Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CAPITOLINA FERNANDES ROSA | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO PRÉVIA E EFECTIVA PONDERAÇÃO DOS ARGUMENTOS DA DEFESA OMISSÃO DA PONDERAÇÃO IRREGULARIDADE PROCESSUAL | ||
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Data do Acordão: | 06/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM * DEC VOT | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | DECLARADA A INVALIDADE DO DESPACHO RECORRIDO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 32.º, N.º 5, DA CRP | ||
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Sumário: | I - O princípio do contraditório, pilar fundamental do processo penal garantido constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, implica o dever de ouvir qualquer sujeito processual, ou mero participante processual, quando deva tomar-se decisão que pessoalmente o afecte, correspondendo-lhe um verdadeiro direito de audiência.
II - Este princípio não se limita à possibilidade de apresentação de resposta pelo arguido, exigindo que os seus argumentos sejam efectivamente ponderados pelo tribunal antes da decisão. III - A omissão dessa ponderação, embora não configure nulidade insanável, nem nulidade dependente de arguição, consubstancia uma irregularidade processual relevante e de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do C.P.P., uma vez que afecta a validade da decisão sob escrutínio. IV - O prazo de 24 horas referido no n.º 4 do artigo 268.º do C.P.P., para o juiz tomar decisão nos casos referidos nos números anteriores da norma, não dispensa o contraditório, nem encurta o tempo de resposta do arguido, pois só começa a contar após o termo do prazo concedido para o contraditório ou da apresentação da resposta. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | *
Acordam, em conferência, na 4º Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: * I. RELATÓRIO O arguido AA interpôs recurso do despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca da Guarda - Juízo de Competência Genérica de Celorico da Beira, no âmbito do inquérito nº 115/23.7GTGRD, que declarou a perda de bens a favor do Estado, ao abrigo do disposto nos artigos 109º nºs 1 e 2 do Código Penal e 268º nº 1 alínea e) do Código de Processo Penal. Inconformado com a referida decisão, veio o arguido interpor recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões: “A. O despacho de que se recorre foi proferido e a respectiva decisão exarada, antes do ora recorrente ter podido exercer o contraditório face à promoção do Ministério Publico; B. O Exmo. Juiz, proferiu e tomou a sua decisão de declarar perdido a favor do Estado o veiculo/reboque, apreendido nos autos, levando em conta e decidindo, nos termos da promoção do Exmo. Sr. Procurador, antes do recorrente poder, sobre a mesma, pronunciar-se; C. Pondo, assim, em causa o direito ao contraditório constitucionalmente consagrado, não permitindo ao recorrente o exercício do consentâneo direito de defesa daí decorrente; D. Por outro lado, o despacho recorrido na decisão no mesmo consignada, limita-se a declarar perdido a favor do Estado do veículo/reboque apreendido e em causa nos autos; E. Não identificando tal despacho, sequer ao de leve, qual a natureza ou circunstâncias que possam por em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou possam oferecer sério risco, de nova utilização, em nova prática de factos ilícitos típicos; F. Sendo necessária a formulação de um juízo, concreto de prognose devidamente fundamentado, de que o veículo/reboque, venha a ser de novo, utilizado, quer pelo mesmo agente, quer por terceiros, para a prática de novos ilícitos típicos; G. Não sendo suficiente a afirmação genérica e não fundamentada, de que o veiculo/reboque em causa, pode ser objecto de nova utilização ilícita ou para a prática de novo ilícito; H. Não constando, pois, da decisão proferida, quais as concretas e objectivas razões, que, diga-se, não existem, que pudessem levar à conclusão de que o veículo/reboque, venha, ou possa vir a ser, de novo, utilizado, quer pelo mesmo agente, quer por terceiros, para a prática de novos ilícitos típicos; I. Pelo que, como corolário lógico, não deveria ter sido declarada a sua perda a favor do Estado, mas antes, ordenada a sua restituição ao arguido; J. O despacho recorrido, além de outras disposições legais, põe em causa, contraria e viola o artigo 32º da Constituição da República Portuguesas e o artigo 109º do Código Penal. O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo, tendo o Ministério Público apresentado resposta, referindo, em síntese, o seguinte: “ (…) resulta claramente da letra da lei, quais os bens que deverão ser declarados perdidos a favor do Estado e a respetiva tramitação processual. No caso dos presentes autos foi objeto da decisão de perda a favor do Estado um veículo de reboque de mercadorias de marca Hendra BV, com o número de quadro VIN XL...28, o qual foi apreendido quando circulava na via pública com a matrícula AV-....7 que não lhe correspondia. Na verdade, a matrícula AV-....7 corresponde ao veículo com o VIN WH...44 da marca HUMBAUR, registado em nome do arguido, e não ao reboque de marca Hendra BV, com o número de quadro VIN XL...28. Como se viu, impõe o art.