Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1532/25.3T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS ÀS ALEGAÇÕES DO RECURSO DE CONTRAORDENAÇÃO
DIREITO AO CONTRADITÓRIO
FASE JUDICIAL
APLICAÇÃO NO ÂMBITO DOS PROCESSOS DE CONTRAORDENAÇÃO DAS REGRAS RELATIVAS À TRAMITAÇÃO ELECTRÓNICA DOS PROCESSOS JUDICIAIS
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 10, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 184.º DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGO 165.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 104.º, N.º 1, ALÍNEAS C) E D), DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
ARTIGOS 41.º, N.º 1, 59.º, 62.º N.º 2, 63.º, 64.º, 73.º, 74.º, E 75.º DO DECRETO-LEI N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/REGIME GERAL DAS CONTRAORDENAÇÕES/RGCO
ARTIGO 5.º-A DO DL N.º 12/2021, DE 9 DE FEVEREIRO
PORTARIAS N.º 280/2013, DE 26 DE AGOSTO, 380/2017, DE 19 DE DEZEMBRO, E 350-A/2025/1, DE 9 DE OUTUBRO
Sumário: I - Nos processos de contraordenação, ao contrário do que ocorre nos processos penais, a regra é a da irrecorribilidade, o que se justifica porque o ilícito de mera ordenação social é eticamente neutro ou indiferente e as sanções correspondem a coimas e sanções acessórias, que têm carácter meramente económico-administrativo.

II - As excepções a esta irrecorribilidade constam do artigo 63.º do RGCO, respeitante ao despacho que rejeita a impugnação judicial, porque fora do prazo ou sem as exigências de forma previstas para o efeito, e do artigo 73.º, daqui resultando que o conhecimento de todas as demais questões após o despacho de admissão da impugnação, designadamente das nulidades da decisão administrativa e a forma própria de conhecimento das mesmas, tem que ocorrer nos termos do disposto no artigo 64.º, ou seja por sentença, na sequência de audiência de julgamento, ou através de simples despacho.

III - Nada referindo o D.L. n.º 433/82, de 27 de Outubro, sobre a junção de documentos com a interposição de recurso de contraordenação, resulta que essa junção é inadmissível, nos termos do artigo 165º, n.º 1, C.P.P.

IV - No entanto, não havendo no âmbito do processo contraordenacional lugar a recurso extraordinário de revisão e estatuindo o artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa que devem ser assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa nos processos de contraordenação, há situações em que essa junção deve admitir-se.

V - Tendo a arguida remetido, em tempo, a impugnação da decisão administrativa por correio electrónico e tendo enviado, depois, o original da impugnação, em conformidade com o que a autoridade administrativa lhe havia comunicado, é de admitir a junção, com o recurso, da prova da apresentação tempestiva da impugnação, consubstanciada na sua apresentação por correio electrónico, se a impugnação veio a ser rejeitada por ter sido apresentada fora de prazo, por não sido junta aos autos a impugnação enviada por correio electrónico nem ter sido feita menção deste envio.

VI - Viola o direito ao contraditório, na vertente de direito de audiência, a falta de notificação do parecer emitido pela administração, de o recurso apresentado ser extemporâneo.

VII - Tendo o Ministério Público remetido os autos a juízo sem se ter pronunciado sobre a questão, quando foi proferida decisão judicial julgando a impugnação extemporânea a senhora juíza apenas apreciou o original da impugnação, pois nada mais constava do processo.

VIII - Por isso é necessário, no caso, admitir a junção aos autos da prova do envio da impugnação por correio electrónico, demonstrativa da tempestividade da impugnação, porque só com a notificação da decisão judicial, que rejeitou a impugnação, é que a arguida tomou conhecimento da situação, daqui resultando a superveniência da sua pertinência.

