Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
98/25.9YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
COMPETÊNCIA
ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CENTRO NACIONAL DE INFORMAÇÃO E ARBITRAGEM DE CONFLITOS DE CONSUMO – PÓLO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, 46.º, N.º 3, LEI N.º 63/2011, DE 14 DE DEZEMBRO
ARTIGOS 4.º, N.º 3, DA LEI N.º 144/2015, DE 8 DE SETEMBRO - MECANISMOS DE RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE LITÍGIOS DE CONSUMO
ARTIGO 4.º DO REGULAMENTO HARMONIZADO DE ARBITRAGEM
Sumário: O CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (Pólo de Viseu) tem competência material para julgar um litígio, referente a um conflito de consumo, onde está indiciado um ilícito criminal que foi praticado por terceiros, não intervenientes no processo arbitral.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.


AA, devidamente identificado nos autos, submeteu ao CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo – Pólo de Viseu a apreciação de um litígio que o opõe a A..., SA, sociedade com o NIPC ...48, tendo no correspondente processo vindo a ser proferida sentença, em 5/4/2025, com o seguinte teor:

Identificação das partes

Reclamante: AA, residente na Urbanização ..., ..., ... ..., contribuinte fiscal ...03.

Reclamada: A..., SA, sociedade comercial anónima titular do NIPC ...48, com sede no Lugar ..., ..., ... ....


Exposição do litígio

Mediante pedido submetido ao CNIACC no dia 9 de dezembro de 2024, o reclamante recorreu à arbitragem para dirimir o conflito atinente à utilização de um cartão de pagamento.

O reclamante alega que lhe foi atribuído pela reclamada um cartão de pagamento, o qual foi utilizado fraudulentamente por desconhecidos, tendo sido prejudicado na quantia de 1376,66 eur. O reclamante pede que a reclamada seja condenada a repor a quantia anteriormente referida.

A reclamada deduziu oposição. No essencial referiu que a transação de que se queixa o reclamante foi efetuada com autenticação forte (códigos enviados por sms), sendo certo que, antes da transação, foi efetuada alteração ao número de telemóvel associado à utilização do cartão. A concreta transação em causa foi efetuada através de um cartão virtual criado para o efeito, sendo que a criação desse cartão também foi feita por autenticação forte.


Resumo

O processo tramitou de acordo com as regras previstas no Regulamento do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC), sem irregularidades que devam aqui ser apontadas ou conhecidas, culminando com a realização da audiência arbitral no dia 25 de março de 2025, diligência a que compareceram o reclamante, a reclamada (devidamente representada) e duas testemunhas, uma por cada parte.

Não existem nulidades ou outras questões prévias que devam ser conhecidas. Fixa-se à reclamação o valor de 1376,66 eur. A instância da reclamação é regular quanto à personalidade e capacidade das partes e patrocínio. A invocada exceção dilatória da incompetência deve sser julgada improcedente. É certo que, nos termos do art. 4.º, n.º 4 do Regulamento do CNIACC, o Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal. Por outro lado, é igualmente certo que na presente reclamação se discutem factos que poderão estar associados à prática de um crime. Contudo, os indícios de atuação criminal dizem respeito a factos praticados por terceiros e não pelo reclamante ou pela reclamada. Assume-se que as partes terão sido vítimas, ambas, desse conduta criminosa, mas não os seus agentes.

Nessa medida, nada impede que o conflito de natureza exclusivamente cível (e de consumo) que opõe o reclamante à reclamada seja conhecido no contexto desta arbitragem.

Assim, o litígio é suscetível de ser decidido pela via da arbitragem de acordo com o teor do art. 4.º do Regulamento do CNIACC, bem como o teor do art. 14.º, n.os 2 e 3 da Lei n.º 24/96, de 31 de julho.


Factos dados como provados

Com interesse para a decisão da causa, consideram-se provados os factos seguintes:

A) A reclamada exerce as atividades referentes à emissão de moeda eletrónica e prestação dos serviços de pagamento elencados nas alíneas a), b), c), d) e e) do artigo quarto do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de novembro (RJSPME), incluindo a concessão de crédito nos termos previstos na alínea b) do número dois do artigo catorze e no artigo quinze do RJSPME, no exercício da atividade de intermediação de crédito e no exercício da atividade de mediação e consultoria em seguros.

B) No exercício da atividade referida em A), a reclamada atribui ao reclamante o cartão de pagamento denominado Cartão Universo e identificado com o n.º ...86.

C) No dia 22 de setembro de 2024, a lista de movimentos associados ao cartão registou um movimento a débito com o seguinte descritivo: Compra Na Internet End Of The Year For Iu Makkah no valor de 1.376,66 eur (mil trezentos e setenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos) resultantes da conversão de 5.600,00 (cinco mil e seiscentos) Rials Sauditas.

