Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1217/13.3TXLSB-AA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
ADAPTAÇÃO À LIBERDADE CONDICIONAL
MOMENTOS TEMPORAIS PARA A APRECIAÇÃO DA LIBERDADE CONDICIONAL E PARA A APRECIAÇÃO DA ADAPTAÇÃO À LIBERDADE CONDICIONAL
Data do Acordão: 10/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 62.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - A liberdade condicional e a adaptação à liberdade condicional, apesar de terem regimes praticamente paralelos, são institutos distintos, constituindo ambos incidentes da fase da execução da pena de prisão.

II - A liberdade condicional é uma modificação da situação e do modo de cumprimento da pena de prisão, com a passagem ao estado de liberdade com sujeição a deveres que não afectam a dimensão física e deambulatória, e a adaptação à liberdade condicional é uma antecipação da liberdade condicional, com privação ou substancial limitação da liberdade física, com permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, para ajustamento gradual à liberdade.

III - A adaptação à liberdade condicional implica, necessariamente, a verificação de pressupostos formais e materiais, alguns deles comuns à liberdade condicional, mas verificados em momento igual ou inferior a um ano antes da data prevista para esta, pois o propósito do legislador foi antecipar os momentos normais de apreciação da liberdade condicional.

IV - O pedido de adaptação à liberdade condicional só pode ser formulado em três momentos da execução da pena de prisão, ou seja antes do meio da pena, dos dois terços da pena ou dos cinco sextos e só pode ser concedida um ano antes de o condenado atingir o meio, os dois terços ou, quando a pena for superior a seis anos, os cinco sextos da pena de prisão, desde que, em qualquer dos casos, estejam cumpridos, no mínimo, seis meses.

V - Daqui resulta que a faculdade de conceder a adaptação à liberdade condicional termina, necessariamente, quando se perfila a momento previsto na lei para a concessão da liberdade condicional correspondente – meio da pena, dois ou cinco sextos da pena.

VI - Atingidos estes limites temporais, o que passa a estar em causa é a concessão da liberdade condicional, o que prejudica qualquer pedido de adaptação à liberdade condicional, ainda que aquela não venha a ser concedida.

VII - Tendo o recluso atingido o marco dos dois terços da pena em 27-6-2025 e estando a ser efectuadas diligências com vista à apreciação da liberdade condicional, não pode ele, depois de ultrapassada aquela data, formular pedido de concessão de adaptação à liberdade condicional, por já estar em plena fase de decisão sobre a concessão da liberdade condicional e por, relativamente aos cinco sextos da pena, o pedido ser absolutamente prematuro, em face do disposto no artigo 188º, n.º 1, do CEPMPL.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. - RELATÓRIO

1. No âmbito do processo de liberdade condicional que corre termos sob o n.º 1217/13.3TXLSB-A, do Juízo de Execução das Penas de Coimbra – Juiz 3, do Tribunal de Execução das Penas de Coimbra, em 14.07.2025 o condenado/recluso formulou requerimento de concessão de adaptação à liberdade condicional, o qual foi indeferido por despacho judicial proferido em 17.07.2025.

            2. Não se conformando com tal decisão, dela veio o condenado recorrer, alinhando, após a motivação, as seguintes conclusões e petitório [transcrição[1]]:
                   «I. Discordamos completamente do entendimento consignado no despacho de 17-07-2025, ref.ª 4137249, ao considerar legalmente inadmissível o pedido de adaptação à liberdade condicional formulado pelo condenado, porquanto assenta numa interpretação errada do art. 62.º do Código Penal (CP) e do art. 188.º do CEP. Com efeito,


                   II. o douto tribunal a quo parece interpretar aquelas normas no sentido de que o pedido de adaptação à liberdade condicional só pode ser formulado antes da metade, dos dois terços ou dos cinco sextos da pena serem alcançados.