IX - Atento o disposto nos artigos 104.º, n.º 1, alíneas c) e d), do C.P.A. e 5.º, n.º 1, do D.L. n.º 12/2021, de 9 de Fevereiro, o correio electrónico é meio válido de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. - RELATÓRIO

1. - Nos presentes autos, que sob o n.º 1532/25.3T9CBR, correm termos pelo Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, por despacho judicial proferido em 11.04.2025, com a referência citius 97133326, foi decidido rejeitar, por extemporaneidade, a impugnação judicial de decisão administrativa interposta por ….

2. - Não se conformando com tal despacho, dele veio … interpor recurso, tendo, no termo da motivação, formulado as conclusões e o pedido que ora se transcrevem:

«I. O presente recurso vem interposto do despacho que rejeitou o recurso de impugnação judicial de decisão proferida pela ANSR interposto pela arguida, por o julgar extemporâneo, o que não se concede.

II. No caso dos presentes autos, o Tribunal "a quo" rejeitou liminarmente recurso interposto, alegando para tanto que a decisão administrativa condenatória da arguida foi assinada no dia 22 de Janeiro de 2023, e impugnante notificada daquela decisão administrativa, por carta registada co aviso de recepção no dia 2/02/2023, e que terá sido apresentada a impugnação judicial à autoridade administrativa em 13/03/2023;

III. Salvo o devido respeito pela argumentação apresentada pelo Tribunal quo" no despacho que ora se recorre, a verdade é que a ora Recorrente considera que o aludido despacho não atendeu a todos os factos relevantes, o seja, não atendeu ao facto da impugnação judicial ter sido remetida a Presidente da Autoridade Nacional Rodoviária, via e-mail, no dia 22/02/2023,         o

IV. dentro do prazo de 15 (quinze) dias úteis previsto no n.º 2 do artigo 181º do C. da Estrada.

V. A arguida foi notificada a 2/02/2023, pelo que o prazo de 15 (quinze) dias úteis terminava a 23/02/2023, tendo o recurso sido remetido à Autoridade Administrativa, via e-mail, no dia 22/02/2023 e ali foi efectivamente recebido nesse mesmo dia, pelo que se conclui que a impugnação judicial foi enviada em tempo, logo dúvidas não existem quanto à sua tempestividade.

VI. Os originais da impugnação judicial e respectivos documentos, bem como o comprovativo do envio através de correio eletrónico, para “mail@ansr.pt”, foi apresentado pessoalmente na Secção de Contraordenações de trânsito da PSP de ... conforme documentos juntos nos autos a fls.

VII. Pelo que, atento os meios de prova juntos, impunha-se uma decisão diversa à proferida pelo Tribunal “a quo”.

Ao rejeitar a impugnação judicial apresentada pela ora recorrente, violou assim o artigo a al. a) do n.º 2 do art.º 181º do Código da Estrada.

…».

5. - A Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso, …

4. - Na vista a que se refere o artigo 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, …

5. - Não houve resposta ao sobredito parecer.

6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


*

            II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. - Delimitação do objeto do recurso

In casu a questão essencial reconduz-se a aferir da (in)tempestividade da impugnação judicial da decisão administrativa apresentada pela recorrente.

           

            2. – Decisão recorrida

            O despacho judicial alvo de recurso tem o seguinte teor [transcrição]:

«I.

                Mostra-se interposta impugnação judicial de decisão administrativa que é recorrível e por quem tem legitimidade (artigo 59.º, nrs.º 1 a 3, do Decreto-Lei nr.º 433/82, de 27/10, doravante RGCO), mas coloca-se a questão de saber, em primeiro lugar, se uma tal impugnação é tempestiva e, em segundo lugar, em caso de resposta positiva àquela questão, se se impõe a realização de julgamento.

                Está adquirido no processo que a decisão administrativa condenatória da arguida foi assinada, por delegação de competências do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, pela Directora da Unidade de Fiscalização de Trânsito e Contraordenações, …, no dia 22 de Janeiro de 2023, e a impugnante notificada daquela mesma decisão administrativa, por carta registada com aviso de recepção entregue no dia 02-02-2023 – cf., fls. 94, aviso de recepção assinado por ….

                Já quanto à apresentação da impugnação judicial, remetido à autoridade administrativa teve lugar a 13-03-2023 [cf., fls. 104].


