Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALEXANDRA GUINÉ | ||
Descritores: | CRIME DE ACESSO INDEVIDO CRIME DE ABUSO DE PODER REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO REJEIÇÃO POR INADMISSIBILIDADE LEGAL ELEMENTO SUBJECTIVO | ||
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Data do Acordão: | 05/14/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGAÇÃO PARCIAL | ||
Legislação Nacional: | ART.º 47.º N.º 1, DA LEI N.º 58/2019, DE 08 DE AGOSTO; ART 382.° DO CÓDIGO PENAL; ARTS 262º, Nº 1, 263.º, Nº 1, 283º, Nº 3, AL. B), 287º, Nº 2, 358º, 445.º N.º 3 DO CPP. | ||
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Sumário: | 1 - É admissível a abertura de instrução, a requerimento do assistente visando a alteração da qualificação jurídica dos factos efetuada no despacho de arquivamento e para desse modo lograr o preenchimento dos tipos imputados.
2 - Embora não seja necessário o recurso às expressões habitualmente usadas na praxis, em caso de imputação de crime doloso, do requerimento para abertura de instrução devem resultar, sem margem para dúvidas, os elementos que respeitam ao dolo, incluindo, sendo o caso, os relativos a uma específica intenção do agente. 3 - O requerimento de abertura de instrução deve ser recebido, quando dele constem de forma inequívoca, embora com algum esforço interpretativo, os elementos típicos do crime imputado. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório 1. Nos autos a correr os seus termos sob o n.º 3284/21.7T9LRA, no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (Juízo de Instrução Criminal), em que é arguida AA, foi rejeitado com fundamento em inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente BB.
2. Inconformado recorreu o assistente apresentando as seguintes conclusões: «A. O Requerimento de Abertura de Instrução (RAI) foi apresentado pelo assistente BB após o Ministério Público (MP) arquivar o inquérito, sustentando a inexistência de indícios suficientes para os crimes de violação de segredo por funcionário e violação de segredo. B. No RAI, o assistente demonstrou que existem claros indícios da prática de crimes de acesso indevido e abuso de poder por parte da arguida AA, com base nos mesmos factos apurados no inquérito. C. Assim, entre os dias 11 de agosto de 2020 e 15 de setembro de 2020, a arguida realizou 22 acessos injustificados aos dados pessoais do assistente, incluindo IRS, matrizes prediais, e-fatura e outros elementos fiscais, sem qualquer conexão funcional ou administrativa que justificasse tais consultas. D. No plano subjetivo, o dolo foi demonstrado no RAI com base na frequência e no padrão dos acessos, que eram reiterados, intencionais e desconectados de qualquer necessidade profissional. E. A arguida forneceu justificações contraditórias, alegando inicialmente que os acessos foram realizados "no âmbito das suas funções", mas, posteriormente, admitindo proximidade pessoal com a ex-esposa do assistente, CC, o que revela motivação alheia ao exercício das suas funções públicas. F. No despacho de arquivamento, o MP não abordou adequadamente os indícios relativos aos crimes de acesso indevido e abuso de poder, limitando-se a tratar os crimes de violação de segredo. G. O despacho do tribunal a quo, que rejeitou o RAI, fundamentou-se, entre outros pontos, na alegação de que a instrução não pode abranger crimes não considerados no despacho de arquivamento do MP. H. Com o devido respeito, tal argumento é incorreto, pois o artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP permite que o juiz de instrução reexamine os factos sob uma perspetiva jurídica distinta, podendo proceder à requalificação dos crimes, desde que os factos sejam os mesmos. I. A argumentação do despacho de que o RAI introduziu "novos factos" também não procede, uma vez que o RAI baseou-se exclusivamente nos factos já apurados no inquérito, nomeadamente os acessos aos sistemas da AT pela arguida. J. Conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.09.2014, o arquivamento do inquérito nos termos do artigo 277.º do CPP não exige que os factos sejam delimitados a uma qualificação jurídica específica, salvo em casos de crimes dependentes de queixa. K. Assim, os factos podem ser requalificados ou ampliados em caso de reabertura de instrução, até porque não foi deduzida acusação pelo MP. L. Acresce que, é irrelevante, para a configuração dos crimes de acesso indevido e abuso de poder, quais concretas informações foram consultadas ou se houve prejuízo direto para o assistente. M. Trata-se de crimes de mera conduta, sendo suficiente que a consulta tenha ocorrido sem justificação legal e em violação das normas de confidencialidade e proteção de dados. N. Nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.02.2022 sublinha que a violação de dados pessoais por agentes públicos é uma ofensa grave aos direitos fundamentais, independentemente do prejuízo concreto sofrido pela vítima. O. Pelo que, a abertura de instrução permitirá a análise de todos os indícios de forma detalhada, garantindo uma decisão fundamentada sobre a existência de indícios suficientes para pronúncia pelos crimes de acesso indevido e abuso de poder. Nestes termos e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V/ Exªs, deve o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que admita a Requerimento de Abertura de Instrução pelo assistente, com o que se fará a costumada justiça!».