                   III. Na verdade, porém, estes normativos (e, bem assim, o AUJ n.º 14/2009, de 20 de novembro) estabelecem o termo a quo a partir do qual é possível pedir e conceder a antecipação da liberdade condicional,


                   IV. mas nada dizem acerca do termo ad quem ou do prazo máximo para esse pedido e concessão,


                   V. porque, efetivamente, a adaptação à liberdade condicional pode ser pedida e concedida “a partir de um ano antes de o condenado perfazer metade, dois terços ou cinco sextos da pena”, ou seja, sem qualquer prazo máximo ou termo ad quem.


                   VI. Com o devido respeito, a interpretação do douto tribunal a quo não faz qualquer sentido, pois, na prática, o condenado só poderia beneficiar da adaptação à liberdade condicional em 3 (três) momentos da execução da pena (a saber, no ano anterior à metade, aos 2/3 e aos 5/6 do cumprimento da pena), não podendo requerê-la ou dela beneficiar noutro qualquer momento,


                   VII. o que contraria totalmente o espírito da lei e todo o propósito da figura da adaptação à liberdade condicional, que mais não é do que uma medida de flexibilização da execução da pena com vista a cumprir as finalidades das penas (em particular a finalidade de prevenção especial).

                   VIII. De notar que a concessão da liberdade condicional é objeto de apreciação anual (art. 180.º n.º 1 do CEP), havendo, portanto, todos os anos a possibilidade de o condenado ser colocado em liberdade, pelo que, por conseguinte, também a antecipação/adaptação à liberdade condicional deve ser possibilitada   todos      os                   anos    (desde     que         verificados           os           restantes pressupostos). Ad majori ad minus.


                   IX. O contrário poria emcausa todaa consistência e unidade do sistemajurídico-penal.


                   …


                   XI. Atendendo a que o pedido formulado pelo condenado é legalmente admissível, deve o douto tribunal ad quem determinar – tal como requerido – a antecipação da liberdade condicional pelo período de 1 (um) ano, ficando o condenado obrigado durante este período, para além do cumprimento das demais condições impostas, ao regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, visto que estão devidamente reunidos todos os pressupostos legais.


                   XII. Com efeito, in casu, o condenado já manifestou, anteriormente, o seu consentimento para ser colocado em liberdade condicional, já cumpriu mais de seis meses da pena e atingiu o cumprimento de dois terços da mesma em 27-06-2025, apesar de não ter sido ainda convocado para a devida audição.


                   XIII. A sua libertação não contende minimamente com a defesa da ordem jurídica e da paz social, pois, até à data do crime que determinou o seu enclausuramento, o condenado nunca havia praticado ou sido condenado pela prática de qualquer conduta criminosa (desta ou de outra natureza) e encontra-se, desde 27-10-2010 (ou seja, há cerca de 15 anos), a cumprir pena efetiva pelo único delito criminoso por si cometido, tendo já cumprido mais de dois terços da mesma.

                   XIV. Ademais, o crime por que foi condenado apresenta contornos concretos muito específicos, contra um familiar e num momento totalmente isolado de emoção violenta, não havendo na sua vida qualquer outro episódio de semelhante violência e inexistindo elementos que permitam concluir que no futuro praticará novamente um ato como este ou que tenha propensão para o praticar, de modo que a libertação do condenado não é minimamente idónea a provocar qualquer alarme social e não comportará perigo para bens jurídicos.


                   XV. Na verdade, a ausência de episódios violentos e/ou sequer de altercações verbais durante todo o seu delongado percurso prisional evidencia uma personalidade não-violenta e perfeitamente ajustada à normatividade e à vida em sociedade.


                   XVI. No seu percurso prisional observam-se condutas consistentes que indiciam que o condenado conduzirá a sua vida de forma pacífica e estável.


