Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
423/24.0PCCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA COIMBRA
Descritores: APLICAÇÃO DE MEDIDA DE COACÇÃO
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO DECURSO DA INSTRUÇÃO
DEDUÇÃO DA ACUSAÇÃO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
ALTERAÇÃO DA MEDIDA DE COACÇÃO
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 204.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - Qualquer medida de coacção pode ser aplicada em qualquer fase do processo desde que, no momento da sua aplicação, seja necessária e compatível com as exigências cautelares que o caso requer.

II - O ónus da alegação e prova dos perigos que a medida de coacção aplicada não acautela e a demonstração de que a medida proposta é a que melhor os acautela incumbe ao recorrente.

III - Quando a lei, na alínea b) do artigo 204.º do C.P.P., refere o perigo de perturbação do decurso da instrução do processo não se refere à fase processual com esse mesmo nome, mas a todo o decurso da tramitação processual até ao julgamento e mesmo durante a fase de recurso, porque até à execução da decisão pode haver uma qualquer actuação que ponha em causa a veracidade da prova já adquirida ou a produzir.

IV - Embora o perigo de perturbação da instrução probatória do processo seja mais acentuado nas fases preliminares do processo, diminuindo com o decurso do tempo e com a realização das diligências probatórias mais relevantes, tem que se admitir que a dedução da acusação e a proximidade do julgamento, conjugadas com a gravidade dos factos indiciados, e de acordo com a normalidade da experiência da vida e dos tribunais, elevam muito significativamente a possibilidade de abordagem da vítima por parte do arguido, desde logo devido à facilitação de contactos proporcionada pelas redes sociais, na tentativa de minimizar a gravidade da acusação e o consequente impacto que o julgamento sempre terá na sua vida.

V - A circunstância de ter sido deduzida acusação, a gravidade dos factos indiciados e a proximidade do julgamento constituem alterações marcantes na marcha do processo que não permitem afirmar que nada se alterou desde a imposição do TIR.

Decisão Texto Integral:

            Acordam, em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra

            I.

            Nos autos de inquérito com o nº 423/24.0PCCBR em que é arguido …, após dedução da acusação, o Ministério Público requereu, nos termos do disposto no artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal (CPP), a sujeição a interrogatório do arguido, para aplicação de medidas de coação, manifestamente mais gravosas que o TIR, nos termos do disposto no artigo 204º, alíneas a), b) e c) do CPP.

            Tal requerimento foi indeferido por despacho de 07/05/2025, que se transcreve:

            Da peticionada aplicação de medidas de coacção ao arguido:

Requereu o Ministério Público, na acusação deduzida, com data de 09/04/2025, a aplicação ao arguido de medidas de coacção ao arguido, nos seguintes termos: “Não obstante a ausência de antecedentes criminais do arguido, certo é que os factos se revestem de grande gravidade, como o reflecte a própria moldura penal aplicável e são merecedores de forte censura ética e social, revelando o arguido, nos factos que lhe são imputados e que praticou, uma personalidade impulsiva, incapaz de conter os seus impulsos libidinosos, aproveitando-se de uma situação de extrema vulnerabilidade da vítima, para a qual, aliás, , também, contribuiu, manifestando profundo desrespeito pela sua liberdade e autodeterminação, bem como nula interiorização do desvalor das suas condutas, assim como profunda indiferença pelas consequências negativas da sua actuação na própria vitima.

Desta personalidade do arguido revelada pelos factos e pela sua conduta processual, descortina-se um forte perigo de continuação da actividade criminosa, seja sobre a mesma vítima seja sobre outras que se encontrem em semelhante condição, com o concomitante risco de, a praticando novos factos desta natureza, se gerar perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, sendo, aliás, sempre exigência comunitária a adopção de medidas adequadas à protecção da vítima e à evitação de novos comportamentos delituosos, destacando-se o próprio contexto: meio noturno e convívio entre jovens com consumos de álcool.

Assim, atenta a gravidada e censurabilidade dos factos fortemente indiciados e personalidade do arguido e prova que os sustenta, impõe-se, nos termos do disposto no art. 194º 3 do CPP, a sujeição a interrogatório do arguido, para aplicação de medidas de coação, manifestamente mais gravosas que o TIR, nos termos do disposto no art. 204º als. a), b) e c) do CPP”.