D) O movimento referido em C) foi feito à revelia do conhecimento e da autorização do reclamante, sem que o mesmo tivesse tido qualquer tipo de participação para a produção do mesmo.

E) O cartão referido em B) foi ativado no dia 20 de agosto de 2024.

F) Em momento subsequente ao da ativação do cartão, foi alterado o número de contacto associado à utilização do cartão.

G) A alteração do número de telemóvel associado à utilização do cartão foi feita à revelia do conhecimento e da autorização do reclamante, sem que o mesmo tivesse tido qualquer tipo de participação para a produção do mesmo.

H) O cartão virtual que está na origem do movimento referido em C) foi validado através da utilização de um código enviado por SMS para o número de telemóvel alterado, nos termos referidos em F).

I) A utilização do cartão implicava um sistema denominado de autenticação forte que implica o conhecimento de um código gerado pelo sistema da reclamada e enviado para o telemóvel associado ao cartão.

Não se consideram provados outros factos que sejam relevantes para a decisão da causa.

Concretamente, não se consideraram provados factos alusivos às circunstâncias (quem e como) em que foi alterado o número de telemóvel associado à utilização.


Fundamentação relativa aos factos provados

Os factos provados A) a C) resultaram do acordo das partes. Já os factos provados D) a I) resultaram do depoimento das duas testemunhas ouvidas. A testemunha do reclamante explicou as circunstâncias em que detetaram que o cartão apresentava deficiências na sua utilização e as diligências desenvolvidas para apurar a origem dessas deficiências. Explicou igualmente as circunstâncias em que o reclamante se apercebeu do movimento a débito que está subjacente à reclamação. A testemunha da reclamada explicou as características de funcionamento do cartão e a autenticação forte.

A testemunha BB é casada com o reclamante. Deu nota de que do primeiro dia em que se aperceberam que havia algo de errado com o cartão dado que não conseguiam entrar na aplicação, nem no email. O reclamante pediu ajuda, tentaram ver o que se passava, não conseguia entrar na aplicação ou no universo, dava sempre erro. No final do dia estava à espera de um contacto porque ninguém tinha atendido. Ligaram do telemóvel da testemunha e atenderam. Falaram com um assistente e disseram que estavam desde manhã à espera de um contacto. O senhor permitiu que passasse o telemóvel ao marido. Estiveram 55 minutos ao telefone com a Universo até ao momento em que o colaborador da Universo percebeu que estava a falar com o dono do cartão, que o número de telemóvel tinha sido alterado por alguém. O número através do qual foi feita a burla. Conseguiram que voltasse a repor o telemóvel verdadeiro. Quando a operação é feita online, é recebido um sms de validação. Ficaram a perceber que as validações eram feitas para um telemóvel que não era o indicado. Era habitual fazerem transações online com este sistema. Nunca perceberam como é que foi feita a alteração do número de contacto que estava associado à Universo. No contexto do contacto telefónico com o assistente da Universo conseguiram repor o número correto e original. Não lhes foi dito como é que foi feita a alteração do número de telemóvel. O marido teve problemas com a ativação do cartão. A resposta da Universo foi ambígua porque diziam que o cartão foi emitido em 8 de agosto e ativado em 20 de agosto. A Universo disse que não se verificaram tentativas de ativação durante este período. O marido diz que depois de ativar o cartão, a primeira tentativa de compra deu logo erro. A ativação do cartão é feita por contacto telefónico com os serviços da Universo. Não sabe se é nessa altura que é feita a indicação do número de telemóvel. Foram a ... a uma festa popular e numa das bancas foram para pagar a conta e deu erro. Acha que essa foi uma das primeiras tentativas de utilização física do cartão. Acabou por fazer o pagamento com outro cartão. Entretanto, foram ver o extrato com uma despesa de 24,50 eur que era precisamente a compra que tinha dado erro.