                   XVII. Os relatórios da Educadora, dos Serviços de Reinserção Social e/ou da Comissão Técnica têm vindo a reconhecer recorrentemente a adaptação do condenado ao meio prisional, as suas competências pessoais, emocionais e sociais adequadas (com “relações interpessoais ajustadas”, respeito pelas figuras de autoridade e relação adequada com todos os pares e colaboradores do sistema) e, bem assim, os esforços encetados na construção de um percurso evolutivo e de adequação comportamental, nomeadamente através da exploração ativa do arrendamento dos imóveis de que é titular; através do constante estímulo intelectual, em particular pela leitura de revistas e jornais, muitas vezes adquiridos por si e posteriormente doados ao EP para uso pelos outros reclusos e/ou funcionários; através de consultas de psicologia com psicólogo externo por si contratado; através de doações para instituições de solidariedade social; e beneficiando de visitas regulares de amigos.


                   XVIII. As 8 (oito) ocorrências disciplinares verificadas no contexto prisional foram, todas elas, relacionadas com a posse de objetos proibidos (nomeadamente uma cafeteira, multivitaminas, cabo USB para ver filmes na televisão e um telemóvel), mastambém todas elasocorridas num espaço temporal decerca de 15 anos de reclusão, de modo que, salvo melhor opinião, o seu registo prisional não deixa de ser positivo, pacífico, estável e consolidado.


                   …


                   …


                   XXIV. O recluso praticou um crime grave – não há dúvida. Porém, fê-lo de forma isolada, está arrependido e, salvo melhor opinião, o trabalho que resta fazer deve visar a sua reintegração em sociedade e nãoumahabituaçãoda sua vida em reclusão.


                   XXV. Cumpre ainda recordar que a liberdade condicional (e, por decorrência, a adaptação à liberdade condicional) não tem por finalidade transformar os condenados em indivíduos dotados de um sentido ético irrepreensível.


                   XXVI. O seu fundamento reside antes “no juízo do comportamento prisional na sua evolução, como índice de (re)socialização e de um futuro comportamento responsável em liberdade”.

                   XXVII. Neste sentido, a flexibilização da pena de prisão assume-se como elemento essencial para a eficaz reinserção do condenado na sociedade.

XXVIII. Importa, por fim, salientar que o condenado reúne as condições necessárias para o cumprimento adequado da antecipação da liberdade condicional, dispondo de meios de subsistência assegurados, apoio afetivo e social por parte de amigos próximos, bem como residência estável e adequada ao cumprimento das condiçõesquevenham a ser impostas pelo tribunal, sita na Rua ..., ..., ... ....


3. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Execução de Penas apresentou resposta ao recurso, …

4. Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, …

            5. Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta pelo condenado, manifestando a sua discordância quanto ao predito parecer, pelas razões ali aduzidas, concluindo nos termos em que pugnou no recurso.

            6. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


*

            II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. Incidências processuais relevantes [extraídas da certidão que corporiza o presente apenso e dos autos de que foi extraída, consultados por via eletrónica]:

                1.1. O condenado cumpre a pena de 22 anos de prisão, liquidada nos seguintes termos:

- Meio da pena: 27.10.2021

- Dois terços da pena: 27.06.2025

- Cinco sextos da pena: 27.02.2029

- Termo da pena: 27.10.2032

            1.2. Por sentença proferida em 31.01.2025, por referência aos dois terços da pena, em sede de renovação da instância, foi decidido não conceder a liberdade condicional ao arguido e consignado que “Para efeitos de renovação de instância para eventual concessão da liberdade condicional a mesma será reapreciada aos dois terços da pena [a ocorrer em 27 de Junho de 2025].”, e determinado que se solicitassem os elementos referidos no artigo 173.º, n.º 1, do CEPMPL e se requisitasse certificado de registo criminal e a ficha biográfica do condenado, o que foi feito, mas apenas em 08.08.2025 foi junta cópia de despacho solicitado ao Diap de Lisboa, tendo o Conselho Técnico sido agendado para 18.09.2025.

            1.3. Em 14.07.2025, o condenado formulou requerimento, …, peticionando a antecipação da liberdade condicional.

            1.4. Em 17.07.2025, foi proferido o seguinte despacho judicial:

                «Requerimento do recluso a solicitar a adaptação à liberdade condicional:

A liberdade condicional apenas pode ser antecipada por um período máximo de um ano antes de atingidos os marcos do meio da pena, dos dois terços e dos cinco sextos da mesma, conforme resulta da conjugação dos artigos 61.º e 62.º, ambos do Código Penal.