*

II.

                Como se sabe, e disso a impugnante foi expressamente advertida na decisão notificada, o prazo de impugnação judicial no direito estradal é o previsto na alínea a), do nr.º 2, do artigo 181.º, do Código da Estrada, ou seja, é de 15 (quinze) dias úteis.

                O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma – [cf., nr.º 1, do artigo 63.º, do RGCO].

                Já sobre a “Contagem do prazo para impugnação”, dispõe o artigo 60.º, nr.º 1, do RGCO, que o prazo para a impugnação da decisão da autoridade administrativa suspende-se aos sábados, domingos e feriados. E que o termo do prazo que caia em dia durante o qual não for possível, durante o período normal, a apresentação do recurso, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte – nr.º 2, do referido preceito.

                Perante um tal quadro normativo e factual, tendo presente a data da notificação da notificação daquela decisão administrativa à impugnante (a 02-02-2025) dúvidas não subsistem que os quinze dias úteis previstos para a impugnação judicial da decisão administrativa – descontados os sábados, os domingos e os feriados – decorreram a integralmente no dia 23-02-2025.

                Assim, conclui necessariamente o Tribunal, que a impugnação judicial da recorrente, interposta a 13-03-2023 (i.e., após 23-02-2025), se encontra manifestamente extemporânea.


*

III.

                Pelo que, em conformidade com as citadas disposições legais, decide-se rejeitar a presente impugnação de contraordenação por extemporânea [artigo 63.º, do Decreto-Lei nr.º 433/82, de 27 de Outubro].

                Notifique.


*

                Custas pela impugnante, cuja taxa de justiça se fixa pelo mínimo legal [cf., artigo 94.º, nr.º 3, do RGCO].

*

                Após trânsito, comunique a decisão à entidade recorrida [artigo 70.º, nr.º 4, do RGCO] para os ulteriores termos do processo (pagamento da coima e as demais custas) e liquide o julgado.»

 



            3. – Apreciação do recurso

            Alega a recorrente, em suma, que, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, a impugnação judicial que apresentou é tempestiva, pelas razões assim sintetizadas nas conclusões III a VII:

«…

III. Salvo o devido respeito pela argumentação apresentada pelo Tribunal quo" no despacho que ora se recorre, a verdade é que a ora Recorrente considera que o aludido despacho não atendeu a todos os factos relevantes, o seja, não atendeu ao facto da impugnação judicial ter sido remetida a Presidente da Autoridade Nacional Rodoviária, via e-mail, no dia 22/02/2023,        

IV. dentro do prazo de 15 (quinze) dias úteis previsto no n.º 2 do artigo 181º do C. da Estrada.

V. A arguida foi notificada a 2/02/2023, pelo que o prazo de 15 (quinze) dias úteis terminava a 23/02/2023, tendo o recurso sido remetido à Autoridade Administrativa, via e-mail, no dia 22/02/2023 e ali foi efectivamente recebido nesse mesmo dia, pelo que se conclui que a impugnação judicial foi enviada em tempo, logo dúvidas não existem quanto à sua tempestividade.

VI. Os originais da impugnação judicial e respectivos documentos, bem como o comprovativo do envio através de correio eletrónico, para “mail@ansr.pt”, foi apresentado pessoalmente na Secção de Contraordenações de trânsito da PSP de … conforme documentos juntos nos autos a fls.

VII. Pelo que, atento os meios de prova juntos, impunha-se uma decisão diversa à proferida pelo Tribunal “a quo”.»

            Para prova do alegado, juntou a recorrente dois documentos.

Vejamos.

No que diz respeito aos processos de contraordenação, ao contrário do que ocorre nos processos penais, em que por princípio todas as decisões são recorríveis com exceção dos casos previstos no artigo 400º, a regra é a da irrecorribilidade, o que se justifica pela natureza do ilícito de mera ordenação social e das sanções que lhe correspondem, pois, nos processos em que se apreciam crimes em que os bens jurídicos violados apresentam um mínimo ético e são puníveis com penas enquanto o ilícito de mera ordenação social é eticamente neutro ou indiferente e as sanções correspondem a coimas e sanções acessórias que têm carácter meramente económico-administrativo.