Ligaram para a Universo. Disseram que poderia ter havido algum problema e que fosse à associação pedir a devolução do dinheiro. Depois, a Universo repôs o valor. Disseram para esperar uns dias e tentar outra vez. Foi comprar pilhas apenas para testar o cartão na Worten. Deu erro. A senhora da Worten ligou para a Universo a explicar a situação. Foi dito que havia uma anomalia, mas que ira ser corrigida. Nessa altura ainda não tinham receio de qualquer burla, estavam só preocupados porque o cartão não funcionava. Passados uns momentos lá conseguiu fazer a compra das pilhas. A seguir foi ver o extrato e constatou a existência de uma transação de 1300 e tal eur que não percebeu o que era. Não sabe qual foi a compra efetuada. Não conhece o comerciante da compra, não fazem a mínima ideia do que terá sido, foi pesquisar na net e nem encontrou nenhuma referência, julga que terá a ver com a Arábia Saudita. Não tem ideia nenhuma do que poderia ter ocorrido. O telefone estava a funcionar sem qualquer problema. O telefone que fraudulentamente foi dado à Universo nem sabem qual é, só sabem os últimos algarismos. O compra fraudulenta terá sido feita através da criação de um cartão virtual. Não esteve na Worten com o marido, essa parte foi-lhe contada pelo marido. A refeição em ... foi no dia 1 de setembro. Nessa altura o cartão já estava ativo. A ativação foi feita por contacto telefónico. O valor da refeição de ... foi restituída pela Universo. O marido foi à Worten em 24 de setembro. Não conhece o contacto ...85. Quando aderiu ao cartão, o marido indicou um endereço de correio eletrónico. Julga que terá sido o dele ou o da testemunha, mas não tem a certeza. Estão casados há 39 anos, não têm filhos, são muito próximos. Normalmente é a mulher que trata mais das questões tecnológicas. Admite que tenha sido indicado o ..........@..... ou ..........@...... Não costuma aceder ao email do marido. Não tem acesso aos códigos do cartão do marido, mas sabe que estão lá em casa. Não há mais ninguém, nem familiar, que tenha acesso a essas credenciais.

A testemunha CC é funcionário da Universo desde 2015, como responsável pelo processo de gestão de transações e fraude (nestas funções desde 2023). Referiu que foi uma transação com cartão virtual, sem erros operacionais. O cartão físico ficou operacional a partir do dia 20 de agosto de 2024. No dia 22 de setembro houve uma transação de valor superior a 1000 eur. Nesse mesmo dia houve uma alteração da palavra passe nos canais digitais. Este pedido é feito online. Às 11h42. Com envio de um código para ..........@...... Para alterar a palavra-passe é enviado um código para o email. Para se entrar na conta recebe- se um código sms para o telemóvel. Nessa ocasião, foi registado um novo dispositivo de telemóvel. O código sms foi enviado para o ...96. Este contacto foi facultado pelo cliente aquando da criação do cartão universo. Com esse código é que foi registado um novo dispositivo. Às 11h54 foi alterado o contacto telemóvel. Foi recebido um email com um código. O novo número foi o ...85. Após a alteração desse contacto foi criado um cartão virtual, imediatamente após. E foi validado por código para o novo número. Houve apropriação ou partilha de dados pessoais ou do telemóvel ou do email. A universo aplicou a chamada autenticação forte. Isto consiste na utilização de dois elementos conjugados – um conhecido do cliente que é a biometria (que não era o que aqui vigorava), outro de posse (algo que o cliente recebe – um sms, um email). No caso deste cliente havia username e password, não havia biometria (face id ou impressão digital).


Fundamentação jurídica

Não obstante as dúvidas sobre as circunstâncias concretas em que ocorreu o movimento a débito na conta do reclamante, resultou da prova produzida que esse movimento não foi pretendido pelo reclamante. O reclamante não pretendeu criar o cartão de crédito virtual, nem pretendeu utilizar esse cartão para efetuar o pagamento descrito nos autos, não tendo esse pagamento qualquer correspondência com uma ação voluntária de cumprimento de obrigações ou de qualquer outra iniciativa que lhes pudesse estar subjacente. Por outro lado, também não resultou clara a circunstância concreta que esteve na origem do movimento.

Em matéria de utilização de meios de pagamento e fraude associada a essa utilização, a jurisprudência dos tribunais superiores não faz depender a decisão do apuramento concreto das circunstâncias que estiveram na origem do movimento não pretendido, contando que tenha havido um fenómeno fraudulento provocado por terceiros.

A título meramente exemplificativo, referem-se os seguintes acórdãos: Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de fevereiro de 2020, disponível em dgsi.pt com o n.º de processo 8592/17.9T8CBR.C1; Ac do Tribunal da Relação do Porto, de 4 de junho de 2019, disponível em dgsi.pt com o n.º de proc 1482/17.7T8PRD.P2; Ac do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de janeiro de 2019, disponível em dgsi.pt com o n.º de proc 5600/11.0TBLRA.C1; Ac do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de maio de 2018, disponível em dgsi.pt com o n.º de processo 8903/15.1T8LSB.L1-2; Ac do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de outubro de 2014, disponível em dgsi.pt com o n.º de processo 747/12.9TJPRT.P1; Ac do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de dezembro de 2013, disponível em dgsi.pt com o n.º de processo 6479/09.8TBBRG.G1.S1.