                Ora, não se verifica tal pressuposto, além do mais, o recluso atingiu os dois terços da pena em 27.06.2025.

                Mostram-se os autos a ser instruídos para a apreciação da liberdade condicional.

                Os pressupostos substantivos de concessão da adaptação à liberdade condicional são idênticos aos da própria liberdade condicional (artigo 62.º do código penal), motivo pelo qual, encontrando-se atingido os dois terços da pena, este é o momento temporal de conhecimento da liberdade condicional, a qual fica assim necessariamente consumida por qualquer incidente de adaptação à liberdade condicional.

Pelo que, sem necessidade de mais considerações, por inadmissibilidade legal, indefere-se o pedido de adaptação à liberdade condicional formulado pelo recluso AA.

                Sem custas, atenta a simplicidade do incidente.

                Notifique.

A situação jurídico-penal do recluso não se mostra estabilizada, considerando que terá pendente o processo n.º 86/21.....

Já foi solicitada a insistência quanto ao estado de tais autos.

Em face do exposto, via confidencial por ofício por mim assinado, insista pela remessa da informação em falta.

Na semana de 4 de Agosto abra termo de conclusão.»

2. Apreciação do recurso

2.1. Delimitação do objeto do recurso

            Assim, no caso concreto, atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso que apresentou, e não se vislumbrando quaisquer vícios de conhecimento oficioso, a questão que se coloca é se o tribunal a quo errou ao decidir não admitir o pedido de adaptação à liberdade condicional formulado pelo recorrente e se esta deve ser concedida.

            2.2. Mérito do recurso

O condenado/recluso insurge-se contra o despacho proferido em 17.07.2025 que indeferiu, “por inadmissibilidade legal”, o requerimento de adaptação à liberdade condicional que havia formulado em 14.07.2025, alegando, em síntese, o seguinte: o entendimento consignado no despacho recorrido, ao considerar legalmente inadmissível o pedido de adaptação à liberdade condicional formulado pelo condenado, assenta numa interpretação errada do art. 62.º do Código Penal (CP) e do art. 188.º do CEP; estes normativos (e, bem assim, o AUJ n.º 14/2009, de 20 de Novembro) estabelecem o termo a quo a partir do qual é possível pedir e conceder a antecipação da liberdade condicional, mas nada dizem acerca do termo ad quem ou do prazo máximo para esse pedido e concessão; a interpretação do tribunal a quo não faz qualquer sentido, pois, na prática, o condenado só poderia beneficiar da adaptação à liberdade condicional em 3 (três) momentos da execução da pena (a saber, no ano anterior à metade, aos 2/3 e aos 5/6 do cumprimento da pena), não podendo requerê-la ou dela beneficiar noutro qualquer momento, o que contraria o espírito da lei e todo o propósito da figura da adaptação à liberdade condicional, que mais não é do que uma medida de flexibilização da execução da pena com vista a cumprir as finalidades das penas (em particular a finalidade de prevenção especial); ademais, a concessão da liberdade condicional é objeto de apreciação anual (art. 180.º n.º 1 do CEP), havendo, portanto, todos os anos a possibilidade de o condenado ser colocado em liberdade, pelo que, por conseguinte, também a antecipação/adaptação à liberdade condicional deve ser possibilitada        todos os anos (desde que verificados os restantes pressupostos).

Vejamos.

Em causa nos autos está uma decisão sobre o pedido formulado pelo ora recorrente de concessão de adaptação à liberdade condicional.

A adaptação à liberdade condicional tem um regime praticamente paralelo ao da liberdade condicional, em termos de pressupostos formais e requisitos substanciais, mas não se confunde com aquela. Trata-se de institutos distintos, embora intimamente conexionados, previstos em preceitos autónomos do Código Penal – artigo 61º [liberdade condicional] e artigo 62º [adaptação à liberdade condicional] – e com tramitação própria, embora comum em parte, prevista no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro – artigo 173º e seguintes [liberdade condicional] e artigo 188º, que remete para os artigos 174.º a 178.º e a alínea b) do artigo 181.º [adaptação à liberdade condicional] –, constituindo ambos incidentes da fase da execução da pena de prisão.