Assegurado o contraditório, o arguido pronunciou-se, em síntese, no sentido do indeferimento, …

Afigura-se desnecessária a sujeição do arguido a interrogatório, tratando-se de acto processualmente inútil, em decorrência do que infra se exporá.

A aplicação de uma medida de coacção, com a concomitante limitação da liberdade do cidadão, radica na necessidade de acautelar determinadas exigências processuais (cfr. art.º 191.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal), assegurando “interesses essenciais à boa administração da justiça, prevenindo os inconvenientes que resultariam da fuga do arguido, da continuação da actividade criminosa ou da perturbação por parte deste da investigação, nomeadamente adulterando provas, bem como de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas[1], os quais surgem, nas alíneas do n.º do art.º 204.º do Cód. de Processo Penal, como os requisitos gerais de aplicação destas medidas.

            Conforme o preceituado no art.º 192.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Processo Penal, a aplicação de medidas de coacção pressupõe a prévia constituição como arguido da pessoa que das mesmas for objecto e não podem ser decretadas se existirem fundados motivos da existência, no caso concreto, de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.

            Nesta sede, o legislador processual penal acolheu os princípios da adequação e da proporcionalidade, devendo as medidas de coacção aplicadas adequar-se às concretas exigências cautelares requeridas pelo caso e mostrar-se proporcionais à gravidade do crime, mas também às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, atendendo-se, neste caso, ao limite máximo da pena que justifica a medida – cfr. art.ºs 193.º, n.º 1, e 195.º do Cód. de Processo Penal.

            A mais gravosa das medidas de coacção – a prisão preventiva – assume natureza excepcional, só podendo ser aplicada quando as demais medidas se revelarem inadequadas e insuficientes – cfr. art.ºs 28.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, 193.º, n.º 2, e 202.º, n.º 1, proémio, do Cód. de Processo Penal.

            …

O art.º 201.º do Cód. de Processo Penal consagra a segunda medida de maior gravidade, a obrigação de permanência na habitação: …

Nos art.ºs 197.º a 200.º do Cód. de Processo Penal são elencadas medidas de menor gravidade: prestação de caução (art.º 197.º); obrigação de apresentação periódica (art.º 198.º); suspensão do exercício de profissão, de função, de actividade e de direitos (art.º 199.º); proibição e imposição de condutas (art.º 200.º).

            Dos elementos probatórios carreados para os presentes autos, assim enunciados no libelo acusatório – “Prova: a constante nos autos, nomeadamente: Testemunhal:

Documental

– resulta fortemente indiciada a seguinte factualidade, com a respectiva qualificação jurídica, que daquele douto despacho se deixa transcrita (tanto mais que o juízo de indiciação, ante a dedução de acusação, apenas poderia ser sindicado em ulterior fase processual, de instrução ou de julgamento):

 “1.A vitima … nasceu a ../../2002.

2.O arguido na data dos factos colaborava como empegado de balcão do estabelecimento denominado ….

3.Cerca das 23H30 do dia 3 de Março de 2024, um grupo de indivíduos colaboradores da Discoteca …, dirigiu-se à esplanada do estabelecimento denominado …

4.Deste grupo fazia parte a vitima.

5.A vitima e os restantes elementos do grupo mantiveram-se na esplanada do referido estabelecimento a ingerir cervejas e vodka preta com caipirinha até cerca das 02H00, hora de encerramento do estabelecimento.

6.Pelo que a convite do arguido, o grupo deslocou-se para o interior, continuando a ingerir bebidas alcoólicas, servidas e oferecidas pelo arguido.

7. A vitima encontrava-se visivelmente embriagada.

8. Já depois das 05H00 da manhã, a vitima, o arguido e … abandonaram o …, fazendo-se transportar na viatura …, conduzida por aquele.

9. Dirigiram-se primeiramente para a …, residência de ….

10.Ali chegados, … saiu da viatura e dirigiu-se à sua habitação.