3. Notificado, em resposta, o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos: «1º - Não tendo havido inquérito em relação aos factos descritos no RAI não pode haver instrução sobre eles, como decorre diretamente da delimitação operada pelos artigos 286.º n.º 1 e 287.º n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal, relativamente às finalidades e âmbito da instrução, que destinando-se exclusivamente à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, pressupõe que o inquérito sobre os factos em causa tenha existido. 2º - De onde decorre a inadmissibilidade da instrução requerida pelo assistente com vista à pronúncia por factos que não forem objeto de inquérito e relativamente aos quais o Ministério Público não tenha decidido o respetivo arquivamento, ainda que implicitamente. 3º - Sendo a instrução requerida pelo Assistente, como sucede no caso em análise, é aplicável ao respetivo requerimento, por força da parte final do n.°2 do artigo 287.°, o disposto no artigo 283.°, n.°3, alíneas a) e b), do CPP, o que significa que o mesmo terá de conter, sob pena de nulidade: “a indicação tendentes à identificação do arguido” e “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. 4º - No requerimento de abertura de instrução deduzido nos autos deparamos, além do mais, com a omissão relativa aos elementos objetivos e subjetivos dos ilícitos criminais. 5º - Assim sendo, não se mostrando cumpridos todos os requisitos previstos nos artigos supramencionados, enferma aquele de nulidade, a qual não é uma nulidade meramente formal, mas afeta a própria instrução, e, portanto, seria sempre inexequível e legalmente inadmissível. 6º - Tal requerimento não é suscetível de aperfeiçoamento, não podendo o juiz suprir as omissões como a que se verifica no caso concreto, e que consubstancia uma nulidade. Admitir o anómalo aperfeiçoamento da acusação ou do requerimento da abertura de instrução, constituiria uma violação do princípio do acusatório, ao ver a entidade julgadora a ter funções de investigação antes do julgamento, o que o atual C.P.P. não pretende. 7º - Pelo exposto, não se verificando a violação de qualquer preceito legal, entendemos que deverá o presente recurso ser julgado improcedente. Porém, decidindo, V.Exa farão a costumada JUSTIÇA».
4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, escrevendo, designadamente o seguinte: «1. Recorre o assistente BB do despacho que rejeitou, por inadmissibilidade legal. o seu requerimento para abertura de instrução. 2. Apresentou a motivação e as respectivas conclusões, que aqui se dão por reproduzidas. 3. Em suma, defende que o requerimento de abertura de instrução reúne os requisitos necessários para ser admitido: as razões de facto e de direito quanto à discordância relativamente à não acusação foram devidas e especificamente apresentadas; os necessários factos objectivos constitutivos dos crimes de acesso indevido e abuso de poder foram explanados suficientemente, e o requerimento contém também a narração dos factos que constituem os crimes imputados. 4. Termina, pedindo a procedência do recurso, com recebimento do requerimento para abertura de instrução. 5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, tendo concluído que a pretensão recursiva terá que naufragar, porquanto o decidido não merece censura, devendo ser confirmado. 6. Não se verificam circunstâncias que obstem ao conhecimento do recurso. 7. É consensual o entendimento de que o requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança - ou seja os elementos objectivos e subjectivos do tipo - e a indicação das disposições legais aplicáveis – artigos 283º , n.3, al. b) ex vi do art.º 287º, nº2, do mesmo diploma. 8. E que a falta de narração, por parte do assistente requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado, constituiu uma nulidade - artigo 283, nº3, do Código de Processo Penal -, uma vez que o requerimento de abertura de instrução pelo assistente, no caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, fixa o objecto do processo – artigos 303º e 309º do mesmo diploma legal. 9. Analisando o despacho recorrido, constata-se que o Mmº Juiz de Instrução fundamenta o indeferimento em duas ordens de razão. 10. Por um lado porque, no entendimento sufragado, “a instrução não tem por finalidade substituir-se ao inquérito, completá-lo ou rectificá-lo”, pelo que, não constando do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público alusão aos crimes de acesso indevido e abuso de poder, “não pode por via da instrução lograr-se a pronúncia da arguida por tais crimes”. 11. Por outro lado, porque a factualidade descrita “não poderia sustentar, por manifesta insuficiência e falta de concretização, um despacho de pronúncia pela prática de quaisquer crimes, mormente os de acesso indevido ou abuso de poder”. 12. Quanto à primeira questão, é nosso entendimento que a razão está do lado do recorrente. Entendemos, como o recorrente, que a omissão do Ministério Público em valorar os factos apurados a luz dos mencionados crimes não pode inviabilizar a realização da instrução. 13. O Juiz de Instrução não está vinculado à qualificação jurídica dos factos feita pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, pelo que a instrução não pode ser liminarmente inviabilizada por conta da eventual deficiente qualificação jurídica dos indícios feita pelo Ministério Público. 14. Relativamente à segunda causa invocada para o indeferimento, a insuficiência e falta de concretização da factualidade descrita, diz-se, no despacho recorrido que o requerimento “não faz, como se lhe exigia, uma descrição estruturada, coerente e compreensível de factos (…) não descreve qual a intenção que (a arguida) tinha nesses acessos (…) não se alega factualidade integradora do elemento cognitivo do dolo quanto aos crimes de acesso indevido (…) quanto aos crimes de abuso de poder, nada se alega quanto à intenção da arguida obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, assim omitindo a descrição factual de elemento típico de tal crime. 15. Mais uma vez temos de concordar com o recorrente. 16. Percorrendo o requerimento, pode considerar-se que o mesmo não está elaborado da forma mais correcta, com uma escorreita e facilmente inteligível descrição dos factos que se pretendem imputar à arguida e relativamente aos quais é pedida a realização de instrução. 17. Isto porque frequentemente se mistura a narração dos factos imputados com as razões da discordância relativamente à não acusação do Ministério Público. 18. Porém, numa análise mais fina, tendemos a considerar que, ainda que de forma mais ou menos dispersa e difusa, os elementos objectivos e subjectivos dos crimes em causa estão presentes. 19. Atente-se no descrito nos pontos 4, 5, 18, 19, 20, 21 e 24, relativamente aos elementos objectivos, e nos pontos 75 e 76, relativamente ao elemento subjectivo (v.g. o dolo). 20. Nesta conformidade, tendemos a considerar que o requerimento para abertura de instrução apresentado não tem deficiências estruturais que imponham a liminar rejeição do mesmo, pelo que é nosso parecer que o recurso deve ser julgado procedente, procedendo-se à requerida instrução».