As exceções serão os casos previstos nos artigos 63º e 73º, ambos do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC).

O primeiro [artigo 63º] refere-se, precisamente, ao recurso do despacho que rejeita a impugnação judicial efetuada fora do prazo ou sem as exigências de forma previstas para o efeito.

O segundo [artigo 73º] reporta-se às decisões judiciais posteriores, ou seja, verificando-se que a impugnação judicial é tempestiva e obedece aos requisitos de forma, o conhecimento de todas as demais questões, designadamente, das nulidades da decisão administrativa e a forma própria de conhecimento das mesmas, só poderá ocorrer nos termos do disposto no artigo 64.º do mesmo diploma legal – mediante sentença, na sequência de audiência de julgamento, ou através de simples despacho.

De acordo com o n.º 1 do referido artigo 73º, é permitido recorrer para a Relação da sentença ou despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64º, nos casos em que:

a) for aplicada ao arguido coima superior a €249,40;

b) a condenação do arguido abranger sanções acessórias;

c) o arguido for absolvido ou o processo arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a € 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo MP;

d) a impugnação judicial for rejeitada; ou

e) o tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.

E, nos termos do n.º 2, “além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”.

            Neste âmbito, regem, ainda, os artigos 74º e 75º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC) –, aplicando-se as regras do processo penal, tendo em conta as especialidades daquele diploma, conforme resulta dos seus artigos 41º, n.º 1, e 74º, n.º 4.

Nada se referindo no Decreto-Lei n.º 433/82 sobre a junção de documentos aquando a interposição de recurso, termos que atentar no disposto no artigo 165º, n.º 1, do Código de Processo Penal –  “[o] documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência”.

As citadas fases ocorrem durante a tramitação do processo em 1ª instância.

Conforme é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, nos recursos ordinários, como o presente, não é possível a junção de documentos ou de outras provas.

Efetivamente, como ensina o Prof. Germano Marques da Silva[1], “[o] recurso é um meio de impugnação de decisão judicial, que tem por finalidade a eliminação dos defeitos da decisão injusta ou inválida ainda não transitada em julgado, submetendo-a a uma nova apreciação por outro órgão jurisdicional hierarquicamente superior, ou a correcção de uma decisão já transitada em julgado”.

Acrescentando, mais à frente[2], que “[o] considerar a nossa lei que o objecto do recurso é a decisão tem importância prática muito grande. Nomeadamente não é possível juntar nas alegações de recurso ordinário novos elementos de prova que não tiverem sido considerados na decisão recorrida. Novos elementos de prova podem ser relevantes para efeito do recurso extraordinário de revisão, mas não para o recurso ordinário”.    

Também a jurisprudência[3] tem sustentado que é inadmissível a junção de documentos em fase de recurso, com o fundamento que tal constituiria uma violação do princípio do contraditório e, mesmo que tal princípio fosse cumprido no tribunal de recurso, sempre as regras do recurso impediriam tal junção, uma vez que os recursos não se destinam a apreciar questões novas.[4]

            Contudo, no âmbito do processo contraordenacional não há lugar a recurso extraordinário de revisão.

            Ademais, estatui o artigo 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa que “[n]os processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”

            Ora, no caso vertente, como antes se assinalou, a recorrente juntou com a motivação do recurso dois documentos destinados a comprovar que, dentro do prazo legal previsto para deduzir impugnação judicial da decisão administrativa, a remeteu, por correio eletrónico, à autoridade que a proferiu [a ANSR] e que esta acusou a sua receção, não constando, porém, dos autos.

