda a informação produzida ou de que tem conhecimento, incluindo registos, documentos, ficheiros e outra informação (manual ou eletrónica), e a todas as pessoas da entidade das quais considera útil e necessário obter prova da auditoria” (cláusula 4ª); a título de honorários, para remunerar os serviços prestados, ficou acordada a quantia de € 4 000 como “avença anual correspondente ao período de um exercício”.

[3] Reproduziu-se, por simples cópia e colagem, o seguinte texto (que consta do doc. de fls. 10):            

   “No seguimento do já referido via telefone, com a desistência não programada do TOC [Técnico Oficial de Contas - agora denominado “Contabilista Certificado”] Dr. DD, da empresa C... Lda., e com a necessidade muito urgente de conseguir arranjar uma solução, foi necessário da parte da B... encontrar com muita brevidade um TOC, pois não poderia ficar sem TOC.

   Nesse âmbito, e como referi em conversa telefónica, a B... já tem um novo TOC. Em reunião tida hoje com o novo TOC e após breve análise da contabilidade de este ano, que já estava a ser acompanhada pelo Dr. DD, informo que o novo TOC referiu que não existem condições para conseguir para o ano 2019, fazer a revisão de toda a contabilidade até à data, porque existem situações que não concorda, e fechar depois o ano para o contexto de revisão de contas para ser certificado por um ROC.

   Assim, devido às alterações de última hora originadas pela renúncia não programada do TOC, não existem condições para se avançar com os serviços de ROC que tínhamos convosco. (sublinhado nosso)

   Assim, perguntava qual o procedimento que sugerem para se encerrar o presente processo.”
[4] Reproduziu-se, por simples cópia e colagem, o texto da A. que consta do doc. de fls. 9 verso/comunicação eletrónica de 26.9.2019, onde se refere, designadamente: “(...) A atividade de Revisão Oficial de Contas, implica que o contrato outorgado seja comunicado à Ordem dos Revisores, pelo que para fazer cessar esse contrato terá que remeter à A... uma carta onde apresentará as razões fundamentadas para provocar a cessação imediata. A alternativa passa por manter os serviços para 2019, e rescindir o contrato para 2020, neste cenário teríamos que emitir certificação ainda que com reservas por limitação de âmbito no caso não podermos realizar o nosso trabalho. (sublinhado nosso) / A vosso pedido foi emitida a fatura da prestação dos serviços para todo o ano (idem). / Estamos ao dispor para qualquer esclarecimento adicional inclusive para agendarmos reunião seja em ... ou aí na B.... (...)”            

[5] Com o seguinte teor (cf. doc. de fls. 33): “Não pudemos examinar as demonstrações financeiras de B..., do exercício findo em 31 de dezembro de 2019 em conformidade com as Normas Internacionais de Auditoria (ISA) e demais normas e orientações técnicas e éticas da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, por não ter sido facultado o acesso aos documentos de suporte do encerramento das contas e não terem sido disponibilizados os documentos da prestação de contas, designadamente demonstrações financeiras à data de 31.12.2019, aprovadas pelo órgão de gestão. / Nestas condições não podemos emitir a Certificação Legal das Contas referentes ao período findo em 31 de dezembro de 2019.” (sublinhado nosso)
[6] Retificou-se lapso manifesto.
[7] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[8] Vide, entre outros, A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Volume II, 4ª edição, Almedina, 2004, pág. 149 e “nota 242” e os acórdãos da RC de 21.9.1993, in CJ, XVIII, 4, 37 e do STJ de 01.02.1995 e 22.4.1997, in CJ-STJ, III, 1, 264 e V, 2, 60, respetivamente.
   Cf., ainda, o acórdão do STJ de 07.11.2019-processo 6414/16.7T8VIS.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[9] Como consta das “notas 2, 3, 4 e 5”, supra.