5. Admitido o recurso, foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.
II. Fundamentação 1. Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do Código de Processo Penal (doravante CPP), o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Encontra-se, ainda, o tribunal obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos art.º s 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005). No caso em apreço são as seguintes as QUESTÕES a resolver: 1. Os factos imputados ao arguido no requerimento de abertura de instrução dos factos foram objeto de despacho de arquivamento? 2. No requerimento de abertura de instrução foram descritos os elementos subjetivos dos crimes imputados? 3. Do requerimento de abertura de instrução consta a narração factual dos crimes imputados ao arguido? * 2. É o seguinte o teor do DESPACHO RECORRIDO (transcrito na parte ora relevante): «O assistente BB veio requerer a abertura da instrução, a fls. 424 a 438, inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público em 17/10/2024, a fls. 415 a 419, sustentando o requerente dever a arguida AA ser pronunciada pela prática de vinte e dois crimes de acesso indevido, p. e p. pelo artigo 47º, n.º 1 e n.º 2, da Lei n.º 58/2019, de 08/08 (Lei da Protecção dos Dados Pessoais), em concurso aparente com vinte e dois crimes de abuso de poder, p. e p. pelos artigos 382º e 386º, n.º 1, al. a), ambos do C. Penal. * II. O despacho de arquivamento com que o Ministério Público encerrou o inquérito tem por objecto, apenas, factualidade susceptível de integrar a prática “de um crime de violação de segredo por funcionário, p. e p. pelo artigo 383º do Código Penal ou a prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo artigo 91º do RGIT”. Não existe qualquer arquivamento quanto à eventual prática de crimes de acesso indevido ou de abuso de poder. A instrução não tem por finalidade substituir-se ao inquérito, completá-lo ou rectificá-lo. Tem por finalidade comprovar judicialmente a decisão do Ministério Público de (para o que aqui interessa) arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigo 286º, n.º 1, do C. P. Penal. Daí que, em casos como o presente, em que não existe arquivamento por um concreto crime, não pode por via da instrução lograr-se a pronúncia de arguido por tal crime, pelo que, por inutilidade, a instrução é legalmente inadmissível. «(…) A obrigatoriedade do inquérito em processo comum implica, na sua dimensão garantística, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, pelo que a abertura da instrução a requerimento do assistente com vista à pronúncia de alguém não acusado, apenas pode ter lugar se, relativamente a ele, foi suscitada, em inquérito, a possibilidade de o mesmo ser autor ou comparticipante de factos ilícitos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança. (…) Assegura-se, deste modo, que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo Ministério Público, titular da ação penal, e sem que possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas (…)»1. «(…) Não é admissível a pronúncia dos denunciados por factos que não tenham sido objeto de inquérito, mesmo que se encontrassem exemplarmente descritos no RAI, pois nestes casos visa-se sujeitar o arguido a julgamento por factos relativamente aos quais o MP se decidira pelo arquivamento após inquérito efetivamente realizado e não a substituição de inquérito materialmente inexistente pela integral investigação e pronúncia judicial (…)»2. «(…) Para haver inquérito contra determinada pessoa não basta dar formalmente início ao inquérito com a respectiva autuação dos autos e levar a efeito determinadas probatórias, antes se exigindo que tais diligências probatórias sejam dirigidas contra alguém com a finalidade de comprovar a imputação do facto ilícito a essa pessoa. (…) A admitir-se a instrução estar-se-ia a prescindir do inquérito e, simultaneamente, a atribuir a uma entidade diferente a titularidade da acção penal, no caso ao Juiz de instrução, quando o Ministério Público é que tem a titularidade e direção do inquérito, o que seria atentatório do princípio do acusatório e dos direitos de defesa que estão atribuídos a qualquer cidadão e contemplados no artigo 32º da nossa Lei Fundamental (…)»3. «(…) porque a instrução visa comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, não pode o assistente requerer a instrução relativamente a factos que não tivessem sido já objecto de investigação, seja, relativamente a factos novos, diversos daqueles que foram objecto de apreciação na fase de inquérito (…)»4. De resto, para boa parte da jurisprudência, «(…) na falta de despacho de arquivamento pelo MP sobre determinado crime denunciado não pode ser requerida a abertura de instrução [pelo assistente] (…) só depois de provocado um despacho do MP no sentido de acusar ou arquivar é que pode ser apresentado o RAI, ou seja só perante um despacho do MP expresso de arquivamento, pode reagir-se através do RAI (…) como tal não aconteceu, não é admissível a instrução, e como tal deve ser rejeitado o RAI apresentado pelo assistente (…)»5. * III. Ainda que assim não se entendesse, considerando estar em causa mera alteração da qualificação jurídica, enquadrável no disposto no artigo 303º, n.ºs 1 e 5, do C. P. Penal, a inviabilidade da instrução fundar-se-ia sempre noutro pressuposto. Como é consabido, a actividade do juiz em sede de instrução está sempre balizada pelas razões de facto e de direito alegadas no requerimento de abertura da instrução (RAI). Se o que se contesta é uma acusação ou a decisão de acusar, o balizamento, o objecto processual, obtém-se do cotejo desta com as razões de discordância do requerente; se o requerente não se conforma com a decisão de arquivar, então incumbe-lhe produzir no seu libelo introdutório todos os elementos constitutivos da acusação que pretende ver reproduzida num despacho de pronúncia. Assim, impõe o n.