º 109º do Código Penal que: “São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”. Efetivamente, o reboque de marca Hendra BV, com o número de quadro VIN XL...28, utilizado nas circunstâncias em que o foi, enquadra-se no conceito de instrumentos de facto ilícito típico, uma vez que serviu a prática do crime investigado nos presentes autos. Acresce que, caso tal veículo fosse devolvido ao arguido, poderia ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, nomeadamente a circulação ilícita nas vias públicas, como ocorria no momento em que foi apreendido. Assim como, dado que não se encontra registado e sujeito a inspeções em território nacional, tal veículo, caso fosse entregue ao arguido, poderia colocar em perigo a segurança das pessoas utilizadoras das vias públicas. Em face do exposto, parece-nos adequada a douta decisão de perda de tal veículo, não se nos afigurando ajustada, salvo o devido respeito por mais avisada opinião, decidir de forma dissonante. Quanto à tramitação da decisão, resulta do art.º 268º n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal, qua: “o juiz decide, no prazo máximo de vinte e quatro horas, com base na informação que, conjuntamente com o requerimento, lhe for prestada, dispensando a apresentação dos autos sempre que a não considerar imprescindível.” Ora, o cumprimento de tal prazo máximo de 24 horas, na situação em apreço, era incompatível com a notificação do arguido para, querendo, se pronunciar em determinado prazo. Caso tal notificação fosse determinada pelo M.mo Juiz, forçosamente iria incumprir o prazo máximo estabelecido, contrariando, assim, o espírito da lei, o que ajuizadamente não fez. A forma de sindicar tal decisão será por via recursiva, onde deverá ser apreciado o mérito da decisão tempestivamente proferida. Em face do exposto, é nosso entendimento, salvo o devido respeito por melhor opinião, que, tanto a decisão de mérito como a respetiva tramitação, decorreram em conformidade com os preceitos legais aplicáveis, não lhes devendo ser apontada qualquer censura. (…)”. * Neste Tribunal da Relação de Coimbra, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, aduzindo, em suma, o seguinte: “(…) Da violação do princípio do contraditório Do recurso apresentado consta uma síntese do processado que nos permite concluir que o despacho agora em crise foi, efetivamente, proferido sem que tivesse sido, previamente, concedido prazo ao interessado para se pronunciar sobre o teor da promoção do Mº Pº. Relativamente a este segmento do recurso, não classificou o recorrente o vício que imputa, apontando, porém, a violação dos mais básicos direitos de defesa” e do art.º 32º da C.R.P. Por versar sobre situação, nesta parte, em tudo semelhante à que se coloca nos presentes autos, citamos aqui o Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 07.11.2023 (em www.dgsi.pt), no segmento em que se refere: “(…) o vicio decorrente da sua não audição não implica imediata e necessariamente a nulidade. O art.º 61º CPP estabelece que “1 - O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de: a) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito; b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte; (…)” Por sua vez, o artigo 62º da Constituição de República Portuguesa dispõe: “1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição. 2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.” Será por relação ao primeiro dos preceitos que se pode perspectivar a dimensão do princípio do contraditório, que o recorrente aponta como postergado, e que encontra assento no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição quando ali se dispõe: “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.” Assume-se, assim, que o princípio do contraditório constitui um princípio estruturante do processo penal de estrutura acusatória, estabelecendo que a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar estão subordinados ao princípio do contraditório. Assim, por imposição constitucional, na audiência de julgamento o contraditório não contempla qualquer restrição. Porém, a Constituição remete para a lei ordinária a definição da amplitude do contraditório a vigorar nas demais fases do processo. Desta forma, só na audiência de julgamento o princípio atinge a amplitude máxima, sendo diretamente aplicável sem necessidade de conformação pelo legislador ordinário. Fora da fase de julgamento, diante da liberdade de que dispõe para conformar o contraditório, o legislador ordinário pode também definir a sanção para a sua violação, tal como será o caso do CPP em que existem diversos afloramentos desse principio, com mais ou menor expressividade na sua manifestação e nas consequências do seu desrespeito: desde logo, por referência directa, com a cominação expressa de nulidade (…) ou nos casos previstos no art.