Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1914/24.8T8FIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR DE SUSPENSÃO DE DESPEDIMENTO
CONTRATO DE TRABALHO COM UNIDADE LOCAL DE SAÚDE
EPE
EXIGÊNCIA DE PROCEDIMENTO CONCURSAL
NULIDADE DO CONTRATO
INVIABILIDADE DA SUSPENSÃO DO DESPEDIMENTO
Data do Acordão: 05/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 98.º E 99.º DO DLEI N.º 52/2022, DE 04/08, 280.º, N.º 1, 286.º DO CÓDIGO CIVIL, 47.º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO, 122.º, N.º 1, E 123.º, N.º 1, DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I – A celebração de contratos de trabalho com Unidades Locais de Saúde EPEs exige que essa contratação seja precedida de procedimento concursal.

II – A omissão deste procedimento acarreta a nulidade do contrato de trabalho que deve ser declarada mesmo oficiosamente.

III – A declaração de nulidade inviabiliza ou impede que, no caso de cessação do contrato de trabalho por despedimento ilícito, a reintegração do trabalhador, sem prejuízo do regime previstos nos artºs 122º e 123º do CT.

IV – Sendo impossível a reintegração do trabalhador deve ser julgada improcedente a providência cautelar na qual de pede a suspensão do despedimento.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O MINISTÉRIO PÚBLICO veio instaurar procedimento cautelar de suspensão do despedimento subsequente a auto de inspeção previsto no art.º15.º- A da Lei n.º107/2009, de 14 de setembro, com processo especial, e artºs 5.º-A, al. c), 33.º-A , 40.º-A, 186º - S do Código de Processo de Trabalho, contra A..., EPE, com sede e local de trabalho em ..., ... ..., exercendo a atividade de Atividades dos estabelecimentos de saúde com internamento - CAE 86100, com o endereço eletrónico ..........@......

Pede que seja determinada a suspensão do despedimento subsequente a auto de inspeção previsto no art.º15.º-A da Lei n.º107/2009, de 14 de setembro por parte da Ré, à prestadora da atividade - AA, com residência em Rua ..., ....

Alega, em síntese, que entre a requerida e a prestadora da atividade acima identificada, pelas características em que tal atividade era desenvolvida, existia um contrato de trabalho e não de prestação de serviços, pelo que a cessação desse contrato consubstancia um despedimento ilícito.


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Designada data para a audiência final, a requerida deduziu oposição alegando que se lhe encontra vedada a contratação de recursos humanos sem a devida autorização para o efeito e que o estabelecimento de todos e quaisquer vínculos com o setor público são necessariamente precedidos de respetivo procedimento concursal público.

Mais alega que no âmbito da reorganização do Serviço Nacional de Saúde e com a extinção das Administrações Regionais de Saúde (ARS) foi autorizada pela Requerida a celebração de um contrato de prestação de serviços com AA, concluindo pela inexistência de contrato de trabalho entre a A... e a referida prestadora de atividade e pugnando pelo indeferimento da providência cautelar.


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Realizou-se a audiência de julgamento tendo, a final, sido proferida sentença em cuja parte dispositiva se lê:

“Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente procedimento cautelar de suspensão do despedimento e, em conformidade, absolver a requerida do pedido”.


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II - É desta decisão que o requerente, inconformado, vem agora apelar, apresentando nas correspondentes alegações, as seguintes conclusões:

(…).


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Não consta ter sido apresentada resposta.

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III. O tribunal “a quo” deu como indiciariamente provada a seguinte matéria:

1º A requerida é uma entidade pública empresarial.

2.º Tem por objeto principal de atividade a prestação de cuidados de saúde à população, designadamente aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde e aos beneficiários dos subsistemas de saúde, ou de entidades externas que com ele contratualizem a prestação de cuidados de saúde, e a todos os cidadãos em geral; e também desenvolver atividades de investigação, formação e ensino, sendo a sua participação na formação de profissionais de saúde dependente da respetiva capacidade formativa, podendo ser objeto de contratos-programa em que se definam as respetivas formas de financiamento- CAE 86100.

3º No dia 25/11/2024, foi realizada visita inspetivo pela ACT à A..., com sede e local de trabalho em ..., ....

4.º Verificou-se, então, que a trabalhadora AA se encontrava no balcão único da área de gestão de doentes para marcação de primeiras consultas, estava a proceder à desmarcação das consultas no sonho (software) onde entrou com as suas credenciais de acesso, no local pertencente ao beneficiário da atividade e por ele determinado;

5.º Utilizava os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes ao beneficiário da atividade, nomeadamente, bata branca com logotipo bordado do beneficiário da atividade, com lista vermelha.

6.º Utilizava secretária, cadeira, computador, telefone, carimbo, impressora, faz registo mecanográfico utilizando o equipamento para o efeito, utiliza softwares sonho e bymee, tudo pertencente ao beneficiário da atividade.