º 2 do artigo 287º do C. P. Penal que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente contenha os requisitos exigidos para a acusação nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do mesmo código, isto é, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e a indicação das disposições legais aplicáveis. O que vale por dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente deve constituir substancialmente uma acusação, com todos os requisitos exigidos para esta, só podendo a decisão instrutória recair sobre os factos indicados, em ordem a subsumi-los nas disposições legais igualmente indicadas. Posição que, na actualidade é consensual, doutrinal e jurisprudencialmente. No caso dos autos, o assistente enumera as razões de discordância com o despacho de arquivamento, analisa a prova produzida no inquérito e fundamenta juridicamente a sua posição. O que não faz, como se lhe exigia, é uma descrição estruturada, coerente e compreensível de factos que deveriam ter sido autonomizados e enquadrados na “acusação alternativa” que ao assistente se impunha deduzir. Não se descreve cabalmente onde, quando, quem, como e porquê. Retiram-se conclusões, mas não se alegam factos. Ao RAI apresentado aplica-se integralmente o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora de 24/10/2017: «(…) 1 - No caso de requerimento de abertura da instrução pelo assistente com pretensão de sujeição de arguido a julgamento tal peça tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objectivos e subjectivos – sem adjectivações e/ou considerados probatórios ou de qualificações jurídicas de permeio. 2 - E tais factos têm que estar concentrados seguindo uma lógica de subsunção aos diversos tipos penais pretendidos. Esta asserção liga-se, naturalmente, à ideia sabida de que é boa metodologia na dedução de uma acusação dispor do tipo penal presente na dedução desta. E a qualificação jurídica só pode surgir a final, assim como as indicações probatórias que se impõem. 3 - Não compete ao juiz de instrução andar a escolher factos dispersos e a reduzir a factos – deduzindo as intenções dos requerentes - amálgamas de factos e considerandos probatórios e de direito. 4 - É jurisprudência assente que a omissão da narração dos factos no requerimento de abertura da instrução, ainda que a exigência se baste com uma narração sintética, não dá lugar a um direito ao aperfeiçoamento - v. acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005. 5 - Apesar de o direito ao juiz da assistente ter consagração constitucional, tal direito tem sido valorado pelo Tribunal Constitucional de forma diversa – e menos relevante – do que o direito à defesa do arguido (…)». O assistente não descreve, em concreto, a que acedeu a arguida em cada um dos acessos. Não descreve qual a intenção que tinha nesses acessos, a não ser a conclusão de que visava “explorar informações detalhadas do assistente”, o que não corresponde a alegação factual concreta. Também não se alega factualidade integradora do elemento cognitivo do dolo quanto aos crimes de acesso indevido. Quanto aos crimes de abuso de poder, nada se alega quanto à intenção da arguida obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, assim omitindo a descrição factual de elemento típico de tal crime. Ora: «(…) A doutrina fixada pelo STJ no seu AUJ n.º 1/2015 deve ser aplicada ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente. (…) Estando em causa crimes dolosos e verificando-se que o requerimento para abertura da instrução não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa dos arguidos, nos termos previstos nos art.ºs 283º, n.º 3, alínea b), e 287º, n.º 2, do C.P.P., sendo omisso em relação aos elementos subjectivos de tais crimes, isto é, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito), nenhuma censura merece a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento para a abertura da instrução (…)»7. Assim, mesmo que resultasse suficientemente indiciado tudo quanto alega (factualmente) o assistente no RAI, a factualidade aí narrada não poderia sustentar, por manifesta insuficiência e falta de concretização, um despacho de pronúncia pela prática de quaisquer crimes, mormente os de acesso indevido ou abuso de poder. Ora, não podendo aditar-se a factualidade em falta, sob pena de nulidade (artigo 309º, n.º 1, do C. P. Penal), a instrução requerida pelo assistente BB constituiria um acto inútil, uma vez que nunca poderia culminar com a pronúncia pretendida. * IV. Resta, pois, por este conjunto de razões, concluir ser o requerimento de abertura de instrução do assistente BB legalmente inadmissível, devendo ser rejeitado por tal fundamento, inexistindo fundamento legal para prévio convite ao aperfeiçoamento do mesmo. Tal entendimento foi consagrado como jurisprudência obrigatória através do Acórdão n.º 6/2005 do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/05/2005, publicado no DR-Iª-Série-A, de 04/11/2005, nos seguintes termos: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido». Termos em que, face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 283º, n.º 3, al. b) e 287º, n.ºs 2 e 3, ambos do C. P. Penal, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente BB, por inadmissibilidade legal da instrução. * 3. Apreciação do recurso
Pretende o assistente a revogação da decisão recorrida pugnando pela sua substituição por outra que admita o Requerimento de Abertura de Instrução que havia apresentado. Alega o recorrente que, inversamente ao entendimento do Mm.º Juiz de Instrução: - Os factos imputados ao arguido no requerimento de abertura de instrução foram objeto de despacho de arquivamento; - No requerimento de abertura de instrução foram descritos os elementos subjetivos dos crimes imputados; - Do requerimento de abertura de instrução consta a narração factual dos crimes imputados ao arguido.