            Analisados tais documentos consta-se que, efetivamente, em 22.02.2023, a advogada constituída pela ora recorrente, a partir do endereço , enviou email para o endereço mail@ansr.pt, dirigido ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, no qual identificava, além do mais, o auto de contraordenação [n.º …], com o seguinte conteúdo: «Venho por este meio anexar Impugnação Judicial da Contra-ordenação acima referenciada, por mim apresentada na qualidade de mandatária de …, com procuração, a fim de a mesma ser junta aos autos de contraordenação supra referenciados», anexando quatro ficheiros em formato pdf, nomeadamente, a sobredita impugnação judicial e a procuração.

             Por seu turno, por email expedido pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária do dito endereço – mail@ansr.pt –, dirigido à referida mandatária, em 01.03.2023, foi respondido o seguinte:

            «Nos termos das normas legais e dos procedimentos em vigor, a Impugnação Judicial apresentada, será junta ao processo de contraordenação indicado por V. Exa., para análise e, da decisão que vier a ser proferida no referido processo, será V. Exa. notificado.

            No entanto, informa-se que a apresentação da Impugnação Judicial via correio eletrónico não certificado, não dispensa a apresentação do seu original, devidamente assinado pelo arguido(a), ou, caso existam, do mandatário que deverá ser remetido via correio registado para a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária Avenida de Casal de Cabanas n° 1, 2734-507 BARCARENA, ou entregue no Comando Territorial/Destacamento de Trânsito da GNR - Gabinete de apoio ao cidadão ou no Comando Metropolitano/Distrital - Secção de Contraordenações de Trânsito da PSP do distrito da sua área de residência.

            (…)». [negrito ora acrescentado]

            Note-se que na decisão administrativa – proferida em 22.01.2023 e notificada à ora recorrente em 02.02.2023, relativamente à qual foi deduzida a impugnação judicial – também constava, a final, o seguinte:

            «Em caso de impugnação, esta deve ser dirigida ao Juiz de Direito do Tribunal da área onde se verificou a infração, devendo conter obrigatoriamente alegações e conclusões, e deve ser enviada para a entidade administrativa que proferiu a presente decisão ou entregue no Comando Territorial/ Destacamento de Trânsito da GNR ou no Comando Metropolitano/Distrital Secção de Contraordenações de Trânsito da PSP do distrito da área da sua residência».[negrito ora acrescentado]

            Como sobressai do texto do email de resposta da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, esta entidade ali afirmava que, nos termos das normas legais e dos procedimentos em vigor, a impugnação judicial apresentada seria junta ao processo de contraordenação, advertindo, porém, que a apresentação da impugnação judicial via correio eletrónico não certificado não dispensa a apresentação do seu original, que deveria ser enviada via correio [postal] registado ou entregue junto das entidades da GNR ou da PSP ali indicadas.

            Ora, a recorrente entregou, efetivamente, o original da impugnação judicial e da procuração e demais documentos acompanhantes na entidade competente da PSP em 13.03.2023, conforme carimbo ali aposto [cfr. fls. 13 do processo físico].

            Porém, ao invés do que havia informado, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária não juntou ao processo os elementos documentais que haviam sido enviados em 22.02.2023 por correio eletrónico, nem registou, por qualquer forma, tal envio.

            Ao assim atuar, a entidade administrativa frustrou a legítima expectativa da recorrente de que o que enviara por correio eletrónico seria junto ao processo e, oportunamente, considerado.

            Acresce que, em 14.06.2024, a técnica superior administrativa exarou «Analisado que foi o requerimento de recurso, verifica-se que o mesmo foi apresentado de forma extemporânea, pelo que se remetem os autos para apreciação», tendo estes sido enviados ao Ministério Público.

            Todavia, violando o direito basilar de contraditório, concretizado no direito de audiência, não foi dado conhecimento daquele parecer à impugnante, que assim não teve oportunidade de alertar e comprovar o prévio envio, em 22.02.2023, da impugnação judicial por correio eletrónico.

            Por seu turno, o Ministério Público, sem se pronunciar sobre tal questão, apresentou os autos em juízo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 62º, n.º 1, do DL n.º 433/82, ou seja, equivalendo a decisão administrativa à acusação.