11. Neste momento, a vitima que se fazia transportar no banco traseiro tomou o lugar do passageiro da frente .

12. De seguida, dirigiram-se ao estabelecimento denominado …, onde adquiriram comida, deslocando-se posteriormente para a residência da vitima, …

13. Já no interior da residência, a vitima por força da ingestão excessiva de álcool, vomitou para o chão do quarto e na sanita e perdeu os sentidos.

14. Após, a vitima deitou-se na cama e adormeceu.

15. O arguido deitou-se por cima da vitima, e introduziu o seu pénis na vagina da vitima contra e sem a vontade desta.

16. A determinado momento, a vitima acorda e diz ao arguido que não quer pede-lhe para parar.

17.Porém, o arguido disse-lhe “é só a cabecinha.. eu fodo-te toda”

18. A vitima chorou e voltou a adormecer, desta feita de costas.

19. Após, o arguido introduziu novamente o seu pénis na vagina da vitima, contra e sem a vontade desta.

20. A vitima acordou e disse-lhe novamente para parar.

21. Cerca das 11H30 a vitima acordou e apercebeu-se do arguido a dormir na cama, ao seu lado, vestido com um pijama seu, pelo que lhe ordenou que se fosse embora de imediato, o que o arguido fez.

            Não obstante a inquestionável repulsa social de que o crime indiciado é gerador e sua censurabilidade, certo é que os factos indiciados remontam há mais de 1 (um) ano, sem que tenha havido notícia da prática de eventos de semelhante natureza ou qualquer efectivo contacto entre o arguido e a indiciada vítima, ao que acresce não enunciar o Ministério Público quaisquer concretos factos presentes consubstanciadores de exigências cautelares que cumpra satisfazer, não sendo a mera dedução da acusação, ela própria, geradora dos perigos exigidos sob as alíneas do art.º 204.º do Cód. de Processo Penal, e tanto mais que a verificação dos perigos tem que existir no momento da aplicação da medida, importando realçar que quaisquer exigências cautelares, máxime, atinentes aos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas se acham mitigadas pelo longo lapso temporal, entretanto, decorrido.

Pelo exposto, indefiro a aplicação ao arguido de outras medidas de coacção, mantendo-se o mesmo a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a termo de identidade e residência, já prestado.


*

            Devolvam-se os autos aos serviços do Ministério Público, após as pertinentes notificações.

*

            De tal despacho interpôs o Ministério Público recurso para este tribunal, concluindo-o, nos seguintes termos (transcrição):

I - …

II - Aquando a prolação do despacho de acusação, tendo em conta a matéria de facto imputada, subsunção legal e a personalidade do arguido revelada na mesma, considerou-se, adequado e necessário, de forma a mitigar os perigos de continuação da actividade criminosa, perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e  perturbação e de conservação da prova, requerer a sua  sujeição  a medidas de coação para além do TIR.

III –…

           IV - Ora, no caso em apreço, atenta a natureza do crime e personalidade do arguido neles revelada, existe, em concreto, perigo de continuação da actividade criminosa, o, qual se verifica sempre que existam factos ou circunstâncias, que não sejam simplesmente conjecturais.

V - Trata-se de uma conduta que tem de ser expectável com certa intensidade e tal perigo existe quando se verifica a demonstração lógica e racional segundo as máximas da experiência.

VI - Atentas as circunstâncias descritas na acusação, existe um real perigo de continuação ada actividade criminosa por parte do arguido na pratica de factos da mesma natureza.

VII - A normalidade de facto e as regras da experiência comum apontam para a existência de um  perigo fundado e concreto de que o arguido continuará a praticar actos análogos àqueles pelos quais se encontra acusado.

VIII - O arguido, na data dos factos, colaborava como empregado de balcão do estabelecimento denominado …, local  marcado por um convívio entre jovens e pelo consumo de bebidas alcoólicas, num  ambiente noturno,  tendo ainda, por força dessa função, contribuindo para o estado de incapacidade da vitima ao ter-lhe oferecido várias bebidas.

IX - A normalidade de facto e as regras da experiência comum apontam para a existência de perigo fundado e concreto de que o arguido continuará a praticar actos análogos àqueles pelos quais se encontra acusado, revelado na incapacidade de o arguido controlar os seus impulsos sexuais.