Apreciemos as questões suscitadas no recurso.
1. Os factos imputados no requerimento de abertura de instrução dos factos foram objeto de despacho de arquivamento?
Como é sabido, concretizando a estrutura acusatória do direito processual penal português[1], a direção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (art.º 263.º n.º 1 do CPP), e compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art.º 262.º n.º 1 do CPP). Ressalvadas as exceções previstas no Código de Processo Penal, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito (art.º 262.º n.º 2 do CPP). Na sua dimensão garantística, a obrigatoriedade do inquérito em processo comum, implica, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança[2]. A falta de inquérito constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º al. d) do CPP. A falta de inquérito nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade, prevista na referida alínea d) do art.º 119.º refere-se à omissão total de inquérito. «Com efeito, o inquérito legitima a decisão de se submeter o arguido a julgamento, sendo impensável sem um mínimo de investigação e indiciação prévia. «Na verdade, a simples dedução de acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado» (Jorge de Figueiredo Dias, 1974, p. 133; ac. do TC 53/2011), de modo que a absolvição em julgamento já significa uma grave sobrecarga do arguido inocente (Karl Peters, 1985, p. 170)»[3]. Equiparada à omissão de inquérito é a mera atuação como inquérito sem que tenham sido praticados quaisquer atos de investigação (ausência material de inquérito)[4]. É o que se passa naqueles casos em que, «não obstante a queixa pu participação, ou seja, a prática de ato que legitima a intervenção do MP, ele omita a prática de quaisquer atos próprios dessa fase. O que carateriza esta nulidade é a completa omissão de atos de inquérito». É o que se passa quando «ordenada a abertura de inquérito, o M.ºP.º nada ordenou, nada realizou, até ao despacho que o encerrou»[5]. Trata-se de nulidade de conhecimento oficioso, mesmo na fase de recurso, e que pode ser invocada por qualquer interessado com legitimidade para intervir no processo: a sua gravidade é tão grande que qualquer um as pode invocar, por estarem em causa finalidades consideradas essenciais num Estado de Direito[6]. A falta de inquérito não pode ser suprida pela apresentação do requerimento de abertura de instrução pelo assistente, devendo o mesmo ser rejeitado por inadmissibilidade legal[7]. Efetivamente, a instrução «tem caráter facultativo» e «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento», e «tem caráter facultativo» (art.ºs 286.º do CPP). Dada a finalidade de comprovação judicial da decisão do Ministério Público, a instrução não é um «novo» inquérito, que, como vimos, é uma fase processual obrigatória em processo comum e que compete exclusivamente ao MP. E por assim ser, os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia hão-de ter sido objeto do inquérito, sob pena de nulidade processual, em razão da nulidade prevista no art.º 119º al. d) do CPP, e consequente inadmissibilidade legal da instrução. «Assegura-se deste modo que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo MP, titular da ação penal, e sem que o arguido possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas, pois o art. 61º nº 1 g) do CPP reconhece ao arguido direito a intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias»[8]. No nosso caso. Logo na participação constam o acesso por parte da ora arguida a dados (informação fiscal) do assistente, em número de 59 e nos dias referidos no RAI; que este acesso era considerado pelo ora assistente injustificado. Após a realização de diligências de investigação visando o apuramento dos factos participados foi proferido despacho de arquivamento podendo ler-se, designadamente o seguinte: «O presente inquérito teve origem no envio da cópia integral do processo interno de inquérito nº451/2021, por parte da Autoridade Tributária, na sequência de uma participação apresentada por BB contra a trabalhadora AA, alegando eventuais acessos desta à sua situação tributária, através do sistema informático da AT, e posterior divulgação à sua ex-companheira, CC. - Os factos denunciados são susceptíveis de configurar, em abstracto, a prática de um crime de violação de segredo por funcionário, p. e p. pelo artigo 383º do Código Penal ou a prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo artigo 91º do RGIT. (…) Da análise dos elementos constantes dos autos, nomeadamente, da conjugação e relacionamento dos depoimentos prestados pelo denunciante/assistente BB, pela testemunha CC, pela arguida AA e dos documentos juntos aos autos, considera-se que não existem indícios suficientes de que a arguida AA tenha praticado os crimes em apreço. Não obstante ter resultado dos elementos juntos aos autos, nomeadamente, do processo interno de inquérito nº451/2021, que decorreu na Autoridade Tributária, que a trabalhadora AA acedeu a dados tributários (pessoais) do denunciante sem que para tal estivesse mandatada ou tivesse necessidade funcional de o fazer, certo é que, não foram recolhidos indícios suficientes de que a arguida AA tivesse revelado/divulgado os referidos dados, isto é, que tivesse facultado tais dados a CC e que as informações que constam da petição inicial apresentada no Tribunal de Família e Menores tivessem sido obtidas através do fornecimento de tais dados». Ora, em primeiro lugar, do confronto entre a factualidade participada e a constante do requerimento de acusação, verificamos que a matéria fática do requerimento de abertura de instrução, se reconduz, no essencial, à descrita na participação objeto do inquérito e mesmo àquela que (salvo no que respeita aos elementos subjetivos – os quais, na ausência de confissão ou de prova testemunhal, apenas poderiam ser inferidos dos restantes factos apurados) o Ministério Público considerou indiciada no despacho de arquivamento – ou seja, o injustificado acesso pela arguida a dados fiscais do assistente. É certo que, tal factualidade foi qualificada pelo Ministério Público como sendo eventualmente configuradora da prática de um crime de violação de segredo por funcionário, p. e p. pelo artigo 383º do Código Penal ou a prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo artigo 91º do RGIT. Mas, se o juiz de instrução nem se encontra vinculado à qualificação jurídica do despacho de acusação ou no requerimento para abertura de instrução (art.º 303.º n.º 5 do CPP), não se vislumbra qualquer razão para o considerar vinculado à qualificação jurídica do despacho de arquivamento. Inversamente, temos por certo que é admissível a abertura de instrução, a requerimento do assistente visando a alteração da qualificação jurídica dos factos efetuada no despacho de arquivamento e, desse modo, para lograr o preenchimento dos tipos imputados. No nosso caso, no requerimento de instrução o que o assistente, designadamente, pretende é a subsunção das condutas imputadas aos crimes de acesso indevido e abuso de poder. Não nos encontramos perante factos novos diversos daqueles que foram objeto de apreciação na fase de inquérito, nem a instrução, por esta via implica substituir inquérito materialmente inexistente, atribuindo a titularidade da ação penal ao Juiz de Instrução. Assiste, portanto, razão, nesta parte, ao recorrente assistente.