            E, assim, desconhecendo a Ex.ma Juiz a quo, por não constar do processo, o sobredito envio por correio eletrónico, apreciou apenas o original da impugnação judicial entregue em 13.03.2023, que considerou extemporânea nos termos explanados no despacho sob escrutínio.

            Daí que a necessidade de junção dos documentos comprovativos do envio da impugnação por via eletrónica apenas tenha tornado do conhecimento da impugnante aquando da notificação do despacho que a rejeitou com o fundamento de extemporaneidade.

            Cremos, por isso, justificar-se, in casu, admitir a junção dos preditos documentos, cuja pertinência se mostra superveniente e por motivo que não é, em absoluto, imputável à ora recorrente.

            Sempre salvaguardando o devido respeito por diversa opinião, em face das concretas circunstâncias do caso, diferente entendimento violaria os mais elementares direitos de defesa da ora recorrente, com consagração constitucional nos sobreditos moldes.

            Posto isto, importa extrair as consequências da comprovação do envio da impugnação judicial por via de correio eletrónico em 22.02.2022, ou seja, em data anterior à sua entrega física na entidade competente da PSP, em 13.03.2023.

            Para o efeito, atentemos no complexo normativo envolvente.

            O recurso de impugnação da decisão proferida por autoridade administrativa em matéria contraordenacional é regulado, em termos gerais, nos termos do DL n.º 433/82, nomeadamente no artigo 59º, que estabelece o seguinte:

            “1 - A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial.

            2 - O recurso de impugnação poderá ser interposto pelo arguido ou pelo seu defensor.

            3 - O recurso é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões.”.

            Por seu turno, o artigo 62º estabelecia:

            “1 - Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação.

            2 - Até ao envio dos autos, pode a autoridade administrativa revogar a decisão de aplicação da coima.”

            Atualmente, mercê da alteração introduzida pelo DL n.º 91/2024, de 22.11, o n.º 1 passou a ter a seguinte redação:

            “1 - Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, preferencialmente por via eletrónica, em termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação”.

            Especificamente em matéria contraordenacional estradal, resulta do artigo 181º, n.º 1, al. a), do Código da Estrada que da decisão deve constar que “[a] condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada por escrito, constando de alegações e conclusões, no prazo de 15 dias úteis após o seu conhecimento e junto da autoridade administrativa que aplicou a coima” e o artigo 184º estabelece que “[o] poder de apreciação da entidade administrativa esgota-se com a decisão, exceto quando é apresentado recurso da decisão condenatória, caso em que a entidade administrativa a pode revogar até ao envio dos autos para o Ministério Público.”.

            Como ressuma dos normativos legais transcritos, no que concerne às formalidades a observar na apresentação de recurso de impugnação, apenas se exige que seja efetuado por escrito, constando de alegações e conclusões, e que seja apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, nada de concreto se referindo, porém, quanto ao modo ou meio de apresentação.

            Relembre-se que tal recurso, deduzido num processo contraordenacional, pode nem sequer dar origem imediata à fase judicial, que até pode nem vir a ter lugar se a autoridade administrativa revogar a decisão até ao envio do processo ao tribunal, conforme decorre do disposto no artigo 62º, n.º 2, do RGC e 184º do Código da Estrada.

            Como tal, não são aplicáveis à apresentação de recurso de impugnação as regras de tramitação eletrónica constantes das Portarias n.º 280/2013, de 26 de agosto, e n.º 380/2017, de 19 de dezembro, agora revogadas pela Portaria n.º 350-A/2025/1, de 9 de outubro, que entrou muito recentemente em vigor, mais concretamente em 20.10.2025 [cfr. artigos 40º e 42º deste último diploma].

            Aliás, na Portaria n.º 280/2013 até se especifica o seguinte: “No que respeita à tramitação electrónica nos tribunais judiciais de 1.ª instância das impugnações judiciais das decisões e das demais medidas das autoridades administrativas tomadas em processo de contra-ordenação, o regime previsto na presente portaria é aplicável apenas a partir do momento em que os autos são presentes ao juiz” – artigo 1.º, n.º 3, na redação introduzida pela Portaria n.º 170/2017, de 25 de maio.

