Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO NA FORMA TENTADA CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA ERROS DE JULGAMENTO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS ESCOLHA E MEDIDA DAS PENAS PARCELARES E DE CÚMULO JURÍDICO VALOR DA REPARAÇÃO CIVIL | ||
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Data do Acordão: | 06/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 72.º, 77.º, 132º, Nº 2, 143º, Nº 1, 152.º, N.º 1, ALÍNEA A) E N.ºS 2, ALÍNEA A), 4 E 5 DO CÓDIGO PENAL; ARTºS 82.º-A, 124º, 125º, 126º, 127º, 410º Nº 2 A), 412º E 426º, TODOS DO CPP; ARTIGO 21º, DA LEI N.º 112/2009, DE 16 DE SETEMBRO;ARTS 483.º N.º 1 , 496º , 566.º DO CÓDIGO CIVIL. | ||
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Sumário: | 1 - O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado; b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP; c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. 2 - O crime de Violência Doméstica pode, desde logo, entrar em concurso aparente com diversos crimes base, atenta a multiplicidade de bens jurídicos susceptíveis de ser afectados como instrumento da afetação do bem jurídico tutelado (a saúde no contexto relacional pressuposto). 3 - Em situações em que se encontre afastada a cláusula de subsidiariedade expressa (porque a punição do crime convocado se revela inferior ao da violência doméstica ou em que entre o crime de violência doméstica e o crime convocado intercede uma relação de especialidade), prevalece a punição pelo crime de violência doméstica. 4 - Uma eventual agressividade da ofendida para com o marido não retira a ilicitude deste último que, no quadro dado como provado, era e sempre foi o principal agressor. 5 - O facto de a ofendida não fazer denotar publicamente que estaria a passar por ambiente marcado por violência doméstica não significa que o não estivesse de facto a viver, pois nesta problemática da violência doméstica, conforme resulta da nossa experiência forense e judiciária, as ocorrências são vividas quase sempre em silêncio e sem alarido público, na aparente «paz dos casarios». 6 - A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: • dolo directo – a intenção de realizar o facto; • dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta e • dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta. 7 - Há intenção de matar e dolo directo pois resulta da factualidade provada - não que o arguido tenha representado como possível que da sua actuação pudesse resultar a morte da vítima, o que poderia vir a configurar uma situação de dolo eventual - que o arguido quis causar a morte da sua mulher, o que não conseguiu alcançar por razões alheias à sua vontade. 8 - O elemento volitivo do dolo configura, portanto, uma situação de dolo directo, não havendo qualquer desistência válida mas apenas uma não consumação por factos estranhos ao agente. 9 - A norma do artigo 132º do CP consagra a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a chamada técnica dos “exemplos-padrão”, contidos no n.º 2 do seu corpo. 10 - A qualificação do crime de homicídio não resulta de forma automática ou inexorável da verificação de uma ou várias das circunstâncias enumeradas no art. 132º/ 2 CP, sendo necessário que as mesmas revelem especial censurabilidade ou perversidade. 11 - A conduta do arguido é passível de conduzir ao preenchimento de três circunstâncias qualificativas do homicídio, cabendo eleger uma delas para efeitos de qualificação típica por forma a que as demais possam ser mobilizadas como factor de medida da pena, notando-se que, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração, não poderá o Tribunal sopesar, na graduação da pena, as circunstâncias que façam parte do tipo de crime. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO 1. O ACÓRDÃO RECORRIDO No processo comum colectivo nº 499/24.0PCCBR do Juízo Central Criminal da Comarca de Coimbra (Juiz 2), por acórdão datado de 25 de Fevereiro de 2025, o respectivo Colectivo chegou ao seguinte veredicto: a) «Condena o arguido AA pela prática, em autoria material, de 1 crime de Violência doméstica agravada [artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.ºs 2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal] na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; b) Condena o arguido AA pela prática, em autoria material, de 1 crime de Ofensa à integridade física [artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal] na pena de 4 meses de prisão; c) Condena o arguido AA pela prática, em autoria material, de 1 crime de Homicídio qualificado na forma tentada [131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), 22.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 do Código Penal] na pena de 9 anos e 6 meses de prisão; d) Em sede de cúmulo jurídico e em conformidade com o artigo 77.º do Código Penal, condena o arguido AA na pena única de 10 anos e 6 meses de prisão; e) Condena o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos com BB, por qualquer meio, mesmo que por interposta pessoa pelo período de 5 anos e de afastamento do domicilio pessoal e profissional desta última durante aquele período de tempo, com a imposição de fiscalização por meios técnicos de controlo à distância caso o arguido seja colocado em liberdade condicional ou sua antecipação antes do termo desta sua pena [artigo 152.º, n.º 5 do Código Penal]; f) Julga o pedido de indemnização civil formulado pela Demandante Unidade Local de Saúde ... integralmente procedente e, consequentemente, condena o Demandado AA a pagar àquela a quantia de € 112,07 acrescida de juros de mora desde a notificação para contestar; g) Arbitra a indemnização de € 6.000,00 à ofendida BB e, consequentemente, condena o arguido AA a pagar-lhe a indemnização de € 6.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal em vigor desde a data deste acórdão até efectivo e integral pagamento; h) Declara perdidos a favor do Estado as garrafas, os fósforos e o isqueiro nos termos do artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal; i) Ordena a restituição dos demais objectos e documentos apreendidos nos termos do artigo 186.º, n.º 2 do Código de Processo Penal; j) Condena o arguido AA nas custas do processo em conformidade com o disposto no artigo 513.º do Código de Processo Penal, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC – n.º 5 do artigo 8.º e Tabela III constante do Regulamento das Custas Processuais; k) Ordena-se a remessa, após trânsito, de boletim ao registo criminal; l) Ordena-se que se proceda ao depósito desta sentença nos termos do disposto no artigo 372º n.º 5 do Código de Processo Penal». 2. Inconformado, o arguido AA recorreu do acórdão condenatório, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): 1. «Vem o presente recurso interposto do acórdão que condenou o arguido em concurso real e efetivo de:1 crime de violência doméstica agravada, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; 1 crime de ofensa à integridade física, na pena de 4 meses de prisão; 1 crime de homicídio qualificado na forma tentada, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão p. e p. pelos artigos 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), 4 e 5, artigo 143.º, n.º 1, artigo 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), 22.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 todos do Código Penal, em cúmulo jurídico na pena única de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão, foi também condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida BB, p. p. pelo artigo pelo 152.º, n.º 5 do Código Penal, no pagamento da quantia de € 112,07 peticionada no pedido de indemnização civil, e ainda na indemnização de € 6.000,00 à ofendida, a título de danos não patrimoniais. 2. O presente recurso abrange toda a decisão, incluindo a impugnação da matéria de facto, com prova gravada. 3. Salvo o devido respeito a douta opinião diversa, consideram-se incorretamente julgados os pontos “f)”; “g)“; “h)”; “i)”; “l)” “m)”; “n)”; “p)”; “u)”; “v)”; “w)”; “x)”; “ah)”; “ai)”; “aj)”; “ak)”; “al)”; “an)”; “ao)”; “ap)”; “aq)”; “ar)”; “as)”; “at)”; “av)”; “aw)”; “ax)”; “ay)”; “az)”; “ba)”; “bb)”; “bc)”; bd)”; be)”; “bf)”; “bg)”; “bh)”; “bi)”; “bk)”; “bq;)” “br)” “bs)”; “bt)”; “bu)”; “bv)”; “bw)”; ” bx)” dos factos provados. 4. As concretas provas que impõem decisão diversa reportam-se às declarações do arguido AA, gravadas em sistema Citius, em 28/01/2025, com início às 09:54h e termo às 11:27h, da ofendida BB, gravadas em sistema Citius, em 28/01/2025, com início às 16:23h e termo às 16:45h, do depoimento da testemunha CC, gravadas em sistema Citius, em 28/01/2025, com início às 11:50h e termo às 11:54h e do depoimento da testemunha DD, gravadas em sistema Citius, em 28/01/2025, com início às 12:13h e termo às 12:15h, conforme consta na ata de julgamento daquele dia e a prova documental carreada para os autos. 5. Salva a devida vénia a douta opinião diferente, o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação, interpretação e julgamento da prova. 6. Efetivamente, o Tribunal a quo, no capítulo da sua convicção respeitante à matéria de facto, refere que o arguido assumiu parte da factualidade objetiva constante da acusação pública, sendo tais declarações, em grande medida, confessórias dos crimes que lhe são imputados. Mostrando-se as mesmas, por si só, suficientes para suportar a factualidade vertida nas alíneas b), c), d), e); f), g), h), j), k), n); q), r), s), v) e z), aa), ab), ad), ae), af) e ag). 7. Ora, in casu, o recorrente optou por prestar declarações. Não obstante, no que concerne à factualidade dada como provada, de modo algum, as suas declarações são confessórias dos crimes imputados, aquilo que o recorrente declarou foi diverso da convicção que o Tribunal formou quanto à sua participação em tais factos. 8. No que concerne ao crime de ofensa à integridade física, os Meritíssimos Juízes do Tribunal Coletivo decidiram, e bem, proceder à alteração da qualificação jurídica, uma vez que o arguido/recorrente vinha acusado do crime de ofensa à integridade física qualificada. 9. Contudo, salvo o devido respeito, é, pois, por isso, inapropriado o “salto qualificativo” que o douto Tribunal a quo deu para se darem provados factos cuja insuficiência é evidente. 10.Efetivamente, de todo o contexto extrai-se que os factos, consubstanciados num episódio único e esporádico, não deve tomar tamanho desvalor que leve o Tribunal a concluir estar verificado o dolo direto. 11. É evidente que nem há factualidade provada suscetível de fundamentar que a bofetada atingiu a zona do ouvido intervencionado cirurgicamente de EE. 12.Salvo o devido respeito por diversa opinião, o Tribunal não podia apartar a sua consideração para alicerçar factos constantes da acusação (pontos 11. e 12. da acusação pública) como provados. 13.Com efeito, constata-se que neste ponto o Tribunal não andou bem porque omitiu na sua motivação quanto a esta matéria conclusiva - dada como provada. 14.Razão pela qual se entende que não deve ser dado como provado que o recorrido atingiu o ouvido intervencionado cirurgicamente. 15.Com todo o respeito, também não se aceita, por ausência de qualquer suporte fático, que o douto tribunal recorrido tire a conclusão de que o recorrente tem “personalidade claramente criminógenas” 16.Ora, não encontramos na acusação proferida pelo Ministério Público, neste concreto ponto, qualquer elemento probatório que fundamente esta matéria, pelo que salva a devida vénia, elencá-lo teríamos apenas o certificado do registo criminal do arguido, que à data - nesta data - não regista qualquer contenda com a justiça. 17.Todavia, não o pode fazer pura e simplesmente. Salvo o devido respeito o Tribunal não pode colmatar a ausência de menção de factos naquela, por muito boa vontade que tenha. 18.Assim, não deixa de suscitar sérias reservas e justificadas interrogações face à ausência de indicadores fácticos não só bastantes como indispensáveis para a aplicação, afinal, de uma pena privativa da liberdade. 19.Ora, sendo a pena de prisão efetiva a último ratio na punição dos crimes, nos termos do art.º 70º do Código Penal, entendemos que, como primeira operação a realizar, deveria o meritíssimo Juiz, na definição da moldura legal abstrata, arrancar da regra da preferência pela aplicação da pena não privativa de liberdade 20.Pelo que, salvo o devido respeito a douta opinião diferente, violou os artigos 143º e 70º e 71º, todos do CP, e ainda o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP ao enumerar factos provados e não provados que mais não são do que matéria conclusiva e 32º, nº 2 da CRP. 21.No respeitante ao crime de crime de violência doméstica agravada, o recorrente, assume a sua quota de responsabilidade nos factos, mas a razão de discordância prende-se com a subsunção de tais factos ao crime de violência doméstica. 22.Nem toda a conduta agressiva se transforma em maus tratos físicos ou psíquicos, para efeitos de preenchimento do artigo 152º do Código Penal, e, por isso, entendemos que, abstratamente, estaríamos perante um crime de ofensa à integridade física. 23.Sabemos que esta forma de violência dada como provada tem que ter uma tradução fatual que nos permita distinguir entre os maus tratos físicos ou psíquicos, e as agressões físicas ou psíquicas, pelo que importa distinguir, se estamos perante um quadro que se caracteriza por algumas vivências conjugais, em que a tensão existente entre o casal, culmina com uma situação de agressão física (que pode até ter características de reciprocidade!) e que não compromete, de forma profunda, o direito à vida, à honra e à integridade física, e nos remete para o campo das agressões físicas (simples ou qualificadas). 24.Com efeito, não é credível, nem tão pouco é lógico que a ofendida que se defendia das agressões, como o afirmou em sede de audiência e julgamento e, claro, tinha o desembaraço de responder com um sapato e com uma chapada, vivesse num quadro de violência doméstica. 25.Salvo o devido respeito, darem-se como provados factos que consubstanciam a prática do crime de violência doméstica, é manifestamente contraditório como escrever-se na motivação da matéria de facto, como se escreveu, que: “BB também contextualizou que o relacionamento com AA se caracterizava por uma agressividade verbal recíproca. (destacados e sublinhado nossos). 26.O recorrente não pode também resignar-se em se ter dado por provado que “Mesmo o acto descrito em aa), ainda que surgindo como retorsão, afirma-se de uma agressividade ou brutalidade francamente superior à prévia estalada sofrida. 27.Perguntamos qual foi o caminho percorrido pelo Tribunal a quo no sentido de se provar que a agressão do recorrente foi de “uma agressividade ou brutalidade francamente superior. 28.Mais, viver num ambiente familiar hostil e violento é debilitante para a vítima, afeta de forma direta, física e psicologicamente, pelo que estas, em regra, são pessoas com baixa autoestima; depressão; ansiedade; sentimento de impotência e culpa; níveis consideráveis de stress; capaz de apresentar menor eficácia parental, ora, nenhum destes quadros foi alegado (comprovado) pela vítima, aliás, nem mesmo em sede de audiência e julgamento, sem descurarmos a imediação e a oralidade, excecionando-se a “perturbação” ao descrever o episódio ocorrido em 16 de março de 2024. 29.Posto isto, se atentarmos na matéria de facto provada atinente ao recorrente, bem como à que se impugna e lhe respeita, conclui-se que existem dúvidas quando à verificação deste crime. 30.Mas há ainda mais. Como se pode medir o grau de ilicitude e determinar a medida da pena em concreto, mesmo a admitir que estivessem preenchidos, de facto, os elementos objetivos e subjetivos do crime, o que não se aceita, quando não se apurou, porque não se indagou, o verdadeiro contexto fáctico em que as discussões operavam, que nos permita distinguir entre os maus tratos físicos ou psíquicos, e as agressões físicas ou psíquicas. 31.Note-se ainda que alguns dos factos ocorreram em Angola, desconhecendo o douto Tribunal se a ofendida denunciou a situação naquele país. 32.Não basta aceitar ou rejeitar em bloco as declarações e depoimentos prestados. 33.Como tal, sempre que o julgador tenha dúvidas quanto à verificação ou não de determinado facto deverá decidir no sentido mais favorável ao arguido, homenageando o princípio in dubio pro reo, respeitando-se o princípio da presunção da inocência (cf. artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). 34.Nestas circunstâncias, tem de se concluir que o Tribunal não interpretou nem aplicou corretamente os aludidos preceitos e com este sentido, quando deveria tê-los interpretado e aplicado. 35.Pelo que, salvo o devido respeito a douta opinião diferente, violou também os artigos 152º e 70º e 71º, todos do CP, e ainda o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP. 36.Assim, deve o arguido ser absolvido do crime de violência doméstica agravada de que vinha acusado e de que foi condenado. 37.Sem prescindir, mas por mera cautela jurídica e por ser admissível hipoteticamente entendimento diverso, isto é, julgarem-se provados os elementos objetivos e subjetivos deste crime, o que não se aceita e se repudia, não se poderá deixar de equacionar o excesso da pena que lhe foi aplicada. 38.Aliás, é o Tribunal recorrido a concluir no seu capítulo DA MEDIDA DA PENA DA CULPA QUANTO AO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: “a ofensividade dos actos materializados pelo arguido AA e que não se acha intensa [não sendo conhecidas maiores sequelas ou lesões de que o puro infligir de dor]”. (destacados e sublinhado nossos). 39.O recorrente foi ainda condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, [131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), 22.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 do Código Penal], na pena de 9 anos e 6 meses de prisão. 40.A primeira observação é a de que ficamos sem saber se a condenação ocorre nos termos nos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e j), 22.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 do Código Penal; nos termos dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alíneas b) d) e j), 22.º, n.1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 do Código Penal; nos termos dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), 22.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 do Código Penal. 41.Refira-se, em boa verdade, que já no ponto III.3 - DA DEFINIÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL DO ARGUIDO, este Tribunal Coletivo concluía que o arguido cometeu, em concurso real efetivo, (…) “- um crime de Homicídio qualificado na forma tentada [artigos 131.º, 132.º, alínea b) e 22.º, n.º 1 e 2, alínea b) do Código Penal].” (destacados e sublinhado nossos). 42.Na verdade, não é tarefa fácil deliberar condenar o arguido pelo crime em análise, quiçá, daí, a necessidade de o acórdão posto em crise se espraiar em longas considerações sobre o tema. 43.Salvo o devido respeito a douta opinião diferente, a decisão de que se recorre corporiza, pois, um erro judiciário, alicerçado num incorreto julgamento da matéria de facto, uma vez que a prova produzida nos autos não autoriza a conclusão de que o recorrente tenha arquitetado um plano para tirar a vida à ofendida. 44.Pois, que, na verdade, os factos provados são a matéria fundamental da decisão de direito, impondo uma decisão condenatória quando todos os elementos típicos de um crime dali resultam. 45.Ora, como é consabido “A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo directo – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta. “ 46.O que não se verifica no presente, portanto, soçobrando tais elementos, consequentemente, tal crime não pode ser imputado ao arguido ora recorrente. 47.No caso em análise, entende o recorrente que da matéria de facto como provada não se retira o elemento subjetivo da conduta àquele assacada. 48.Salvo o devido respeito a douta opinião diferente, o recorrente não deu aos factos a mesma interpretação do Tribunal, ou melhor dito – aquela que o Tribunal pretendia obter com a sua prestação em julgamento, ou seja, a confissão integral. 49.Em boa verdade, é pertinente dizer que o recorrente afirmou – até à exaustão que nunca teve intenção de matar a ofendida e não sabia que o produto era inflamável. 50.Percorrendo as declarações do recorrente, este também não disse que foi a casa da ofendida para falar dos dinheiros, antes para lhe pedir os documentos da casa. 51.Resulta claramente das declarações do arguido que seu desígnio era algo que não passava por matar a ofendida, visando recuperar os documentos referentes a bens imóveis (casas) que o mesmo possuía em Angola, contudo estavam na posse daquela. 52.Ora, as circunstâncias tornam duvidoso que, na realidade, a vontade do recorrente fosse a de pôr termo à vida da ofendida, uma vez que o recorrente pretendia uma ação da ofendida, leia-se a devolução dos documentos, por conseguinte, provocar-lhe a morte não lhe resolvia o problema. 53.Efetivamente, não podemos aceitar, por ser absolutamente descabido, a versão da ofendida, ou seja, que o arguido foi a sua casa por esta querer por termo à comunhão de vida. 54.Ora, como consta da matéria de facto provada, a ofendida assumiu, no dia 1 de janeiro de 2024, que queria pôr termo ao casamento, sendo que o arguido ainda coabitou com a ofendida durante 2 semanas, embora dormindo em quartos separados (ae); af) e ag) da matéria de facto provada). 55. Portanto, o recorrente saiu de casa em meados de janeiro de 2024. 56.Ora, só em 15/16 de março é que se determina a tal vingança? 57.Conforme se problematizou lá atrás, aos minutos 16:22 a minutos 16:03, quando a perguntas da Ilustre Magistrada do Ministério Público se essas ameaças aconteceram em angola ou já a ofendida estava em Portugal, disse: “Isso foi em Angola, aqui ele não me disse. Aqui nunca aconteceu…” (…) 58. E, por ser verdade, o doutro Tribunal a quo não deu como provado o ponto 7 da acusação particular “Já após residirem em Portugal, o arguido AA, por diversas vezes ainda que em dias não concretamente apurados, disse a BB, em tom sério, que a matava e que a seguir se suicidava. 59.Ressalvado o devido respeito, a tese do recorrente é mais assertiva e coerente, ou seja, o motivo da deslocação relacionava-se com os documentos da(s) casa(s), e não pelo fim do casamento. 60.Obviamente, que não basta dizer-se que o arguido tem naturalmente interesse e vantagem em rebater a factualidade que lhe vinha imputada (refuta, nega…) e que os factos apurados assentaram no depoimento credível da ofendida. 61.Ora, é indispensável que o douto Tribunal nos dê, o que não dá, o seu raciocínio lógico-dedutivo para esta sua convicção, a fim de poder ser sindicada a sua apreciação, valoração e julgamento da prova. 62.Desta feita, deve ser dada como não provado os factos em ah) do capítulo Factos Provados [ah) O arguido AA, em data não concretamente apurada, mas indexada a, pelo menos, 15 de Março de 2024, decidiu retirar a vida a BB uma vez que não aceitava o fim do relacionamento]. 63.Pois, não é demais referir que o arguido ora recorrente demonstrou ter atuado unicamente movido pelo ensejo de “assustar” a ofendida face à dispersão dos bens em Angola. 64.Relativamente aos factos ocorridos no interior da casa de banho, o recorrente, usou uma garrafa (com apenas a capacidade de 0,50 litros), e a segunda garrafa utilizada na rua, posteriormente. 65.Ora, o Tribunal a quo ao dar como provado a alínea ay) dos factos provados “estando completamente coberta pelo líquido derramado” (destacados nossos), o que se impugna, contraria notoriamente as regras da experiência comum, da prudência e do bom senso. 66.Venerandos Juízes Desembargadores, dúvidas que nos assaltam também quanto ao efeito do produto utilizado, por não se tratar de um produto altamente inflamável. 67.E surpreendentemente – ou talvez não - percorrendo a matéria de facto, não encontramos um único ponto que diga que o produto era altamente inflamável (como por exemplo a gasolina). 68.E cremos que este ponto deveria ter tido a devida apreciação, uma vez que a inflamabilidade refere-se à facilidade com que algo pode ser queimado, mas altamente inflamável refere-se ao estado da substância. 69.Embora se trata de um “líquido incolor de mistura inflamável da classe de destilados de petróleo”, era aquele idóneo a provocar a morte, não estando a ofendida manietada ou em lugar fechado? A ofendida encontrava-se na impossibilidade ou em grave dificuldade de resistir ou de se defender? 70.Ressalvado o devido respeito, entendemos que não. 71.Por outro lado não se pode aceitar a ligeireza com que o Tribunal da como provado o teor da alínea bw) dos factos provados e que se cita: “ Não tendo logrado os seus desígnios por motivos alheios à sua vontade, atenta a rápida reacção de BB e intervenção de FF e GG”. 72.Ora, é indispensável a alusão factual que a ofendida, com aquela quantidade de líquido, na rua, a correr, ficaria em chamas - a arder – acabando por morrer, caso o arguido a alcançasse. 73.Na realidade, pretendeu o Tribunal a quo extrair de alguns factos conhecidos conclusões que os mesmos não consentem, pelo que deve ser dado como não provado o constante da alínea referida. 74.Atente-se, pois, que nenhuma prova foi produzida que permita afirmar positivamente que o recorrente quis, efetivamente, tirar a vida à ofendida. 75.Em face do que fica dito, salvo o devido respeito a douta opinião diferente, evidente se torna que a factualidade que vem de se impugnar tem de passar a figurar na matéria de facto dada como não provada – tendo daí de se tirar a devida consequência, que é a absolvição do recorrente do crime de homicídio qualificado na forma tentada. 76.A decisão recorrida é, desta forma, censurável pelo arbítrio relativamente ao princípio da livre apreciação da prova (cf. artigo 127.º do CPP) e concomitante violação do princípio da presunção da inocência (cf. artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo. 77.É sabido que o princípio “in dubio pro reo” aplica-se, livre de restrições, não só nos elementos fundamentadores da incriminação, mas também na prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão suscetível de desfavorecer, objetivamente, o arguido. 78.Salvo o devido respeito a douto entendimento diferente, o tribunal a quo errou na interpretação e aplicação do direito e, assim, violou também as disposições dos artigos (cf. artigo 14º; 50º; 70 e 71; 131º; 132º; 22º e 23º do CP, 127.º, 374º, n.º 2 do CPP, 32º e 205º da CRP). 79.Sem prescindir, mas por mera cautela jurídica e por ser admissível hipoteticamente entendimento diverso, isto é, julgarem-se provados os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de que o recorrente foi acusado e condenado, o que não se aceita e se repudia, não se pode deixar de equacionar o excesso das penas parcelares que lhe foram aplicadas. 80.Relativamente ao crime de ofensa à integridade física, tendo em conta o que anteriormente se disse sobre o mesmo, deve a pena de 4 meses de prisão ser alterada por pena de multa porque manifestamente adequada e suficiente a realizar as finalidades da punição perante ilícito de pequena gravidade objetiva e a inexistência de antecedentes criminais. 81.No que tange ao crime de violência doméstica agravada, bem diferente do propugnado pelo Tribunal recorrido, o recorrente entende que o Tribunal recorrido deveria ter aplicado uma pena próxima do mínimo da moldura abstratamente aplicável. Aplicação que se reclama. 82.No que respeita ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, tendo em consideração o que anteriormente se disse no que concerne, mormente, quanto ao circunstancialismo em que os factos ocorreram, o seu débil estado clínico, o facto de não ter antecedentes criminais pela prática de quaisquer crimes, não podemos deixar de considerar que a pena de 9 anos e 6 meses de prisão se mostra desadequada e desproporcional no caso em concreto. 83.Nestas circunstâncias e, após a aplicação das penas parcelares no quantum propugnado, o cúmulo jurídico deve ser reformulado. 84.Julga-se assim que a pena única deve ser fixada em medida não superior a cinco (5) anos de prisão, devendo ser suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50º Código Penal. 85.O arguido deve ser absolvido da obrigação de indemnizar a ofendida, a título de danos não patrimoniais. 86.Não obstante, sempre se anotará, brevemente, que o montante de € 6.000,00 é claramente excessivo, não só por não ter qualquer fonte de rendimento, mas também pela quase insuperável debilidade do recorrente que vive em reclusão «e suportar é o tempo mais comprido.». Nestes termos e nos mais e melhores de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, Venerandos Juízes-Desembargadores, deve ser concedido provimento ao presente recurso, nos termos que se tem vindo a propugnar, com o que assim se fará inteira Justiça». 3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que ele não merece provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância. 4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso. 5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, junta a resposta do arguido, foram colhidos os vistos, após o que se realizou a respectiva conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto dos recursos Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113]. Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso. Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões. Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação. Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões. Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal: 1. Existe algum erro de julgamento na prova dos factos f, g, h, i, l, m, n, o, p, u, v, w, x, ah, ai, aj, ak, al, am, an, ao, ap, aq, ar, as, at, av, aw, ax, ay, az, ba, bb, bc, bd, be, bf, bg, bh, bi, bj, bk, bq, br, bs, bt, bu, bv, bw e bx (que não deveriam ter sido dados como provados)? 2. Foi violado o princípio «in dubio pro reo»? 3. Está perfectibilizado o crime de violência doméstica agravado? 4. Não se perfectibilza o elemento subjectivo do crime de homicídio qualificado na forma tentada? 5. Em sede de penas, deveria ter sido aplicada, na fase da escolha de pena, a de multa para sancionar o crime de ofensa à integridade física do enteado do arguido? 6. As penas parcelares (dos 3 crimes) e de cúmulo jurídico foram exageradas? 7. Deverá, a ser fixada a pena de cúmulo em 5 anos, ser suspensa na sua execução? 8. A indemnização civil foi exagerada? 2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO 2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos[1], com interesse para a decisão deste recurso (transcrição): § Do Libelo Acusatório a) O arguido AA e BB são casados entre si, tendo contraído casamento, em Angola, no dia 26 de Março de 2021; b) BB tem um filho menor, EE, nascido em ../../2013 que residia com o casal desde a data do casamento, c) Ostentando o sobredito EE problemas de audição; d) O arguido AA sofreu um acidente vascular cerebral ainda em Angola, ficando a ser acompanhado medicamente desde essa data; e) O arguido AA e BB mantiveram, no decurso do seu relacionamento, frequentes discussões entre si; f) Enquanto residiam em Angola, o arguido AA desferiu socos e chapadas em BB em, pelo menos, quatro situações distintas ocorridas em datas não concretamente apuradas mas necessariamente cifradas entre 26 de Março de 2021 e 15 de Janeiro de 2023, g) Tendo, nessas mesmas ocasiões, atingido BB com objectos arremessados em direcção ao corpo daquela, h) Atirando, numa das situações explanadas, uma cadeira que não atingiu BB; i) Naquele mesmo lapso temporal descrito em f), o arguido AA disse a BB, em data não concretamente apurada, que “se você me deixar, eu vou-te matar” j) No dia 15 de Janeiro de 2023, AA, BB e EE vieram para Portugal e passaram a residir na zona de ..., k) Tendo, em Abril de 2023, se deslocado para ... e fixado residência na Rua ..., em ...; l) Em data não concretamente apurada ocorrida entre os meses de Setembro e Outubro de 2023, AA encontrava-se no interior da residência a trocar mensagens telefónicas de conotação sexual com outra mulher; m) Tendo BB chegado a casa, apercebeu-se dessas mensagens pelo que confrontou o arguido AA com o ocorrido e dirigiu-se, de seguida, para o quarto, n) No que AA seguiu no seu encalço, tendo-a, nessa sequência, empurrado e desferido um soco no correspondente braço direito; o) Porque BB referiu então que ia chamar a polícia, o arguido AA cessou a sua conduta; p) BB sofreu dores na sequência da actuação descrita em n); q) No dia 31 de Dezembro de 2023, o arguido AA, BB, EE e HH, irmã do arguido, foram a uma festa de aniversário de um amigo daquele último, r) Deslocando-se, após o término da festa, para a zona de ... por forma a apanhar um autocarro para a residência de AA e BB; s) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em q) e r), o arguido AA ficou irritado ao aperceber-se que outros transeuntes lançaram alguns foguetes para o ar ao ponto de se ter colocado no correspondente encalço, t) Tendo, ao não os conseguir apanhar, retornado, irritado, para junto de BB, EE e HH; u) EE advertiu então o arguido AA que estava uma pessoa a assistir à janela, v) Tendo o arguido AA desferido, nessa sequência, uma bofetada na zona da orelha de EE, w) Atingindo, ademais, o ouvido ao qual o menor tinha sido operado recentemente por padecer de problemas auditivos; x) EE sofreu dores na sequência do descrito em w); y) BB perguntou então ao arguido AA porque razão é que ele havia agredido o seu filho, z) Tendo, de seguida, desferido uma estalada na face do arguido AA, aa) Vindo o arguido AA, por seu turno, a desferir um soco no queixo de BB e acabando, ambos, por se agarrarem mutuamente; ab) Porque o arguido AA se apercebeu que as demais pessoas no local haviam chamado a polícia, colocou-se então em fuga; ac) BB sofreu dores na sequência do descrito em aa); ad) Devido ao descrito em f) a ac), BB decidiu separar-se do arguido AA ao ponto de lhe comunicar tal intenção; ae) O arguido AA ainda coabitou com BB na residência descrita em k) durante 2 semanas adicionais, af) Dormindo, contudo, em quartos separados, ag) Vindo, no entanto, a sair da residência e passado a morar no anexo da oficina em que trabalhava; ah) O arguido AA, em data não concretamente apurada mas indexada a, pelo menos, 15 de Março de 2024, decidiu retirar a vida a BB uma vez que não aceitava o fim do relacionamento, ai) Arquitectando um plano em que lhe derramava combustível, acendia uma chama na sua direcção e lhe ateava fogo; aj) Nessa sequência, o arguido AA, no dia 15 de Março de 2024, contactou telefonicamente BB e disse-lhe que tinha que ir à residência buscar uns documentos que lá havia deixado; ak) Na concretização do plano descrito em ah) a ai), o arguido AA, no dia 16 de Março de 2024, muniu-se um isqueiro e de uma carteira de fósforos, al) Mais tendo pego em três garrafas de plástico, com capacidade de 0,50 litros, am) Tendo enchido uma delas com líquido incolor de mistura inflamável da classe de destilados de petróleo, an) Mais colocando na segunda esse mesmo líquido misturado com uma mistura corrosiva com a presença de ácido sulfúrico, ao) E enchendo a terceira garrafa com a mistura corrosiva com a presença de ácido sulfúrico, ap) Tendo, após, ocultado tais objectos no interior do casaco que envergava; aq) Na posse de tais objectos, dirigiu-se, de seguida, à residência de BB e, aí chegado, telefonou-lhe, pelas 12h00m, a dizer que estava à porta de casa; ar) Como BB se preparava para tomar banho, encontrando-se já na casa de banho e apenas envergando uma camisola de pijama, umas cuecas e um pano a tapar as pernas, pediu a EE para abrir a porta; as) Porque EE abriu a porta, o arguido AA entrou na residência, dirigiu-se à casa de banho onde se encontrava BB e, de imediato, fechou a porta; at) Tendo BB indagado quais os documentos que o arguido AA necessitava, este, acto contínuo, abriu novamente a porta da divisão e retirou do interior do casaco que envergava a garrafa mencionada em am), au) Abrindo-a e derramando, subsequentemente, o conteúdo da mesma no corpo de BB e nas peças de roupa que esta envergava ao ponto de as encharcar, av) Isto ao mesmo tempo que gritou “eu vou-te matar”; aw) Acto contínuo, o arguido AA retirou uma caixa de fósforos do interior do casaco e tentou acender um deles, ax) Manuseando-o de forma repetida com o intuito de provocar chama e de seguida o atirar em direcção a BB para que iniciasse a ignição da substância combustível e assim atear fogo ao corpo daquela; ay) Nessa altura, BB, estando completamente coberta pelo líquido derramado, conseguiu agarrar os pulsos do arguido AA e empurrou-o para a zona do corredor, az) Logrando, de seguida, fugir para a rua já só com a camisola de pijama e as cuecas vestidas ao mesmo tempo que gritava por socorro; ba) O arguido AA foi no encalço de BB ainda na posse da caixa de fósforos; bb) Tendo o arguido AA logrado alcançar BB, tentou, novamente, acender a chama de um fósforo com vista a iniciar a ignição da substância combustível para, com isso, atear fogo àquela, bc) O que não conseguiu fazer porque, nessa altura, apareceu GG, vizinha de BB, que, apercebendo-se do que se passava, agarrou os braços do arguido AA, bd) Ao ponto de a caixa de fósforos ter caído ao chão; be) Tendo o arguido AA conseguido libertar-se, retirou do interior do casaco a garrafa de plástico mencionada em an) e abriu-a, bf) Mais despejando o líquido combustível que continha sobre BB e atingindo GG; bg) O arguido AA retirou então um isqueiro do seu bolso e começou a manuseá-lo com o intuito de provocar uma chama, bh) No que BB e GG aproveitaram para fugir; bi) O arguido AA continuou, nessa senda, no encalço de BB enquanto continuava a tentar acender o isqueiro, bj) Tendo então surgido FF e logrado agarrar o arguido com subsequente queda do isqueiro no chão; bk) FF conduziu, após, o arguido AA para trás do portão de sua casa e não mais o deixou dali sair até chegar a polícia que já havia sido chamada, bl) Tendo o arguido AA retirado então a garrafa mencionada em ao) e ingerido o líquido com a presença de ácido de baterias que aquela continha, bm) O que motivou a sua condução aos Hospitais ... e o consequente recebimento de assistência; bo) BB foi conduzida aos Hospitais ..., por apresentar falta de ar, traumatismo das vias aéreas por inalação dos vapores da substância combustível e ardor e irritação na zona genital por contacto com o líquido de mistura de produtos inflamáveis. bp) Em consequência das lesões sofridas, BB teve um período de doença de 3 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e capacidade de trabalho profissional; bq) Com as condutas acima descritas em e) a p) e aa), o arguido AA agiu de forma livre, voluntária e com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde de BB e de lhe provocar receio pela sua vida e integridade física, causando-lhe assim mau estar físico e psicológico, resultado esse que representou e conseguiu, br) Isto não obstante saber que a mesma BB se achava ligada a si como sua cônjuge; bs) Com a conduta descrita em v) o arguido agiu ainda de forma livre, voluntária e com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde de EE; bt) Ao derramar os líquidos que sabia compostos por uma mistura inflamável e por uma mistura corrosiva sobre corpo da BB, sua esposa, tentando de seguida acender a chama dos fósforos e isqueiro na sua direcção de forma a atear fogo ao corpo daquela, o arguido AA agiu de forma livre e voluntária, com o propósito não concretizado de tirar a vida da ofendida, bu) Bem sabendo que o meio utilizado e a forma como agiu eram idóneos para aquele efeito, tendo planeado e reflectido na sua conduta e persistido nesse propósito desde, pelo menos, o telefonema descrito em aj), bv) Tendo, ademais, percepção que, a atear fogo ao corpo de BB, a sujeitaria a um sofrimento particularmente intenso, bw) Não tendo logrado os seus desígnios por motivos alheios à sua vontade, atenta a rápida reacção de BB e intervenção de FF e GG; bx) Em tudo agiu sempre o arguido AA de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal; by) Os custos dos cuidados médicos descritos na alínea bo) dos factos provados cifraram-se na importância de € 112,07; § Das Condições Pessoais Reportadas ao Arguido AA bz) O arguido AA trabalhava, enquanto em liberdade, como mecânico automóvel, ca) Residindo, após a saída da habitação mencionada em k), num anexo junto à oficina; cb) O arguido AA tem quatro filhos a residirem em Angola; cc) O arguido AA tem apresentado comportamento conforme em meio prisional, cd) Frequentando a escola e desenvolvendo acompanhamento terapêutico com vista à normalização psicológica e psiquiátrica, ce) Sendo, nesse contexto, visitado pela irmã; cf) O arguido AA é tido pelos colegas de trabalho como pessoa de bom trato e correcta; cf) Nada consta do Certificado de Registo Criminal do arguido AA» 2.2. Deram-se como não provados os seguintes factos (transcrição): «§ Do Libelo Acusatório 1. Já após residirem em Portugal, o arguido AA, por diversas vezes ainda que em dias não concretamente apurados, disse a BB, em tom sério, que a matava e que a seguir se suicidava; 2. O episódio descrito em l) a p) deu-se cerca das 15h00m, durante a semana e em data próxima a 8 de Outubro; 3. O arguido AA, no episódio descrito em l) a p), agarrou BB pelos braços, 4. Tendo o empurrão descrito em n) sido materializado contra o espelho da parede do quarto; 5. Para além das dores descritas em p), BB ficou ainda com um hematoma no braço na sequência da actuação descrita em n); 6. O episódio descrito em q) a ac) deu-se por volta das 22h00m; 7. Ao tomar nota do comportamento do arguido AA tal como descrito em s) e t), BB disse-lhe para não interpelar os transeuntes, 8. BB ficou com o queixo inchado e com um hematoma na sequência do descrito em aa); 9. A decisão de executar o plano descrito em ah) e ai) foi tomada em data anterior ao dia 15 de Março de 2024 e manteve-se por mais de 24 horas; 10. A expressão descrita em av) foi repetida por diversas vezes; 11. BB, por ocasião da actuação descrita em ay), encostou o fósforo e a caixa ao líquido para que ficassem molhados. Não foi tomada em consideração em sede de factualidade provada e não provada a matéria irrelevante para a decisão da causa. Seguiram-se, pois, os ensinamentos preconizados pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Março de 2014 [Processo n.º 811/12.4JACBR.C1] ao estabelecer que 1.- A elencação dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos, mesmo que descritos na contestação; 2.- O que importa é que da conjugação da matéria da acusação e da defesa, resulte claro que o tribunal apreciou os factos relevantes aduzidos por uma e por outra, relevantes para a decisão a proferir. Temos, por outro lado, que apenas se transpôs para a fundamentação de facto aqueles que se afirmam como verdadeiros factos. Não se tendo, efectivamente, mobilizado os juízos conclusivos e/ou normativos constantes da acusação… Como se preconiza no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Outubro de 2003 [Processo n.º 03P1882], Todavia, os elementos referidos, que os recorrentes designam ou identificam como "factos", não constituem circunstâncias ou elementos de facto, nem no sentido da realidade das coisas, nem na perspectiva processualmente relevante. Factos são acontecimentos, ocorrências, situações, qualidades, preexistentes ou consequentes a um comportamento ou actividade humana, referidos à natureza, às coisas ou às pessoas, materiais ou pessoais, e que se inscrevem e apresentam na realidade externa de modo identificável; quando tais acontecimentos, situações, ou qualidades sejam juridicamente relevantes, constituem elementos de necessária conformação processual. Porém, nesta dimensão, não são factos, porque não constituem acontecimentos, situações, ocorrências ou qualidades, tudo quanto constitua juízos lógicos e valorativos que, em dedução permitida ou imposta pelas regras da experiência ou pela normalidade das coisas, derivam de acontecimentos materiais ou qualidades pessoais anteriormente comprovadas. São ainda factos as inferências que se retiram de outros factos tanto quanto o permitem as regras da experiência que estão na base de uma presunção, isto é, quando de um facto conhecido se firma um facto desconhecido; não são já factos, neste sentido e no sentido processualmente relevante, as conclusões da ordem das valorações que ao juiz é permitido retirar dos factos provados e que utiliza como módulos do processo argumentativo e fundador da decisão. (…) Devem, pois, os factos imputados serem claros e precisos… No que não podem, muito especialmente, ser mobilizados e imputados [ou, pelo menos, não devendo ser acolhidos na fundamentação factual da sentença] conceitos ou juízos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos. Desde logo porque tal impede um eficaz exercício do direito de defesa e o exercício do contraditório àquele inerente. São, pois, tais ensinamentos que permitem compreender que a menção explanada no ponto 3 do libelo acusatório no sentido que o arguido AA “apresenta desde criança um comportamento agressivo” não conheça qualquer alusão na fundamentação de facto deste acórdão. Pois que tratamos de um juízo conclusivo que, para que possa ser formulado, careceria de se ancorar na descrição da prática de actos tradutores dessa agressividade desde a infância do arguido AA. Mas nada obsta, note-se, a que se avance com um introito genérico à conduta delituosa do arguido que facilite o enquadramento da sua actuação. Ou, outrotanto, a um dado bloco factual! O próprio Tribunal fá-lo habitualmente na fundamentação factual… Mas essa introdução deverá naturalmente reflectir aquilo que se mostra ulteriormente afirmado nos concretos factos tradutores da conduta criminosa! Só quando tal não ocorra, estaremos perante uma pura generalização conclusiva não ancorada na própria enunciação circunstancial. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5 de Novembro de 2024 [Processo n.º 9/21.0GAABF.E1], As afirmações que constam nos referidos pontos 1 e 2 da sentença, poderiam, no limite, ter-se como explicativas das subsequentes, isto é, ser consideradas como descritivas do modo da acção de cada acto concreto imputado nos pontos seguintes dos factos. Nessas circunstâncias, teriam conteúdo factual, pois estariam referidas a acções individualizadas e passíveis de contradita. Simplesmente, no caso em apreço, isso não resulta dos factos. Não é possível dizer que a sentença pretendeu dar como provado que os factos dos pontos 3 e 4 ocorreram do modo descrito nos pontos 1 e 2. Por um lado, porque aquela referência genérica a actos de venda de droga durante tanto tempo e em tantos lugares não é compatível com as meras duas ou três vendas que ficaram provadas nos pontos 3 e 4. Por outro lado, porque nem sequer os períodos são coincidentes. Sendo assim, os pontos 1 e 2 da matéria de facto, sendo irrelevantes para a decisão, têm de se considerar como não escritos. É por esse motivo que não tem razão de ser a objecção formulada pelo arguido AA em sede de resposta [Ref. 96493869] à alteração factual materializada na audiência de discussão e julgamento de 18 de Fevereiro de 2025! A alusão a «frequentes discussões» constante de e) pretende abordar a conflitualidade da relação nos termos que vêm a ser ulteriormente densificados na demais matéria circunstanciancial! Acresce que nem sequer figura como facto que, em singelo, funcione a desfavor do arguido AA. Não só porque se trata de asserção que foi por ele próprio assumida[2] mas também pois que retrata uma postura recíproca de ambos os cônjuges! Temos, por seu turno, que a menção a «sujeição a sofrimento particularmente intenso» se acha avançada por referência à tipicidade subjectiva e, pretendendo retratar o escopo do arguido AA, não pode deixar de ser perspectivada, em si mesmo, como um facto. Pois que traduz o objectivo que aquele se propunha alcançar… E que se mostra, também ele, ancorado na densificação do circunstancialismo objectivo referente ao encadeamento do episódio de 16 de Março de 2024. Designadamente, no propósito do arguido AA de queimar viva a cônjuge enquanto acto que lhe infligiria, factualmente, dor atroz. Já a menção «líquido incolor de mistura inflamável da classe de destilados de petróleo» figura como expressão que constava já do libelo acusatório [não se tratando sequer de exercício de defesa em face da alteração não substancial] e que deriva, outrotanto, do relatório pericial de fls. 267. Pretendendo traduzir, mais uma vez, um facto: tratava-se de um líquido sem cor e inflamável que deriva do petróleo! Não se percecionando como pode o arguido AA percepcionar tal alusão como incorporando um juízo conclusivo». 2.3. Motivou-se a matéria dada como provada da seguinte forma (transcrição): «a) A convicção do Tribunal na decisão respeitante à matéria de facto foi formada dialecticamente na análise crítica e ponderada de toda a prova produzida em audiência com recurso às regras de experiência de vida. Em concreto, o Tribunal teve em consideração: a) Auto de notícia de fls. 3; b) Auto de apreensão de fls. 40; c) Auto de apreensão de fls. 41; d) Reportagem fotográfica de fls. 48; e) Documentação clínica de fls. 87; f) Relatório clínico de fls. 114; g) Relatório preliminar de perícia médico-legal de fls. 130; h) Relatório de inspecção judiciária de fls. 146; j) Informação clínica de fls. 200; k) Informação clínica de fls. 212; l) Cópia do boletim de nascimento de fls. 227; m) Cópia do assento de nascimento de fls. 227v; n) Informação clínica de fls. 236; o) Relatório de exame pericial de fls. 267; p) Relatório de perícia médico-legal de fls. 294; q) Relatório social de fls. 380; r) Certificado de registo criminal de fls. 388. Atente-se que a prova documental enunciada se mostra, em si mesmo, apta a suportar a convicção do Tribunal por referência aos factos plasmados em a), b) [quanto à filiação e data de nascimento de EE], am a ao) [quanto ao conteúdo das garrafas e que deriva do relatório de exame pericial de fls. 267], bo) e bp). 2. Quanto à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, iremos segmentar a explicitação da convicção do Tribunal em dois momentos. Tratando, primeiramente, do ocorrido durante o casamento de AA e BB. E abordando, após e autonomamente, o episódio de 16 de Março de 2024. Importa, assim e desde logo, sublinhar que o arguido AA assumiu parte da factualidade objectiva constante do libelo acusatório. Na verdade, as declarações do arguido AA são, numa vertente objectiva, em grande medida confessórias. Mostrando-se as mesmas, por si só, suficientes para suportar a factualidade vertida nas alíneas b) [quanto à circunstância de EE residir com o casal], c), d), e), f) [ainda que apenas quanto à concretização de um único soco], g), h), j), k), n) [ainda que contextualizando a génese da discussão em motivo distinto], q), r), s), v) [ainda que radicando o ocorrido na má educação de EE com terceiro], z), aa), ab), ad), ae), af) e ag). Atente-se, para tanto, que AA reconheceu, em matéria dos antecedentes do episódio de 16 de Março de 2024, que - O relacionamento com BB, desde o início do casamento e mesmo quando estavam em Angola, se pautou por inúmeras discussões e brigas; - Era, enquanto se encontravam naquele país, habitual remeter objectos contra a sua cônjuge [a que esta respondia com idêntica remessa de objectos] e chegou mesmo a mandar uma cadeira que não a atingiu; - Numa dessas discussões, desferiu um soco a BB; - Numa altercação por causa de dinheiros ocorrida em Setembro/Outubro de 2023, terá dado um soco no braço de BB e empurrado o correspondente corpo; - Deu, no dia 31 de Dezembro de 2023, uma bofetada na zona por cima do ombro e na orelha [que não se traduzia, ainda assim, no ouvido objecto de intervenção cirúrgica] de EE. Que motivou BB a desferir-lhe, no imediato, uma bofetada; - Replicou ao acto de BB com a materialização de idêntica bofetada ou, não se recorda, de um soco na face direita da sua cônjuge. Tendo-se, após, agarrado reciprocamente… - Deixou o local no momento em que os demais transeuntes referiram que iriam chamar a polícia para não gerar mais confusões; - BB assumiu, no dia 1 de Janeiro de 2024, que queria pôr termo ao casamento. O arguido AA refutou, não obstante, alguns segmentos da factualidade assacada no libelo acusatório. Negando que alguma vez tenha ameaçado BB… Defendendo que o episódio ocorrido em Setembro/Outubro de 2023 surgiu na decorrência de uma discussão por acusa de dinheiros. Mais estabelecendo, nesta vertente, que se acalmou sem que tenha ocorrido qualquer menção à chamada da polícia ao ponto de terem ficado no quarto a conversar. E explica, por último, que a bofetada desferida em EE se tratou de uma pura repreensão em virtude de o mesmo estar a dizer «sai daí, caralho» a uma pessoa que se encontrava a janela. Acha-se manifesto do circunstancialismo demonstrado que o Tribunal não aceitou tais ressalvas… Cabendo, para tanto, repristinar o exposto por BB quanto aos episódios postos em relevo! Atente-se, como tal, que BB também contextualizou que o relacionamento com AA se caracterizava por uma agressividade verbal recíproca. Descrevendo, paralelamente, que aquele a agrediu quando ainda viviam em Angola. O que, como aposto no libelo acusatório, ocorreu em 4 ocasiões distintas… Traduzindo-se tais ofensas no arremessar de objectos [“uma vez atirou-me a cadeira”] e na concretização de chapadas e socos. Isto sendo que AA chegou também a desferir um soco no seu braço quando se encontravam já em Portugal! Isto numa ocasião ocorrida em Setembro ou Outubro de 2023 derivada do facto de, ao chegar a casa do trabalho, ter visto uma mensagem dele a falar com uma senhora sobre sexo. No que confrontou o arguido AA e seguiu, após, para o quarto… Tendo este seguido no seu encalço, empurrando-a e dando-lhe um soco no braço! Só parando, pois, quando a declarante referiu que iria chamar a polícia. Refuta, ainda assim, que o arguido AA a tenha ameaçado quando se encontravam já em território nacional. Estabelecendo que a única ameaça materializada se processou quando ainda se encontravam em Angola… Tendo aquele referenciado, numa das discussões, que “se você me deixar, eu vou-te matar”. Já quanto ao episódio de 31 de Dezembro de 2023, relembra que, no retorno da festa de anos de um amigo do filho, o arguido AA se irritou ao ver um conjunto de miúdos a jogarem fogo de artifício na rua. Tendo-se posto no correspondente encalço ainda que não os apanhando… Isto sendo que, quando regressou, o EE referiu que estava alguém à janela a ver o que se passava. No que o arguido AA, ainda irritado, desferiu-lhe uma estalada no ouvido. Que incidiu no preciso local onde havia sido operado… No que BB, após indagar porque é que ele havia actuado dessa forma, desferiu uma estalada no arguido AA! A que este respondeu com um soco no queixo daquela… Ao ponto de se terem envolvido então a lutar! Apenas tendo o arguido AA se apartado do local quando algumas pessoas referenciaram que já haviam chamado a polícia. Acha-se evidente que o Tribunal deu prevalência ao depoimento de BB naquelas vertentes em que o mesmo ingressou em oposição com as declarações do arguido AA. O que se ficou a dever ao discurso coerente, sereno e equidistante assumido por BB e que nos mereceu toda a credibilidade! Temos, efectivamente, que aquela, não obstante figurar como ofendida, mostrou-se particularmente verosímil. Até porque ofereceu, em muitos momentos e mesmo divergindo do assacado no libelo acusatório, uma versão não totalmente persecutória. Assinalando, aliás e nesta vertente, que também desenvolveu alguns actos ofensivos relevantes contra o arguido AA. Há, outrotanto, que assinalar que a autenticidade global que se divisou ao arguido AA ficou irremediavelmente beliscada quando este, por referência ao episódio de 16 de Março de 2024, reclamou pela não verificação de um qualquer dolo homicida. Reduzindo a realidade dos factos a um mero propósito de assustar a cônjuge… Em termos que, como iremos ver, se afirmam absurdos! Vejamos então… Quanto ao ocorrido em 16 de Março de 2024, o arguido AA contextualiza que recebeu um telefonema de um amigo em Angola a dizer que a sua ainda esposa estava a vender tudo. No que lhe telefonou no dia 15 de Março de 2024 e, sob o pretexto de ir buscar documentos, combinado que se dirigiria à antiga casa comum. Mais precisa que levou uma garrafa com produto de lavar motores e outra com ácido de bateria para tal encontro. Refere, nesta vertente, que o produto de lavar motores era para assustar BB até porque que nem sabia que o mesmo podia arder. Já quanto ao ácido de bateria, destinar-se-ia a lavar a sanita da oficina onde trabalhava [e em cujo anexo estava a pernoitar] para onde se pretendia dirigir após falar com a sua cônjuge. Prossegue com a narração que, chegado à antiga casa comum, se dirigiu com BB para a casa de banho. Tendo, no seu interior, perguntado, a dado momento, se aquela ponderava vender algum bem. No que, confrontado com a resposta da cônjuge no sentido que ia vender tudo, acabou por referir que “se você vender a casa, vou-te matar”. Tendo, nessa sequência, despejado o produto de lavar motores em cima dela. Reconhecendo, ademais, que estava com fósforos e que os tentou, nessa sequência, acender ainda que não o tendo conseguido. Mais explicita que BB logrou então sair da casa de banho – até porque lhe abriu a porta – e fugir da residência comum ao ponto de o declarante se ter colocado no seu encalço. No que, estando quase a chegar ao pé dela, foi agarrado pela vizinha GG. Não se recordando se tirou então o isqueiro que trazia consigo e se o tentou acender… Ou seja, o arguido AA assume que, quando se dirigiu à antiga casa comum, se fez transportar dos líquidos enunciados na factualidade provada, que despejou o produto de lavar motores em cima de BB e que tentou acender os fósforos de que se fazia então munir. O que se acha, em si mesmo, suficiente para suportar, no imediato, o vertido em aj) a aq) [mobilizando-se também o relatório pericial de fls. 267 para am) a ao)], au), aw) e bc)… Mas reduz toda essa actuação a um puro propósito [que estaria a ser já alimentado desde o dia anterior em que combinou telefonicamente com BB um encontro] de amedrontar a cônjuge até porque, repetiu ele à exaustão, ignorava que aquele produto seria inflamável. Deixando de lado, por agora, a temática do dolo homicida, cabe percepcionar como conseguiu o Tribunal construir toda a sucessão factual plasmada em aw) a bl) mesmo nas vertentes não assumidas pelo arguido AA. E o encadeamento objectivo dos factos deriva da conjugação adicional dos testemunhos de BB, II, FF e GG! Cabendo, para tanto, salientar que também os três últimos depoentes ofereceram uma narração isenta e autêntica. Até porque não têm qualquer interesse nos autos [afirmando-se, aliás, II como agente da Polícia de Segurança Pública], não se divisando, como tal, qualquer fundamento que os pudesse levar a faltar à verdade. Atente-se que a integral compreensão do ocorrido obriga a uma tarefa de concordância entre os depoimentos por aqueles avançados. Os mesmos, note-se, não se contradizem! Mas não permitem, por si