2. No requerimento de abertura de instrução foram descritos os elementos subjetivos dos crimes imputados?
A obrigatoriedade de prévia existência de inquérito contra a pessoa que o assistente pretenda ver pronunciada, não põe em causa o direito, abrangido pela garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva (arts 32º nº7 e 20º nº1, da CRP), que o ofendido (constituído assistente) tem de contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos autores do crime de que foi vítima requerendo a abertura da fase de Instrução. Mas, por outro lado, face à estrutura acusatória do processo penal português, estipula o n.º 4 do art.º 288.º do CPP, que o juiz não pode investigar autonomamente o caso submetido a instrução, encontrando-se vinculado factualmente aos elementos que lhe são trazidos no requerimento de abertura de instrução de forma a poder decidir sobre a justeza ou acerto da decisão de acusação ou arquivamento. O juiz de instrução está sujeito aos limites do objeto da instrução fixados no requerimento de abertura de instrução no caso de arquivamento do inquérito pelo MP (art.º 303.º).[9] Assim, o requerimento de abertura da instrução constitui um elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução, a qual, sendo autónoma, como se disse, se terá de conter dentro do tema factual que lhe é proposto através daquele, podendo por isso dizer-se, garantidamente, que o requerimento de abertura de instrução delimita o thema decidendum dos autos, quer em relação à atividade jurisdicional, quer quanto ao pleno exercício do contraditório por parte do arguido, cuja tutela de defesa apenas se assegura se ali estiverem concretizados, de forma clara, os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que lhe é imputado[10]. Tendencialmente, na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (art.ºs 308 e 309.º)[11]. Expressão e consequência da sujeição do juiz de instrução à vinculação temática definido pelo requerimento de abertura instrução do assistente, o n.º 1 do art.º 309.º do CPP comina com nulidade a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento. Assim, é o requerimento do assistente que atua como acusação, e não o despacho de pronúncia, desta forma se respeita, formal e materialmente, a natureza acusatória do processo. Mas se o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação[12], então terá de se configurar, materialmente, como uma acusação alternativa, semelhante à que seria formulada pelo MP se tivesse decidido acusar, descrevendo os factos que considera indiciados e que integram os crimes imputados, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e a permitir o exercício do contraditório[13]. Nos termos do disposto no art.º 287.º n.º 2 do CPP, o requerimento de abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º”. Assim, a referência legal à «não sujeição do requerimento a formalidades especiais» deve ser entendida como reportada às questões meramente formais, como sejam, por exemplo, o uso de fórmulas rituais ou a alegação por artigos[14]. Já em termos substanciais, o requerimento de abertura de instrução tem não apenas de observar sintetizar as razões da discordância da acusação, por forma a possibilitar a fiscalização judicial da atividade do Ministério Público no inquérito; como de especificar os meios de prova adequados, quer os que não foram devidamente valorados no inquérito, quer novos meios (de prova), a realizar em sede de instrução; e ainda, de narrar os factos e indicar as normas jurídicas incriminatórias, para delimitar o objeto do processo (art.º 283.º n.º 3 al b))[15]. No nosso caso, entende o Mmo Juiz de Instrução que do requerimento de abertura de instrução do assistente não consta a descrição dos elementos subjetivos dos crimes imputados ao arguido de abuso de poder e de acesso indevido. Sobre os elementos subjetivos dos crimes dolosos que devem ser descritos na acusação, pode ler-se na fundamentação do Acórdão Uniformizador da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015: «10.2.3. (…) Ora, a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS». De acordo com o decidido no mesmo Acórdão Uniformizador, «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal». É certo que o Acórdão Uniformizador da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015 não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, embora estes devam fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (art.º 445.º n.º 3 do CPP). Também não sofre dúvida que o supra citado Acórdão Uniformizador se refere à falta de descrição no despacho de acusação dos elementos subjetivos do crime, que não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal. E não à rejeição do requerimento de abertura de instrução com fundamento na omissão dos elementos do tipo de culpa, que é, afinal o que nos ocupa. Ainda assim, as razões adiantadas no Acórdão Uniformizador n.º 1/2015 parecem-nos igualmente válidas relativamente ao requerimento de abertura de instrução. Portanto, no requerimento para abertura de instrução, como no despacho de acusação, devem constar os elementos do tipo, e, portanto, do dolo. O que aliás, bem se compreende, tendo presente a estrutura acusatória do direito processual penal português, assente na dignidade da pessoa humana e na garantia constitucional dos direitos de defesa (art.ºs 1º, e 32.