            E a Portaria n.º 350-A/2025/1, que procedeu à unificação das regras constantes das outras duas e à adaptação das suas normas à utilização, por todos os intervenientes processuais, de um interface único para a jurisdição comum e para a jurisdição administrativa e fiscal, nomeadamente ao nível dos registos e acessos de todos os utilizadores, alargando a prática obrigatória de atos por via eletrónica, por todos os intervenientes processuais, ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Administrativo, visa concretizar plenamente a tramitação eletrónica em todas as instâncias judiciais [cfr. o respetivo preâmbulo], mas não estende o seu âmbito às entidades administrativas, dispondo-se, aliás, expressamente, de forma equivalente à supra transcrita no parágrafo anterior, agora no n.º 2 no artigo 1º: “No que respeita à tramitação eletrónica nos tribunais judiciais de 1.ª instância das impugnações judiciais das decisões e das demais medidas das autoridades administrativas tomadas em processo de contraordenação, o regime previsto na presente portaria é aplicável apenas a partir do momento em que os autos são presentes ao juiz.”.

            Afigura-se, pois, inquestionável que, no âmbito dos processos de contraordenação, as regras relativas à tramitação eletrónica dos processos judiciais apenas são aplicáveis a partir do momento em que os autos são presentes ao juiz, excluindo, portanto, todos os atos e procedimentos praticados perante a autoridade administrativa e por esta.

            Porém, o Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07 de janeiro, admite que os requerimentos dirigidos a órgãos administrativos possam ser apresentados por vários modos, entre eles o “envio através de telefax ou transmissão electrónica de dados, valendo como data da apresentação a do termo da expedição” e o “envio por transmissão electrónica de dados, valendo como data da apresentação a da respectiva expedição”. [cfr. art. 104.º, n.º 1, als. c) e d)].

            O Regulamento (UE) n.º 910/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Julho[5], relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno, depois de definir no artigo 3.º os conceitos de “serviço de envio registado electrónico” – como aquele que “torne possível a transmissão de dados entre terceiros por meios electrónicos e forneça prova do tratamento dos dados transmitidos, nomeadamente a prova do envio e da recepção dos mesmos, e que proteja os dados transferidos contra o risco de perda, roubo, dano ou alteração não autorizada” – e de “serviço qualificado de envio registado electrónico” – como “um serviço de envio registado electrónico que satisfaça os requisitos estabelecidos no artigo 44.º” –, estipula no respetivo artigo 43.º, n.º 1, a propósito do efeito legal dos serviços de envio registado eletrónico, que “não podem ser negados efeitos legais nem admissibilidade enquanto prova em processo judicial aos dados enviados e recebidos com recurso a um serviço de envio registado electrónico pelo simples facto de se apresentarem em formato electrónico ou de não cumprirem todos os requisitos do serviço qualificado de envio registado electrónico.”

            O DL n.º 12/2021, de 9 de fevereiro[6], assegurou a execução na ordem jurídica interna do referido Regulamento, estipulando no respetivo artigo 5.º, n.º 1, que “o documento electrónico comunicado por um meio de comunicação electrónica considera-se enviado e recebido pelo destinatário se for transmitido para o endereço electrónico definido por acordo das partes e neste for recebido.”

            Assim, forçoso é concluir, como se exarou, aliás, no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.12.2021[7], que aqui seguimos de perto, que «[o] correio electrónico constitui meio válido de impugnação judicial da decisão de autoridade administrativa que aplica uma coima».

            Também no acórdão o Tribunal da Relação de Lisboa de 28.11.2019[8] se concluiu que «[e]m termos gerais, nada impede a remessa das peças para juízo administrativo ou comum,  através de correio electrónico, pois que este é em tudo semelhante ao envio via postal; a remessa via email, ou via fax, nada tem de ilegal, sendo certo que, deve ser sempre confirmada com o envio dos respectivos originais escritos, via postal ou por entrega em mão no respectivo serviço».