só, avançar com o retrato total do encadeamento. Pois que nenhum dos sobreditos intervenientes logrou visionar o episódio na sua integralidade… Mesmo BB achava-se, em parte do ocorrido, em fuga. Estando, ademais, toldada por um sentimento de pavor! Compreendendo-se, como tal, que, a partir de dado momento, apenas logre oferecer algumas notas fugazes do que se passou no âmbito da perseguição que o arguido AA [que estaria, em parte dessa conduta, na sua retaguarda] lhe desenvolvia. Também FF e GG somente conseguiram visionar o quadro factual após a sua chegada! E vivenciaram um episódio com alguma instantaneidade e a despertar emoções intensas. Em que cada um, naturalmente, evidencia melhor memória dos factos que se desenrolaram imediatamente perante si. Repete-se, por isso, que não existem antinomias ou divergências entre BB, II, FF e GG. Mas mesmo essas não seriam de surpreender… Tendendo o Tribunal, para tal efeito, a admitir como normal a existência de pequenos lapsos ou discordâncias quando as mesmas não se mostrem substanciais ou de relevo. Efectivamente, decorridos que se acham 11 meses sobre os factos, mostram-se naturais, num rápido encadeamento factual como os em apreciação, brechas de memória que, naquela que é por natureza a fonte probatória mais falível – a testemunhal –, seriam subconscientemente preenchidas por cada observador por recurso à imagem global que captaram do acontecimento. É, aliás e nessa sequência, que o Tribunal, quando se apercebe das mesmas, não dá relevo a pequenas incoerências entre o depoimento das testemunhas, conquanto das mesmas não haja resultado uma contradição flagrante ou irresolúvel quanto à responsabilidade no eclodir e desenrolar do episódio. Importa, pois, realçar que BB esclareceu, quanto ao episódio de 16 de Março de 2024, que No dia antes disto, ele liga-me a dizer que tinha que ir buscar documentos pessoais. Ele foi lá no sábado, 16 de Março, e ligou-me a dizer que estava na porta. Eu estava a preparar-me para ir tomar banho. Pedi ao EE para ir abrir a porta. Ele abriu a porta e o AA entrou. Eu estava a entrar na casa de banho e ele entra na casa de banho comigo e fecha a porta. Pouco depois volta a abrir a porta, abre o casaco, tira um recipiente com gasolina e começa a despejar em cima de mim. Isto enquanto tira uma caixa de fósforos e dizia “eu vou-te matar”. Quando ele tira a caixa de fósforos, eu agarro nos braços dele e arrasto-o para fora da casa de banho. Eu saio de casa a correr só com a camisola de pijama e o biquinho e ele vai atrás de mim a tentar acender um isqueiro. Vou a pedir socorro. A minha vizinha chega então lá e é nesse momento que ele tira uma segunda garrafa e nos borrifa com a garrafa. A GG disse «corre» e nós corremos. Acho que foi neste momento que conseguiram agarrá-lo. Ele, entretanto, ficou muito distante. Antes de me borrifar lá fora ele ainda estava com a caixa de fósforos. Temos, por seu turno, que GG asseverou que saiu à rua em virtude de ter ouvido gritos. No que viu a BB de cuecas e a correr e se dirigiu para o pé dela. Notou então no arguido AA que estava quase a chegar ao pé de ambas e que começou a projectar o líquido de uma garrafa. Com o que molhou a sobredita BB e a própria GG. Tendo esta se apercebido, no imediato, de um cheiro a combustível. Prossegue que o arguido AA tentou inequivocamente acender os fósforos que trazia consigo. No que a própria declarante retirou aqueles da sua mão… Estabelece que, após, ficou tudo muito confuso mas que tem, ainda assim, a noção que FF foi no encalço do arguido AA. Também FF clarificou que Eram cerca das 11h30/12h00 quando ia para o café e vi a minha enteada GG agarrada ao AA a tentar tirar-lhe uns fósforos. Dirigi-me ao pé deles e conseguimos tirar-lhe os fósforos… Estes caíram ao chão. O AA tentou então avançar e borrifar ainda mais a BB com um liquido de uma garrafa. Também me atingiu a mim e a minha enteada… A BB e a GG começaram a correr e ele foi atrás deles. Continuando a atingir a BB com líquido quando ela estava a correr. Ele, a certo momento, pegou num isqueiro e tentou acendê-lo. Eu agarrei-o ao ponto de a garrafa e o isqueiro terem caído. Depois de o agarrar, eu levei-o para trás do portão de casa, sentei-lo lá e não o deixei sair mais daquele sítio. [O isqueiro não estava de certeza no bolso? Viu-o na mão?] Sim. E estava a tentar acendê-lo. Não tenho dúvidas nenhuma [Ainda tinha outra garrafa quando o colocou por trás do portão de casa?] Ele ficou lá sentado e pediu para tirar o casaco. Tirou e, nesse momento, tira a garrafa com ácido. Começa a beber no que eu lhe dei um safanão e consigo tirar a garrafa. Atente-se, por último, que o agente da Polícia de Segurança Pública, II, apenas logrou estabelecer que, por ocasião da sua chegada, o arguido AA estava manietado por FF e por GG. Compreende-se, pois, o já exposto no sentido que é a harmonização entre tais fontes probatórias que permite alcançar, na sua plenitude, o quadro circunstancial descrito em bj) a bl)… Cabe, pois e por último, ingressar na convicção do Tribunal por reporte ao inequívoco propósito mantido pelo arguido AA de pegar fogo a BB e de, assim, colher a sua vida. Recordemo-nos, para tanto, que aquele clamou invariavelmente que apenas desejava assustar a cônjuge e que ignorava, inclusivamente, que os produtos que inseriu nas garrafas descritas em am) e an) seriam inflamáveis. Sucede que tal ressalva se mostra absurda… Note-se que o arguido AA é mecânico e retirou aquele mesmo líquido da sua oficina. Onde, como o próprio refere, o utiliza para lavar motores… No que teria natural consciência das características da substância em função do regular manuseamento da mesma. Acresce que tal produto, sendo um derivado do petróleo, teria o odor próprio deste tipo de substância. Cheiro característico que foi, aliás, reconhecido pelo próprio arguido AA. No que, sendo mecânico, teria, como qualquer cidadão minimamente capaz, noção que aquele líquido seria inflamável! Acresce que, a esgotar-se o seu propósito no puro amedrontar de BB, não se compreende a necessidade de encher as garrafas com outra substância que não água. Ou de se munir com mais do que um instrumento tendente a produzir fogo… Efectivamente, o receio a criar seria naturalmente conseguido com o puro despejar de um líquido no corpo da visada e com a exibição de um isqueiro ou de uma caixa de fósforos. E, sobretudo, não se compreende toda a actuação materializada sobre a pessoa de BB. Se a intenção era causar receio na cônjuge, há que considerar que este foi conseguido logo com os actos desenvolvidos na casa de banho! Não existiria, pois, necessidade de concretizar uma ulterior, longa e incessante perseguição na via pública com o despejar de líquido adicional acrescido dos evidentes esforços de acender os fósforos ou o isqueiro. No que se afirma óbvio que a esta actuação esteve subjacente o propósito de assegurar a ignição do corpo de BB. Garantindo novamente que esta se encontrava encharcada para o caso de parte do líquido se ter dissipado na fuga. E tentando, por todas as vias, acender algum dos instrumentos de fogo que trazia na sua posse. Existem, ademais, dois actos que são também claramente indicadores do propósito homicida! Atente-se que o arguido AA começou por fechar a porta da casa de banho para, logo de seguida [e previamente ao arremessar do líquido], a reabrir [alíneas as) e at)]. O que só se justifica [até porque potencia as hipóteses de fuga da vítima] porque terá tomado consciência que, naquele espaço exíguo, também ele poderia vir a ser tolhido pelo fogo que pretendia activar. E revelador é também o desejo de, no termo do episódio, beber ácido sulfúrico [alínea bl]. Efectivamente, essa intenção de fazer mal a si mesmo – e, porventura, tirar a própria vida – seria dificilmente harmonizável com o singelo desejo de causar temor a BB. Mas achar-se-á claramente compaginável se o seu propósito era o de ceifar a vida da cônjuge para, com isso, se furtar à responsabilização jurídica e social pela actuação desenvolvida. Acresce que o arguido AA acabou, inadvertidamente, por reconhecer qual o seu real propósito. Pois que, não obstante insistir que apenas pretendia provocar receio, veio, no termo das suas declarações, a assinalar que teria conseguido acender um fósforo na casa de banho [o que, note-se, é negado por BB] e que só “não o mandei porque não sou assassino e não queria incendiá-la”. Com essa defesa revelou claramente o arguido AA que tinha óbvia percepção que a cônjuge estava encharcada de um líquido inflamável! E que iria, naturalmente, deflagrar em contacto com o fogo… Isto quando é inequívoco que fogo foi o que o mesmo tentou provocar e atirar a BB durante toda a conduta retratada em ah) a bl)! O que apenas não terá conseguido em função da sua inabilidade em manusear os fósforos e o isqueiro [em provável resultado do nervosismo] em conjugação com a oposição da própria BB e com a intervenção [diga-se, heroica] de FF e GG. Os factos referentes ao elemento subjectivo resultaram da análise das circunstâncias que envolveram os elementos objectivos em harmonia com as regras da experiência e do senso comum. Mas importa sublinhar que não se logrou demonstrar que o arguido AA tenha tomado a decisão de executar o plano arquitectado em momento prévio ao dia 15 de Março de 2024. Ou, outrotanto, que o mesmo se tenha mantido por mais de 24 horas! Sabemos que a correspondente implementação se iniciou, pelo menos, com o telefonema materializado no dia 15 de Março de 2024 a combinar o encontro no dia subsequente. Mas nenhuma fonte probatória permite concluir que tal propósito já estaria a ser alimentado desde ocasião prévia. Aceitando-se como possível que aquele tinha sido gizado em imediata anterioridade à mesma chamada telefónica! E, quanto à correspondente duração temporal, o certo é que se ignora também a hora do dia em que foi concretizado o propalado telefonema. Sendo cogitável que o mesmo se possa ter processado em momento ulterior às 12h00… E porque a actuação criminal se desenvolveu cerca das 12h00 do dia 16 de Março de 2024, não podemos, lapalissadamente, afirmar que tenham ocorrido 24 horas entre os dois marcos temporais. Também não se aceitou o verbalmente assinalado pelo arguido AA no sentido que a actuação desenvolvida em 16 de Março de 2024 derivou da circunstância de ter tomado percepção que a cônjuge estava a vender os bens em Angola para ficar com o produto da venda! Ressalva que, ainda assim, seria inócua pois que não legitimava ou atenuava a gravidade dos actos em questão… Mas é, não obstante, evidente que aquela conduta resultou do termo do relacionamento e da incapacidade do arguido AA de conviver com essa realidade. Não se afirma, pois, credível a explicação dada por aquele! Isto não só pela falta de autenticidade que já se assinalou ao arguido AA. Cabendo, ademais, complementar que BB deixou claro que a decisão de vender os bens sitos em Angola foi tomada por ambos e pensada para assegurar o sustento em Portugal! Acresce ainda que tais actos são consentâneos com a ameaça previamente efectivada [é certo que havia sido concretizada há algum tempo mas foi, não obstante, concretizada] de que mataria a cônjuge caso esta o deixasse. E temos, por último, que a conduta desenvolvida de tentar imolar a cônjuge é bem mais consentânea com um crime passional… O demais circunstancialismo não demonstrado fluiu de não se ter produzido qualquer prova quanto à sua ocorrência. As condições pessoais resultaram das declarações do arguido AA em conjugação com o relatório social sob fls. 380 e com o Certificado de Registo Criminal sob fls. 388. No que se refere ao pedido de indemnização civil, vai o mesmo ancorado na factura de fls. 357». 3. APRECIAÇÃO DO RECURSO 3.1.1. Vem o arguido impugnar a matéria de facto dada como provada em 50 pontos. O recorrente impugna tal MATÉRIA DE FACTO, tendo sido cumprido – mesmo que deficientemente quanto à formulação das conclusões - o determinado nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP. Não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada – o depoimento do arguido e das testemunhas BB (ofendida), CC e DD, ambas testemunhas de defesa (as únicas relativas às quais foi cumprido o ónus de impugnação especificada previsto no normativo acima identificado, com referências a partes concretas dos seus depoimentos). 3.1.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas: · o da impugnação ampla, se tiver sido suscitada (O NOSSO CASO); · e dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP. Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, nº 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP. Comecemos pela que primeiro[3] deve ser analisada pois a sua procedência pode levar ao reenvio do processo para a 1ª instância, ao abrigo do artigo 426º do CPP, se este tribunal não tiver condições para decidir a causa. 3.1.3. Na realidade, estabelece o artigo 410º, nº 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: 1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; 2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; 3. Erro notório na apreciação da prova. Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP. Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa. Este último, numa tese inicialmente defendida, permitiria uma maior amplitude do recurso, pela também possibilidade de análise da prova registada, mas uma tal solução poria em causa o princípio da imediação com que havia sido apreciada a prova na primeira instância, princípio cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso. Daí a solução intermédia, chamada de revista alargada. Tal sindicância não deixa de ser, em bom rigor, uma actividade puramente jurídica, pois basear-se-á apenas no texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra. 3.1.4. Quais os vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP? A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[4]. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[5]. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97). O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[6]. Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si. O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando: a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado; b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP; c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. 3.1.5. Há no acórdão recorrido algum vício do artigo 410º/2 do CPP? O recurso não acusa a existência de nenhum, alegando, com propriedade, apenas erros de julgamento. Sendo a peça de acórdão perfeitamente escorreita, ao nível interno, inexiste qualquer vício dos previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP (de conhecimento ofícioso, já o sabemos). 3.1.6. E haverá o alegado erro de julgamento quanto aos factos em causa? Este erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 do CPP - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos, quer em Coimbra, quer em Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)». E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP. A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente. Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova. E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo. 3.1.7. Falemos de PROVA e de CONVICÇÃO. O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios: – os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas); – A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável; – Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais; – A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso; – Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto; – De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária[7] ou indirecta; – Como é evidente, e socorrendo-me das palavras sábias do STJ – [cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção], «tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos». A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência e, sobretudo, pela dimensão ética do acto de julgar. Convém nesse jaez lembrar o que exemplarmente escreve Hermengarda do Valle-Frias, no artigo «A motivação ética da decisão judiciária - o (re)encontro entre o direito e a justiça», publicado na Revista do CEJ nº 2016-II: «A motivação da decisão judicial, sobretudo fundamental no processo penal, firmada sobre os princípios da independência do juiz e livre convicção, constitui a legitimação do judiciário em sentido próprio – o juiz recebe os factos, analisa-os, valora-os de acordo com cada um dos instrumentos de que dispôs (meios de prova) e subsume-os ao direito. Apreciação da prova e a valoração da prova, no entanto, não se equivalem. A primeira, implica a actividade intelectual de escrutínio e validação dos pressupostos, conteúdos e resultado combinado dos meios de obtenção de prova; a segunda, implica a actividade intelectual de determinar o valor concreto de cada meio de prova, do conjunto da prova e das suas consequências em termos de convencerem, ou não, sobre a culpabilidade do arguido. Num sistema de prova assente na livre convicção, a motivação constitui a persuasão racional do julgador no convencimento da culpabilidade, ou não, do arguido ou, quando da prova se extraia a necessidade de aplicar o princípio da presunção de inocência, a argumentação essencial à justificação dessa aplicação. Para conseguir persuadir os destinatários da justeza da sua decisão, o juiz envolve-se num processo técnico de aplicação de conhecimentos jurídicos, não podendo descartar-se dos sentidos humano e social que resultam da sua própria formação pessoal, da forma como aceita os comportamentos humanos no contexto social em que se integra e na forma como se auto-impõe os limites decorrentes da sua própria condição profissional. Querendo com isto dizer-se que, em última instância, deve procurar superar-se a si mesmo para atingir a máxima perfeição de que é capaz enquanto decide, aí sim, não em seu nome, mas em nome da Sociedade e do bem social que constitui, em última instância, o limite dos seus próprios poderes decisórios. Este, que não é um circuito fechado em rotação constante sobre si mesmo, tem de ser um percurso com uma dinâmica evolutiva. O juiz é e deve ser um homem do seu tempo, atento aos humores sociais, culturais, políticos e económicos, porque é neste conjunto que se justifica o fundamento do acto decisório. Aplicando a lei ou criando a norma (com a devida ressalva do direito penal substantivo), o decisor está sempre vinculado ao compromisso ético inerente à sua função. Decidir, nesta perspectiva, é determinar a forma de resolução de um litígio com vista a atingir a pacificação social, a reposição do tempo do homem no tempo social de que se destacou. Ao condenar no processo penal, a decisão restaura tendencialmente a ordem comportamental que é assegurada pela Lei em cada momento histórico, implicando isto entender a sanção como censura social, mas também como investimento no Futuro. Por isso, a pena tem também um fundamento ético importante – vincular o infractor às responsabilidades inerentes à quebra dos laços afectivos com o todo social e, ao mesmo tempo, vincular a sociedade à responsabilidade de recuperação do infractor para que volte a integrar-se nela. Ou, melhor, para que não chegue a desintegrar-se dela. Cabe ao juiz, pois, garantir o equilíbrio entre estes dois interesses. E esse desiderato, consegue-o através de uma motivação tecnicamente adequada, humanamente ponderada e culturalmente aceitável». 3.1.8. Vejamos, então, se houve ou não erro de julgamento nestes autos. Invoca o recorrente que foi erroneamente dada como provada a factualidade constante de 50 pontos (factos f, g, h, i, l, m, n, o, p, u, v, w, x, ah, ai, aj, ak, al, am, an, ao, ap, aq, ar, as, at, av, aw, ax, ay, az, ba, bb, bc, bd, be, bf, bg, bh, bi, bj, bk, bq, br, bs, bt, bu, bv, bw e bx) – para a defesa, não deveriam ter sido dados como provados todos estes 50 factos. São estes os pontos essenciais com os quais o arguido não se conforma: · A. Aquilo que o arguido declarou em julgamento foi diverso da convicção que o tribunal formou quanto à sua participação nos ditos factos; · B. Não há prova de que a bofetada infligida pelo arguido ao enteado, e constante do facto provado v), tenha sido no ouvido no qual o jovem tinha sido intervencionado cirurgicamente; · C. Não há prova de que os factos provados configurem a prática de um crime de violência doméstica, não sendo mais do que ofensas à integridade física da sua mulher, assente a existência de recíprocas agressões por parte da BB ao arguido e a inexistência de um situação de submissão da ofendida a um clima de constante violência e de domínio exercido pelo arguido sobre ela; · D. Não há prova do dolo homicida do arguido. Quanto ao ponto A: O tribunal, no legítimo exercício da livre apreciação da prova, criou, inegavelmente, uma convicção diversa da posição assumida pelo arguido em alguns pontos da factualidade em causa. Isso mesmo explicou na sua motivação, considerando absurda a tentativa de o arguido explicar a sua acção violenta em 16.3.2024 como sendo apenas para assustar a mulher. Para convencer este tribunal de recurso de que essa convicção foi criada de forma errónea, deveria ter impugnado, da forma adequada, essa convicção, indicando as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida [artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP]. Ora, os extractos dos depoimentos mencionados no recurso [em cumprimento do desiderato do artigo 412º, nº 4 do CPP], não são de molde, nem de longe nem de perto, a infirmarem essa convicção prolixa e convincentemente explicada pelo Colectivo na sua motivação. Portanto, não é de estranhar que o tribunal não tenha acreditado no arguido, em muitas partes do seu depoimento, não tal significando que tenha, por isso, incorrido em erro de julgamento. Também não estranhamos o facto de o tribunal ter considerado que, em alguns trechos, o arguido acaba por confessar a factualidade, embora dando-lhe um contexto mais benigno para o seu lado, dizendo-se também vitimizado pelas atitudes da mulher e pelo seu lado mais gastador, o que «o irritou». Voltaremos a esta questão mais à frente na abordagem do ponto D. Que dizer do ponto B? Foi dado como provado o que consta dos factos provados v) e w) – uma bofetada dada pelo arguido numa das orelhas do enteado, precisamente a que fora intervencionada cirurgicamente. Para refutar o local exacto da bofetada (e qual a orelha atingida), a defesa refere que o arguido teria proferido depoimento no sentido de ter atingido a orelha esquerda do enteado, «mas não foi do lado em que foi operado». Alega ainda que a ofendida BB, a este propósito, disse em julgamento que a bofetada atingiu a orelha direita. Contudo, não cumpre, neste particular aspecto, o ónus da impugnação especificada previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP, limitando-se a alegar que «por sua vez, a ofendida, em sede de audiência e julgamento, referiu que a bofetada atingiu a face direita». Para além disso, fica-se sem saber quem é a pessoa visada nessa alusão – se o verdadeiro ofendido da bofetada em causa, o EE, ou a mãe do EE, igualmente ofendida mas de outra factualidade. Como tal, a defesa não nos conseguiu convencer de que teria sido a orelha não intervencionada cirurgicamente a atingida pela bofetada do arguido na pessoa do enteado, bastando-nos a convicção criada pelo tribunal de que o arguido, de facto, deu uma bofetada na sua orelha intervencionada, não trazendo o recurso suficiente acervo probatório capaz de infirmar, com eficácia, tal conclusão do tribunal (diremos que é um pouco indiferente saber qual a orelha atingida, bastando que tenha sido uma delas atingida). No que tange ao ponto C, diremos apenas que ela contende com a fundamentação jurídica do acórdão e não com a estrita matéria dada como provada – para a defesa, não poderá tal factualidade dada como provada ser subsumida ao crime mais complexo de violência doméstica mas, quanto muito, a um crime de ofensa à integridade física. Insiste a defesa em dar uma imagem deste agregado diversa da que foi dada como provada pelo tribunal – para a defesa, a mulher também agredia o marido, ofendendo-o verbalmente, e praticando actos de domínio sobre ele (alega que era ela que tudo comandava em casa, gastando todo o dinheiro ganho pelo arguido). Para tal, a defesa, através deste concreto recurso, não nos conseguiu convencer da existência desse ambiente, não apresentando provas bastantes para infirmar toda a factualidade dada como provada pelo Colectivo de Coimbra no que tange às concretas agressões físicas e verbais de que foi vítima a BB ao longo do seu casamento, principalmente em Angola [as agressões mencionadas em f), g), h) e i)], mas também em Portugal [factos provados n) e aa)], limitando-se a apresentar, como única moeda de troca, o depoimento do arguido que, livremente apreciado pelo tribunal, não mereceu a este total crédito, já o vimos[8]. Note-se que o tribunal esteve atento e até deu como provada, aqui e ali, alguma reciprocidade na violência, sobretudo, verbal[9] – veja-se a prova do facto e) (este por força de uma alteração não substancial de factos legalmente feita na audiência de 18.2.2025[10]) Diga-se ainda que uma eventual agressividade da ofendida para com o marido não retira a ilicitude deste último que, no quadro dado como provado em Coimbra, era e sempre foi o principal agressor. Note-se que os extractos dos depoimentos das duas testemunhas de defesa trazidos à motivação de recurso nada dizem sobre a factualidade dos eventos violentos vividos em casa do arguido/ofendida, apenas atestando a pouca saúde do arguido e que ele nunca verbalizou que andaria com problemas em casa. Não se fica a saber, como pretende a defesa, que andava ele triste (facto não dado como provado, note-se) por viver em casa «manietado pela prepotência e poder de decisão da ofendida, sendo patente que o típico quadro de violência doméstica não se verificava, aliás era aquele quem estava no limite da sua resistência»). Ora, isso nada prova em contrário do dado como provado em julgamento [o tribunal dá inclusivamente como provado que «O arguido AA sofreu um acidente vascular cerebral ainda em Angola, ficando a ser acompanhado medicamente desde essa data», «desenvolvendo acompanhamento terapêutico com vista à normalização psicológica e psiquiátrica», «sendo considerado pelos colegas de trabalho como pessoa de bom trato e correcta» - cfr. factos provados d), cd) e cf)]. Veja-se ainda que o facto de a ofendida não fazer denotar publicamente que estaria a passar por ambiente marcado por violência doméstica não significa que o não estivesse de facto a viver (e a nossa grande experiência forense e judiciária nesta problemática da violência doméstica diz-nos que são vivências vividas quase sempre em silêncio e sem alarido público, na aparente «paz dos casarios»). A defesa alude a fls 24 da sua motivação a algo que JJ, testemunha de acusação, teria dito, referindo-se à ofendida: «nunca me apercebi de nada» - ora, também aqui a defesa não cumpre, como lhe competia, o ónus da impugnação especificada a que alude o artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP, nem sequer mencionando o nome desta testemunha na Conclusão nº 4 (onde alude às «concretas provas que impõem decisão diversa»). Aqui chegados, diremos que desenvolveremos melhor a questão da correcta incriminação dos factos mais à frente na dinâmica deste acórdão (sendo essa uma efectiva questão de DIREITO e já não de facto). Finalmente, temos o ponto D – há ou não dolo homicida por parte do arguido no incidente (muito mais do que uma «cena triste, como desajustadamente o classifica a defesa a p. 38 da sua motivação) datado de 16.3.2024? O recurso alega que houve apenas, por parte do arguido, uma intenção de assustar a ofendida, nunca de a vir a matar. Pelo contrário, o tribunal entendeu que está claramente perfectibilizado a sua intenção de matar a mulher, esclarecendo assim de forma assaz sábia e convincente (com sublinhados nossos): «Cabe, pois e por último, ingressar na convicção do Tribunal por reporte ao inequívoco propósito mantido pelo arguido AA de pegar fogo a BB e de, assim, colher a sua vida. Recordemo-nos, para tanto, que aquele clamou invariavelmente que apenas desejava assustar a cônjuge e que ignorava, inclusivamente, que os produtos que inseriu nas garrafas descritas em am) e an) seriam inflamáveis. Sucede que tal ressalva se mostra absurda… Note-se que o arguido AA é mecânico e retirou aquele mesmo líquido da sua oficina. Onde, como o próprio refere, o utiliza para lavar motores… No que teria natural consciência das características da substância em função do regular manuseamento da mesma. Acresce que tal produto, sendo um derivado do petróleo, teria o odor próprio deste tipo de substância. Cheiro característico que foi, aliás, reconhecido pelo próprio arguido AA. No que, sendo mecânico, teria, como qualquer cidadão minimamente capaz, noção que aquele líquido seria inflamável! Acresce que, a esgotar-se o seu propósito no puro amedrontar de BB, não se compreende a necessidade de encher as garrafas com outra substância que não água. Ou de se munir com mais do que um instrumento tendente a produzir fogo… Efectivamente, o receio a criar seria naturalmente conseguido com o puro despejar de um líquido no corpo da visada e com a exibição de um isqueiro ou de uma caixa de fósforos. E, sobretudo, não se compreende toda a actuação materializada sobre a pessoa de BB. Se a intenção era causar receio na cônjuge, há que considerar que este foi conseguido logo com os actos desenvolvidos na casa de banho! Não existiria, pois, necessidade de concretizar uma