º n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, ou CRP), a impor «que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução» - Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/04. Na verdade, e com vimos, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente fixa o objeto do processo, a temática dentro da qual se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do juiz de instrução, juiz este que fica vinculado ao seu teor aquando da prolação do despacho de pronúncia (fora, obviamente, das situações previstas no artigo 303º, nº 1, do CPP). Sendo ainda certo que, não se justifica fazer-se um julgamento ou uma instrução se, de antemão, se consegue perceber-se que o julgamento e a instrução estão forçosamente votados ao insucesso por falta de factos aptos a levar a uma incriminação penal, isto é, quando não constam da peça acusatória todos os factos necessários ao preenchimento do tipo legal em causa[16]. Ou seja, embora, obviamente, não seja necessário o recurso às expressões habitualmente usadas na praxis, em caso de imputação de crime doloso, do requerimento para abertura de instrução deve resultar, sem margem para dúvidas, os elementos que respeitam ao dolo. Ora, pratica o imputado crime de acesso indevido, nos termos do art.º 47.º n.º 1 da Lei da proteção de dados Pessoais (Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto), quem «sem a devida autorização ou justificação, aceder, por qualquer modo, a dados pessoais». Quanto ao elemento subjetivo o tipo não exige qualquer intenção específica (como seja o prejuízo ou a obtenção de benefício ilegítimo), ficando preenchido com o dolo (genérico) de conhecimento e intenção de aceder a dados pessoais, com a consciência da ilicitude (art.º 14.º do Código Penal). E, basta ler o requerimento de abertura de instrução para se constatar que sob os artigos 24. («As 50 consultas identificadas, associadas aos 22 acessos, demonstram a reiterada intenção de a arguida explorar informações detalhadas do assistente sem qualquer ordem de serviço»), 75. («A arguida bem sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e zelo a que, como funcionária da AT estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava») e 76. («A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita era proibida e punida por lei») que se mostram alegados os elementos subjetivos do crime de acesso indevido. Como assim é, nesta parte, tem razão o recorrente. Por sua vez dispõe-se no art.º 382.° do Código Penal, sob a epígrafe abuso de poder: «O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal». O tipo objetivo de ilícito traduz-se no abuso de poderes ou na violação de deveres por banda do funcionário, sendo certo que, numa e noutra situação, os poderes e deveres terão de ser inerentes à sua função. O tipo subjetivo de ilícito consiste numa atuação dolosa, que supõe não apenas a consciência e vontade por parte do agente de exercer uma função pública abusando dos poderes, ou violando os deveres a ela inerentes, bem como o conhecimento do carácter ilegítimo da vantagem ou do prejuízo pretendidos, como para além disso, que o agente atue com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa. Tal como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 23.01.2008, no processo 07P4279 (relatado pelo Cons. Henriques Gaspar), no crime de abuso de poder: «(…) o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal. Há, com efeito, tipos de crimes em que o tipo de ilícito é construído de tal forma que uma certa intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza. A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertencendo ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo. A intenção tipicamente requerida tem por objecto uma factualidade que não pertence ao tipo objectivo de ilícito. Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe para além do dolo de tipo a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, "Direito Penal, Parte Geral", Tomo I, p. 329-330), Nos delitos de intenção verificam-se elementos de atitude interna de agente, que são elementos subjectivos que caracterizam a vontade de acção, referidos à modalidade de acção, ao bem jurídico ou ao objecto da acção protegida pelo tipo; o autor persegue um resultado que tem em consideração para a realização do tipo, e deve querer causar com a sua própria conduta um resultado que vai para além do tipo objectivo (cfr. H. H. Jesheck e T. Weigend, "Derecho Penal", p. 341-342). O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática». Para a afirmação desta intenção específica não é bastante a colocação de conjeturas ou de hipóteses. Ora, analisando o requerimento de abertura de instrução, relativamente à intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, o que temos são apenas suposições incompletas interligadas com a apreciação dos indícios probatórios alegadamente resultantes dos autos. No requerimento de abertura de instrução nunca se afirma qual foi afinal a intenção da arguida, e se, designadamente, seria mesmo, como porventura sugerido, a de transmitir ilicitamente os dados do assistente a terceira pessoa para esta os utilizar em ação judicial, em seu benefício ilegítimo e/ou com o prejuízo do seu titular. E como assim é, falece, nesta parte o recurso, não merecendo censura no que respeita à imputação do crime de abuso de poder, a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.