º 119º CPP – nulidades insanáveis – ou do art.º 120º CPP – nulidades sanáveis nos termos e formalismos previstos no art.º 121º do mesmo código. Fora destas situações, estaremos perante meras irregularidades, nos termos preconizados no art.º 123º CPP. Retomando o caso de que nos ocupamos, a omissão de notificação do arguido – que já havia perdido, de resto, essa qualidade por decorrência do arquivamento do inquérito decretado a 8.09.2022, como resulta do disposto no art.º 57º n.º 2 CPP [A qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo.] – porque não se mostra, por referência aos art.ºs 109º CP e 119 CPP, ali exigida sob a cominação de nulidade ou prevista na elencagem do segundo, não se configura como nulidade insanável, nem como nulidade dependente de arguição por ausência de indicação no art.º 120º CPP, pelo que terá de ser reconduzida à natureza de irregularidade, a ser arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado (n.º 1 daquele preceito), o que não se mostra feito pelo recorrente na decorrência da notificação que lhe foi feita.” (destaques nossos) Assim, não tendo sido arguida, tempestivamente – ou seja, 3 dias após a notificação dos despachos de 24.02.2025 (Ref. 32065759) e de 05.02.2025 (Ref. 32006142) - perante o tribunal de 1ª instância, a irregularidade detetada, deve a mesma ser considerada sanada. Note-se que a falta de arguição tempestiva da irregularidade apontada não prejudica o exercício do direito de recurso e impugnação da decisão de mérito.
Da falta de fundamentação do despacho recorrido O recorrente critica a falta e fundamentação da decisão. A decisão recorrida tem o seguinte teor: “No âmbito dos presentes autos e pelas razões aduzidas no despacho com a ref. eletrónica n.º 31995294, o Ministério Público arquivou o inquérito nos termos do art. 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. O veículo de reboque de marca Hendra BV, com o número de quadro VIN XL...28 serviu e, simultaneamente, foi o produto de atividade ilícita, correndo pois o risco de ser utilizada para o cometimento de novo facto ilícito típico. Nesta medida e considerando o disposto nos arts. 109.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal e 268.º n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal, declara-se o mesmo perdido a favor do Estado. Notifique.” Nesta matéria rege o artigo art.º 97º, n.º 5, do CPP, dispondo que “Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.” É certo que a fundamentação do despacho recorrido é sucinta. Porém, este remeteu para o despacho de arquivamento deduzido pelo Ministério Público (proferido, por sua vez, findo o prazo de Suspensão Provisória do Processo), onde constam as razões do pedido de perda; consignou que o veículo perdido serviu e foi simultaneamente produto da atividade ilícita, daí decorrendo o receio de vir a ser usado para o cometimento de novo facto ilícito típico; e, por fim, invocou as normas em que baseou a decisão e a sua legitimidade para a mesma. Como tal, embora parca, afigura-se-nos, ainda assim, que a fundamentação do despacho recorrido cumpre o mínimo estritamente necessário, pois permite compreender as razões da decisão (não se podendo confundir a compreensão dos fundamentos da decisão com a concordância ou discordância com os mesmos). Em todo o caso, chama-se à colação a Jurisprudência espelhada no Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 20.11.2024 (Relator: João Abrunhosa; processo 133/22.2GCVIS.C1), sustentando o seguinte: “I - A falta de fundamentação dos actos decisórios, com excepção das sentenças, dos acórdãos e dos despachos de aplicação de medidas de coacção, constitui mera irregularidade, que tem que ser arguida no próprio acto a que que se refere ou nos três dias seguintes a contar daquele em que o interessado dela tiver tido conhecimento perante o tribunal que a cometeu, cabendo, depois, recurso do despacho que recair sobre essa arguição.” (acessível em www.dgsi.pt). Assim, se mais não fosse, também por esta vertente deverá, a nosso ver, improceder o recurso.