[10] Assim: «8º A Ré não recusou e não devolveu tal fatura, que incluiu e processou na sua contabilidade. / 9º Após receber a fatura, a Ré - pela colaboradora AA - solicitou em 11-07-2019 /11:57 á Autora que “Relativamente à fatura que me enviou, de forma a ser imputável aos projetos que temos a decorrer, será possível alterar o descritivo para: - "Serviços de ROC - 3i" ?” – cf. doc. 5. / 10º Acedendo posteriormente, em 11-7-2019 / 13:52, em que tal fatura se mantivesse com o respetivo teor original, referindo expressamente aquela mesma colaboradora da Ré que “Boa tarde Dra BB, … Deixe ficar assim” - doc. 5.” / Ainda no mesmo requerimento de 8-04-2021 a Autora veio requerer a final “a notificação da Ré para vir demonstrar aos autos se a fatura nº 43/572, com data de 9-7-2019, emitida pela Autora, consta ou não da sua escrituração comercial

[11] Segundo o art.º 2º do DL n.º 28/2019, de 15.02 (que regulamenta as obrigações relativas ao processamento de faturas e outros documentos fiscalmente relevantes, bem como de conservação de livros, registos e respetivos documentos de suporte, que recaem sobre os sujeitos passivos de imposto sobre o valor acrescentado/IVA; na redação introduzida pelo DL n.º 48/2020, de 03.8), a «fatura» é “o documento em papel ou em formato eletrónico que: i) Contenha os elementos referidos nos artigos 36º ou 40º do Código do IVA, incluindo a fatura, a fatura simplificada e a fatura-recibo; ii) Constitua um documento retificativo de fatura nos termos legais”.
[12] Cf., entre outros, acórdão do STJ de 22.10.2008-processo 07S3787, publicado no “site” da dgsi.

[13] Cf., por exemplo, acórdão da RC de 14.6.2022-processo 48849/20.0YIPRT.C1 [com o sumário: «(...) II. A faturação é, em regra, uma operação unilateral efetuada pelo vendedor dos bens faturados, que não traduz qualquer consenso ou acordo por parte da pessoa em nome de quem os bens são faturados.”], publicado no “site” da dgsi.
[14] Cf. documentos de fls. 2 e 10.
[15] Cf. “nota 3”, supra.

[16] Aprovou o novo Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, em conformidade com a Lei n.º 2/2013, de 10.01, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, transpondo parcialmente a Diretiva 2014/56/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.4.2014, que altera a Diretiva 2006/43/CE relativa à revisão legal das contas anuais e consolidadas, e assegurando parcialmente a execução, na ordem jurídica interna, do Regulamento (UE) n.º 537/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.4.2014, relativo aos requisitos específicos para a revisão legal de contas das entidades de interesse público e que revoga a Decisão 2005/909/CE da Comissão.

[17] Podendo-se definir «liquidação» “em oposição a cumprimento, como o conjunto e a articulação de todos e cada um dos meios necessários e possíveis para a equilibrada composição entre os interesses das partes de um contrato cujo programa de execução foi por qualquer modo malogrado” - vide J. Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I., Scientia Iuridica, Braga, 1991/ “A resolução por incumprimento e a indemnização”, págs. 210 e seguinte (citando-se, a propósito da referida definição, em nota, Hans Georg Leser, Der Rücktritt vom Vertrag., Tübingen, 1975, pág. 101).

[18] Cf., de entre vários, acórdãos da RP de 15.01.2019-processo 141613/14.0YIPRT.P1 [concluindo-se: «I - Só pode ser objeto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contrato, mas já não podem ser peticionadas naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. II - A cláusula penal, mesmo que se traduza numa quantia pecuniária desde logo fixada contratualmente, está excluída do âmbito da injunção por não se tratar de uma obrigação pecuniária em sentido estrito. III - Quando o autor/requerente use de forma indevida ou inadequada o procedimento de injunção verifica-se uma exceção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância. IV - Tal exceção dilatória inominada, afetando o conhecimento e o prosseguimento da ação especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização, não permite qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento.»] e 14.9.2023-processo 109743/21.8YIPRT.P1 e RC de 14.3.2023-processo 14529/22.6YIPRT.C1, publicados no “site” da dgsi.
[19] Vide, nomeadamente, I. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, 1986, págs. 299 e seguintes.