            Quanto àquele último aspeto focado no acórdão vindo de citar, cumpre salientar o que veio a ser clarificado, entretanto, pelo artigo 5.º-A do DL n.º 12/2021, introduzido pelo DL n.º 66-A/22, de 30 de setembro, assim dispõe:

            “1 - É reconhecida às cópias digitalizadas e às fotocópias dos atos e contratos a força probatória dos respetivos originais, salvo se a pessoa a quem forem apresentadas requerer a exibição desse original.

            2 - A assinatura das cópias digitalizadas dos atos e contratos por via manuscrita ou por via de assinatura eletrónica qualificada não afeta a validade dos mesmos, ainda que coexistam no mesmo ato ou contrato formas diferentes de assinatura.”

            Revertendo ao caso dos autos, mostra-se documentalmente comprovado que, em 22.02.2023, a mandatária constituída pela ora recorrente enviou email, a partir do endereço , para o endereço mail@ansr.pt, dirigido ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, anexando quatro ficheiros em formato pdf, sendo um deles referente à impugnação judicial e outro à procuração. Outrossim, resulta demonstrado que, em 01.03.2023, a autoridade administrativa, utilizando aquele mesmo endereço eletrónico, acusou a receção de tal email.

            Assim, nos termos e para os efeitos dos preditos normativos legais, o correio eletrónico remetido em 22.02.2023 equivale à apresentação nessa data de requerimento contendo a impugnação judicial e dos demais documentos a ela anexos.

            Ainda que se pudesse questionar qual o valor probatório da impugnação judicial anexada a esse correio eletrónico, por não conter uma assinatura eletrónica qualificada, tal questão mostra-se prejudicada em face da circunstância de ter sido, posteriormente, apresentada, tal como os demais documentos anexos, em formato físico e com as respetivas assinaturas manuscritas, numa das entidades designadas para o efeito.

            Como decorrência do exposto, tendo a ora recorrente sido notificada da decisão administrativa em 02.02.2023 e sendo o prazo de apresentação da impugnação judicial de 15 (quinze) dias úteis [cfr. artigo 181º, n.º 2, al. a), do Código da Estrada], apenas terminou em 23.02.2023, pelo que tendo a impugnação sido remetida por via eletrónica em 22.02.2023 é tempestiva.

            Destarte, impõe-se a revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, caso inexista [outro] obstáculo legal, admita a impugnação judicial e determine a sua regular tramitação subsequente.


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            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, caso inexista [outro] obstáculo legal, admita a impugnação judicial e determine a sua regular tramitação subsequente.


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            Não é devida tributação.

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            Notifique [artigo 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal].

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(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 22 de outubro de 2025

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Maria José Guerra

 [1.ª Adjunta]

Maria José Matos

 [2.ª Adjunta]



[1] In Direito Processual Penal Português, do procedimento (marcha do processo), vol. III, pág. 295.
[2] Obra citada, pág. 300.

[3] Cfr., entre outros muitos outros, o acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 07.05.2008, proferido no processo n.º 50/06.3 GCCTB.C1.
[4] Neste sentido, Vinício A. P. Ribeiro, Código Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 355.
[5] Alterado pelo Regulamento (UE) 2024/1183, de 11 de abril de 2024, que criou o Quadro Europeu para a Identidade Digital que obriga os Estados-Membros da União Europeia (UE) a proporcionar aos seus cidadãos, residentes e empresas uma carteira de identidade digital da UE, baseada nas mesmas especificações, até ao final de 2026, tendo por objetivo garantir aos cidadãos da UE uma identificação segura em linha e fora de linha, permitindo um acesso sem descontinuidades e de confiança aos serviços digitais públicos e privados além-fronteiras.
[6] Que entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, exceto o artigo 20.º e o n.º 2 do artigo 35.º, os quais entraram em vigor no dia seguinte ao da publicação [cfr. artigo 37º]
[7] Prolatado no processo n.º  1751/21.1T8PTM.E1, acessível em http://www.dgsi.pt
[8] Proferido no processo n.º 2292/19.2T9OER.L1-9, disponível no mesmo sítio da internet