ulterior, longa e incessante perseguição na via pública com o despejar de líquido adicional acrescido dos evidentes esforços de acender os fósforos ou o isqueiro. No que se afirma óbvio que a esta actuação esteve subjacente o propósito de assegurar a ignição do corpo de BB. Garantindo novamente que esta se encontrava encharcada para o caso de parte do líquido se ter dissipado na fuga. E tentando, por todas as vias, acender algum dos instrumentos de fogo que trazia na sua posse. Existem, ademais, dois actos que são também claramente indicadores do propósito homicida! Atente-se que o arguido AA começou por fechar a porta da casa de banho para, logo de seguida [e previamente ao arremessar do líquido], a reabrir [alíneas as) e at)]. O que só se justifica [até porque potencia as hipóteses de fuga da vítima] porque terá tomado consciência que, naquele espaço exíguo, também ele poderia vir a ser tolhido pelo fogo que pretendia activar. E revelador é também o desejo de, no termo do episódio, beber ácido sulfúrico . Efectivamente, essa intenção de fazer mal a si mesmo – e, porventura, tirar a própria vida – seria dificilmente harmonizável com o singelo desejo de causar temor a BB. Mas achar-se-á claramente compaginável se o seu propósito era o de ceifar a vida da cônjuge para, com isso, se furtar à responsabilização jurídica e social pela actuação desenvolvida. Acresce que o arguido AA acabou, inadvertidamente, por reconhecer qual o seu real propósito. Pois que, não obstante insistir que apenas pretendia provocar receio, veio, no termo das suas declarações, a assinalar que teria conseguido acender um fósforo na casa de banho [o que, note-se, é negado por BB] e que só “não o mandei porque não sou assassino e não queria incendiá-la”. Com essa defesa revelou claramente o arguido AA que tinha óbvia percepção que a cônjuge estava encharcada de um líquido inflamável! E que iria, naturalmente, deflagrar em contacto com o fogo… Isto quando é inequívoco que fogo foi o que o mesmo tentou provocar e atirar a BB durante toda a conduta retratada em ah) a bl)! O que apenas não terá conseguido em função da sua inabilidade em manusear os fósforos e o isqueiro [em provável resultado do nervosismo] em conjugação com a oposição da própria BB e com a intervenção [diga-se, heroica] de FF e GG. Os factos referentes ao elemento subjectivo resultaram da análise das circunstâncias que envolveram os elementos objectivos em harmonia com as regras da experiência e do senso comum. (…) Também não se aceitou o verbalmente assinalado pelo arguido AA no sentido que a actuação desenvolvida em 16 de Março de 2024 derivou da circunstância de ter tomado percepção que a cônjuge estava a vender os bens em Angola para ficar com o produto da venda! Ressalva que, ainda assim, seria inócua pois que não legitimava ou atenuava a gravidade dos actos em questão… Mas é, não obstante, evidente que aquela conduta resultou do termo do relacionamento e da incapacidade do arguido AA de conviver com essa realidade. Não se afirma, pois, credível a explicação dada por aquele! Isto não só pela falta de autenticidade que já se assinalou ao arguido AA. Cabendo, ademais, complementar que BB deixou claro que a decisão de vender os bens sitos em Angola foi tomada por ambos e pensada para assegurar o sustento em Portugal! Acresce ainda que tais actos são consentâneos com a ameaça previamente efectivada [é certo que havia sido concretizada há algum tempo mas foi, não obstante, concretizada] de que mataria a cônjuge caso esta o deixasse. E temos, por último, que a conduta desenvolvida de tentar imolar a cônjuge é bem mais consentânea com um crime passional…». Completamente convincente este raciocínio, encontrando argumentos fortíssimos e credíveis (pela sua inegável verosimilhança, sem quaisquer saltos lógicos de argumentação). E a defesa nada traz a este tribunal de recurso, capaz de infirmar estas brilhantes conclusões, apenas e só se baseando no verbalmente dito pelo arguido em julgamento, versão essa em que o tribunal não acreditou e este Colectivo na Relação também não. Com os dados trazidos pelo recurso [as pretensas provas a que alude a alínea b) do nº 3 do artigo 412º do CPP], não infirmamos a conclusão do tribunal de Coimbra ao considerar como dolo de homicida a intenção deste homem para com a mulher, assente até a prova do facto provado i) e a efectivação do termo da convivência entre este casal, concretizado nos factos provados ad), ae), af) e ag), ligado à criação dessa intenção homicida exposta no facto provado seguinte, ou seja, o ah). Não se vislumbra, assim, ao contrário do exposto no recurso, que a tese do arguido é mais assertiva e coerente [nomeadamente na razão da deslocação do arguido a casa da mulher que, a nosso ver, nada teve a ver com a propagada busca de documentação mas sim com a clara intenção de se vingar pela ruptura conjugal levada a cabo pela sua mulher, umas semanas antes – factos provados ad) a ah) -, intenção criada, pelo menos, nessa data de 15.3.24[11]]. Quanto à prova dos factos objectivos atinentes ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, estamos também do lado do tribunal. Racionou assim o atento Coletivo: «Deixando de lado, por agora, a temática do dolo homicida, cabe percepcionar como conseguiu o Tribunal construir toda a sucessão factual plasmada em aw) a bl) mesmo nas vertentes não assumidas pelo arguido AA. E o encadeamento objectivo dos factos deriva da conjugação adicional dos testemunhos de BB, II, FF e GG! Cabendo, para tanto, salientar que também os três últimos depoentes ofereceram uma narração isenta e autêntica. Até porque não têm qualquer interesse nos autos [afirmando-se, aliás, II como agente da Polícia de Segurança Pública], não se divisando, como tal, qualquer fundamento que os pudesse levar a faltar à verdade. Atente-se que a integral compreensão do ocorrido obriga a uma tarefa de concordância entre os depoimentos por aqueles avançados. Os mesmos, note-se, não se contradizem! Mas não permitem, por si só, avançar com o retrato total do encadeamento. Pois que nenhum dos sobreditos intervenientes logrou visionar o episódio na sua integralidade… Mesmo BB achava-se, em parte do ocorrido, em fuga. Estando, ademais, toldada por um sentimento de pavor! Compreendendo-se, como tal, que, a partir de dado momento, apenas logre oferecer algumas notas fugazes do que se passou no âmbito da perseguição que o arguido AA [que estaria, em parte dessa conduta, na sua retaguarda] lhe desenvolvia. Também FF e GG somente conseguiram visionar o quadro factual após a sua chegada! E vivenciaram um episódio com alguma instantaneidade e a despertar emoções intensas. Em que cada um, naturalmente, evidencia melhor memória dos factos que se desenrolaram imediatamente perante si. Repete-se, por isso, que não existem antinomias ou divergências entre BB, II, FF e GG. Mas mesmo essas não seriam de surpreender… Tendendo o Tribunal, para tal efeito, a admitir como normal a existência de pequenos lapsos ou discordâncias quando as mesmas não se mostrem substanciais ou de relevo. Efectivamente, decorridos que se acham 11 meses sobre os factos, mostram-se naturais, num rápido encadeamento factual como os em apreciação, brechas de memória que, naquela que é por natureza a fonte probatória mais falível – a testemunhal –, seriam subconscientemente preenchidas por cada observador por recurso à imagem global que captaram do acontecimento. É, aliás e nessa sequência, que o Tribunal, quando se apercebe das mesmas, não dá relevo a pequenas incoerências entre o depoimento das testemunhas, conquanto das mesmas não haja resultado uma contradição flagrante ou irresolúvel quanto à responsabilidade no eclodir e desenrolar do episódio. Importa, pois, realçar que BB esclareceu, quanto ao episódio de 16 de Março de 2024, que No dia antes disto, ele liga-me a dizer que tinha que ir buscar documentos pessoais. Ele foi lá no sábado, 16 de Março, e ligou-me a dizer que estava na porta. Eu estava a preparar-me para ir tomar banho. Pedi ao EE para ir abrir a porta. Ele abriu a porta e o AA entrou. Eu estava a entrar na casa de banho e ele entra na casa de banho comigo e fecha a porta. Pouco depois volta a abrir a porta, abre o casaco, tira um recipiente com gasolina e começa a despejar em cima de mim. Isto enquanto tira uma caixa de fósforos e dizia “eu vou-te matar”. Quando ele tira a caixa de fósforos, eu agarro nos braços dele e arrasto-o para fora da casa de banho. Eu saio de casa a correr só com a camisola de pijama e o biquinho e ele vai atrás de mim a tentar acender um isqueiro. Vou a pedir socorro. A minha vizinha chega então lá e é nesse momento que ele tira uma segunda garrafa e nos borrifa com a garrafa. A GG disse «corre» e nós corremos. Acho que foi neste momento que conseguiram agarrá-lo. Ele, entretanto, ficou muito distante. Antes de me borrifar lá fora ele ainda estava com a caixa de fósforos. Temos, por seu turno, que GG asseverou que saiu à rua em virtude de ter ouvido gritos. No que viu a BB de cuecas e a correr e se dirigiu para o pé dela. Notou então no arguido AA que estava quase a chegar ao pé de ambas e que começou a projectar o líquido de uma garrafa. Com o que molhou a sobredita BB e a própria GG. Tendo esta se apercebido, no imediato, de um cheiro a combustível. Prossegue que o arguido AA tentou inequivocamente acender os fósforos que trazia consigo. No que a própria declarante retirou aqueles da sua mão… Estabelece que, após, ficou tudo muito confuso mas que tem, ainda assim, a noção que FF foi no encalço do arguido AA. Também FF clarificou que Eram cerca das 11h30/12h00 quando ia para o café e vi a minha enteada GG agarrada ao AA a tentar tirar-lhe uns fósforos. Dirigi-me ao pé deles e conseguimos tirar-lhe os fósforos… Estes caíram ao chão. O AA tentou então avançar e borrifar ainda mais a BB com um liquido de uma garrafa. Também me atingiu a mim e a minha enteada… A BB e a GG começaram a correr e ele foi atrás deles. Continuando a atingir a BB com líquido quando ela estava a correr. Ele, a certo momento, pegou num isqueiro e tentou acendê-lo. Eu agarrei-o ao ponto de a garrafa e o isqueiro terem caído. Depois de o agarrar, eu levei-o para trás do portão de casa, sentei-lo lá e não o deixei sair mais daquele sítio. [O isqueiro não estava de certeza no bolso? Viu-o na mão?] Sim. E estava a tentar acendê-lo. Não tenho dúvidas nenhuma [Ainda tinha outra garrafa quando o colocou por trás do portão de casa?] Ele ficou lá sentado e pediu para tirar o casaco. Tirou e, nesse momento, tira a garrafa com ácido. Começa a beber no que eu lhe dei um safanão e consigo tirar a garrafa. Atente-se, por último, que o agente da Polícia de Segurança Pública, II, apenas logrou estabelecer que, por ocasião da sua chegada, o arguido AA estava manietado por FF e por GG. Compreende-se, pois, o já exposto no sentido que é a harmonização entre tais fontes probatórias que permite alcançar, na sua plenitude, o quadro circunstancial descrito em bj) a bl)…» Ora, também aqui a defesa não nos logrou convencer com uma qualquer versão alternativa destes factos, capaz de infirmar a prova da factualidade objectiva em causa, apresentando, e isso sim, apenas lucubrações mais teóricas do que práticas. Os extractos referenciados pela defesa no seu recurso não são minimamente suficientes para que este tribunal inverta o juízo de descredibilidade que foi feito na 1ª instância que tudo viu e ouviu, com uma imediação que nós não temos. Quanto à intenção de matar, diremos: No nosso caso, há intenção de matar[12] e dolo directo (resulta da factualidade provada, não que o arguido tenha representado como possível que da sua actuação pudesse resultar a morte da vítima, o que poderia vir a configurar uma situação de dolo eventual, mas que o arguido quis causar a morte da sua mulher, o que não conseguiu alcançar por razões alheias à sua vontade - o elemento volitivo do dolo configura, portanto, uma situação de dolo directo, tal como considerou o tribunal colectivo), não havendo qualquer desistência válida mas apenas uma não consumação por factos estranhos ao agente. E assim é mesmo que se tivesse provado que do evento não resultou em concreto perigo para a vida da ofendida. Na verdade, não podemos confundir a falta de perigo para vida com a falta de prova da intenção de tirar a vida ao ofendido. De facto, o arguido actuou com a intenção de matar a sua mulher, o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, sendo que nenhuma relevância tem para o preenchimento do tipo de ilícito em apreço a circunstância de não ter resultado da sua actuação perigo concreto para a vida da mesma[13]. E em lado algum do recurso são avançadas leituras diversas possíveis (e minimamente plausíveis e verosímeis) do que ali aconteceu. Ou seja, não foi carreada para os autos qualquer prova relevante de que os acontecimentos se passaram de forma diversa do dado como provado, nem sequer através dos invocados depoimentos das testemunhas visadas no recurso de facto, não provando tais depoimentos algo de diferente relativamente ao constante do acórdão recorrido e à versão acusatória. Como tal, nada do que é trazido pela defesa em sede de recurso infirma a convicção de culpabilidade do arguido - com base no elenco de factos que deu como provados - que o tribunal de Coimbra criou, criando este tribunal de recurso a mesma convicção de forma fundada e seriamente fundamentada (de tribunal convencido passou a tribunal convincente). 3.1.9. Uma palavra sobre o princípio do «in dubio pro reo». No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova. Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo, que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação do Porto de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte: «Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum». Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. «Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253). Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada. Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira. O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo. Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam. As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam. Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009: «Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal». Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal. Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela. Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados. E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido. Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados. É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade. Recordemos o essencial - o artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa. Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos. Quer isto significar que não vemos que deva ser alterada a decisão de facto. Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados. Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa». O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido. Não ficou o Tribunal de Coimbra em estado de dúvida. E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133). Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo. 3.1.10. Em CONCLUSÃO, da análise da prova produzida, pela audição dos depoimentos gravados, tudo confrontado com a motivação da decisão de facto, sem esquecer que o recurso é um remédio e não um segundo julgamento, conclui-se que inexistem quaisquer razões para alterar o juízo probatório constante do acórdão recorrido, mantendo-se, em consequência, toda a matéria de facto dada como provada e não provada na decisão «a quo» (não se vislumbrando qualquer erro de julgamento). Como tal, só pode improceder a argumentação deste recurso, em sede factual, tendo-se por assentes, em consequência, todo o acervo factual constante do acórdão de Coimbra. 3.2. DO DIREITO 3.2.1. Houve errada qualificação jurídica dos factos? Entende o recorrente que jamais poderia ter sido condenado pela prática dos crimes de violência doméstica agravado na pessoa da sua mulher. Entende também que o crime de ofensa corporal na pessoa do enteado não se verificou pois não se provou o seu dolo directo (conclusão 10ª). 3.2.1.1. Comecemos pela 2ª alegação. Completamente desajustada esta conclusão. Os factos dados como provados (quanto à factualidade datada de 31.12.2023) falam por si: · factos provados q), r), s), t) e u) – contexto da agressão ao enteado; · factos provados v), w) e x) – agressão propriamente dita e suas sequelas no corpo do enteado; · factos provados bs) e bx) – elementos subjectivos do tipo legal do artigo 143º do CP (dolo). Sobre o DOLO diremos: Sabemos que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. Ora, quanto à estrutura do dolo, é ponto pacífico que o mesmo é composto por um elemento cognitivo ou intelectual e por um elemento volitivo. Nas expressivas palavras de Teresa Pizarro Beleza, “basicamente..., dolo corresponde ao conhecimento e à vontade de praticar um certo acto que é tipificado na lei como crime”. Vejamos cada um dos referidos elementos, não esquecendo o ensinamento de Fernanda Palma, segundo o qual: “...a distinção entre um elemento intelectual e um elemento volitivo torna-se, fundamentalmente, uma distinção para efeitos de análise. Na conduta intencional, não há qualquer separação entre o estado cognitivo e a volição, que seja, realmente, vivida pelos agentes”. Vejamos, pois, em primeiro lugar, o mencionado conhecimento; o elemento cognitivo ou intelectual do dolo. Para se poder dizer que o agente actuou dolosamente, tem de se poder dizer que o agente conhecia os elementos objectivos essenciais do tipo que a sua conduta, objectivamente, preenche. Ora, esses elementos objectivos essenciais (ou seja, os elementos que definem o tipo) podem ser descritivos ou normativos, isto é, podem ser elementos correspondentes a conceitos da linguagem comum, vulgar, corrente (por oposição à linguagem jurídica - stricto sensu), ou elementos correspondentes a conceitos da linguagem jurídica (stricto sensu). Para além do elemento cognitivo ou intelectual do dolo, ou seja, para além do conhecimento da realidade objectiva (lato sensu) que interessa ao tipo, é comum identificar e tratar no dolo uma dimensão de vontade, o chamado elemento volitivo do dolo, elemento este que se traduz na vontade de realizar uma certa conduta e/ou de obter um certo resultado. Ou seja: Também ninguém ignora que a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: · dolo directo – a intenção de realizar o facto; · dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta e · dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta. Diga-se que, segundo esta doutrina tradicional do crime, sufragada por Eduardo Correia, o dolo desdobra-se num elemento cognitivo ou intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por Figueiredo Dias, este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento. Mais se diga que a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto e que, ao nível do processo, esta exigência satisfaz-se com a prova e, consequentemente, com a menção no elenco dos factos provados, do conhecimento do agente da ilicitude da sua conduta, seja pela fórmula habitual, e algo conclusiva de, «bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», seja por qualquer outra forma que descreva com objectividade este facto da vida interior do agente. O que não pode acontecer é ter-se por praticado o crime sem a prova da consciência da ilicitude. A concluir, ouça-se o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 332 e seguintes: «A doutrina hoje dominante conceitualiza-o, na sua formação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito. O tipo subjectivo do ilícito será assim decomposto em dois elementos: 1- O momento intelectual do dolo. Torna-se necessário, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo. (…) O que com ele se pretende é que, ao actuar, o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito (…) 2- O momento volitivo do dolo. O conhecimento (previsão) das circunstâncias de facto e, na medida necessária, do decurso do acontecimento não podem, só por si, indiciar a contrariedade ou indiferença manifestada pelo agente no seu facto, que dissemos caracterizar a culpa dolosa e, em definitivo, justificar a punição do agente a título de dolo. Isto significa que o dolo do tipo não pode bastar-se com esse conhecimento, mas exige ainda a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização. É este momento que constitui o elemento volitivo do dolo do tipo e que pode assumir matizes diversas, permitindo a formação de diferentes classes de dolo». Diremos ainda, no que tange à componente subjectiva da conduta praticada pelo arguido, o dolo constitui, as mais das vezes, um bom exemplo de escola do que, por revelar uma índole anímica, ligada ao espírito e à vontade do agente, tem de assentar, para a inerente demonstração, naquilo que amiúde se chama de “prova indirecta”. Dito de outro modo, raramente os actos interiores ou factos internos, que respeitam à vida psíquica da pessoa, se provam directamente, pelo que tê-los-emos de surpreender e captar nos factos exteriores, no comportamento externo e visível do agente que realiza um tipo objectivo de crime, devendo o julgador, por isso, resolver a questão factual decidindo se o agente agiu internamente (na sua voluntas) da forma como foi por si revelada externamente. De acordo com o Acórdão da Relação de Coimbra de 8/11/2017, em casos como os que acabamos de aludir, a prova do dolo terá que ser levada a cabo por inferência, isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – particularmente, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum (onde a premissa maior é composta pelas regras da experiência comum convocadas e a premissa menor é composta pelo facto ou pelos factos objectivos provados) (no mesmo sentido, cfr. igualmente Ac. STJ de 12/3/2009, ambos os arestos disponíveis em www.dgsi.pt). Ora, no nosso caso, o tribunal, para fazer prova dos elementos subjectivos do crime em causa, baseou-se nos actos objectivos comprovados, conjugados com as elementares regras da normalidade e da experiência comum E fez o tribunal o cotejo de toda essa prova objectiva, chegando à óbvia conclusão de que o arguido esbofeteou o seu enteado, provocando-lhe uma ofensa à sua integridade física (simples). Já sabemos o que o STJ, em acórdão de fixação de jurisprudência, datado de 18.12.1991, decidiu que «integra o crime do artigo 142.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho». E defendemos nós que não existem bofetadas correctivas de pai para filho, de mãe para filho ou de padrasto para enteado. Acreditamos piamente que a educação de uma criança não pode nunca passar pelo recurso ao castigo físico ou psíquico. Disserta assim o acórdão da Relação do Porto de 16/12/2020 (Pº 3204/15.8T9MAI.P1): «Atualmente, o Código Civil (redação do DL 496/77, de 25/09) designa a relação entre pais e filhos por responsabilidades parentais (artº 1877º e ss.) cujo conteúdo é definido, essencialmente nos artºs 1878º e 1885º, como assistencial e educacional e não corretivo. Maria Clara Sottomayor, pronunciando-se pela substituição do poder de correção pela educação, refere que “a educação substitui a correção, tendendo a diluir-se a tradicional distinção entre o adulto e a criança, que inferiorizava a criança em relação aos adultos” (…) “O direito dos pais educarem os filhos não abrange o direito de os agredir, de ofender a sua dignidade, integridade física e psíquica ou liberdade”. Por outro lado, existe inequivocamente uma diferença de grau elevado entre uma relação como a da arguida com as crianças identificados nos autos, e a relação educativa entre os pais e as crianças seus filhos, quer essa diferença advenha da responsabilidade dos pais, pela grande proximidade existencial com os seus filhos; quer do afecto que une [ou é suposto que una] uns aos outros; quer mesmo do reconhecimento que decorre do artigo 29º da Convenção dos Direitos da Criança onde se despõe expressamente que “a educação deve inculcar [entre outros] o respeito pelos pais.”; quer mesmo pelo facto de a família ser reconhecidamente o primeiro pilar da educação das crianças. Diferença que não pode deixar de estar patente nas diferenças entre os tipos de ilícito previstos no artigo 152º e 152º A. do CP. A posição da recorrente não leva em conta a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, em cujo preâmbulo se reafirma “o facto de as crianças, devido à sua vulnerabilidade, necessitarem de uma protecção e de uma atenção especiais, e sublinha de forma particular a responsabilidade fundamental da família no que diz respeito aos cuidados e protecção. Reafirma, ainda, a necessidade de protecção jurídica e não jurídica da criança antes e após o nascimento, a importância do respeito pelos valores culturais da comunidade da criança, e o papel vital da cooperação internacional para que os direitos da criança sejam uma realidade”. Sendo que nos termos do artigo 29 da Convenção, já acima mencionado, “A educação deve destinar-se a promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas potencialidades. E deve preparar a criança para uma vida adulta activa numa sociedade livre e inculcar o respeito pelos pais, pela sua identidade, pela sua língua e valores culturais, bem como pelas culturas e valores diferentes dos seus». Também o aresto da Relação de Lisboa (Pº 413/15.3PFAMD.L1-3) é claro: «Entendemos igualmente, conforme plasmado em muitos documentos produzido no âmbito da Unicef, que, ante as práticas ainda massivas de castigos corporais no âmbito dos deveres de educação, e para mudar este estado de coisas, urge criar uma cultura de não violência para com as crianças, e de construção de uma barreira de consciencialização social e individual que afirme ser totalmente inaceitável em qualquer circunstância os adultos expressarem a sua vontade ou as suas frustrações na linguagem da violência. Alguns Estados têm, aliás, leis que proíbem expressamente a agressão a crianças. O que se nos afigura, de iure constituendo, uma solução sensata já que o peso dessas palavras, i. e, dessa autonomização típica, por sugerir uma específica representação, transmitiria, de modo mais claro e assertivo, a mensagem de que castigos corporais não são aceitáveis, e, simultaneamente, seria mais eficaz em criar no imaginário colectivo, a ideia de que existem outras formas alternativas de educar. Este seria, pois, o primeiro passo para criar na consciência jurídica colectiva, incluindo em franjas pautadas pela iliteracia em geral, uma nova necessidade, qual seja, a de procurar informação acerca dessas “outras” formas alternativas. Em segundo lugar, e não obstante o que vimos defendendo “de iure constituendo”, entendemos que, estando em causa uma reflexão no domínio da culpa, a ponderação a fazer deve cingir-se ao contexto psicológico do arguido e à exigibilidade de o mesmo ter actuado de outra forma. Ora, tais práticas ainda massivas e que, como vimos, não são rejeitadas unanimemente pela jurisprudência nem por toda a doutrina, jurídica ou da lavra de outras ciências sociais, sendo que resultam da transmissão geracional desses comportamentos. Até porque, criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos (v. com interesse, nesta matéria, “Direitos das Crianças e Jovens – Actas do Colóquio”, ISPA/CEJ, pags. 228 a 233, e Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, Porto, Rés Editora, 1984, pg. 303)». Apesar de múltiplos acórdãos referirem o poder-dever de correcção como parte das responsabilidades parentais, a reforma de 1977 do Código Civil eliminou o “poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas”. Ou seja, desde 2017, o castigo físico das crianças também é punido pelo Código Penal, seja pelo crime de violência doméstica ou de maus tratos (artigo 152º) ou de ofensa à integridade física (artigos 143º e 145º). A nível europeu, a pressão para a abolição dos castigos corporais já vem sendo feita há décadas e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, o principal instrumento jurídico desta temática, proíbe todas as formas destas punições nos artigos 19º e 37º. Em todo o mundo, 63 Estados já proibiram estes castigos — em 2021, juntaram-se à lista a Coreia do Sul e a Colômbia. Lado a lado com Portugal, também Espanha, Nova Zelândia, Países Baixos, Togo, Uruguai e Venezuela proibiram esta forma de violência em 2007. Já nos Estados Unidos, por exemplo, ainda é permitido este tipo de castigos em casa e, em 19 estados, não foram banidos nas escolas. O direito de os pais infligirem punições nos filhos não se enquadra legalmente em violência e maus tratos neste país, segundo a plataforma internacional dedicada ao tema End Corporal Punishment. Numa palavra: A partir do momento em que reconhecemos a criança como um sujeito de direitos, o sujeito de direitos não deve ser educado dessa forma violenta, devendo a violência ser eliminada das relações entre as crianças e os adultos. Logo, o poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal em Portugal de onde se possa retirar tal conclusão (Portugal aparece como um dos países[14] que alterou a sua legislação tendo em vista o respeito pelos direitos da criança e a abolição dos castigos corporais). Os castigos corporais não são permitidos em caso algum e podem constituir uma forma de maltrato e configurar situações de perigo que legitimem a intervenção do sistema de protecção de crianças previsto na Lei de Promoção de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. No fundo, bater numa criança não passa de “um acto de humilhação” e de uma enorme “falha do adulto”, na douta palavra de Catarina Ribeiro, psicóloga forense. Apela-se, pois, a que não se use causas de exclusão de ilicitude pois toda a violência contra os filhos é intolerável e nunca justificável e justificada (toda a violência contra um ser humano é indigna). Note-se que o raciocínio feito quanto a agressão física vale para a agressão psíquica. Portanto, esta gratuita agressão de padrasto para enteado (nem sequer a versão do arguido foi dada como provada, segundo a qual o EE estaria a insultar vizinhas, o que teria provocado aquela intenção correctiva do zeloso padrasto) é ilegítima e criminosa. Não esqueçamos: Constitui boa prática interpretativa o entendimento segundo o qual o bem jurídico a proteger está também intimamente relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico, e ainda em todas as relações de confiança tuteladas pela norma incriminadora. Desta forma, visa-se uma tutela reforçada da pacífica convivência familiar ou doméstica, face a condutas que, sem aparente gravidade ou intensidade, isoladas ou não reiteradas, são susceptíveis de corromper toda a relação de confiança pré-existente[15]. Só pode ser, assim, condenado o arguido pelo crime em causa. 