X-O contexto em que os factos ocorreram – ambiente noturno e lúdico propicio à desinibição evidencia não só a vulnerabilidade das potenciais vitimas, como também o aproveitamento do arguido, enquanto empregado de balcão do referido  estabelecimento como fundamenta e agrava o perigo de continuação de actividade criminosa.

XI – Todos estes factos e circunstancias foram descurados pelo Mº JIC.

XII-Atendendo à existência do perigo de continuação da actividade criminosa,  natureza dos crimes imputados e personalidade revelada, este perigo potencia também a perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, não aceitando a comunidade que, no presente caso, não sejam aplicadas medidas de coacção, pois estamos na presença de crimes que geram forte sentimento de repugnância aos padrões comunitários.

XIII - O perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas decorre directamente dos termos em que são praticados certos crimes, pela revolta e insegurança que geram nas pessoas, sobretudo quando não se lhes segue uma reação reasseguradora, por parte do aparelho repressivo, em que repousa a crença da ordem e segurança comunitárias.

XIV - E, concretamente, tal perigo é imputável a uma conduta futura ao arguido, como sendo o perigo de continuação da actividade criminosa, a reiteração, maxime nos crimes de natureza sexual.

XV - A data dos factos não mitiga este nem qualquer ouro perigo, pelo que se impõe a sujeição do arguido da medidas de cocção adequadas e proporcionais de forma a proteger, em 1º linha a vitima AA.

XVI – Verifica-se ainda perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova – alínea b) do artigo 204º, que se traduz num perigo para a prova, servindo a medida aplicada para «evitar a manipulação do material probatório ou que potencialmente aí possa estar», ou seja, para enfrentar «o perigo de inquinamento das provas».

XVII – O arguido, sabendo agora que fora deduzida contra si a acusação, crime imputado e conhecedor das sanções previsivelmente aplicáveis, pode ser tentado a intervir junto da vitima, de forma a manipular/alterar ou levando-a a  desistir da queixa.

XVIII- A inexistência de antecedentes criminais e decurso do tempo não mitigam os perigos existentes, posto que a conduta imputada evidencia traços marcados pela impulsividade e ausência de controlo dos impulsos sexuais, revelando uma total indiferença sobre a vitima em situação de extrema vulnerabilidade, e para a qual, repete-se, contribuiu e abusou.

XIX - Consequentemente, impõe-se a sujeição de medidas de coação, mais gravosas que o TIR, atenta a factualidade imputada ao arguido no despacho de acusação, sua gravidade, prova que a sustenta e personalidade desviante daquele de forma a mitigar os concretos e  manifestos perigos, maxime, de continuação da actividade criminosa e conservação da prova mas também o de perturbação da ordem e tranquilidades públicas.

Nomeadamente:

- proibição de se aproximar e ou  de contactar por qualquer forma ou via com a vitima …


*
           O recurso foi admitido e a ele respondeu o arguido concluindo a sua resposta assim (transcrição):

4.ª Assim, para que fosse admissível a alteração das medidas de coação, era necessário que fossem apresentados factos concretos que evidenciassem uma alteração nas circunstâncias e demonstrassem que os requisitos previstos no art. 204.º do CPP estavam cumpridos e impunham uma alteração das medidas de coação.

5.ª Tendo o recorrido sido constituído arguido em 27/05/2024, data em que prestou termo  de identidade e residência e foi interrogado pela Polícia Judiciária, a qual foi validada pelo Ministério Público por despacho de 04/06/2024 (ref.ª CITIUS 94345980), mencionando que as exigências cautelares estavam asseguradas, a dedução de acusação em 09/04/2025, sem qualquer outro facto adicional que demonstre a verificação de qualquer dos requisitos do art. 204.º do CPP, não é suficiente para se considerarem alteradas as exigências cautelares para efeitos de alteração de medida de coação.

6.ª Para isso, o Ministério Público tinha de alegar e demonstrar indiciariamente a existência de concretos factos que permitissem concluir pela alteração da condição “rebus sic stantibus”, não bastando, para o efeito, a alegação de que foi deduzida acusação, bem como outras generalidades relacionadas com este acto processual, que foi o que efetivamente aconteceu.