3- Do requerimento de abertura de instrução consta a narração factual dos crimes imputados ao arguido? Como vimos, no que respeita ao crime de abuso de poder justifica-se a rejeição do requerimento de abertura de instrução. Resta apreciar se no que se refere ao outro crime imputado – de acesso indevido - se observa a exigência de narração dos factos preenchedores do tipo. De um modo geral pode dizer-se que a narração quer-se descrita na perspetiva do arguido (autor da ação), de forma clara e simples, sequencial, correspondendo a cada parágrafo fatos distintos, por forma a permitir a apreensão imediata do pedaço de vida imputado. Obviamente que serem os factos descritos, intercalando considerações jurídicas e probatórias não integra as boas práticas da narração. No entanto, tal não constitui óbice a que o requerimento de abertura de instrução seja recebido, posto que nele constem de forma inequívoca, embora com algum esforço interpretativo, os elementos típicos do crime imputado. No nosso caso, por certo, que o requerimento de abertura de instrução, não observa as boas práticas da narração factológica. Será, no entanto, que os factos imputados à arguida se encontram descritos de modo a que, sem margem para dúvidas, todos possam ficar a saber qual o pedaço de vida em discussão. Seja a arguida, para que se possa defender. Seja o juiz, a quem compete realizar a instrução tendo em conta o requerimento de abertura de instrução (art.º 288.º n.º 4 do CPP). E o que verificamos lendo o requerimento de abertura de instrução é que se detetam todos os factos que integram o tipo de crime de acesso indevido imputado. Assim vem designadamente alegado que: «4. Durante o período analisado em sede de inquérito, entre 11 de agosto de 2020 e 15 de setembro de 2020, a arguida realizou 22 acessos indevidos aos dados fiscais e pessoais do assistente em cinco dias distintos, sem qualquer ordem de serviço que os justificasse. 5. No mesmo período foram realizadas 50 consultas distintas relacionadas com os dados do assistente, abrangendo informações detalhadas como IRS, IRC, matrizes prediais, e-fatura e cadastro, muitas das quais irrelevantes para os fins alegados pela arguida»; «12. (Os 20) acessos e (as) consultas (foram realizadas) ao NIF individual do assistente»: «18. Conforme consta do Relatório Síntese do Processo n.º 0004/20..., datado de 30 de abril de 2021 (vide fls. dos autos), foi apurado que a arguida, senhora AA, identificada como utilizadora es...91 nos sistemas da Autoridade Tributária, realizou sucessivos acessos aos dados fiscais do assistente. 19. Os acessos estão discriminados da seguinte forma: a) No dia 11 de agosto de 2020, foram efetuados 7 acessos; b) No dia 24 de agosto de 2020, ocorreram 3 acessos; c) No dia 3 de setembro de 2020, foi realizado 1 acesso; d) No dia 8 de setembro de 2020, foi realizado 1 acessos; e) No dia 15 de setembro de 2020, verificaram-se 10 acessos. 20. Estes dados encontram-se detalhados no Anexo 1 do referido relatório e também no Quadro Resumo Constante do Anexo 3, o qual apresenta uma análise mais detalhada das interações realizadas (vide fls. 45 a 75 do presente inquérito). 21. No total, a arguida efetuou 22 acessos e realizou 50 interações ou consultas relacionadas com dados do assistente, abrangendo informações fiscais diversas»; «24. As 50 consultas identificadas, associadas aos 22 acessos, demonstram a reiterada intenção de a arguida explorar informações detalhadas do assistente sem qualquer ordem de serviço»; «75. A arguida bem sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e zelo a que, como funcionária da AT estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava. 76. A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita era proibida e punida por lei». Entendemos, assim e tudo considerado que, no que respeita ao crime de acesso indevido a narração constante do requerimento de abertura de instrução, permite à arguida organizar a defesa e ao juiz de instrução realizar a instrução e proferir decisão instrutória (art.º 288.º n.º 4 do CPP). Pese embora não tenham sido adotadas as melhoras práticas na descrição dos factos, ainda assim da leitura do requerimento de abertura de instrução revela-se possível apreender, sem margem para dúvidas, quais os factos concretamente imputados. Ao contrário do decidido no Tribunal recorrido, tal peça permite aferir da verificação dos elementos deste crime, pelo que não se apresenta como absolutamente inútil a instrução requerida pelo assistente. Porventura, a concreta redação do requerimento de abertura de instrução não será a melhor, mas também o juiz de instrução, num eventual despacho de pronúncia ou de não pronúncia que venha a proferir, não se encontra vinculado às palavras que foram utilizadas pelo assistente. Concluímos que nesta parte, o requerimento de abertura de instrução não devia ter sido rejeitado com o fundamento invocado na decisão recorrida, ou seja, por inadmissibilidade legal da instrução, impondo-se a revogação nessa parte desse despacho, procedendo parcialmente o recurso.
III. Dispositivo Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso, e assim, em - Revogar parcialmente a decisão recorrida que deve ser substituída por uma outra que na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, admita a instrução requerida pelo assistente, no que respeita ao imputado crime de acesso indevido, p.p. nos termos do art.º 47.º da Lei de Proteção de Dados Pessoais (Lei 58/2019 de 08.08), seguindo-se os ulteriores termos processuais; - Confirmar a rejeição do requerimento de abertura de instrução, na parte que respeita à imputação à arguida do crime de abuso de poder, p.p., nos termos do art.º 382.º do Código Penal. Custas pelo assistente, fixando a taxa de justiça em 3 UC (art.º 515.º n.º 1 al. b) do CPP, e Tabela III do RCP) (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo e pela terceira signatários – art.º 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09).
Coimbra, 14.05.2025
[12] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 21.06.2022, processo n.º 418/19.5GHSTC.E1 (rel. Des. Renato Barroso [14] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 06.11.2017, processo 280/16.0T9BRG.G1 (rel. Des. Jorge Bispo) [15] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 06.11.2017, processo 280/16.0T9BRG.G1 (rel. Des. Jorge Bispo) [16] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 15.12.2022, proc. nº 211/20.2T9VRL.G1 (Florbela Sebastião e Silva) |