Do mérito da decisão de perda Nos presentes autos, após o decurso do prazo de Suspensão Provisória do Processo, cujas injunções o agora recorrente cumpriu, foi determinado o arquivamento do inquérito e requerida a perda do “instrumento” do crime, o reboque agora em causa. A decisão em causa está apoiada por precedentes jurisprudenciais – desde logo, a título exemplificativo Ac. do STJ de 28.10.1992, processo 043047, acessível em www.dgsi.pt. Quanto ao mérito da decisão, remete-se, pois, para a argumentação tecida em sede de resposta ao recurso, apresentada pelo Mº Pº em 1ª instância. Neste ponto, afigura-se-nos relevante acrescentar somente o seguinte: o veículo/reboque Henra1, declarado perdido, trata-se de reboque com um peso bruto de 2800kg, logo sujeito a matrícula obrigatória, nos termos do disposto D.L. 54/2005 de 03.03 (cf. fls. 206) e art.º 117º nº 2 do Código da Estrada (cf. D.L. 114/94 de 03/05, e suas alterações subsequentes) - o que não foi diligenciado pelo agora recorrente nos vários anos em que foi seu proprietário, antes da fiscalização que deu origem ao presente auto de notícia – conforme o próprio confirmou. Assim, e fazendo mero exercício hipotético, se viesse a ser revogado o despacho recorrido, então sempre se deveria ter em consideração que é inviável, à luz do ordenamento jurídico no seu todo, determinar a restituição do reboque ao proprietário, desde logo por força do disposto no art.º 162º do Código da Estrada. Segmento em que o recurso, necessariamente, teria que improceder.” Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentada resposta. Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência. II. QUESTÕES A DECIDIR Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada⸺ o despacho proferido nos autos⸺ as questões a examinar e a decidir prendem-se com o seguinte: •Violação do princípio do contraditório. •Falta de Fundamentação do despacho recorrido. •Mérito da Decisão recorrida. * III. TRANSCRIÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA: “No âmbito dos presentes autos e pelas razões aduzidas no despacho com a ref. eletrónica n.º 31995294, o Ministério Público arquivou o inquérito nos termos do art. 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. O veículo de reboque de marca Hendra BV, com o número de quadro VIN XL...28 serviu e, simultaneamente, foi o produto de atividade ilícita, correndo pois o risco de ser utilizada para o cometimento de novo facto ilícito típico. Nesta medida e considerando o disposto nos arts. 109.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal e 268.º n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal, declara-se o mesmo perdido a favor do Estado. Notifique.” IV. MÉRITO DO RECURSO Com se enunciou, o recorrente elencou vários fundamentos para o seu recurso, que serão apreciados segundo a ordem de precedência que legal e logicamente lhe cabe. Vejamos, então. Alega o recorrente que “O Exmo. Juiz, proferiu e tomou a sua decisão de declarar perdido a favor do Estado o veiculo/reboque, apreendido nos autos, levando em conta e decidindo, nos termos da promoção do Exmo. Sr. Procurador, antes do recorrente poder, sobre a mesma, pronunciar-se; Pondo, assim, em causa o direito ao contraditório constitucionalmente consagrado, não permitindo ao recorrente o exercício do consentâneo direito de defesa daí decorrente” – cf. alíneas B) e C) das conclusões de recurso. Sustenta, assim, que “O despacho recorrido, além de outras disposições legais, põe em causa, contraria e viola o artigo 32º da Constituição da República” – cf. alínea J) das conclusões de recurso. Com vista à apreciação desta questão importa ter presente que, em síntese, emerge dos autos o seguinte: 1. Foram recolhidos indícios de que o arguido cometeu um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.º 1, alínea b) e nº 3 do Código Penal. 2. No âmbito do inquérito, foi determinada a suspensão provisória do presente processo, pelo período de 8 (oito) meses - artigo 282.