Explicitando.

                Estatui o artigo 61º do Código Penal, a respeito da liberdade condicional, sob a epígrafe “Pressupostos e duração”:

            “1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.

            2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:

            a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;

            b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

            3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.

            4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.

            5 – (…).”

Por seu turno, o artigo 62º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, passou a consagrar a “adaptação à liberdade condicional”, dispondo que “[p]ara efeito de adaptação à liberdade condicional, verificados os pressupostos previstos no artigo anterior, a colocação em liberdade condicional pode ser antecipada pelo tribunal, por um período máximo de um ano, ficando o condenado obrigado durante o período da antecipação, para além do cumprimento das demais condições impostas, ao regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância”.

Como sobressai do cotejo dos preceitos ora transcritos e antes assinalámos, ainda que intimamente ligadas entre si, as noções e as realidades da adaptação à liberdade condicional e desta são, no entanto, distintas.

A colocação em liberdade condicional traduz-se na modificação da situação e do modo de cumprimento da pena de prisão (incidente da execução), com a passagem a um estado de liberdade e com sujeição a deveres que não afetam a dimensão física e deambulatória.

Por seu lado, a adaptação à liberdade condicional constitui uma antecipação da liberdade condicional, mas com um regime próprio e autónomo, de privação ou substancial limitação da liberdade física com permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, para ajustamento gradual à liberdade.

Em ambos os casos as finalidades perseguidas estão intrinsecamente ligadas aos objetivos de ressocialização com o consentimento e a participação do condenado, apontando a instituição de um período de adaptação antes da liberdade condicional para um alargamento das potencialidades deste instituto.

A adaptação à liberdade condicional implica, necessariamente, a verificação de pressupostos formais e materiais ou substanciais, alguns deles comuns à liberdade condicional, mas verificados em momento igual ou inferior a um ano antes da data prevista para o efeito.

Como decorre do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2009, de 20.09[2], que o recorrente convoca, que se debruçou detalhadamente sobre o assunto, “a antecipação da liberdade condicional não poderá, na letra, deixar de constituir uma «colocação» ou «adaptação» antes do tempo devido, isto é, do tempo em que, como pressuposto, a lei determina que possa ser concedida a liberdade condicional”.

E, a respeito dos pressupostos formais, nomeadamente, prazos e tempos, ali se explicita:

«(…) relativamente aos pressupostos formais, a estatuição do artigo 62.º do CP tem, apesar da remissão, elementos próprios que se conjugam em conexão com a norma para que remete, formando a sua completude.

O espaço de autonomia e de previsão, que não está completo sem a remissão mas se não esgota na remissão, está na coordenação entre os momentos fixados no artigo 61.º do CP - metade; dois terços; cinco sextos da pena (pressuposto formal da liberdade condicional) e o tempo de antecipação para início do período de adaptação, que, valendo como tempo autónomo na previsão exclusiva do artigo 62.º para definir a anterioridade da antecipação, é determinado, a quo, pela definição dos momentos constantes da previsão da norma do artigo 61.º

A ligação entre a estatuição de uma e outra norma, e a mútua completude, só têm sentido por esta interpretação. De outro modo, retirar-se-ia sentido a uma e outra norma: ou não haveria período de antecipação para adaptação à liberdade condicional, ou a concessão da liberdade condicional, havendo período de adaptação, só poderia ocorrer para além dos tempos fixados no artigo 61.º do CP.»

Com efeito, como assinala Paulo Pinto de Albuquerque[3], o propósito do legislador foi precisamente o de antecipar os momentos normais de apreciação da liberdade condicional, incluindo o meio, os dois terços e os cinco sextos da pena.