7.º Mostrou como acede no computador através de credenciais de acesso fornecidas pelo beneficiário da atividade, tem endereço de email ..........@....., com nome de utilizador fu...09;

8.º Observa horas de início e termo da prestação determinadas pelo beneficiário da atividade, da seguinte forma: de segunda a sexta das 9h00 às 17h00, com intervalo entre as 13h e 14h, regista os seus tempos de trabalho no equipamento disponibilizado pelo beneficiário da atividade e acede aos mesmos pelo computador através do software de gestão de horários.

9.º Por vezes, trabalha aos sábados e como contrapartida por tal prestação era paga pelo mesmo valor/hora; recebe uma quantia certa de 6,40€/hora, com pagamento mensal, passando recibo eletrónico.

10º Para a prestação da atividade a que se vinculou era efetivamente necessário que tivesse acesso aos sistemas de informação em uso pela Requerida, lhe fosse atribuído um número mecanográfico e se encontrasse devidamente identificada através de cartão de uso obrigatório, utilizado aliás por todos os colaboradores no âmbito do seu exercício funcional.

11º A contrapartida financeira auferida por AA correspondia às horas trabalhadas, pelo que as suas ausências, independentemente do seu motivo, não lhe conferiam direito a qualquer remuneração,

12º Também não usufruía de qualquer subsídio de natal ou de férias.

13º Recebeu formação da(s) plataforma(s) utilizada e estava sujeita a orientações dadas por outros profissionais e/ou coordenadores.

14.º De 11 de setembro de 2019 a 10 de setembro de 2020 exerceu funções administrativas no Serviço de gestão de Doentes, no âmbito da medida Contrato Emprego Inserção do IEFP.

15.º De 11 de setembro a 12 de novembro de 2020 exerceu funções administrativas no Serviço de Gestão de Doentes, no âmbito da Medida de Apoio ao Reforço de Emergência de Equipamentos Socias e de Saúde (MAREESS) do IEFP.

16.º A 21 de janeiro de 2021 celebra novo contrato ao abrigo do projeto MAREESS do IEFP, prestando funções administrativas no Serviço de Gestão de Doentes, contrato que cessou a 30 de setembro de 2021.

17.º A 21 de outubro de 2021 a 20 de outubro de 2022, exerceu funções administrativas no Serviço de Gestão de Doentes, no âmbito de uma nova Medida Contrato de Emprego Inserção do IEFP.

18.º No total, perfez o tempo de serviço no âmbito das Medidas Contrato de Emprego Inserção (IEFP) e MAREESS, de 02 anos, 10 meses e 17 dias.

19.º Após essa data, e desde 21 de outubro de 2022, em regime de prestação de serviços.

20.º Em 31.12.2024, a requerida informou a prestadora da atividade que não deveria apresentar-se ao trabalho porque não podia ser renovada a prestação de serviços.

21º A trabalhadora teve conhecimento da intenção da A... da renovação do contrato de prestação de serviços até ao dia 31 de dezembro de 2024, uma vez que tal lhe foi comunicado a 27 de junho de 2024.

22.º Na sequência da ação inspetiva, a Ré foi notificada em 25/11/2024, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15.º-A, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14/09.

23.º Em 16/12/2024 foi instaurada a Ação de Reconhecimento do Contrato de Trabalho entre a Ré e a Prestadora da Atividade, neste Juízo (ação n.º1914/24....).

24.º No início do transato ano, ocorreu a integração do Hospital Distrital da ..., EPE com as Unidades de prestação de cuidados de saúde primários da sua área de influência, tendo sido constituída a atual A....

25º No âmbito da reorganização do Serviço Nacional de Saúde, e com a extinção das Administrações Regionais de Saúde (ARS) - com um número de quase mil trabalhadores - previa-se a alocação de profissionais experienciados às Unidades Locais de Saúde (ULSs) que, por sua vez, assumiram muitas das atribuições das ARS.

26º Contudo, tal não sucedeu, tendo aliás sido publicamente comunicado que apenas 5% dos funcionários - pouco mais de meia centena a nível nacional – passaram a exercer funções nas novas estruturas (ULSs), um número muito aquém das necessidades dos Serviços.

27º Uma vez que as ULSs não receberam o necessário e suficiente reforço de recursos humanos, a aqui Requerida continua a deparar-se com constrangimentos para assegurar as novas competências atribuídas, quer pela constituição em ULS, quer na sequência da extinção das ARS.

28º Pelos motivos supra referidos, foi autorizada pela Requerida, a celebração de um contrato de prestação de serviços com AA, tendo subjacente a disponibilidade e interesse desta, o que veio a concretizar-se com início a 21.10.2022.

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Factos Não Provados

Não se provaram os seguintes factos:

Do requerimento inicial:

- O mais alegado em 5º (…indicando que é assistente técnica).