3.2.1.2. E quanto ao crime de violência doméstica agravado? O Tribunal entendeu consumado o crime do artigo 152º, nº 1, alínea a) – foi provada a conjugalidade entre arguido e vítima - e nºs 2, alínea a) – foram provadas agressões no domicílio comum do casal -, 4 e 5 do CP. A defesa alega que não há motivos jurídicos para considerar perfectibilizado tal crime complexo [pede a absolvição pelo crime do artigo 152º do CP e na motivação entende que estamos perante um crime de ofensa à integridade física (cfr. p. 28 da motivação)]. O tribunal defendeu-se assim na explicação da sua tese: «3. Resultou da instrução e discussão da causa que o arguido AA, em cotejo com os factos apurados tal como supra descriminados , quis, desde o início do casamento até ao termo dessa mesma relação conjugal, amedrontar e maltratar fisicamente a ofendida BB. Propósito que alcançou com a prática dos factos narrados em f) a i) e n)... Mesmo o acto descrito em aa), ainda que surgindo como retorsão, afirma-se de uma agressividade ou brutalidade francamente superior à prévia estalada sofrida. Ou seja, o arguido AA desferiu a BB, nas ocasiões narradas, socos e bofetadas, arremessando objectos contra sim, empurrando o correspondente corpo e materializando-lhe uma ameaça de morte. E apurada ficou, por igual forma, a reiteração e continuidade de comportamentos anti-jurídicos do arguido AA nos quase 3 anos em que se manteve a coabitação com a ofendida BB. Neste sentido, constatou-se que foi em tal ambiente de violência e intimidação que viveu BB devido ao instinto agressivo do arguido AA. Sofrendo reiteradas agressões as quais lhe causaram danos físicos e ansiedade ao ponto de sobreviver sob o signo da violência imposto pelo arguido. O que ocorreu, além do mais e pelo menos em parte, na residência comum do casal… Além do mais, o arguido AA agiu com dolo directo, prevendo as consequências da sua conduta e desejando alcançá-las e tendo consciência que a ofendida BB se achava relacionada consigo como cônjuge. Destarte, e porque o arguido quis praticar os factos conforme os praticou, actuando pois com dolo – sem que se conclua, além do mais, pela existência de qualquer causa que afaste a ilicitude dos actos ou a culpa – e porque tinha perfeito conhecimento de ser a sua conduta proibida e punida por lei, impõe-se concluir que o arguido AA, preencheu, em autoria material e na forma consumada, um crime de Violência Doméstica sobre a pessoa de BB. Ilícito que se acham, além do mais, contemplados na alínea a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal… Atente-se, ademais, que não inscrevemos nas condutas susceptíveis de sancionamento a título de Violência doméstica o episódio de 16 de Março de 2024… Não obstante se tratar de acto que envolve um inequívoco mau trato psíquico e visa desenvolver uma ofensa de cariz físico, cabe não olvidar que a punição por Violência doméstica não se dará naqueles casos em que caiba pena mais grave à conduta por força de outra disposição legal. O que ocorre, naturalmente, com uma actuação susceptível de traduzir a prática de um crime de Homicídio qualificado na forma tentada… Cuja pena de prisão conhece uma moldura entre 2 anos, 4 meses e 24 dias e 16 anos e 8 meses. E que, por isso mesmo, carecerá de ser autonomamente sancionado! Acresce que no caso sub judice ocorre situação similar à sindicação no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2018 [Processo n.º 574/16.4PBAGH.S1] e onde se estabelece que VII - A prática mais ou menos constante e reiterada das condutas descritas no art. 152.º, do CP desde que cada uma dessas condutas não permita a sua autonomização, dará origem a uma unicidade normativo-social, tipicamente imposta, pelo que o agente terá praticado um só crime, desde que esteja em causa uma só vítima. VIII - Esta unidade pode vir a cindir-se, no entanto, quando algum dos actos isolados permita a verificação do tipo social de um crime mais grave – ofensa à integridade física grave, violação, homicídio -, devendo o agente ser punido em concurso efectivo com os crimes de violência doméstica. IX - Na relação do crime de violência doméstica com outros de pena mais elevada, considera-se, pois, que a prática de crime mais grave é um factor de cisão da unicidade do crime, devendo concorrer, em concurso efectivo, o crime mais grave e a violência doméstica. X - Como salienta MARIA PAULA RIBEIRO FARIA, «para afirmar a pluralidade criminosa é necessário que se deixe afirmar em relação ao agente mais do que um juízo de censura referida a uma pluralidade de processos resolutivos» . Segundo a mesma autora, há que «acrescentar à pluralidade de bens jurídicos violados uma pluralidade de processos volitivos merecedores de distintos juízos de censura», justificando-se a unidade ou pluralidade desses juízos de censura numa «valoração mais global que corresponde ao significado social do facto que inspira a própria formulação dos tipos legais de crime» - o sentido social da ilicitude material. XI - No caso apreciado, a actuação do arguido na agressão sexual cometida se afasta-se do conjunto de agressões e outras ofensas praticadas sobre a ofendida, então sua companheira, tendo obedecido a uma autónoma resolução perfeitamente cindível das reiteradas resoluções presentes nos demais comportamentos. Tendo presente o perfil das ofensas reiteradamente cometidas sobre a ofendida, tem-se como evidente que a violação praticada em finais de 2014 não radica no mesmo processo volitivo presente naquelas ofensas. XII - Constituindo igualmente uma evidência que os bens protegidos com as incriminações de violência doméstica e de violação, tendo pontos de contacto, não são coincidentes. O significado social e o sentido social da ilicitude material de uma e de outra das ditas incriminações são distintos, não obstante os pontos comuns que se podem aí observar. XIII - O juízo de censura pela prática do crime de violação assume autonomia relativamente ao que deve ser formulado relativamente às ofensas unificadas na violência doméstica. XIV - Tudo ponderado, considera-se que o crime de violação cometido pelo arguido assume autonomia relativamente aos restantes actos ofensivos, encontrando-se numa relação de concurso efectivo com o crime de violência doméstica. (…)». Ou seja, o tribunal, e bem, autonomizou o incidente quase letal de 16.3.2024, inscrevendo apenas no epíteto da violência doméstica a factualidade dada como provada em e), f), g), h), i), j), k), l), m), n), o), p), aa), ac), bq), br) e bx). No que tange ao crime de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, diremos: — O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio (cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima); — No seu tipo objectivo, incluímos as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma - o actual crime de violência doméstica afigura-se complexo, abarcando uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito activo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias); — Este elenco de Maus-tratos – previsto no artigo 152º do CP - é exemplificativo (crime de execução não vinculada); — Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, tendemos aqui a concordar com Catarina Fernandes[16], quando afirma que a violência doméstica pode consubstanciar, tanto um crime de resultado (estando em causa, v.g., maus tratos físicos); como um crime de mera actividade (estando em causa, v.g., provocações e ameaças); como um crime de dano (estando em causa, v.g., privações de liberdade) ou como um crime de perigo (estando em causa, v.g., ameaças e humilhações); — Contudo, no seu essencial é um crime de perigo abstracto, no que ao nosso caso se refere; — Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado («por regra não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime»[17]); — Pese embora a supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, entende-se que um único acto ofensivo, sem reiteração, para poder ser considerado «Maus Tratos» e assim preencher o tipo do 152º, continua, hoje, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (TUDO DEPENDENDO DO CASO CONCRETO)[18]; — Exige o tipo um estado de agressão tendencialmente permanente (exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante); — Bastará então a fixação de balizas temporais que permitem assegurar ao agente o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo (daí não se exigir a especificação das datas exactas de todas as agressões). Também tem sido entendido, sendo muito elucidativo o Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, que o relator deste aresto coordenou enquanto Director-Adjunto do CEJ, que «as situações de VD envolvem, geralmente, mais do que uma forma de violência: ü Violência emocional e psicológica: consiste em desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos; criticar negativamente todas as suas ações, caraterísticas de personalidade ou atributos físicos; gritar para atemorizar a vítima; destruir objetos com valor afetivo para ela, rasgar fotografias, cartas e outros documentos pessoais importantes; persegui-la no trabalho, na rua, nos seus espaços de lazer; acusá-la de ter amantes, de ser infiel; ameaçar que vai maltratar ou maltratar efetivamente os filhos, outros familiares ou amigos da vítima; não a deixar descansar/dormir (e.g., despejando-lhe água gelada ou a ferver, passando um isqueiro aceso frente às pálpebras quando ela adormece, etc.), entre muitas outras estratégias e comportamentos. As últimas estratégias referidas enquadram-se já nos domínios da ameaça e da intimidação, duas outras formas de violência frequentes que visam impedir a vítima de reagir aos abusos perpetrados pelo companheiro. ü Intimidação: intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e/ou contra os seus familiares e amigos (sobretudo filhos), a animais de estimação ou bens. O ofensor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, agitação motora, mostrar ou mexer em objetos intimidatórios (e.g., limpar a espingarda, carregar o revólver, afiar uma faca, exibir um bastão, dormir com armas à cabeceira da cama, ter armas na mão quando aborda sexualmente a sua companheira). Inclui-se também aqui a utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (e.g., levar os filhos a humilhar a vítima; ameaçar que, em caso de separação, conseguirá afastar as crianças da vítima, ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone). Através destas estratégias, o agressor consegue manter a vítima sob domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acaba por viver submergida pela ansiedade e pelo medo. ü Violência física: consiste no uso da força física com o objetivo de ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes - engloba atos como empurrar, puxar o cabelo, dar estaladas, murros, pontapés, apertar os braços com força, apertar o pescoço, bater com a cabeça da vítima na parede, armários ou outras superfícies, dar-lhe cabeçadas, dar murros ou pontapés na barriga, nas zonas genitais, empurrar pelas escadas abaixo, queimar, atropelar ou tentar atropelar, entre outros comportamentos que podem ir desde formas menos severas de violência física até formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade permanente ou mesmo a morte da vítima. ü Isolamento social: resulta das estratégias implementadas pelo agressor para afastar a vítima da sua rede social e familiar, dado que uma vítima isolada é mais facilmente manipulável e controlável do que uma vítima com uma boa rede de apoio familiar e social. Estas estratégias consistem basicamente em proibir que a mulher se ausente de casa sozinha ou sem o consentimento do agressor, proibi-la, quando tal é economicamente viável, de trabalhar fora de casa, afastá-la do convívio com a família ou amigos - seja por via da manipulação (“estamos tão bem os dois, para que precisas de mais alguém...”., “o teus pais não gostam de mim”...), seja por via da ameaça à própria ou a terceiros significativos, caso a vítima mantenha contactos sem a sua autorização. Por sua vez, a própria vítima acaba por se afastar dos outros, quer por vergonha da situação de violência que experiencia ou de eventuais marcas físicas visíveis resultantes dos maus tratos sofridos, quer por efeito das perturbações emocionais e psicossociais produzidas por situações de VD/VC continuada, como mais à frente será referido. ü Abuso económico: associado frequentemente ao isolamento social, é uma forma de controlo através do qual o agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou, mesmo, a bens de necessidade básica (como alimentos, aquecimento, uso dos eletrodomésticos para cozinhar, etc.). Mesmo que a vítima tenha um emprego, a tendência é para não lhe permitir a gestão autónoma do vencimento, que é cativado e usado pelo agressor. Passa também por estratégias de controlo da alimentação e da higiene pessoal (da vítima e, por vezes, também dos filhos), como manter o frigorífico, armários ou dispensas fechados com cadeados, esconder as chaves de diversos compartimentos da casa, controlar as horas a que o aquecimento geral/local ou um esquentador ou cilindro pode ser ligado, manter aquecida apenas uma divisória da casa, na qual apenas o agressor pode entrar/permanecer, bloquear telefones, impedir a ida sozinha a supermercados ou cafés. ü Violência sexual: toda a forma de imposição de práticas de cariz sexual contra a vontade da vítima (e.g., violação, exposição a práticas sexuais com terceiros, forçar a vítima a manter contactos sexuais com terceiros, exposição forçada a pornografia), recorrendo a ameaças e coação ou, muitas vezes, à força física para a obrigar. Outros comportamentos, como amordaçar, atar contra a vontade, queimar os órgãos sexuais da vítima são também formas de violência sexual. A violação e a coação sexual são alguns dos crimes sexuais mais frequentemente praticados no âmbito da VD mas que muitas das vítimas, por força de crenças erróneas, valores e mitos interiorizados, acabam por não reconhecer como tal, achando, incorretamente, que “dentro do casal não existe violação”, que são “deveres conjugais” ou “exigências naturais” do homem. A violência sexual engloba também a prostituição forçada pelo companheiro». Aludamos ainda ao seguinte: Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. Por via do quadro legal, estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, e daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica. Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela. Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa (acórdão da Relação de Lisboa de 5/7/2016, Processo nº 662/13.9GDMFR). Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo. Aqui chegados, diremos que o crime de violência doméstica, pelo menos de forma residual, constitui também um crime específico próprio, justificando a subsunção de algumas condutas que não encontrariam tutela em sede dos demais tipos de crime previstos no nosso Ordenamento. Neste aspecto, Taipa de Carvalho destaca, “situações de maus tratos psíquicos (como, p. ex., humilhações, ameaças não abrangidas pelo art. 153º, ou o chamado “assédio moral”) que, embora possam in se não configurar uma autónoma infracção”, podem configurar, “quando reiteradas, um mau trato psíquico abrangido pela ratio e pela letra do art. 152º”. Nestes casos, é, portanto, “a especial relação – que, no presente ou no passado, existe ou existiu entre o agente a vítima – que fundamenta a ilicitude e a punição do agente”. Também Nuno Brandão fala de microviolência continuada, onde «a opressão de um dos (ex-) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação» (cfr. Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno - Manual pluridisciplinar CEJ/CIG, 2ª edição, 2020, Coordenação de Paulo Guerra e Lucília Gago). No nosso caso, o tribunal entendeu que a factualidade apurada consumava o crime de violência doméstica. E explicou-se. Este homem, já ameaçador da mulher desde Angola [facto provado i)], praticou violência fisica e psíquica sobre a mulher em Angola, de 26.3.2021 a 15.1.2023, e em Portugal, na sua casa de morada de família, em dia inapurado de Outubro ou Setembro de 2023 e em 31.12.2023. Ou seja, e olhando para o globalidade da vivência em Angola e em ...: - deu-lhe socos e chapadas por 4 vezes, pelo menos, - arremessou objectos na direcção do corpo da mulher, atingindo-a, - empurrou-a e deu-lhe um soco no braço, - voltando a socá-la no queixo em 31.12.2023. Aqui chegados, sem sombra para dúvidas, damos o nosso pleno assentimento, assim, à tese do tribunal quando, atendendo à valoração global dos factos, entendeu que o arguido incorreu na prática do crime pelo qual veio a ser condenado, porquanto se mostram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime em causa. No caso concreto em apreço, estamos confrontados com uma conduta plural, composta por factos que, globalmente considerados, permitem concluir pela posição especial e particularmente desprotegida ou indefesa da ofendida, afectando-a na sua dignidade humana, enquanto ser individual que é e enquanto cônjuge. Há muito que está ultrapassada a tese de que o conceito de maus-tratos, essencial no crime de violência doméstica, tem na sua base lesões, intoleráveis, brutais e pesadas. O crime de Violência Doméstica pode, desde logo, entrar em concurso aparente com diversos crimes base, atenta a multiplicidade de bens jurídicos susceptíveis de ser afectados como instrumento da afetação do bem jurídico tutelado (a saúde no contexto relacional pressuposto). Recorde-se, a propósito, que o crime em causa reconduz-se a um crime de execução livre susceptível de abarcar condutas dirigidas, prima facie, a bens tão diversos como a integridade física, a liberdade, a autodeterminação sexual, a honra, a reserva da vida privada. Em situações em que se encontre afastada a cláusula de subsidiariedade expressa (porque a punição do crime convocado se revela inferior ao da violência doméstica) ou em que entre o crime de violência doméstica e o crime convocado intercede uma relação de especialidade), prevalece a punição do crime de violência doméstica. São estes os casos dos crimes de: · Maus tratos (152.º-A, n.º 1, no caso de o agente coabitar e ser titular da guarda da vítima), · Ofensa à integridade física simples (artigo 143.º), · Ofensa à integridade física qualificada [apenas a modalidade do artigo 145.º/1 a)], · Ameaça, simples e agravada (artigos 153.º e 155.º/1), · Coação (artigo 154.º), · Perseguição (artigo 154.º-A)[19], · Sequestro (apenas a modalidade do artigo 158.º/1), · Coação sexual (apenas a modalidade do artigo 163.º/2), · Lenocínio (apenas a modalidade do artigo 169.º/1), · Fraude sexual (artigo 167.º), · Lenocínio (artigo 169.º), · Importunação sexual (artigo 170.º), · Abuso sexual de crianças (apenas a modalidade do artigo 172.º/3), · Abuso sexual de menores dependentes (apenas a modalidade do artigo 172.º/2 e 3), · Atos sexuais com adolescentes (artigo 173.º), · Recurso à prostituição de menores (artigo 174.º), · Aliciamento de menores para fins sexuais (artigo 176.º-A), · Difamação (artigo 180.º), · Injúria (artigo 181.º), · Violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190.º), · Introdução em lugar vedado ao público (artigo 191.º), · Devassa da vida privada (artigo 192.º), · Violação de correspondência ou de telecomunicações (artigo 194.º) e · Gravações e fotografias ilícitas (artigo 199.º). A relação que se estabelece entre o crime de violência doméstica e estes outros tipos de crime menos graves redunda numa situação de concurso aparente com a prevalência da norma do artigo 152.º do CP, seja mercê de uma relação de consunção (realização de um juízo valorativo material que conclua pela maior abrangência do conteúdo de ilicitude do tipo do artigo 152.º), seja por via de uma relação de especialidade (realização de juízo lógico-formal que conclua pela maior amplitude do tipo do artigo 152.º pela verificação de elementos não contemplados pelo tipo preterido)[20]. No caso em causa, o dolo directo do arguido foi provado. Damos, pois, o nosso acordo à subsunção jurídica feita pelo tribunal recorrido, assente que estamos muito longe de considerar, como o faz a defesa, que estes comportamentos têm apenas abrigo penal em crimes menos graves, antes a tendo, a nosso ver, à luz da análise global da atmosfera que se foi vivendo entre este homem e esta mulher, tóxica q.b., na categoria mais ampla da «violência doméstica», devido a comportamentos atribuídos ao elemento masculino do casal que, em Angola, já lhe havia dito que a mataria se ela o deixasse. Aqui podemos afirmar que a conduta do arguido representa – continua a representar - um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica. E provocou, por outro lado, danos na saúde física e psíquica da vítima [cfr. factos provados p), ac) e bq)]. Logo, segundo os critérios acima expostos, estaremos perante um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do CP, tendo como vítima a sua mulher, agravado nos termos do nº 2, alínea a). Crime há, portanto, SÓ se justificando a condenação do arguido (e nunca a sua absolvição como, infundamentadamente, pede a defesa). Como tal, e sem necessidade de mais argumentos, aderimos com facilidade à subsunção jurídico-penal feita pelo tribunal recorrido, entendendo que, no caso concreto, com base no quadro global apurado, só poderia este homem ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica. E não se diga que a agressão documentada em aa) foi levada a cabo depois de uma agressão da ofendida ao arguido (e não é despropositada a comparação entre as duas agressões – a ofendida deu uma estalada no marido depois de o ver agredir o seu filho, e o arguido desferiu um soco no queixo da ofendida, naturalmente mais doloroso e grave que uma “mera” estalada). Já aqui vimos - a possível violência da mulher para com este marido não justifica a ilicitude do comportamento deste, assente que não estamos em situação de comprovada legítima defesa (ouvimos foi a BB a dizer que o agredia para se defender dele – minuto 7:43). E nem as frequentes discussões do casal levam-nos a ser benevolentes para com este homem, capaz de recorrer à violência física, várias vezes (e uma vez já seria demais), para amesquinhar a sua cônjuge (diga-se que não ficou apurado o alegado clima de domínio da ofendida sobre o arguido, tido pela defesa com um homem doente e sujeito a uma «mulher que tocava todos os comandos da vida em comum», ela uma gastadora e perdulária). Em vários excertos da prova gravada, ouvimos o arguido a dizer que «ficou irritado e deu-lhe um soco», referindo-se à BB e ao EE. Basta uma irritação subjectiva para partir para a violência. Inaceitável. Portanto, os dois, marido e mulher, não estão no mesmo patamar de conflito, como insinua a defesa. Improcede, assim, o recurso nesta parte. 3.2.1.3. No que tange ao crime de tentativa de homicídio qualificado, o tribunal foi claro – houve intenção de matar e actos de tentativa. Quanto à qualificação do delito, o tribunal fez apelo à aplicação das alíneas b) – conjugalidade entre agressor e vítima[21] -, d) – empregou o arguido actos de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima[22] – e j) – agiu o arguido com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregados[23] - do nº 2 do artigo 132º do CP. No domínio dos crimes de homicídio, a norma matricial estatui no sentido de que «quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos» (art. 131º C.P.). Qualifica-se tal crime (n.º 1 do art. 132º CP) «se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade», sendo a moldura penal abstracta a de pena de prisão de 12 a 25 anos. Já se privilegia tal crime nos termos do artigo 133º do CP - «quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de um a cinco anos». No que tange à matéria da qualificação, tem sido entendido de modo pacífico pela Jurisprudência e Doutrina, que a nossa legislação penal, em matéria de qualificação ou agravação do crime de homicídio, acolheu a teoria dos exemplos padrão, ou seja, enuncia uma série de circunstâncias que normalmente são indiciadoras da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do homicida, que não funcionam automaticamente (cfr. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1990). Tem-se, de facto, entendido que a norma do artigo 132º consagra a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a chamada técnica dos “exemplos-padrão”, contidos no n.º 2 do seu corpo. Por conseguinte, a qualificação do crime de homicídio não resulta de forma automática ou inexorável da verificação de uma ou várias das circunstâncias enumeradas no art. 132º/ 2 CP, sendo necessário que as mesmas revelem especial censurabilidade ou perversidade. O crime de homicídio qualificado mais não é, portanto, do que uma forma agravada do homicídio simples, encontrando-se o plus dessa mesma agravação na “especial censurabilidade ou perversidade” do agente. Como explica Figueiredo Dias, a «(…) a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrita com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1, verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integram o tipo de culpa qualificador. Deste modo, devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º/n.º 2» (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, página. 26). E continuemos com o insigne Professor de Coimbra: «Muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º/n.º 2, em si mesmos tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada» (mesma obra, p. 27), sendo mister da lei «(…) a de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (mesma obra, p. 29). Citando Teresa Serra, existe especial censurabilidade quando «as circunstâncias em que a morte é causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinada atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indícios de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade» (ob. citada, pág. 63). As circunstâncias descritas no artigo 132º do CP95 não são de funcionamento automático, pelo que só podem ser compreendidas como elementos da culpa exigindo-se, por isso, que, no caso concreto, elas exprimam uma especial perversidade ou censurabilidade do agente. A especial censurabilidade ou perversidade tem de ser demonstrado na situação em concreto, através de uma análise das circunstâncias do caso (cfr. «Actas, Parte Especial», 1979, págs. 21 e 22; Acórdão do STJ datado de 12/07/89, BMJ n.º 389, pág. 310) - a agravação da culpa tem a ver com «a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples» (cfr. Figueiredo Dias, Col. Jur., Ano XII, tomo 4º, pág. 52). Como tal, o desvalor ético-jurídico traduzido na culpa é capaz, por isso, de fundamentar, exclusivamente por si, uma censura. No artigo 132º do CP está previsto o homicídio qualificado, que constitui um caso especial de homicídio doloso que o legislador decidiu punir com uma moldura penal agravada. Determina esta norma: «1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos. 2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente: (...) b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau; (…) d) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima; (…) j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas; (…)». Já sabemos que não vamos mexer na matéria de facto dada como provada pois inexistem os vícios do artigo 410º/2 do CPP e não houve, quanto a nós, qualquer erro de julgamento. E concordamos em pleno com as subsunções jurídico-penais feitas pelo Colectivo de Coimbra, aliás, não directamente atacadas pela defesa (apenas entende ela que não houve prova da intenção de matar, não discutindo, mesmo que de forma subsidiária, as alíneas qualificativas do delito em causa). Por isso, nenhum reparo nos merece a qualificação jurídico-penal deste 3º crime cometido pelo arguido, na forma tentada[24]. E mal até se compreende a dúvida da defesa, explanada a fls 45 da sua motivação – alega que ficou sem saber «se a condenação ocorreu nos termos dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e j), 22.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 do Código Penal; nos termos dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alíneas b) d) e j), 22.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 do Código Penal; nos termos dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), 22.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c) e 23.º, n.