                                                           *

            Remetido o recurso a este Tribunal da Relação o Ministério Público emitiu parecer …


*

            Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).

*

            Após os vistos, foram os autos à conferência.

            II.

Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que são as conclusões do recurso que delimitam a apreciação a fazer por este tribunal – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – e que analisando a síntese conclusiva, emerge como única questão a apreciar a de saber se deve ser imposta ao arguido uma medida de coação mais gravosa que o TIR, v.g. a requerida proibição de se aproximar e de contactar por qualquer forma ou via com a vítima AA.


*

Apreciação do recurso.

No presente recurso é requerida, como se disse, a aplicação ao arguido de uma medida de coação, para além do TIR a que se encontra sujeito.

A análise da imposição de uma qualquer medida de coação obriga sempre a ter em consideração os princípios fundamentais e incontroversos que regem a matéria e que são os princípios da legalidade, da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da precariedade. Não começaremos, contudo, por nos deter sobre eles, porque, quer o recorrente, quer o arguido, quer a decisão recorrida, enunciam corretamente as questões que deles decorrem e que estão em causa no presente recurso, o que nos dispensa, neste momento, de repetir considerações.

Assim, tendo em conta que qualquer medida de coação pode ser aplicada em qualquer fase do processo (cfr Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, 1993, 251 e seguintes), desde que no momento em que deva ser aplicada, seja necessária e compatível com as exigências cautelares que o caso requer (artigo 193º do CPP). passemos à análise concreta dos argumentos do recorrente, por confronto com as razões da decisão.

Entende o recorrente que existe perigo de continuação de atividade criminosa por parte do arguido na prática de factos da mesma natureza. Para tanto invoca a incapacidade do arguido de controlar os seus impulsos sexuais e, bem assim, o ambiente em que se move - noturno, lúdico e propício à desinibição - que, em conjugação com a vulnerabilidade das vítimas - decorrente do consumo excessivo de bebidas alcoólicas em ambiente estudantil-, faz recear a repetição de atos semelhantes àqueles por que se encontra acusado, aos quais o recorrente liga a existência de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Identifica ainda o recorrente o perigo de perturbação do inquérito ou de instrução do processo nomeadamente para “aquisição, conservação ou veracidade da prova”, uma vez que terminado o inquérito com dedução de acusação, poderá o arguido ser tentado a intervir junto da vítima de forma a induzi-la a alterar o depoimento ou levando-a a desistir da queixa. (Impõe-se aqui sublinhar que quando a lei na alínea b) do art. 204 do CPP refere o perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo, a expressão instrução não se refere à fase processual com esse mesmo nome, mas a todo o decurso da tramitação processual até ao julgamento e mesmo durante a fase de recurso, porque até à execução da decisão pode haver uma qualquer atuação que ponha em causa a veracidade da prova já adquirida ou a produzir).

Para todos os identificados perigos o recorrente requer, como medida de coação, que o arguido seja proibido de se aproximar ou de contactar, por qualquer forma, com a vítima.

Por sua vez o despacho recorrido acentua o decurso do tempo (“os factos indiciados remontam há mais de um ano”), o facto de não ter havido notícia da prática de eventos de semelhante natureza, nem de contactos entre arguido e a vítima e, bem assim, a circunstância de o Ministério Público não evidenciar “factos presentes consubstanciadores de exigências cautelares”.

Analisando a pretensão do Ministério Público constata-se que, contrariamente ao alegado e como reconhecido no despacho recorrido, não emergem dos autos factos que permitam concluir pela existência de perigo de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Quer porque dos autos decorre que o arguido já não exerce as anteriores funções que lhe permitiam mover-se num ambiente de grande consumo de bebidas alcoólicas com eventual aproveitamento de estados de inconsciência ou embriaguez, semelhantes aos que os autos indiciam, quer porque não consta dos autos que os factos tivessem tido qualquer repercussão social, mesmo no ambiente académico, quer ainda porque a análise dos indícios feita pelo Ministério Público olvidou ou, pelo menos, desconsiderou totalmente a versão do arguido que é suscetível de afastar a invocada  incapacidade para conter impulsos sexuais, não se vê que se possa afirmar a existência, nesta fase processual, de tais perigos.