º do Código de Processo Penal, sujeitando o arguido ao cumprimento das seguintes injunções: • pagamento de 550,00€ (quinhentos e cinquenta euros) ao IGFEG; • abster-se da prática de actos semelhantes aos dos autos. 3- Tendo o arguido cumprido integralmente as injunções que lhe foram impostas e mostrando-se decorrido o período de suspensão, sem que tenha havido notícia de que o mesmo tenha praticado quaisquer ilícitos de natureza criminal, o Digno Magistrado do Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 282º nº 3, do Código de Processo Penal, determinou o arquivamento dos autos, e o cumprimento do disposto no artigo 277º nº 3, do Código de Processo Penal. Tendo, ainda, o Digno Magistrado do Ministério Público proferido a seguinte Promoção: “Tendo sido por nós proferido despacho de arquivamento nos presentes autos, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 186º n.º 3 e 268º n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal, remeta os autos à distribuição, a fim de serem conclusos ao Mmo Juiz de Instrução, para que se pronuncie quanto ao destino a dar ao objeto apreendido – veículo reboque de marca Hendra BV, com o número de quadro VIN XL...28 – promovendo-se a respetiva perda a favor do Estado Português, ao abrigo dos art.ºs 109º e 110º do Código Penal, uma vez que tal objeto, simultaneamente, serviu a prática do crime investigado nos presentes autos, consubstancia a vantagem do mesmo e, sendo entregue, sempre poderia se utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.” 4- O arguido foi notificado, com cópia, do referido despacho e promoção em 03.02.2025 [Referência: 32003560]. 5- O arguido, notificado do despacho de arquivamento e da referida promoção, veio apresentar requerimento, em 07.02.2025, opondo-se a que “ seja declarado perdido a favor do estado o veículo reboque apreendido e pronunciar-se”, expondo as razões o seu desacordo, concluindo“ (…) que não se verificam os pressupostos mínimos que pudessem e alguma forma determinar a perda do reboque a favor do estado.” [cf. Referência: 2588732]. 6- Todavia, previamente ao requerimento apresentado pelo arguido referido em 5), o MMº Juiz, em 05.02.2025, proferiu o despacho (recorrido) supra transcrito [Referência: 32006142]. Pois bem. É comummente aceite que o princípio do contraditório é um dos pilares fundamentais do processo penal e implica nas palavras de Maria João Antunes, “o dever de ouvir qualquer sujeito do processo penal ou mero participante processual quando deva tomar-se qualquer decisão que pessoalmente o afecte[1]. A participação processual penal que este princípio permite, correspondendo-lhe, em bom rigor, um verdadeiro direito de audiência, significará mesmo uma forma de participação constitutiva na declaração do direito do caso quando o participante tenha o estatuto de sujeito processual[2]. O princípio do contraditório encontra-se constitucionalmente consagrado no artigo 32º, nº5 da Constituição da República Portuguesa [CRP], representando, portanto, uma exigência axiológica estruturante do processo penal. No caso, consta-se que o arguido respondeu à promoção do Ministério Público e apresentou o seu requerimento no prazo legal, mas o mesmo não foi tido em consideração no despacho recorrido. Com efeito, pese embora o arguido tenha exercido o contraditório dentro do prazo legal, o despacho recorrido não faz qualquer referência ou análise aos argumentos apresentados por aquele. Tal resulta da circunstância de o requerimento do arguido ser posterior a prolação do despacho judicial que declarou a perda do reboque em causa. Ou seja, o despacho recorrido foi proferido nos autos, na sequência da conclusão aberta ao MMº Juiz, sem que tivesse decorrido o prazo legal de resposta. Ora, nos termos do artigo 32º, nº5 da CRP, o processo penal deve observar o princípio do contraditório, garantindo as partes o direito de se pronunciar sobre elementos relevantes, assistindo