º 1 e 2 do Código Penal». O tribunal explicou-se, também, a este nível (sublinhados nossos): 3. Importa, pois, deixar claro que a conduta do arguido AA se acha passível de conduzir ao preenchimento de três circunstâncias qualificativas do Homicídio… Caberá, no entanto, eleger uma das mesmas para efeitos de qualificação típica por forma a que as demais possam ser mobilizadas como factor de medida da pena… Note-se que, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração, não poderá o Tribunal sopesar, na graduação da pena, as circunstâncias que façam parte do tipo de crime! Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2018 [Processo n.º 359/16.8JAFAR.S1], Na realidade, a questão que é normalmente equacionada pelo artigo em causa relaciona-se com o plano da proibição da dupla valoração na concorrência de qualificativas do crime de homicídio e, ainda, da ponderação da circunstância qualificativa na medida da pena aplicada em termos globais. Efectivamente, e como refere Figueiredo Dias, não devem ser tomadas em consideração, na medida da pena, as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime, nisto se traduzindo o essencial do princípio da proibição de dupla valoração. Sob esta sua mais simples formulação, adianta o mesmo Autor, o princípio tem uma justificação quase evidente: não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto; e portanto não apenas os elementos do tipo-de-ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena. No que concerne perfilhamos o entendimento de que o concurso de circunstâncias qualificativas do crime de homicídio deve ser ponderado na determinação da medida concreta da pena, isto é, qualificada a conduta com a mais grave circunstância e qualificando o crime, as outras circunstâncias devem ser tidas em conta na determinação da pena concreta nos termos gerais. Reportando-se a esta questão concreta Teresa Serra justifica a remessa para a inserção na apreciação global dos factores relevantes da medida da pena no tocante à qualificativa que não relevou como tal, afirmando que é de importância decisiva a referência ao Leitbild dos exemplos-padrão, ao Leitbild próprio de um grupo valorativo de homicídios especialmente censuráveis ou perversos. Este Leitbild retirado da análise das diversas circunstâncias exemplificadas no n.º 2 do artigo 132.º, irá permitir delimitar a apreciação necessária à afirmação da especial censurabilidade ou perversidade do agente para a qualificação do homicídio. Não basta, todavia, um aumento essencial da ilicitude e/ou da culpa, que se expressam nas diversas circunstâncias do n.º 2. É preciso que, a esse grau de gravidade do facto, acresça uma estrutura valorativa do mesmo facto correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão. Esta estrutura valorativa é extraída precisamente da ideia condutora agravante que subjaz a cada uma das circunstâncias mencionadas no n.º 2. Adianta ainda a mesma Autora que se se partir deste ponto de vista, concordando igualmente no facto de que os casos duvidosos deverão ser decididos de acordo com o sentido indicado pelo efeito de indício e, encarado na sua dupla vertente, é posta de parte, na esmagadora maioria dos casos, a necessidade de realizar uma apreciação global do facto e do agente para determinar a moldura penal aplicável. Com efeito, desta maneira, a valoração, a que o juiz não pode subtrair-se, deverá efectuar-se numa esfera bastante mais limitada, recorrendo essencialmente às circunstâncias generalizadoras constantes do n.º 2 do artigo 132.º, que depois não deverão ser tomadas em consideração na graduação da pena concreta. Nesta graduação, poderão ser valoradas todas as circunstâncias que não contribuam para a escolha da moldura penal aplicável, desde logo, as agravantes e atenuantes gerais e especiais. Mas também podem ser aproveitadas as circunstâncias generalizadoras - quando se verifique mais do que uma - que não foram decisivas para a selecção da moldura penal agravada. Esta, constitui a única via que permite, no domínio dos exemplos-padrão, pugnar por princípios de racionalidade na fixação da medida da pena. Assim sendo entende-se que a circunstância de, numa situação como a evidenciada no caso vertente, se demonstrar outras circunstâncias das elencadas no artigo 132.º n.º2, para além da qualificativa que opera a alteração da moldura legal, deverá ser equacionada em termos gerais na medida da pena. A seguir o mesmo crivo, tenha-se ainda em consideração o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2023 [Processo n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1], (…) IX - Sendo o crime de homicídio qualificado pelas circunstâncias previstas nas als. b) (crime praticado contra cônjuge) e e) (motivo fútil) do n.º 2 do art. 132.º do CP, considerada uma delas para a qualificação típica, deve a outra ser tida em conta, como fator de agravação, para efeitos de determinação da pena de acordo com o critério geral estabelecido art. 71.º do CP. Seguindo este mesmo raciocínio, deveremos considerar, para efeitos de qualificação típica, a circunstância definida na alínea b) do artigo 132.º do Código Penal. Tratamos, para tanto, daquela qualificativa que se revela mais imediatista ou automática e cuja afirmação não se acha, em tal vertente, sujeita a critérios próprios de valoração do aplicador. Além de que é aquela que melhor atende à génese do ilícito e à especial censurabilidade que deve ser dirigida ao arguido AA. O mesmo actuou contra BB porque a mesma figurava como sua cônjuge e queria pôr termo a esse mesmo relacionamento. No que é esse especial relacionamento que aquele ostenta com a vítima, por quem devia manter especial respeito, que deverá padronizar a qualificação do Homicídio tentado. Intercedendo as circunstancias definidas em d) e j) apenas como factores de medida da pena…». E daí a condenação ter sido feita, neste 3º delito, pelas seguintes normas: · «um crime de Homicídio qualificado na forma tentada [artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea b), 22º, nº 1 e 2, alínea b) e 23º, nºs 1 e 2, do Código Penal]» (é o que consta do DISPOSITIVO, sendo isso que vincula). Portanto, para efeitos de qualificação típica, usou o Colectivo a alínea b) do nº 2 do artigo 132º, explicando porquê. As restantes duas alíneas perfectibilizadas foram apenas usadas como factores da medida da pena. Claro como água. 3.2.1.4. Os crimes são os correctos, pois, julgando-se improcedente a alegação de que houve uma errada qualificação jurídica dos factos provados. 3.2.2. Que dizer das penas? Praticou, assim, o arguido os seguintes CRIMES: · CRIME 1 - em autoria material, UM crime de Violência doméstica agravada [artigo 152º, nº 1, alínea a) e nºs 2, alínea a), 4 e 5 do CP] - PENA APLICADA: 2 anos e 6 meses de prisão; · CRIME 2 - em autoria material, UM crime de Ofensa à integridade física [artigo 143º, nº 1 do CP] – PENA APLICADA: 4 meses de prisão; · CRIME 3 - em autoria material, UM crime de Homicídio qualificado na forma tentada [131º, 132º, n.º 1 e 2, alínea b), 22º, nº 1 e 2, alíneas b) e c) e 23º, nº 1 e 2 do CP] – PENA APLICADA: 9 anos e 6 meses de prisão; · Em sede de cúmulo jurídico e em conformidade com o artigo 77º do CP, foi condenado o arguido na pena única de 10 anos e 6 meses de prisão[25]. Entende a defesa que as penas deveriam ser reduzidas. Assim, pelo CRIME 1, advoga, subsidiariamente, uma pena próxima do mínimo da moldura abstractamente aplicável. Pelo Crime 2, pugna pela aplicação de uma pena de multa. Pelo Crime 3, não pede um «quantum» em concreto, alegando apenas que «a pena de 9 anos e 6 meses de prisão se mostra desadequada e desproporcional no caso em concreto». No cúmulo, entende-o excessivo, pedindo uma pena de 5 anos de prisão, claro está, suspensa na sua execução. Assim se justificou o tribunal recorrido neste particular: «IV. 1. Logrado que está o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido KK, importa agora determinar a medida da sanção a aplicar. E para desempenhar tal tarefa fornecem os artigos 152.º, n.º 2, 143.º e 132.º, n.º 1 [com a intervenção dos artigos 23.º e 72.º] do Código Penal molduras que se traduzem em i) pena de prisão de 2 a 5 anos, ii) pena de prisão até 3 anos ou pena de multa até 360 dias e iii) pena de prisão entre 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses. Atenta a alternatividade de sancionamento do tipo legal traduzido na Ofensa à integridade física simples com a consequente faculdade de aplicação aos arguidos ao arguido AA de pena de prisão ou de pena de multa por referência a tal ilícito, impõe-se a obtenção de um critério que nos auxilie na escolha de uma das mesmas sanções. Esse cânone é-nos dado pelo legislador no artigo 70.º do Código Penal… Preceito que acolhe abstractamente um princípio pragmático de preferência pela aplicabilidade de sanção não privativa de liberdade em face da pena de prisão sempre que aquela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição tal como estas se encontram previstas no artigo 40.º do Código Penal. Assim, e se é inequívoco que são exigências preventivas – e não de compensação da culpa – que presidem à aludida tarefa de escolha da natureza da pena, resta ainda determinar as relações mútuas que se estabelecem entre prevenção geral positiva e prevenção especial com vista a tal fim, maxime quando aqueles entrem em conflito na tarefa de escolha da pena principal. A esta questão responde Anabela Rodrigues considerando que é um “orientamento de prevenção – e esse é o de prevenção especial – que deve estar na base da escolha da pena pelo juiz; sendo igualmente um orientamento de prevenção – agora de prevenção geral, no seu grau mínimo – o único que pode (deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos de prevenção especial”. Tendo em atenção tudo o exposto e pressupostos os factos dados como provados, concluímos que se afigura preferível a opção por uma pena privativa da liberdade para sancionar a totalidade dos crimes em apreço. Na verdade, afigura-se que a pena de multa não terá aptidão para realizar in casu, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição na vertente de prevenção geral e especial positiva. É certo que o arguido AA se mostra primário! Mas tal não permite fazer olvidar que, com os comportamentos globalmente considerados nos presentes autos, o mesmo evencia uma personalidade claramente criminógena a documentar manifestas carências de ressocialização. Traduzindo, por conseguinte, uma antissocialidade cuja superação ou tratameto não se basta, como tal, com sanções pecuniárias. É, como tal, particularmente alto o receio que o arguido AA venha a reincidir na prática criminosa. Receio este que, quer na perspectiva dos condenados, quer na perspectiva da comunidade, urge suprir com a eleição de uma pena de prisão para punir os ilícitos propalados. 2. E eleita que se acha a necessidade de mobilização de sanções detentivas, devemos proceder à determinação concreta das penas a aplicar aos diversos arguidos. Isto sendo que tal tarefa surge indissociavelmente conexionada com as finalidades que se adscrevam à sanção criminal, tendo o julgador como ponto de referência em tal labor o próprio programa político-criminal que se encontra consagrado no artigo 40.º do Código Penal. Determina o n.º 1 deste normativo que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Desta forma, a finalidade que a pena visa, primacialmente, alcançar traduz-se na necessidade de tutela da confiança e do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime ou, acolhendo a formulação da Jakobs, na “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada”. Por sua vez, lograda que esteja esta finalidade de prevenção geral positiva, à pena preside ainda, por igual forma e em segunda linha, um escopo de prevenção especial. Prevenção esta que será pensada preferencialmente em ordem à reinserção comunitária do delinquente sempre que este se revele carente de socialização, mas já apenas de advertência quando esta carência não exista ou de inocuização quando não seja de esperar qualquer êxito na mesma tarefa. No entanto, porque, quando comandada por este duplo propósito surge o risco de instrumentalização da pena e do respectivo agente ao serviço de finalidades meramente preventivas e duma sequencial violação da dignidade da pessoa humana, determina ainda o n.º 2 do referido preceito que, em caso algum, pode a pena ultrapassar a medida da culpa. É este pois o quadro de fins da pena criminal que se encontra plasmado legislativamente e que recolhe uma aceitação quase consensual em sede jurisprudencial e no plano doutrinal. 2[26]. Por outro lado, e como se disse há pouco, o programa político-criminal que se reconheça como subjacente à finalidade das penas não poderá deixar de influenciar de forma determinante a concreta tarefa de determinação daquelas. Assim, à semelhança do que sucede com a demais jurisprudência e doutrina maioritária, tendemos a aceitar que é a teoria da moldura de prevenção defendida por Figueiredo Dias e Anabela Rodrigues a orientação de determinação da pena que se acha mais conforme com o propósito do nosso legislador. Desta forma, aceitando que as exigências de prevenção geral positiva não se traduzem numa pena exacta dentro da moldura penal abstracta dada pelo legislador, mas antes se reflectem numa moldura concreta de prevenção cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, temos que a pena concreta será encontrada dentro desta moldura em função de exigências de prevenção especial – em regra positiva ou de socialização –, mas sempre com a medida da culpa como seu limite máximo. Temos, pois, que a pergunta que o julgador deve colocar ao operar a tarefa de determinação concreta da pena à luz do artigo 71.º do Código Penal para pela aferição de Qual o mínimo de pena capaz de, perante as circunstâncias concretas do caso relevantes, lograr eficazmente a ressocialização do agente e mostrar-se ainda comunitariamente suportável à luz da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e que não ultrapasse, além do mais, o concreto juízo de censura que deve ser dirigido ao agente? Será, assim, à luz deste quadro que iremos perspectivar os concretos factores de medida da pena decorrentes do artigo 71.º do Código Penal… Determina o n.º 1 de tal preceito que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Com o que importa apurar quais as concretas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra os arguidos em sede de culpa e de prevenção. O que deverá ser realizado com recurso ao elenco exemplificativo de factores de medida da pena previstos no n.º 2 do sobredito normativo e tendo sempre presente a proposição já avançada por Zipf de que “a clara distinção entre culpa e prevenção é a chave para a compreensão da doutrina da medida da pena”. 3[27]. Quando em face de uma moldura penal tão lata quanto à do Homicídio qualificado tentado, a tarefa da eleição da pena concreta carece de se ancorar na consideração de todos os pormenores passíveis de assumir relevo jurídico-penal no contexto do ilícito. Necessitam, pois, de ser valorados todos os factores diferenciadores do concreto caso in judicando pois que só assim lograremos, em face de limites tão distantes, encontrar aquela específica pena que satisfará em pleno as exigências dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal. No que, até por apelo ao n.º 2 deste último preceito, o Tribunal atenderá, na determinação concreta da pena, “a todas as circunstâncias que (…) depuserem a favor do agente ou contra ele (…)”. Algumas assumirão particular relevo enquanto que outras revestirão importância secundária ou quase nula! Mas todas as facetas do caso sub judice carecem, nesta perspectiva, de ser valoradas. Deveremos também considerar que o princípio da proibição da dupla valoração obsta a que se considerem, nesta vertente, as circunstâncias que façam parte do tipo legal de crime [“todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (…)”]. Mas, como refere Paulo Pinto de Albuquerque [no mesmo sentido, Maia Gonçalves], “o tribunal pode e deve atender às circunstâncias que fazem parte do tipo cuja intensidade concreta ultrapasse aquela que foi considerada pelo legislador para efeitos de determinação da moldura penal (já assim, José Osório e Eduardo Correia, in Actas CP/Eduardo Correia, 1965, b: 125)”. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 2006 [Processo n.º 06P3163] dá, aliás, bom exemplo de como deve funcionar o princípio ne bis in idem… Estabelecendo, para tanto, que (…) IV - Contudo, verificada que esteja uma dessas circunstâncias que determina a agravação da moldura penal abstracta, há que ponderar o seu grau de intensidade quando se procede à determinação do quantum da pena, pois pode ser maior ou menor dentro desse quadro - pense-se que é mais reduzido o grau de ilicitude pela venda de estupefacientes a um só menor do que a uma centena de menores, como também tal grau é mais reduzido se o agente obtém na venda desses produtos cem mil euros de remuneração em vez de um milhão de euros. V - Assim, não se está a fazer uma dupla valoração da circunstância agravativa, mas a proceder a análises diferentes, a primeira de ordem qualitativa para saber se a circunstância é uma das que estão enumeradas na lei, a segunda de ordem quantitativa para apurar a sua ordem de grandeza no quadro já definido. VI - A violação da proibição de dupla valoração só existe se a apreciação da circunstância modificativa for feita mais do que uma vez sob a mesma perspectiva, qualitativa ou quantitativa, em prejuízo do arguido - seria o caso de admitir-se que a venda de estupefacientes a um só menor já é tráfico agravado - apreciação qualitativa - e na fixação da pena considerar-se tal circunstância como agravante de natureza geral, já que do ponto de vista quantitativo representa a mais reduzida licitude dentro desse quadro agravativo. (…) Assim sendo, com directa relevância para a determinação da medida da pena da culpa, resultam os seguintes factores: a) Da Medida da Pena da Culpa quanto ao Crime de Violência Doméstica i) o carácter temporal já algo dilatado pelo qual perduraram os maus tratos exercidos sobre a pessoa de BB; ii) a distinta tipologia de actos com que o arguido AA desenvolveu os maus tratos sobre a ofendida, a traduzirem-se em ofensas físicas e ameaças; iii) o facto de o relacionamento entre o arguido AA e BB se apresentar, em si mesmo, conflituoso e de aquela, pelo menos numa das ocasiões, ter também desenvolvido agressões [com antecedência temporal] sobre a pessoa daquele; iv) a ofensividade dos actos materializados pelo arguido AA e que não se acha intensa [não sendo conhecidas maiores sequelas ou lesões de que o puro infligir de dor]; v) O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo directo, tendo o arguido pleno conhecimento que a conduta pela qual vem acusado é proibida por lei e, não obstante, não se absteve de a praticar em conformidade com a sua vontade. b) Da Medida da Pena da Culpa quanto ao Crime de Ofensa à integridade física i) o facto de EE se afirmar como enteado de AA e por quem este deveria nutrir maiores sentimentos de respeito e protecção; ii) o carácter algo inusitado da agressão, a surgir como réplica a um mero salientar por EE que estavam terceiros a presenciar o comportamento do arguido AA; iii) a zona atingida pela ofensa e que, traduzindo-se na cabeça e no ouvido objecto de intervenção cirúrgica, tende a evidenciar maior vulnerabilidade; iv) a circunstância do estalo infligido pelo arguido se assumir, por regra, com uma gravidade menor no leque de actos passíveis de traduzirem uma Ofensa à integridade física; v) a ausência de consequências ou sequelas maiores que o puro infligir de dor; vi) O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo directo, tendo o arguido pleno conhecimento que a conduta pela qual vem acusado é proibida por lei e, não obstante, não se absteve de a praticar em conformidade com a sua vontade. c) Da Medida da Pena da Culpa quanto ao Crime de Homicídio Qualificado Tentado i) a motivação que levou o arguido AA a agir contra BB a traduzir-se numa pura retaliação contra o legítimo desejo desta de pôr termo ao relacionamento conjugal; ii) os termos da preparação da actuação desenvolvida, tendo o arguido AA se feito munir de duas garrafas com líquido inflamável e de dois instrumentos de fogo a evidenciar o seu comprometimento e empenho com o propósito de pôr termo à vida de BB; iii) a metodologia definida pelo arguido AA para atacar BB, tendo o mesmo eleito uma conduta [pegar fogo à visada com líquido inflamável] destinada a causar o maior sofrimento possível na vítima; iv) a circunstância de a sua actuação se ter iniciado no domicílio da vítima e onde se encontraria, ademais, o menor EE. Ou seja, num ambiente que BB reputaria de maior tranquilidade e segurança e com total indiferença pelos traumas que poderiam advir para o menor de ver a mãe a arder; v) os esforços desenvolvidos pelo arguido AA para que o fogo deflagrasse, tendo aquele, gorado esse propósito na casa de banho, iniciado perseguição de alguma duração com a projecção de líquido adicional e com a mobilização de instrumento de fogo distinto; vi) a circunstância de o resultado morte não ter advindo por puro acaso centrado no arguido AA não ter logrado accionar, por inabilidade e oposição heroica de BB, LL e GG, os fósforos e isqueiros em contacto com a pessoa da vítima. Ao ponto de devermos considerar que a tentativa se ficou num estado avançado de execução; vii) o facto de o arguido AA se ter tentado eximir das consequências dos seus actos com a ingestão de líquido a conter ácido sulfúrico; viii) a circunstância de, fisicamente [não computando, pois, eventuais traumas psíquicos], as consequências e sequelas para BB serem diminutas e terem apenas acarretado 3 dias de incapacidade de trabalho; ix) O dolo do arguido AA na totalidade dos actos descritos, o qual reveste a forma de dolo directo intencional e que se apresenta, por conseguinte, na sua modalidade mais intensa. 4[28]. Já com pertinência para ajustar a medida da pena preventiva, descortinamos os seguintes factores: a) Da Medida da Pena Preventiva 1. A circunstância de o arguido AA se mostrar primário. O que, ainda assim, carece de ser lido em conjugação com a constatação que o crime de Homicídio qualificado tentado revela uma personalidade antijurídica intensa e com particulares carências de ressocialização; 2. O facto de o Homicídio qualificado tentado ter sido desenvolvido num quadro de resposta ao termo do relacionamento conjugal. A fazer temer, pois, pela diminuta existência de barreiras interiores à prática de ilícitos num contexto relacional; 3. Em sentido favorável, constata-se o enquadramento laboral; 4. Também em sentido benéfico, temos o comportamento conforme e o enquadramento escolar no seio do estabelecimento prisional; 5. Aponta-se, quanto aos crimes de Violência doméstica e Ofensa à integridade física, o reconhecimento genérico pelo arguido AA de grande parte da factualidade que veio a ser dada como provada. Desta forma, tendo em conta as delineadas molduras de prevenção geral positiva e especial para a determinação da sanção concreta e em cômputo global dos factores atrás explanados, cremos estar em condições de fixar a pena adequada e necessária para fazer face aos ilícitos praticados pelo arguido AA. Nesta sequência, consideramos serem de aplicar as penas de 2 anos e 6 meses ao crime de Violência doméstica, de 4 meses ao crime de Ofensa à integridade física e de 9 anos e 6 meses ao crime de Homicídio qualificado tentado. 5. Determina ainda o n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. E para a determinação daquela pena determina o n.º 2 do mesmo preceito que a moldura do concurso terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevadas das penas parcelares. Tal significa que deveremos encontrar uma pena única capacitada a sancionar o arguido AA. E a punição do concurso formado no caso sub judice terá que se achar em função de uma moldura penal de 9 anos e 6 meses a 12 anos e 4 meses! Além do mais, e como resulta do n.º 1 já transcrito, na medida da pena do concurso entra agora um novo factor, o qual se traduz na consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente. Em comentário a regra semelhante plasmada no ordenamento jurídico alemão, refere Jescheck que Ao valorar-se a personalidade do agente deverá atender-se sobretudo à questão de saber se os factos constituem expressão de uma tendência criminosa ou, pelo contrário, delitos ocasionais carentes de conexão. A autoria em série deve considerar-se em princípio num sentido agravante (BGH, 24, 268 [270]). (...) A valoração conjunta dos factos particulares está chamada em especial a permitir a apreciação da gravidade global do conteúdo da ilicitude e da questão da relação interna existente entre os distintos actos[29]. Ou seja, os factores gerais do artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal devem também ser tomados em linha de conta nesta determinação da medida da pena, mas apenas referidos ao conspecto global dos crimes e à personalidade do arguido e não em relação a cada um dos ilícitos individualmente considerados pelos quais o mesmo foi já condenado sob pena de violação do princípio non bis in idem. Cabe, nesta vertente, salientar que os crimes de Violência doméstica e Homicídio qualificado tentado se aproximam e desenvolvem dentro do mesmo contexto de degradação do relacionamento e vida em comum entre o arguido AA e a ofendida BB. E que a Ofensa à integridade simples não acrescenta particular gravidade ao quadro dado pelos ilícitos supra assinalados… O que tudo apontará, neste caso, para um médio “efeito expansivo” da pena mais grave. A recomendar à graduação da pena única num patamar da moldura do concurso ainda inferior à correspondente mediana… Cabe, não obstante, salientar que os ilícitos globalmente considerados também revelam uma personalidade empedernida, agressiva e reactiva com reduzida capacidade de empatia para com o próximo e baixa tolerância com a passagem ao acto em situações de contrariedade. No que isto possa revelar para uma sua impreparação para manter uma conduta normativamente conforme em liberdade! Desta forma, tomando em consideração a totalidade dos vectores supra expostos, julga-se justificada e adequada a fixação da pena do concurso em 10 anos e 6 meses de prisão para o arguido AA». Vejamos. O artigo 71º, nº 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele. Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artigo 71º, nº 1 do CP que ela é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do nº 2, da mesma norma legal. A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística. Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena. A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada. O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do DIREITO e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, “mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações” (SIMAS SANTOS). Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena. Sublinhe-se que estes constituem os princípios regulativos que deverão estar subjacentes à determinação de qualquer pena, funcionando a culpa como fundamento da punição em obediência ao princípio “nulla poena sine culpa” e limite máximo inultrapassável da pena, atendendo à dignidade da pessoa humana. A prevenção, na sua vertente positiva ou de integração, mostra-se ligada às necessidades comunitárias da punição do caso concreto, e irá fixar os limites dentro dos quais a prevenção especial de socialização irá determinar, em última instância, a medida concreta da pena. Na verdade, só se justificará a aplicação de uma pena se ela for necessária e na exacta medida da sua necessidade, ainda que sempre subordinada a uma incondicionável proibição de excesso, conquanto, ainda que necessária, a pena que ultrapasse o juízo de censura que o agente mereça é injusta e dessa forma inadmissível. Ora, aqui chegados, e com este pano de fundo, há que considerar que as penas aplicadas ao arguido não foram excessivas. São, na realidade, prementes as exigências de prevenção geral. Assim, em concreto, atender-se-á: · à culpa, sendo certo que o arguido actuou com dolo directo, dando um especial envolvimento à sua actuação, algo desculpabilizante, não estando apurado o seu arrependimento, preferindo arranjar desculpas infundamentadas e inverosímeis (a mera intenção de assustar a sua cônjuge é perfeitamente incoerente e irrealista); · às exigências de prevenção geral, as quais se nos afiguram particularmente acentuadas dada a frequência destes tipos de crimes e alarme que provocam na comunidade, uma vez que os crimes – de sangue - praticados contra as pessoas que vivem em economia comum são uma infeliz constante nos nossos tribunais[30]; · às exigências de prevenção especial, as quais revertem a seu favor, na medida em que inexistem antecedentes quanto a condenações criminais, sendo considerado como uma pessoa de bom trato pelas testemunhas de defesa ouvidas. Assim sendo, partindo das molduras penais abstractas indicadas correctamente pelo tribunal, temos as 3 penas parcelares como correctas e proporcionais, adiantando que damos o nosso aval, no que tange à punição pelo Crime nº 2, ao afastamento da pena de multa ao abrigo do artigo 70º do CP, por considerarmos que a mera pena pecuniária não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidade da punição. A defesa contesta particularmente este facto. O tribunal, nesse segmento, explicou-se assim: «Tendo em atenção tudo o exposto e pressupostos os factos dados como provados, concluímos que se afigura preferível a opção por uma pena privativa da liberdade para sancionar a totalidade dos crimes em apreço. Na verdade, afigura-se que a pena de multa não terá aptidão para realizar in casu, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição na vertente de prevenção geral e especial positiva. É certo que o arguido AA se mostra primário! Mas tal não permite fazer olvidar que, com os comportamentos globalmente considerados nos presentes autos, o mesmo evencia uma personalidade claramente criminógena a documentar manifestas carências de ressocialização. Traduzindo, por conseguinte, uma antissocialidade cuja superação ou tratameto não se basta, como tal, com sanções pecuniárias. É, como tal, particularmente alto o receio que o arguido AA venha a reincidir na prática criminosa. Receio este que, quer na perspectiva dos condenados, quer na perspectiva da comunidade, urge suprir com a eleição de uma pena de prisão para punir os ilícitos propalados». O recurso protesta: · «não se aceita, por ausência de qualquer suporte fático, que o douto tribunal recorrido tire a conclusão de que o recorrente tem “personalidade claramente criminógenas” · Ora, não encontramos na acusação proferida pelo Ministério Público, neste concreto ponto, qualquer elemento probatório que fundamente esta matéria, pelo que salva a devida vénia, elencá-lo teríamos apenas o certificado do registo criminal do arguido, que à data - nesta data - não regista qualquer contenda com a justiça». Ora, não nos parece que a expressão «personalidade claramente criminógena» seja assim tão desajustada – o tribunal retirou essa conclusão na fundamentação de direito e não nos factos provados, como é óbvio, baseando-se na análise dos comportamentos do arguido globalmente considerados nos autos. Uma personalidade criminógena refere-se à ideia de que certos traços de personalidade podem predispor um indivíduo a cometer crimes ou outros comportamentos desviantes - é bom assinalar que não se trata de uma relação directa e determinística entre a personalidade e o comportamento criminoso. É verdade que o arguido tem o passado criminal limpo. Mas os factos ora julgados denunciam uma personalidade que tem reiterado na ilicitude violenta para com a sua mulher, ao ponto de lhe ter tentado mesmo tirar a vida com métodos assaz cruéis. E o tribunal assinalou a perigo das recidivas. E, para isso, decidiu que a mera pena de multa seria inadequada para a punição de quem assim prevarica, mesmo no caso do ilícito menos gravemente punível (o caso do castigo corporal infligido ao seu enteado). Concordamos, assim, com a escolha da pena privativa de liberdade. Aqui chegados, haverá agora que determinar a concreta medida da pena de cúmulo, considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º/1 do CP). O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente». A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado. Tal decisão não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)». Artur Rodrigues da Costa dissertou brilhantemente sobre esta operação nos seguintes termos (artigo «O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ», que serviu de base a uma exposição oral no âmbito de uma acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011): «A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77º, nº 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido. À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/058. Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique». Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização». Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita. E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta. Normalmente, como veremos infra, as decisões das instâncias, principalmente da 1.ª instância, são deficientemente fundamentadas quando se trata da pena única, sobretudo porque se limitam a reproduzir o texto legal, sem fazerem uma avaliação concreta dos específicos factores a que a lei manda atender, o que tem dado origem a numerosas anulações dessas decisões por parte do STJ. (…) Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no art. 71º do CP, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais factores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes. (…) Como se vê de todo o exposto, o nosso sistema caracteriza-se por ser um sistema de pena única ou conjunta, e não de pena unitária. Por duas razões fundamentais: · É um sistema que não prescinde da determinação da medida concreta das penas parcelares, sendo a partir delas que se constrói a moldura penal do concurso; · A medida da pena do concurso no caso concreto é determinada dentro da moldura penal abstracta, entre um mínimo e um máximo, com a mesma liberdade com que se determina a unicidade de pena – culpa e prevenção, relacionadas com a gravidade do ilícito global em conjugação com a personalidade unitária revelada pelo agente, e não por adição das penas parcelares (ou de uma dada porção ou fracção delas), só sendo de agravar a pena no caso de se concluir pela radicação da multiplicidade delituosa na personalidade daquele, em termos de constituir uma tendência ou carreira criminosa. Nisto se distingue do modelo de pena unitária, caracterizado por: · Não relevância da autonomia dos crimes concorrentes · A moldura do concurso não passa pela determinação das penas singulares. · Tudo se passa como se fosse um crime único, referido a um determinado agente, pois o que interessa é a personalidade deste (direito penal do agente). Sendo um sistema de pena conjunta ou pena única, não se confunde, todavia, com um princípio de absorção, em que a pena do concurso corresponde à pena concretamente determinada do crime mais grave; nem com o princípio da exasperação ou agravação em que a pena do concurso é determinada em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas agravada em função da pluralidade de crimes, sem poder ultrapassar o somatório das penas concretamente aplicadas Apenas há a notar que a moldura penal abstracta apoia o limite mínimo na pena parcelar mais alta, o que apresenta alguma analogia, só neste aspecto, com o princípio da absorção e que o limite máximo é constituído pelo somatório de toda as penas (com o limite absoluto de 25 anos de prisão), o que também se relaciona de alguma forma com o princípio da exasperação ou agravação e até com o da cumulação material, mas também só para o efeito de determinar o limite máximo da moldura penal abstracta. De resto, nada impede que, num dado caso concreto, a pena aplicada seja correspondente ao mínimo da moldura penal abstracta, ou seja, o equivalente à pena parcelar mais alta, tal como sucede com a determinação da medida da pena no caso de unicidade de crime». No nosso caso, o tribunal chegou, perante uma moldura abstracta de cúmulo de 9 anos e 6 meses a 12 anos e 4 meses (cfr. artigo 77º, nº 2 do CP), à pena única de 10 anos e seis meses de prisão efectiva. Ora, nem sequer o seu bom comportamento social anterior nos comove – sabemos que um erro na vida não significa uma vida de erros, mas não temos dúvida que, por vezes, um erro pode ser decisivo na vida de uma pessoa, conhecendo nós, nos tribunais, muitos cidadãos impolutos que acabam a praticar actos inesperados e pouco previsíveis. Quis o arguido matar alguém – e alguém qualificado, alguém com quem escolheu casar e constituir família, através de «contrato celebrado por duas pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida», nos termos do artigo 1577º do Código Civil - e isso não podemos deixar passar em claro com pena leve e suave. Estamos, além disso, muito longe de o considerar arrependido, sendo ainda irrelevante para este jaez o seu bom comportamento prisional ou o aval que a ele vieram dar as «suas» testemunhas abonatórias. São inegavelmente graves e censuráveis os factos praticados pelo arguido. As necessidades de prevenção geral igualmente reclamam uma actuação firme e pesada por parte do Estado. Não nos esqueçamos que foi (tentada) tirar a vida a uma mulher (e morte atroz), valor supremo num país que se quer civilizado e onde, infelizmente, tantas vezes, se pune mais gravemente o delito contra a propriedade do que contra as pessoas[31]. Por isso, e atenta a moldura penal abstracta do cúmulo da pena de prisão (LIMITE MÍNIMO: 9 anos e 6 meses; LIMITE MÁXIMO: 12 anos e 4 meses), face à circunstância de a defesa não ter carreado quaisquer argumentos decisivos para descermos este «quantum», validaremos a aplicada pena de dez anos e seis meses, diremos nós, tão mas tão próxima DO MÍNIMO LEGAL, sem possibilidade legal, claro, de suspensão da sua execução (cfr. artigo 50º, nº 1 do CP). Assim aproveite o arguido este momento na sua vida para, enfim, se redimir e expiar dignamente o seu supremo erro. 3.2.3. Finalmente, o valor da reparação indemnizatória à vítima BB. O tribunal fixou o montante de € 6.000. A defesa tem tal montante como claramente excessivo «não só por não ter qualquer rendimento mas também pela quase insuperável debilidade do recorrente que vive em reclusão e “suportar é o tempo mais cumprido”». O tribunal raciocinou assim: «VII. Do Arbitramento de Reparação Provisória Avança o artigo 82.º-A do Código de Processo Penal com a regra segundo a qual “Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham”. Por sua vez a Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, estabelece o Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas. Definindo o seu artigo 21.º que “1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”. Desta forma, apesar de BB não ter deduzido pedido cível nos autos, impõe-se a aplicação imperativa de tal arbitramento consignado no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal [assim, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Maio de 2014 (Processo n.º 232/12.9GEACB.C1) e de 2 de Julho de 2014 (Processo n.º 245/13.3PBFIG.C1) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de Abril de 2015 (Processo n.º 65/11.0GEALR.E1)]. E esta indemnização civil, fundada na prática do crime de violência doméstica, será arbitrada de harmonia com a lei civil. De acordo com o artigo 483.º n.º 1 do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. É este o paradigma fundamental no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos, que estabelece como pressupostos da obrigação de indemnização, o facto voluntário, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao lesante (culpa), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. O princípio geral na obrigação de indemnização encontra-se previsto no artigo 562.º do Código Civil, estabelecendo-se, nesta sede, que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Por seu turno, o artigo 566.º do Código Civil determina que a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não for possível, ou não reparar todos os danos ou ser excessivamente onerosa para o devedor. O nº 2 prevê a teoria da diferença, segundo a qual a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. Considerando a factualidade dada como provada em que o arguido AA se comprometeu, com o imputado crime de Violência Doméstica na sua forma agravada [e onde se também deverá atender ao Homicídio qualificado tentado pois que a envolver, quanto a esse acto, concurso aparente com aquele primeiro ilícito], conclui-se que, à luz dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, existe um facto, voluntário, praticado pelo agente, ilícito [como se verifica pela condenação do referido crime, que demonstra uma violação dos direitos de personalidade da ofendida (mormente, a sua integridade física e psíquica)], culposo [tal como se pode concluir pela factualidade dada como provada, na medida em que o arguido AA agiu com dolo direto, de forma livre e perfeitamente consciente das suas ações, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, aproveitando-se da especial relação de vinculação emocional e afetiva que mantinha com a ofendida, para além de ter explorado a sua vulnerabilidade em função das circunstâncias violentas em que actuou], causador de danos [não patrimoniais, através da ofensa da integridade física e psíquica da ofendida] que apresentam um nexo de causalidade com o facto. No que se pode concluir, com segurança, pela verificação de todos os pressupostos de que depende a condenação do arguido AA numa compensação, por danos não patrimoniais. Deste modo, atendendo às circunstâncias concretas do caso, ao modo de execução dos factos pelo arguido AA [com as agressões materializadas e com o atentado à vida desenvolvido], bem como às consequências para a vítima BB [mormente, as lesões físicas e emocionais que necessariamente lhe infligiu na sequência do comportamento demonstrado] e ainda as circunstâncias sobre as condições económico-profissionais dos sujeitos processuais, fixa-se em € 6.000,00 a compensação a pagar. Os juros de mora são devidos em relação aos danos não patrimoniais desde a data deste acórdão. Com efeito, tendo em conta que se encontra um juízo de equidade subjacente a este valor, mostra-se consensual que o correspondente vencimento se processará por referência à data da decisão [por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 1995 (CJ-STJ, 1995, I, página 79)]». No que concerne aos danos não patrimoniais, os únicos em causa neste processo, avançaremos que: De acordo com o estatuído pelo artigo 496º, nº 1 do CC, «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito», gravidade que «há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em consideração as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos. Por seu lado, a gravidade tem de ser apreciada em função da tutela do direito. O dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Anote-se ainda o teor do artigo 496º, nº 3, 1.ª parte - «O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º; (…)». O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser apurado, sempre, segundo critérios de equidade, «atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, à flutuação do valor da moeda, etc». Daqui resultará que, no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista. É que, não obstante visar reparar, «de algum modo, mais do que indemnizar», também se não alheia da ideia de reprovar ou castigar, «no plano civilístico e com os meios do direito privado, a conduta do agente». Como bem saliente o Acórdão desta Relação, datado de 6/10/2010 – Pº 426/06.GAALB.C1: “A dificuldade de «quantificar» os danos não patrimoniais não pode servir de entrave à fixação de uma indemnização que procura ser justa, correndo o risco, embora de ser algo aleatória, tanto mais que, neste campo, repete-se, assume particular relevância a vertente equidade. Na verdade, aqui, mais do que nunca, encontramo-nos na incerteza inerente a um imprescindível juízo de equidade. Nos danos não patrimoniais, a «grandeza do dano» é insusceptível de medida exacta. Só pode ser alvo de «determinação indiciária fundada em critérios de normalidade», uma vez que o seu padrão é «constituído por algo de qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação». Mais do que o reconhecimento dos direitos aludidos, impera aqui, assim, a dificuldade no cálculo da indemnização a arbitrar, em concreto. E, o apelo à equidade, só encontra justificação pela busca da solução justa no caso a decidir; a equidade estará, então, limitada sempre pelos imperativos de justiça real (a justiça adequada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal”. Ora, aqui chegados, somos levados a concordar com a mais recente Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que tem vindo a lembrar a necessidade de, neste tipo de indemnizações, serem abandonadas as indemnizações miserabilistas, devendo antes assumir um alcance significativo e não meramente simbólico. QUID IURIS, IN CASU? Entende o arguido/demandado ser exorbitante a quantia de € 6.000, a título de tais danos. Ora, não há dúvidas de que os danos provocados a BB [e constantes dos factos nºs f), g), h), i), n), aa), au), bf), bo), bp) e bq), parte final], são sérios, graves e merecem uma cabal reparação pela ordem jurídica. E que está comprovada a existência de uma acção ilícita, culposa e geradora de danos voluntariamente causada pelo arguido. Note-se, contudo, que a mesma terá de ser fixada tendo em conta a equidade, e a uniformidade na aplicação do direito por forma a concretizar o princípio da igualdade de todos os cidadãos. No âmbito dos danos não patrimoniais, a ressarcibilidade visa proporcionar ao lesado os meios económicos que de alguma maneira o compensem da "lesão" sofrida, tratando-se assim de uma reparação indirecta. Os danos não patrimoniais só indirectamente são computados através do cálculo da soma de dinheiro, susceptíveis de proporcionar à vítima satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados (Cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição, pp. 375-385). É assim entendimento praticamente unânime, que a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de "compensação", não se compadecendo com atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios. Neste caso, os danos causados à ofendida são relacionados com as dores sofridas, o perigo de vida em que esteve e as sequelas – psíquicas - para a vida que ficaram deste evento doloso e traumático. Em segundo lugar, teremos de atender, nos termos do artigo 496º do CC, à situação patrimonial do lesante (cfr. factos nºs a.71 e a.72). Neste jaez, são tidos em conta os danos que afectam profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objectivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas afastando-se os factores subjectivos, susceptíveis de sensibilidade exacerbada, particularmente embotada ou especialmente requintada, e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pp. 576; Vaz Serra, RLJ, ano 109º, pág. 115; e os Acs. do STJ de 26/6/1991, BMJ 408, pp. 538; de 9/12/2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 137; de 11/7/2007, processo nº 1583/07 - 3.a; de 26/6/2008, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 131; de 22/10/2008, proc. Nº 3265/08 - 3.a, e de 29/10/2008, processo n.° 3380/08 - 5.a.). Sendo um dano com cobertura legal – artigo 496º, nº 3 do CC - e devendo a respectiva indemnização ser fixada tendo ainda em conta a situação patrimonial do lesante (não famosa, não o ignoramos, na medida em que está em reclusão desde 9.4.2024), entende-se que o valor fixado pela instância recorrida é minimamente adequado [sobretudo devido à sua frágil condição de saúde e económica – cfr. factos provados d), bz), ca) e cd) -, assente que, se não fosse a sua débil situação financeira, um valor mais elevado se exigiria]. Por isso, parece-nos razoável e adequado confirmar o valor indemnizatório nos € 6.000 (seis mil euros). 3.3. Resta concluir pela improcedência total do recurso, não se tendo por violados quaisquer das normas legais ou constitucionais aduzidas pelo recurso. III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: · julgar totalmente improcedente o recurso intentado pelo arguido AA, MANTENDO todo o teor do acórdão recorrido (Factos, Direito e penas). Custas do recurso pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie. Comunique de imediato ao tribunal de 1ª instância, com nota de não trânsito em julgado (cfr. artigo 215º, nº 6 do CPP). Coimbra, 25 de Junho de 2025 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09) Relator: Paulo Guerra Adjunto: Alexandra Guiné Adjunto: Maria da Conceição Miranda [1] Na acta de 18.2.2025, consta o seguinte DESPACHO do Colectivo, consubstanciador da comunicação de uma alteração não substancial de factos (artigo 358º do CPP): «DESPACHO 1. Da produção probatória realizada em sede de audiência de discussão e julgamento, constata-se a necessidade de proceder à mutação e aditamento de circunstancialismo ao objecto factual do processo. Nesse sentido, temos que o correspondente objecto temático carece de conhecer outra factualidade alternativa ou complementar para contextualizar de forma plena e adequada a ilicitude da conduta que se acha a ser imputada ao arguido. Com o que se determina uma alteração não substancial dos factos nos termos e para os efeitos do artigo 358.º do Código de Processo Penal por forma a fazer integrar no objecto temático do processo a seguinte factualidade:1. O arguido AA e BB mantiveram, no decurso do seu relacionamento, frequentes discussões entre si; 2. Os factos enunciados no ponto 4 do libelo acusatório ocorreram entre 26 de Março de 2021 e 15 de Janeiro de 2023; 3. Naquele mesmo lapso temporal descrito, o arguido AA disse a BB, em data não concretamente apurada, que “se você me deixar, eu vou-te matar”; 4. O episódio referenciado no ponto 8 do libelo acusatório ocorreu em data não concretamente apurada verificada entre os meses de Setembro e Outubro de 2023; 5. O arguido AA, por ocasião da irritação com a situação descrita no ponto 11 do libelo acusatório, colocou-se no encalço dos transeuntes que lançaram foguetes, 6. Tendo, ao não os conseguir apanhar, retornado, irritado, para junto de BB, EE e HH; 7. Na sequência da bofetada desferida em EE, BB perguntou ao arguido AA porque razão é que ele havia agredido o seu filho, 8. Tendo, de seguida, desferido uma estalada na face do arguido AA, 9. Vindo o arguido AA, por seu turno, a desferir o soco descrito em 13; 10. O arguido AA, após sair da residência comum, passou a morar no anexo da oficina em que trabalhava; 11. Quanto às garrafas mencionadas no ponto 20 do libelo acusatório, o arguido AA encheu uma delas com líquido incolor de mistura inflamável da classe de destilados de petróleo, 12. Mais colocando na segunda esse mesmo líquido misturado com uma mistura corrosiva com a presença de ácido sulfúrico, 13. E enchendo a terceira garrafa com a mistura corrosiva com a presença de ácido sulfúrico, 14. Após agarrar o arguido AA, FF conduziu-o para trás do portão de sua casa e não mais o deixou dali sair; 15. O arguido AA tinha a percepção que, a atear fogo ao corpo de BB, a sujeitaria a um sofrimento particularmente intenso; Atente-se que nenhum dos factos comunicados, isoladamente considerados ou lidos no seu conjunto, conduz à imputação de um crime materialmente distinto ao arguido. Aderimos, para tanto, à teoria da valoração social da acção já defendida por Figueiredo Dias e Frederico Isasca ao pugnarem pela consideração da “forma como o pedaço de vida é representado ou valorado do ponto de vista do homem médio – da experiência social se se preferir –, quer a salvaguarda da posição de defesa do arguido. Sempre que ao pedaço individualizado da vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou uma valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos”. O que não ocorre nos presentes autos pois que continua a estar em jogo ou apreciação o mesmo sentido global de ilicitude. 2. Impõe-se também uma alteração da qualificação jurídica… Parte dela é exigida em função da leitura do libelo acusatório e da percepção que não se acha ali enunciada factualidade suficiente para operar a qualificação do crime de Ofensa à integridade física. Note-se que, como se afirma perspectiva consensual em sede doutrinal e jurisprudencial, não basta estarmos em face de um menor de idade ou idoso para que se possa concluir que o acto é dirigido contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade. Sendo, antes, necessário aferir a tipologia da agressão e sindicar se o agente se aproveitou de uma especial indefesa do alvo das suas acções [neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Outubro de 2024 (Processo n.º 551/22.6GBGDL.S1), do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Março de 2024 (Processo n.º 284/23.6JAPDL.L1-5) e MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, in Código Penal – Parte Geral e Especial, 2015, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, página 528]. O que, naturalmente, carece de estar devidamente densificado no objecto temático do processo… Temos, como tal, que a referenciação genérica que EE nasceu em ../../2013 não basta para a agravação da conduta. Para tanto, seria necessário que da factualidade imputada fosse possível extrair algo mais para a obrigatória inferência que aquele se encontrava numa situação de particular ou especial incapacidade de se defender da bofetada que contra ele foi dirigida e que o arguido se aproveitou da mesma! E a mera percepção que EE tinha 10 anos à data dos factos não permite alcançar nenhuma das explanadas conclusões. Se assim é, temos que a imputação do ilícito não pode deixar de se indexada ao tipo matricial definido no artigo 143.º do Código Penal. Ao ponto de se determinar a convolação para o crime de Ofensa à integridade física simples. Sem que se divise qualquer obstáculo processual à perseguição de tal ilícito pois que BB, quando retratou tal ocorrência em inquérito, declarou, em tempo e enquanto titular do direito de queixa [artigo 113.º, n.º 4 do Código Penal], que pretendia procedimento criminal contra a pessoa daquele [a fls. 44 e 60]. Impõe-se ainda uma alteração da qualificação jurídica adicional! Pois que a factualidade assacada permite ponderar do funcionamento de uma qualificativa adicional ancorada na alínea d) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Enquanto preceito que determina a especial censurabilidade nos casos em que alguém “empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Setembro de 2014 [Processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1], Podem considerar-se meios cruéis: o afogamento, os choques eléctricos, a morte provocada lentamente, o queimar a vítima com fogo ou com ácidos. No fundo, formas em que se sujeita a vítima a um sofrimento físico ou psíquico excessivo. No seu comportamento o agente acaba por demonstrar desumanidade, mostrando-se alheio ao sofrimento que inflige na vítima, e, mais grave, sendo mesmo determinado a matar através destes processos. O agente actua de modo mais desvalioso quando programa matar a vítima através deste processo. A conduta manifesta-se especialmente desviante em relação aos padrões normais, havendo um desrespeito maior pela vítima quando a morte é produzida de forma a fazê-la sofrer de modo particular”. Temos, pois, que se justifica a alteração da qualificação jurídica por forma a que se passe a imputar um crime de Ofensa à integridade física simples [em detrimento da modalidade qualificada originariamente assacada] e de Homicídio qualificado tentado por reporte às circunstâncias enunciadas nas alíneas a), d) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal». Termos em que se opera alteração não substancial dos factos e da correspondente qualificação jurídica nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 358.º do Código de Processo Penal». [2] A considerar, aliás, que as declarações do arguido se contêm ainda nos «factos alegados pela defesa» para efeitos do n.º 2 do artigo do Código de Processo Penal, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da relação do Porto de 12 de Julho de 2006 [Processo n.º 0546558] e do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Fevereiro de 2011. [3] Podendo, em alguns casos, ser preferível começar pela impugnação ampla se for previsível que a sua análise e decisão sobre ela acabar por suprir algum vício existente do artigo 410º, nº 2 do CPP. [4] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa. Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa. Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [5] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual. Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [6] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica. Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso. Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido. Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l. Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494. No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666. Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930». [7] Conforme refere Germano Marques da Silva, «é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova. O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável. Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos. Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos a inferência feita maior ou menor eficácia probatória». [8] Deixou-se escrito na motivação de facto de forma assaz esclarecedora quanto ao que realmente sentiu o Colectivo perante a dinâmica discursiva dos dois principais intervenientes na causa (o arguido e sua mulher) – sublinhado da nossa autoria): «Atente-se, para tanto, que AA reconheceu, em matéria dos antecedentes do episódio de 16 de Março de 2024, que - O relacionamento com BB, desde o início do casamento e mesmo quando estavam em Angola, se pautou por inúmeras discussões e brigas; - Era, enquanto se encontravam naquele país, habitual remeter objectos contra a sua cônjuge [a que esta respondia com idêntica remessa de objectos] e chegou mesmo a mandar uma cadeira que não a atingiu; - Numa dessas discussões, desferiu um soco a BB; - Numa altercação por causa de dinheiros ocorrida em Setembro/Outubro de 2023, terá dado um soco no braço de BB e empurrado o correspondente corpo; - Deu, no dia 31 de Dezembro de 2023, uma bofetada na zona por cima do ombro e na orelha [que não se traduzia, ainda assim, no ouvido objecto de intervenção cirúrgica] de EE. Que motivou BB a desferir-lhe, no imediato, uma bofetada; - Replicou ao acto de BB com a materialização de idêntica bofetada ou, não se recorda, de um soco na face direita da sua cônjuge. Tendo-se, após, agarrado reciprocamente… - Deixou o local no momento em que os demais transeuntes referiram que iriam chamar a polícia para não gerar mais confusões; - BB assumiu, no dia 1 de Janeiro de 2024, que queria pôr termo ao casamento. O arguido AA refutou, não obstante, alguns segmentos da factualidade assacada no libelo acusatório. Negando que alguma vez tenha ameaçado BB… Defendendo que o episódio ocorrido em Setembro/Outubro de 2023 surgiu na decorrência de uma discussão por acusa de dinheiros. Mais estabelecendo, nesta vertente, que se acalmou sem que tenha ocorrido qualquer menção à chamada da polícia ao ponto de terem ficado no quarto a conversar. E explica, por último, que a bofetada desferida em EE se tratou de uma pura repreensão em virtude de o mesmo estar a dizer «sai daí, caralho» a uma pessoa que se encontrava a janela. Acha-se manifesto do circunstancialismo demonstrado que o Tribunal não aceitou tais ressalvas… Cabendo, para tanto, repristinar o exposto por BB quanto aos episódios postos em relevo! Atente-se, como tal, que BB também contextualizou que o relacionamento com AA se caracterizava por uma agressividade verbal recíproca. Descrevendo, paralelamente, que aquele a agrediu quando ainda viviam em Angola. O que, como aposto no libelo acusatório, ocorreu em 4 ocasiões distintas… Traduzindo-se tais ofensas no arremessar de objectos [“uma vez atirou-me a cadeira”] e na concretização de chapadas e socos. Isto sendo que AA chegou também a desferir um soco no seu braço quando se encontravam já em Portugal! Isto numa ocasião ocorrida em Setembro ou Outubro de 2023 derivada do facto de, ao chegar a casa do trabalho, ter visto uma mensagem dele a falar com uma senhora sobre sexo. No que confrontou o arguido AA e seguiu, após, para o quarto… Tendo este seguido no seu encalço, empurrando-a e dando-lhe um soco no braço! Só parando, pois, quando a declarante referiu que iria chamar a polícia. Refuta, ainda assim, que o arguido AA a tenha ameaçado quando se encontravam já em território nacional. Estabelecendo que a única ameaça materializada se processou quando ainda se encontravam em Angola… Tendo aquele referenciado, numa das discussões, que “se você me deixar, eu vou-te matar”. Já quanto ao episódio de 31 de Dezembro de 2023, relembra que, no retorno da festa de anos de um amigo do filho, o arguido AA se irritou ao ver um conjunto de miúdos a jogarem fogo de artifício na rua. Tendo-se posto no correspondente encalço ainda que não os apanhando… Isto sendo que, quando regressou, o EE referiu que estava alguém à janela a ver o que se passava. No que o arguido AA, ainda irritado, desferiu-lhe uma estalada no ouvido. Que incidiu no preciso local onde havia sido operado… No que BB, após indagar porque é que ele havia actuado dessa forma, desferiu uma estalada no arguido AA! A que este respondeu com um soco no queixo daquela… Ao ponto de se terem envolvido então a lutar! Apenas tendo o arguido AA se apartado do local quando algumas pessoas referenciaram que já haviam chamado a polícia. Acha-se evidente que o Tribunal deu prevalência ao depoimento de BB naquelas vertentes em que o mesmo ingressou em oposição com as declarações do arguido AA. O que se ficou a dever ao discurso coerente, sereno e equidistante assumido por BB e que nos mereceu toda a credibilidade! Temos, efectivamente, que aquela, não obstante figurar como ofendida, mostrou-se particularmente verosímil. Até porque ofereceu, em muitos momentos e mesmo divergindo do assacado no libelo acusatório, uma versão não totalmente persecutória. Assinalando, aliás e nesta vertente, que também desenvolveu alguns actos ofensivos relevantes contra o arguido AA. Há, outrotanto, que assinalar que a autenticidade global que se divisou ao arguido AA ficou irremediavelmente beliscada quando este, por referência ao episódio de 16 de Março de 2024, reclamou pela não verificação de um qualquer dolo homicida. Reduzindo a realidade dos factos a um mero propósito de assustar a cônjuge… Em termos que, como iremos ver, se afirmam absurdos!». [9] Aludindo também a alguma reciprocidade na própria operação de determinação da medida da pena aplicada pelo crime de violência doméstica, deixando escrito o seguinte: «Assim sendo, com directa relevância para a determinação da medida da pena da culpa, resultam os seguintes factores: a) DA MEDIDA DA PENA DA CULPA QUANTO AO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (…) iii) – o facto o facto de o relacionamento entre o arguido AA e BB se apresentar, em si mesmo, conflituoso e de aquela, pelo menos numa das ocasiões, ter também desenvolvido agressões [com antecedência temporal] sobre a pessoa daquele». [10] Escreve o acórdão o seguinte a propósito dessa nova alínea e): “A alusão a «frequentes discussões» constante de e) pretende abordar a conflitualidade da relação nos termos que vêm a ser ulteriormente densificados na demais matéria circunstanciancial! Acresce que nem sequer figura como facto que, em singelo, funcione a desfavor do arguido AA. Não só porque se trata de asserção que foi por ele próprio assumida mas também pois que retrata uma postura recíproca de ambos os cônjuges!». [11] Ouça-se o tribunal a este propósito na sua motivação de facto: «Mas importa sublinhar que não se logrou demonstrar que o arguido AA tenha tomado a decisão de executar o plano arquitectado em momento prévio ao dia 15 de Março de 2024. Ou, outrotanto, que o mesmo se tenha mantido por mais de 24 horas! Sabemos que a correspondente implementação se iniciou, pelo menos, com o telefonema materializado no dia 15 de Março de 2024 a combinar o encontro no dia subsequente. Mas nenhuma fonte probatória permite concluir que tal propósito já estaria a ser alimentado desde ocasião prévia. Aceitando-se como possível que aquele tinha sido gizado em imediata anterioridade à mesma chamada telefónica! E, quanto à correspondente duração temporal, o certo é que se ignora também a hora do dia em que foi concretizado o propalado telefonema. Sendo cogitável que o mesmo se possa ter processado em momento ulterior às 12h00… E porque a actuação criminal se desenvolveu cerca das 12h00 do dia 16 de Março de 2024, não podemos, lapalissadamente, afirmar que tenham ocorrido 24 horas entre os dois marcos temporais». Diga-se ainda que não nos perturba o facto desta vingança ter ocorrido algumas semanas depois da saída da mulher de casa – tal circunstância não retira a credibilidade dada à versão que convenceu o Colectivo de Coimbra, podendo os intuitos homicidas surgir do «nada», espoletados por factores muito mínimos, inculcada que está na base do comportamento um ciúme de marido para mulher e pela eterna ameaça detectada no facto provado i) [pouco interessando se essa ameaça foi feita em Angola ou em Portugal – mesmo que a não tenha mais reiterado em Portugal antes da ocasião narrada no facto provado av) (cfr. facto não provado nº 1) -, relevando apenas que ela foi feita alguma vez na vida do casal e até reassumida no momento fatal do dito facto av)]. [12] Recorramos ao Acórdão da Relação de Lisboa de 5.11.2013 (Pº 563/12.8PBEVR.E1): «A intenção de matar pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa, só a ele normalmente se chegando através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indirecta (indiciária). Com efeito, os aspectos versados nesses factos provados, por se reconduzirem àquele âmbito da consciência e da vontade de decisão do ora recorrente, assumem a particularidade de não terem resultado de prova directa, tal como acontece na grande maioria das situações, porque comportam factores psíquicos, relacionados com a representação e fixação dos fins do crime, com a selecção dos meios e com a aceitação dos resultados da acção. Como tal, a sua prova assentou em inferências extraídas dos factos materiais, analisados à luz da globalidade da que foi produzida e das regras de experiência comum, já que, estando-se no domínio de factos atinentes a uma realidade que escapa a uma directa observação, ela pode ser detectada através de ilação ou injunção, indirectamente do conjunto dos factos restantes e, neste sentido, é uma prova indirecta, que é reconhecida e aceite ao nível do processo penal, não contendendo com o previsto nos arts. 124º a 126º do CPP, nem com os limites definidos pela livre apreciação consagrada no art. 127º do CPP. Entre os factos exteriorizadores dessa intenção, avultarão, no essencial, as zonas corporais atingidas, sobretudo quando nelas se alojam órgãos imprescindíveis à vida humana, o número de lesões, o instrumento de agressão e a sua forma de utilização. Pode dizer-se que, a quem atinge zonas nobres do corpo humano, seja pelo número de vezes que o faz, seja pela idoneidade letal do instrumento usado a causar lesões graves, não verá facilitada a exclusão da intenção homicida». [13] Note-se que só poderíamos concluir pela não verificação do aludido crime se a conduta do arguido estivesse abrangida pelo nº 3, do artigo 23º, do CP, que determina que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime, o que, in casu, é inaplicável, conforme decorre da factualidade apurada. [14] Recentemente, o Parlamento russo, a Duma, aprovou a descriminalização da violência doméstica com 380 votos contra três. A nova moldura legal não prevê penalizações nos casos em que “não existam lesões corporais graves” e quando não ocorram mais do que uma vez por ano e a violência doméstica passa de uma ofensa criminal a uma ofensa administrativa. Retrocessos civilizacionais estes! [15] O tribunal disserta assim na fase da determinação da pena: «Da Medida da Pena da Culpa quanto ao Crime de Ofensa à integridade física i) o facto de EE se afirmar como enteado de AA e por quem este deveria nutrir maiores sentimentos de respeito e protecção; ii) o carácter algo inusitado da agressão, a surgir como réplica a um mero salientar por EE que estavam terceiros a presenciar o comportamento do arguido AA; iii) a zona atingida pela ofensa e que, traduzindo-se na cabeça e no ouvido objecto de intervenção cirúrgica, tende a evidenciar maior vulnerabilidade; iv) a circunstância do estalo infligido pelo arguido se assumir, por regra, com uma gravidade menor no leque de actos passíveis de traduzirem uma Ofensa à integridade física; v) a ausência de consequências ou sequelas maiores que o puro infligir de dor; vi) O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo directo, tendo o arguido pleno conhecimento que a conduta pela qual vem acusado é proibida por lei e, não obstante, não se absteve de a praticar em conformidade com a sua vontade». [16] Cfr. E-book CEJ/CIG «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar (2.ª edição)», coordenado pelo relator deste acórdão, enquanto Director-Adjunto do CEJ (2020). [17] Com efeito, não obstante, na jurisprudência maioritária, se continuar a entender que, para que se verifique a previsão legal do artigo 152.º do CP, a conduta do agente deve evidenciar um tratamento cruel, degradante ou desumano pela pessoa da vítima ou um desejo de prevalência de dominação sobre a mesma – o que, demonstra a realidade social, efectivamente sucede muitas das vezes –, a realidade é que o legislador bastou-se na consagração legal do tipo objectivo com a existência de maus tratos/privações/ofensas e o elemento relacional típico. [18] Seguimos de muito perto a tese que conclui pela inexistência de uma diferença de natureza substancial entre a violência pressuposta pelo tipo do artigo 152º e a pressuposta pelos tipos base que não se paute pela adição do elemento relacional típico (posição de Maria Elisabete Ferreira – “O Crime de Violência Doméstica Na Jurisprudência Portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Professor Costa Andrade, Vol. I, Direito Penal (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e que constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal. Defende a autora que o legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica. Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma. A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de Violência Doméstica resultaria do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, parafamiliares, emocionais ou de coabitação. Arredando, desde modo, o apelo a quaisquer critérios extra-típicos de destrinça entre a violência interpessoal e a intrafamiliar, como o das relações de imparidade (Inês Ferreira Leite), a aferição casuística de uma quebra de relação de confiança (Teresa Morais), a susceptibilidade de a acção colocar em causa a dignidade humana ou o livre desenvolvimento da personalidade no contexto relacional pressuposto (Taipa de Carvalho, Nuno Brandão, André Lamas Leite), admitindo que uma ofensa simples praticada em tal contexto relacional, ainda que isolada, integre sem mais indagações, o crime de Violência Doméstica. Entendemos que, ao nível da carga ofensiva pressuposta e da natureza do bem jurídico tutelado, inexiste qualquer destrinça substancial entre o tipo de violência doméstica e aqueloutros bens tutelados por tipos adjacentes que protejam bens jurídicos pessoais cuja lesão seja instrumentalmente susceptível de fazer perigar a saúde psicofísica da vítima, entendendo que a maior carga de ilicitude material subjacente ao programa legal de combate ao fenómeno da Violência Doméstica se alicerça, exclusivamente, no tipo de relação que intercede entre agente e vítima, não havendo, ao nível interpretativo, de lançar mão, pois, de quaisquer critérios extra-típicos para aferir da subsunção de uma dada conduta violenta ao tipo do artigo 152º, nº 1. Tal posição, em nosso entendimento, e na linha do opinado no referido Manual CEJ-CIG, «terá a virtude de conferir maior segurança e homogeneidade na aplicação do direito, afastando a margem de incerteza e insegurança que hoje abunda e traduzida na prática generalizada de desqualificação inopinada de atos de violência doméstica em crimes de natureza diversa, muitas vezes de natureza semipública». [19] No âmbito do crime de violência doméstica, cabem, de facto, também as condutas e comportamentos que causam, inclusivé através do envio de sms, maus tratos psíquicos configurados como stalking (com punição autónoma agora pelo artigo 154º-A do CP, desde 2015, caso não sejam englobadas num contexto mais global de aviltamento da condição da ex-mulher, vítima em causa). [20] Cfr. Manual de Violência Doméstica, coordenado pelo CEJ e CIG, já aqui referenciado. [21] «Sabemos já que a conduta materializada pelo arguido AA foi dirigida contra BB. Que, como resulta da alínea a) da factualidade provada, figurava como a sua cônjuge. Com o que se conclui que, à luz do nexo que o unia à vítima, é de divisar a adopção pelo arguido BB de uma conduta apta a preencher os elementos objectivos e subjectivos, em autoria material, do tipo legal de crime de Homicídio qualificado tentado. Isto em face do figurino assumido por tal ilícito quando em face do disposto nos artigos 131.º, 132.º, n.º 2, alínea b) e 22.º do Código Penal» (cfr. p. 53 do acórdão). [22] Lê-se a fls 54-56 do acórdão que: «Afirma-se, ademais, óbvio que a concreta forma de matar eleita pelo arguido AA visou potenciar a dor a infligir a BB. Naturalmente que a morte envolve sempre um processo doloroso para a vítima. Existem, não obstante, processos lesivos que ostentam maior potencial de despoletar sofrimento. E estamos, parece-nos, em face de uma das formas de morrer mais dolorosas. Explica Luiz Saavedra de Paiva, sobre esta matéria, que (…) Com relação às lesões pelo calor, Spitz tece algumas considerações (…) Alguns incêndios provenientes da combustão de certas substâncias químicas atingem rapidamente alguns milhares de graus de temperatura, enquanto incêndios domésticos raramente excedem 600 a 700 °C. (…) Em incêndios domésticos devastadores um corpo pode ser gravemente carbonizado em menos de 20 minutos, e cita Richards ao considerar que se faz necessário um considerável tempo para que um corpo queime a cerca de 700 °C até que os ossos sejam expostos. Nessa condição, o gradeado costal, o esqueleto facial e os ossos dos braços são expostos em cerca de 20 minutos, enquanto as pernas se apresentarão severamente carbonizadas, porém seus ossos somente estarão expostos após 25 minutos e a queima completa das partes moles das coxas e dos ossos da canela não ocorrerão antes dos 35 minutos. A utilização de líquido inflamável, como querosene ou gasolina, sobre o corpo com o objetivo de acelerar sua destruição pode apresentar irregularidade na carbonização, com severidade desproporcional entre os segmentos corporais. Afirma também que se o tecido adiposo entrar em combustão, uma prolongada e lenta queima pode causar severo dano ao esqueleto, incluindo amputação (calcinação). (…) As mortes pelo fogo podem, segundo DiMaio e DiMaio, serem imediatas ou tardias. As mortes tardias que ocorrem dentro dos primeiros três dias são causadas por choque, perdas líquidas, ou falência respiratória aguda causada por inalação de gases que produzem lesão na árvore respiratória. A morte imediata, ou morte no local, pode ocorrer tanto por lesão térmica direta sobre o corpo, denominando-se queimadura, como pelo fenômeno da inalação de fumaça, o que ocorre mais frequentemente. A maioria dos autores considera que a lesão por inalação de fumaça, ou de gases aquecidos, represente a principal causa de mortalidade entre as vítimas do fogo. Spitz afirma que em três quartos de todos os casos, a morte pelo fogo resulta da inalação de fumaça tóxica, enquanto Demling considera que o mesmo ocorra em mais de 50% dos casos, sendo esse problema a maior fonte de morbidade desses pacientes. Gerling et al. relacionaram como processos patológicos que produzem a morte no local, nas vítimas da ação do fogo, e/ou do calor: 1. o envenenamento por cianeto liberado a partir da queima de certos materiais sintéticos (nylon, seda, lã, poliuretano,...); 2. a parada respiratória, seguindo a respiração no fogo, através de laringobroncoespasmo, ou de reflexo vagal, ou ainda por choque causado pela inalação de calor (gases aquecidos); 3. a deficiência de oxigênio devido ao elevado consumo do componente atmosférico pelo fenômeno da combustão; 4. o choque causado pela redistribuição do volume dos líquidos do sangue produzido pela lesão direta da pele; 5. a rigidez torácica produzida pela lesão térmica direta sobre o tronco; 6. outra causas naturais e não naturais. Falamos, por conseguinte, de um processo letal que, quando intencionalmente mobilizado, visa aumentar o grau de sofrimento para a vítima em termos superiores àquela que seria a medida necessária para causar a morte. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Setembro de 2014 [Processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1], Crueldade É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente: d) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, tomo I, pág. 31, comentando este exemplo-padrão, então previsto na alínea c), refere estarem aqui em consideração aquelas situações em que o agente se serve de uma forma de actuação causadora da morte em que o sofrimento físico ou psíquico infligido, pelo acto de matar ou pelos actos que o antecedem, ultrapasse sensivelmente, pela sua intensidade ou duração, a medida necessária para causar a morte; com a precisão, em todo o caso, de que o acto de crueldade tem de ter lugar para aumentar o sofrimento da vítima: relação meio/fim. Para Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, Parte Especial, 11.º, pág. 42 “Tortura é o meio cruel por excelência revelando culpabilidade extrema”, consistindo na inflição de suplícios ou tormentos que obrigam a vítima a sofrer antes da morte. Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2.ª edição, 2008, sobre esta qualificativa, a págs. 73, afirma: “Aqui está em causa o modo de actuação do agente. A forma como ele comete o crime manifesta um acentuado desrespeito pela vítima, ao mesmo tempo que revela uma personalidade profundamente maquiavélica. Consubstancia-se em actos que envolvem alguma violência, ou mesmo brutalidade, sendo fruto de actos por natureza mais graves. A crueldade é, nesta circunstância, a principal causa do juízo de censura maior. Podem considerar-se meios cruéis: o afogamento, os choques eléctricos, a morte provocada lentamente, o queimar a vítima com fogo ou com ácidos. No fundo, formas em que se sujeita a vítima a um sofrimento físico ou psíquico excessivo. No seu comportamento o agente acaba por demonstrar desumanidade, mostrando-se alheio ao sofrimento que inflige na vítima, e, mais grave, sendo mesmo determinado a matar através destes processos. O agente actua de modo mais desvalioso quando programa matar a vítima através deste processo. A conduta manifesta-se especialmente desviante em relação aos padrões normais, havendo um desrespeito maior pela vítima quando a morte é produzida de forma a fazê-la sofrer de modo particular”. Para Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCE, 2010, pág. 401, o emprego de tortura ou crueldade consiste na utilização de meios de provocação de dor para além da necessária para causar a morte. A tortura está descrita no artigo 243.º, n.º 3, podendo, portanto, incluir o tratamento degradante e desumano. Como se extrai do acórdão deste Supremo de 30 de Outubro de 2003, proferido no processo n.º 3252/03-5.ª, in SASTJ, n.º 74, pág. 198 e CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208, em caso de homicídio agravado atípico “Tortura ou acto de crueldade é todo o meio que produz padecimento físico inútil ou mais grave do que o necessário e suficiente para consumação do homicídio. É o meio bárbaro, martirizante, denotando da parte do agente, a ausência de elementar sentimento de piedade”. Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, AAFDL, 2008, refere a págs. 93 que “a crueldade não integra o tipo de ilícito de modo a poder ser autonomamente valorada; o homicídio cruel só releva como tal se for especialmente culposo, e por isso teremos de haver-nos com ela na aferição da especial censurabilidade ou perversidade do agente”. [sublinhado nosso] Se assim é, parece-nos que também a qualificativa definida na alínea d) se mostra preenchida. Efectivamente, se há nota presente na matéria factual descrita, esta centra-se na noção que o arguido AA visava que BB sofresse. E sofresse com muito mais intensidade do que o que poderia ocorrer com outros métodos letais mais instantâneos!». [23] Voltemos ao acórdão: «Cabe, por último, sindicar da qualificativa delineada na alínea j)! Cujo funcionamento depende, em alternativa, de se “agir com frieza de ânimo”, “com reflexão sobre os meios empregados” ou com persistência “na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”. Falamos, pois, do que é usualmente apelidado de premeditação… Cabendo apontar que esta poderá ocorrer mesmo quando a intenção de matar perdure por um período inferior a 24 horas. Bastando, para tanto, que exista frieza de ânimo ou reflexão sobre os meios empregados… Ao ponto de Figueiredo Dias e Nuno Brandão dizerem ser “vazio de sentido” o limite fixo de mais de 24 horas! E assinala o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2017 [Processo n.º 1074/16.8JAPRT.P1] que Segundo Fernando Silva, «A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo». «Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha». A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime, surge, assim, materializada em três situações: A frieza de ânimo, que, na expressão do Acórdão de 06.01.2010 ( proc. 38/08.2JAAVR.C1.S1- 3ª Secção-Relator Cons. Oliveira Mendes), se traduz «na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto». A reflexão sobre os meios empregues, segundo Manuel Leal Henrique e Manuel Simas Santos, consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito. Traduz-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar, significando, no dizer do Acórdão do STJ, de 14.05.2009 ( proc. 389/06.8GAACN.C1.S1- 3ª Secção- Relator Cons. Armindo Monteiro), « um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar, a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação de matar e dos meios a usar». A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduzida na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de ação para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato. À luz da factualidade provada e considerando a explanação feita, não podemos deixar de afirmar que o arguido AA actuou com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregues. Tendo tomado, pelo menos no dia prévio, a decisão de matar BB com oportunidade de reflectir sobre a sua intenção e mostrando-se, não obstante, indiferente para as consequências que poderiam advir do seu acto para com a pessoa daquela. Cuidando, complementarmente, de selecionar o meio que reputou mais adequado para o efeito visado com clara definição de um plano de acção. Com o que também esta qualificativa se deve assumir como verificada…». [24] Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se (art.º 22.º n.º 1 do C.P.), sendo actos de execução, a saber, os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os que forem idóneos a produzir o resultado típico e os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas anteriormente (n.º 2 do citado preceito). A punibilidade da tentativa vem prevista no art.º 23.º do CP, devendo-se ter em consideração o disposto no art.º 24.º do mesmo diploma, do qual resulta que na punibilidade desta conduta estará em causa essencialmente a circunstância da consumação ou da verificação do resultado serem impedidos por facto independente da vontade do agente. Quer isto dizer, então, que a tentativa deixa de ser punível se o agente desistir e se a desistência for relevante, sendo elemento fundamental dessa figura que a consumação não chegue a ocorrer, ou, que se evite o resultado, no domínio da tentativa acabada. Por seu turno, a desistência para ser relevante tem de ser espontânea e a sua voluntariedade será excluída se as desvantagens ou os perigos ligados à continuação da execução se revelem, de acordo com a perspectiva do agente, desproporcionadamente grandes à luz das vantagens esperadas, de tal modo que seria desrazoável suportá-los (cfr. Figueiredo Dias, Sumários, pág. 36). E o esforço do agente para seriamente evitar a consumação, na expressão do n.º 2 do art.º 24.º do CP, para os casos da consumação ou da verificação do resultado serem impedidas por facto independente da conduta do desistente, tem de ser avaliado segundo um critério objectivo moldado na teoria da causalidade adequada e considerando designadamente às especiais qualidades ou conhecimentos do agente, conduta essa, por sua vez, traduzida em actos idóneos, segundo a experiência comum e tendo em conta as especiais possibilidades concretas do agente. No nosso caso, há intenção de matar e dolo directo (resulta da factualidade provada, não que o arguido tenha representado como possível que da sua actuação pudesse resultar a morte da vítima, o que poderia vir a configurar uma situação de dolo eventual, mas que o arguido quis causar a morte da sua cônjuge, o que não conseguiu alcançar por razões alheias à sua vontade - o elemento volitivo do dolo configura, portanto, uma situação de dolo directo, tal como considerou o tribunal colectivo), não havendo qualquer desistência válida mas apenas uma não consumação por factos estranhos ao agente. [25] Foram aplicadas também penas acessórias, não visadas no recurso. [26] Em rigor, 3. [27] Em rigor, 4. [28] Em rigor, 5. [29] H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Tradução de Mir Puig e Muñoz Conde, Volumen Segundo, Bosch, 1981, página 1029 [30] As exigências de prevenção geral são muito elevadas tendo em conta a muito elevada frequência com que ocorrem este tipo de crimes e revelando estudos como o relatório da APAV 2021-2023 e o Relatório de Segurança Interna de 2023 e 2024 que a Violência Doméstica é um dos crimes que mais são julgados nos tribunais portugueses, com elevadíssima reprovação pela comunidade, causando um significativo alarme social, em face dos contornos inaceitáveis e assustadores com que todos os dias nos entra casa dentro casos que culminam com as mortes das vítimas. A este propósito, diremos que o recurso a sucessivas penas de prisão suspensas na sua execução tendem firmemente a passar a mensagem aos agressores de sentimentos de impunidade, urgindo, considerando as casuísticas características do caso e a gravidade dos factos, revelada na ilicitude e na culpa do agente, bem como as exigências de prevenção geral e especial, a condenação dos agressores, também e desde logo, em penas de prisão efectiva. Sinaliza a jurisprudência dos Tribunais Superiores que as exigências de prevenção fundamentam, desde logo, pela sua natureza, a aplicação de penas de prisão, em regime de reclusão. E, em nosso entendimento, mais ainda, quando no caso de violência se trata de crime contra as pessoas que tutela bem jurídico plúrimo (v.g. vida, integridade física e psíquica/moral, liberdade e autodeterminação sexual), enquanto valores e bens jurídicos fundantes do Estado de Direito Democrático e dimensões do basilar princípio da dignidade da pessoa humana (no nosso caso, estamos a falar de uma tentativa de homicídio, em concurso real, com crimes de violência doméstica e de ofensa à integridade física a um jovem menor de idade). [31] Fazendo nossas as ilustres palavras da Professora Conceição Cunha que defende que “quanto mais importantes forem os bens jurídicos, mais abrangente deverá ser a sua tutela penal pois em bens jurídicos ligados ao núcleo essencial da dignidade humana (tais como a vida, a integridade física e psíquica, a liberdade, incluindo a liberdade sexual), a tutela penal deve ser tão extensa e primordial quanto possível” (cfr. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, “Do dissentimento à falta de capacidade para consentir”, “Combate à Violência do Género – Da Convenção de Istambul à nova legislação penal”, Universidade Católica Editora, 2016, págs. 139. |