Assim, a adaptação à liberdade condicional pode ser concedida um ano antes de o condenado atingir o meio, os dois terços ou, quando a pena for superior a seis anos, os cinco sextos da pena de prisão, desde que, em qualquer dos casos, estejam cumpridos, no mínimo, seis meses.

Nessa confluência foi fixada, mediante o antedito acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a seguinte jurisprudência: «[o] período de adaptação à liberdade condicional previsto no artigo 62.º do Código Penal pode ser concedido, verificados os restantes pressupostos, a partir de um ano antes de o condenado perfazer metade, dois terços ou cinco sextos da pena, com o limite de cumprimento efectivo de um mínimo de 6 meses de prisão».

Por seu turno, estatui o artigo 188º, n.º 1, do CEPMPL que “[o] condenado pode requerer ao tribunal de execução das penas a concessão de adaptação à liberdade condicional (…) a partir de dois meses antes do período máximo previsto para esse efeito no artigo 62.º do Código Penal”.

É, pois, inquestionável que a adaptação à liberdade condicional pode ser concedida a partir de um ano antes de se perfazer os preditos marcos temporais da pena em cumprimento, devendo ser requerida a partir de dois meses antes daquele.

Obviamente, o atingimento de qualquer daqueles marcos inviabiliza que se lance mão daquele instituto, pois, nesse caso, já estará em causa a própria liberdade condicional, e não a antecipação desta.

Significa isto que a faculdade de conceder a adaptação à liberdade condicional termina necessariamente quando se perfila a momento previsto na lei para a concessão da liberdade condicional correspondente, a meio da pena, aos dois ou cinco sextos da pena.

Com efeito, atingidos esses limites temporais, o que passa a estar em causa é a concessão da liberdade condicional, o que prejudica qualquer pedido de adaptação à liberdade condicional, ainda que aquela não venha a ser concedida, pois, por um lado, como decorre da própria formulação semântica, a adaptação à liberdade condicional corresponde a uma antecipação desta e, por outro, como se disse, depende da verificação de alguns pressupostos comuns à liberdade condicional, nomeadamente, de natureza material ou substancial, que variam consoante a fase do cumprimento de pena em causa [cfr. artigo 61º, n.º 2, als. a) e b), e n.º 3, do Código Penal], que, não se verificando, ditam a sucumbência de ambas as pretensões.

Outrossim importa sublinhar que, ao contrário do que sucede com a liberdade condicional, em que está expressamente previsto que nos casos em que não tenha sido concedida e a prisão haja de prosseguir por mais de um ano, a instância se renova de 12 em 12 meses a contar da data em que foi proferida a anterior decisão [cfr. artigo 180º, n.º 1, do CEPMPL], não há idêntica previsão para a adaptação à liberdade condicional [cfr. o artigo 188º, n.º 6, do mesmo diploma].

Assim, efetivamente, perante o quadro normativo vigente, o pedido de adaptação à liberdade condicional só pode ser formulado, nos sobreditos moldes, em três momentos da execução da pena de prisão – antes do meio, dos dois terços ou dos cinco sextos. Estes constituem, aliás, fatores incontornáveis de indexação dos requisitos materiais exigíveis consoante a fase da execução da pena.

Assim, por referência ao meio da pena, é necessário que se mostrem preenchidos, cumulativamente, os seguintes pressupostos substanciais:

            - Que seja possível efetuar um sólido juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade, que ocorrerá quando for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes [cfr. al. a), do n.º 2, do artigo 61º]; e

            - Um razoável juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade, o qual ocorrerá quando se perspetiva que a libertação se revela compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social [cfr. al. b), do n.º 2, do citado artigo].

Colocam-se, pois, simultaneamente, exigências de prevenção especial positiva ou de ressocialização e exigências de prevenção geral positiva.

Já quando esteja em causa a adaptação à liberdade condicional por referência aos dois terços da pena, apenas é exigível o preenchimento daquele primeiro pressuposto material, isto é, que se mostrem satisfeitas as exigências de prevenção especial por ser o condenado merecedor de um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento em liberdade, presumindo-se que o cumprimento de parte significativa da pena, per se, esbate as exigências de prevenção geral [cfr. artigo 61º, n.º 3].