assim ao arguido o direito de se pronunciar sobre todos os actos que o possam afectar, incluindo a promoção da perda de bens. Tal princípio reflectido no artigo 61º, nº1, alínea b) do Código de Processo Penal ⸺que estabelece que o arguido tem o direito de intervir no processo e ser ouvido sempre que os seus interesses possam ser afectados por decisão judicial ⸺ não se limita a mera possibilidade de apresentação de resposta pelo arguido; exige que os seus argumentos sejam efectivamente ponderados pelo Tribunal antes da decisão. Por sua vez, o artigo 97º, nº5 do citado código exige que as decisões judiciais sejam fundamentadas, o que pressupõe a ponderação efectiva dos argumentos das partes. A omissão dessa ponderação por parte do Tribunal a quo pese embora possa não configurar uma nulidade insanável, nem uma nulidade dependente de arguição, nos termos dos artigos 119º e 120º do Código de Processo Penal, consubstancia no mínimo uma irregularidade processual relevante e de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123º, nº2, do Código de Processo Penal, uma vez que tal omissão afecta a validade da decisão sob escrutínio. O Ministério Público, na sua resposta, justifica a prolação da decisão recorrida⸺ 3 dias após a promoção ⸺ invocando que “resulta do art.º 268º n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal, que: “o juiz decide, no prazo máximo de vinte e quatro horas, com base na informação que, conjuntamente com o requerimento, lhe for prestada, dispensando a apresentação dos autos sempre que a não considerar imprescindível.” e que “o cumprimento de tal prazo máximo de 24 horas, na situação em apreço, era incompatível com a notificação do arguido para, querendo, se pronunciar em determinado prazo.”. Mas, no caso, salvo sempre o devido respeito por opinião diversa, tal argumento não tem respaldo na norma citada. Com efeito, o nº 2 do citado artigo 268º garante o direito de o arguido intervir no processo, através de requerimentos, e, por sua vez, o nº 4 do mesmo preceito, determina que o juiz de instrução deve decidir no prazo máximo de 24 horas. Todavia, a regra do nº4 do artigo 268º, do Código de Processo Penal, não dispensa o contraditório (quando exigível), nem encurta o tempo de resposta do arguido, apenas significa que o prazo de 24 horas só começa a contar após o termo do contraditório ou da resposta do arguido. Cremos, assim, que a obrigação de o juiz decidir em 24 horas, para além de assegurar a celeridade e eficácia da sua intervenção, também reverte em benefício do arguido (requerente). No caso, o MMº Juiz de Instrução decidiu a promoção do Ministério Público sobre a proposta de perda de bens a favor do Estado [o que afecta os interesses do arguido], pelo que sempre se impunha o cumprimento do principio do contraditório, ou seja a notificação para o arguido responder, no prazo geral de 10 dias, nos termos do artigo 105º, nº1 do Código de Processo Penal. Neste contexto, a decisão recorrida padece de um manifesto vício de irregularidade, de conhecimento oficioso, estando por isso afectada na sua validade. Por conseguinte, atento exposto, mostram-se prejudicadas as restantes questões supra enunciadas.
V. DECISÃO Nestes termos, e com base nos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em declarar a invalidade do despacho recorrido e, em consequência, em cumprimento do princípio do contraditório, determinar a remessa dos autos ao Tribunal a quo para a prolação de nova decisão, que tome em consideração o requerimento apresentado pelo arguido em sede de contraditório. Sem custas. * Coimbra, 11 de Junho de 2025.
Capitolina Fernandes Rosa (Juiz Desembargadora Relatora) Isabel Gaio Ferreira de Castro (Juiz Desembargadora Adjunta) Helena Lamas (vota a decisão) (Juiz Desembargadora Adjunta)
[1] Direito Processual Penal, Coimbra, Almedina, 2016, pág. 74. [2] Cf. Frederico da Costa Pinto, Direito Processual Penal, 1998, Lisboa: AAFDL, pág. 227. |