Mas mesmo que assim se não entendesse, a medida de coação requerida não seria adequada a acautelar os invocados perigos. De facto não se vê como se possa afirmar que a proibição de contactar com a vítima minimize o perigo de continuação criminosa (designadamente com outras vítimas), - sendo certo que este perigo se tem de aferir pelo crime pelo qual o arguido se mostra indiciado (ou outro mais grave) - ou o perigo de perturbação de ordem e tranquilidade da sociedade em geral. É que a aplicação de qualquer medida de coação obriga a escolher a que melhor acautele a finalidade a que se destina. É o princípio da adequação que o impõe (art. 193 nº 1 e 3 do CPP), ao obrigar a analisar se com o meio usado se atinge o fim visado. Se a medida não tiver qualquer eficácia para o fim a acautelar, não deve ser imposta. A medida adequada é aquela que, de forma positiva, permite a realização da exigência cautelar e que quer qualitativamente, quer quantitativamente, assegura que se alcance o fim pretendido.  

 Uma vez que o ónus da alegação e prova do perigo e bem assim a proposta da medida de coação que melhor o acautele, cabe ao recorrente e que, de acordo com o princípio a que vimos fazendo referência, a medida requerida não se configura idónea, mesmo que seja proporcional, a responder aos dois concretos perigos identificados e em análise, - não obstante a gravidade objetiva da imputação criminosa reconhecida pelo despacho recorrido - não se pode concluir pela adequação entre a medida de coação requerida e os concretos perigos invocados.

Mas o mesmo não pode dizer-se relativamente ao perigo de perturbação da instrução probatória do processo. Embora se possa reconhecer ser mais acentuado nas fases preliminares do processo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do CPP, Univ. Católica, 4ª ed. página 601 e Germano Marques da Silva Curso de processo penal II, 1993, 246) e diminuir com o decurso do tempo e com a realização das diligências probatórias mais relevantes, também terá de admitir-se que a dedução da acusação e a proximidade do julgamento, conjugadas com a gravidade dos factos indiciados, - e de acordo com a normalidade da experiência da vida e dos tribunais - elevam muito significativamente a possibilidade de abordagem da vítima, - veja-se a facilidade de contactos atualmente proporcionada pelas redes sociais -, na tentativa de minimizar a gravidade da acusação e o consequente impacto que o julgamento sempre terá na vida do arguido. E não se diga que o princípio rebus sic stantibus, para quem, como o arguido, advogue ser aplicável às medidas de coação - o que é, no mínimo, discutível, de acordo com os ensinamentos da Senhora Doutora Maria João Antunes in Direito Processual Penal, 2ª edição, 146,147) - o impede. A circunstância de ter sido deduzida acusação, a gravidade dos factos indiciados e a proximidade do julgamento, constituem alterações marcantes na marcha do processo que não permitem afirmar que nada se alterou desde a imposição do TIR.   

Assim sendo, configura-se que, verificando-se a existência do perigo previsto na alínea b) do art. 204 do CPP, no que concerne à conservação ou veracidade da prova e reconhecendo-se que a medida requerida pelo Ministério Público de proibição de contactos entre o arguido e a vítima é adequada a salvaguardar este identificado e concreto perigo, não violando a aplicação de tal medida coativa qualquer outro princípio, designadamente os da proporcionalidade e da subsidiariedade, entende-se que, neste segmento, deverá o recurso ser julgado procedente.

*        

III.

DECISÃO.

            Em face do exposto decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, determina-se que deverá o arguido … ficar sujeito, além do TIR, à medida de coação prevista no artigo 200, nº 1 alínea d) do CPP, consubstanciada na proibição de contactos com a vítima …, cabendo ao tribunal de primeira instância dar cumprimento ao disposto no nº 4 do artigo 194º do CPP.

Sem custas.

Notifique.


Coimbra, 22 de outubro de 2025

Maria Teresa Coimbra

Maria José Guerra

Maria José dos Santos de Matos



[1] José Manuel de Araújo Barros – Critérios da Prisão Preventiva – C.J. 2000, II, p. 9.