O mesmo sucede relativamente aos cinco sextos da pena. Ao contrário do que acontece com a liberdade condicional[4], não há, como categoricamente afirma Paulo Pinto Albuquerque[5], «uma antecipação obrigatória à liberdade condicional obrigatória».

De tudo ressuma clarividente que a modulação legal dos regimes da liberdade condicional e da adaptação à liberdade condicional teve sempre em vista as finalidades das penas assinaladas no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal, mormente, a ressocialização do condenado, com respeito pela dignidade deste, em plena observância dos princípios constitucionais subjacentes, nomeadamente, os consagrados nos artigos 1º, 13º, 18º, n.º 2, 27º, n.º 2, e 30º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Revertendo ao caso dos autos, tendo sido atingido o marco dos dois terços da pena em 27.06.2025 e estando a ser efetuadas diligências com vista à apreciação da liberdade condicional, em cumprimento do imposto pelo estatuído no artigo 61º, n.º 3, do Código Penal, não podia o condenado, já depois de ultrapassada aquela data, concretamente em 14.07.2025, formular pedido de concessão de adaptação à liberdade condicional.

Além de absolutamente intempestivo, o pedido de adaptação à liberdade condicional revela-se virtualmente inexequível e inócuo ou inútil, pois já estamos em plena fase de decisão sobre a concessão da liberdade condicional em si própria.

E, na eventualidade de não vir a ser concedida a liberdade condicional, tal pedido também não pode ser considerado tendo em perspetiva o próximo marco relevante – os cinco sextos da pena – por ser absolutamente prematuro em face do disposto no artigo 188º, n.º 1, do CEPMPL.

Em suma, bem andou o tribunal a quo ao indeferir liminarmente o pedido de adaptação à liberdade condicional formulado pelo ora recorrente, não tendo sido violado qualquer comando constitucional ou normativo legal, maxime os invocados pelo recorrente.

            Como se afigura de meridiana clareza, a conclusão ora alcançada prejudica a segunda parte da questão colocada pelo recorrente supra enunciada em II-2.1.

            Não obstante, importa assinalar que, ainda que o desfecho quanto à admissibilidade do pedido de adaptação da liberdade condicional fosse diferente, nunca este tribunal ad quem poderia apreciar e decidir se é de deferir aquela pretensão[6], pois estaria a atuar como tribunal de primeira e instância e não como tribunal de recurso, violando a garantia de duplo grau de jurisdição consagrada no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

            Improcede, pois, totalmente a pretensão recursiva.


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            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto nos autos pelo condenado/recluso AA e, em consequência, decidem confirmar a decisão recorrida.


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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 153º, n.ºs 1 e 6, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].

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(Elaborado pela relatora, sendo revisto e assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 08 de outubro de 2025

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Maria José Santos Matos

 [1.ª Adjunta]

Rosa Pinto

 [2.ª Adjunta]


[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos e, nalguns casos, a alteração da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade da relatora.

[2] Publicado no Diário da República n.º 226/2009, Série I de 2009-11-20, páginas 8442-8450
[3] In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5.ª ed. Universidade Católica, artigo 62.º, anotação 4, pág. 374
[4] Em que não é exigido qualquer requisito de ordem material ou substancial, bastando a verificação do requisito formal exigido pela lei – que o condenado em pena de prisão superior a seis anos tenha cumprido cinco sextos da pena – para, de forma obrigatória, aquela ser concedida [cfr. artigo 61º, n.º 4].
[5] Ob. e loc. citados, aí se mencionando a posição concordante de Maria da Conceição Cunha, in As reações criminais no direito português, Porto, UCE, 2022, pág. 63
[6] O recorrente peticiona mesmo «Atendendo a que o pedido formulado pelo condenado é legalmente admissível, deve o douto tribunal ad quem determinar – tal como requerido – a antecipação da liberdade condicional ….»[cfr. conclusão XI]