Inexistem outros factos articulados pelas partes suscetíveis de inclusão entre os factos provados e não provados, quer por encerrarem matéria conclusiva e/ou de direito quer por traduzirem mera impugnação da matéria alegada na petição inicial ou instrumental para a apreciação da causa.


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III - As conclusões da alegação da recorrente delimitam o objeto do recurso, não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Assim a questão que importa dilucidar e resolver, reside em saber se deve ser ordenada a suspensão do despedimento.

A 1ª instância concluiu pela existência de um contrato de trabalho com início em 21 de outubro de 2022 e pela verificação de um despedimento ilícito porquanto, no seu entendimento, resulta demonstrado que a prestadora da atividade foi informada que as suas funções terminavam em 31/12/2024, ou seja, sem precedência de qualquer processo disciplinar ou extinção do posto de trabalho.

Esta parte da decisão não foi impugnada pelo que se tem como assente ter a prestadora da atividade sido despedida ilicitamente.

A consequência natural da ilicitude do despedimento é a reintegração do trabalhador despedido.

No caso, o tribunal a quo entendeu que a reintegração se mostra inviável em virtude do contrato, que reconheceu como de trabalho subordinado, ser nulo por ausência de procedimento concursal.

Decidindo.

Como se dá conta na decisão impugnada, a requerida é uma entidade pública empresarial inserida no setor empresarial do Estado - Decreto-Lei n.º 52/2022, de 04 de agosto e Decreto-Lei n.º 102/2023, de 07 de novembro.

A jurisprudência encontra-se consolidada no sentido de que o estabelecimento de todos e quaisquer vínculos com o setor público devem necessariamente ser precedidos de respetivo procedimento concursal (cfr artigo 47.º, n.º 2, da CRP, de acordo com o qual “todos os cidadãos têm acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade em regra por via de concurso”).

Como também se refere na decisão impugnada “a contratação por contrato individual de trabalho, os processos de recrutamento devem assegurar os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade e da publicidade, sendo que a mesma exigência resultava, ainda, do disposto nos artigos 27.º e 28.º do Decreto-lei n.º 18/2017, que veio regular o regime jurídico e os estatutos aplicáveis às unidades de saúde do Serviço Nacional de Saúde com a natureza de entidades públicas empresariais, diploma em vigor aquando da contratação do Autor.

Estas exigências foram reafirmadas nos artºs 98º e 99º do DL 52/2022 de 04/08, em vigor à data da celebração do contrato de prestação de serviços pelo que o processo de recrutamento deve observar os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa-fé e da não discriminação, bem como da publicidade (...)”

No caso, a contratação da autora não foi precedida de procedimento concursal pelo que “nos termos do artigo 280.º n.º 1 do Código Civil não nos merece dúvida que, tratando-se de normas imperativas, a violação das normas que obrigam ao referido prévio procedimento de concurso gera a nulidade do contrato que tenha sido celebrado sem ele e com o fim de assegurar a observância dos princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade e da publicidade”.

A nulidade é de conhecimento oficioso (artº 286º do C).

E, justamente por isso, não perfilhamos o entendimento que fez vencimento no Ac da RL de 07/02/2024, P.6330/23.6T8LSB.L1-4 in www.dgsi.pt/jtrl[1], segundo o qual na ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho são inatendíveis questões que digam respeito, por exemplo, à validade ou invalidade do contrato.

Sendo declarada a nulidade do contrato é de concluir que, como efeito do despedimento ilícito, não é já possível a reintegração da trabalhadora, sem prejuízo do regime consignado dos arts. 122.º n.º 1 e 123.º n.º 1 do CT segundo os quais o “contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz efeitos como se fosse válido em relação ao tempo em que seja executado” e que o “facto extintivo ocorrido antes da declaração de nulidade ou anulação do contrato de trabalho aplicam-se as normas sobre cessação do contrato” – Ac. desta Relação de 27.01.2023, P 1594/21.2T8GRD.C1 in www.dgsi.pt/jtrc.

Consequentemente, somos a concluir, tal como concluiu a 1ªinstância, de que não sendo viável a reintegração da prestadora da atividade, por virtude da nulidade do vínculo, a presente providência cautelar tem necessariamente de improceder.


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IV- Termos em que se delibera julgar a apelação totalmente improcedente com a consequente manutenção da decisão impugnada.

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Sem custas por delas o recorrente estar isento.

+

Sumário[2]:

(…).


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Coimbra, 16 de maio de 2025

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(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Mário Sérgio Ferreira Rodrigues da Silva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)



[1] Com voto de vencida da Des. Francisca Mendes do seguinte teor” porque considero que a nulidade do contrato (do conhecimento oficioso) deve ser declarada nestes autos, cabendo em ação própria a apreciação dos efeitos próprios de tal declaração de nulidade (art. 122º do CT).
[2] Da responsabilidade do relator.