Das diversas decisões dos tribunais superiores, resulta, por exemplo, que

“A fraude informática no «homebanking» constitui uma forma de cibercrime, que consiste basicamente na intromissão de um terceiro, isto é de uma pessoa não autorizada, numa determinada rede informática, procedendo à movimentação do saldo bancário para contas de terceiros, como seja através das denominadas técnica de «phishing» ou «pharming». Constitui ónus da prova da entidade bancária provar a ocorrência de comportamento negligente, gravemente negligente ou doloso do utilizador. Age sem qualquer culpa ou negligência o utilizador de conta bancária, que utilizando os serviços de homebanking prestados pelo banco, é vítima de um ataque informático… A entidade bancária tem a obrigação de «assegurar que os dispositivos de segurança personalizados do instrumento de pagamento só sejam acessíveis ao utilizador de serviços de pagamento que tenha direito a utilizar o referido instrumento», pelo que os riscos pela utilização normal do sistema correm por sua conta, devendo por isso suportar o prejuízo resultante da operação não autorizada pelo cliente” (Ac do Tribunal da Relação do Porto, de 4 de junho de 2019)

“Pode-se afastar, sem qualquer hesitação, o dolo ou a intencionalidade no comportamento do Apelado e mesmo uma negligência consciente ou culpa grave. Também não incumpriu o Apelado os deveres que a lei ou o contrato lhe impunham, tendo ficado provado que, logo que teve conhecimento da fraude, comunicou-a ao Apelante. No caso, era necessário que o Apelado fosse uma pessoa muito experiente e muito conhecedora do meio de navegação em ambiente eletrónico para que pudesse desconfiar do isco que lhe foi lançado nas circunstâncias provadas.

Ora o banco Apelante quando acorda com os clientes o serviço de homebanking não lhes exige essas aptidões.” (Ac do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de outubro de 2014)

“Não se provando que o cliente agiu fraudulentamente, ou que não cumpriu intencionalmente ou com negligência grave a sua obrigação de utilizar o instrumento de pagamento de acordo com as condições que regem a sua emissão e utilização, designadamente as respeitantes as chaves de acesso ao serviço (…), recai sobre o banco a responsabilidade pela movimentação fraudulenta da conta bancária (...) Ainda que se tratasse de uma situação de fraude informática, através do denominado «pharming», não agiria com culpa o cliente que por via dessa fraude levada a efeito por terceiros, na convicção que estava na página online do banco, introduziu numa página falsa, clonada da página do Banco, as suas certificações, pessoais e intransmissíveis, que abusivamente vieram a ser utilizadas no acesso, por terceiros, à conta de que era titular.” (Ac do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de janeiro de 2019)

“Os riscos da falha do sistema informático utilizado, bem como dos ataques cibernautas ao mesmo, têm de correr por conta dos bancos” (Ac do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de dezembro de 2013)

“Trata-se de um sistema de prestação de serviços de pagamento ou transferência implementado pelo Banco, pelo que o risco de funcionamento deficiente ou inseguro do sistema de prestação de serviços de pagamento ou transferência localiza-se, portanto, na esfera do prestador, a quem incumbe a responsabilidade por operações não autorizadas pelo cliente nem devidas a causa imputável ao cliente (…) a utilização do instrumento de pagamento registada pelo prestador de serviços de pagamento não é necessariamente suficiente para provar que a operação de pagamento foi autorizada pelo ordenante e que este agiu de forma fraudulenta ou que não cumpriu, deliberadamente ou por negligência grave, uma ou mais das suas obrigações» (Ac do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de maio de 2018)

«Negando o utilizador ter dado autorização para uma operação de pagamento que foi executada pela instituição bancária, é sobre esta que impende o ónus de prova de que a operação de pagamento não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência e/ou que esse pagamento só foi possível devido à atuação fraudulenta ou ao incumprimento deliberado ou com negligência grave dos deveres / obrigações” (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de fevereiro de 2020)

Das decisões cujas conclusões foram parcialmente transcritas resulta em síntese que:

i. é sobre o banco que impende a prova das circunstâncias concretas em que decorreu a operação de pagamento, não sendo, para esse efeito, suficiente o registo da utilização do instrumento de pagamento pelo prestador de serviços de pagamento;

ii. em cenário de fraude informática, a jurisprudência dos tribunais superiores conforma-se com uma atitude de colaboração inconsciente do utilizador na concretização da operação fraudulenta – ainda que houvesse colaboração do utilizador no fornecimento de dados, este tê-lo-ia feito em contexto que não lhe permite perceber que o está a fazer perante terceiros com intuitos fraudulentos, sendo certo que esse contexto é deliberada e minuciosamente proporcionado pelo terceiro que age fraudulentamente;

iii. é à reclamada que incumbe a prova de que o próprio reclamante agiu fraudulentamente – cenário que foi completamente posto de parte à luz da prova produzida;

iv. por outro lado, a reclamada poderia ainda provar ter havido negligência grave – mas não logrou alcançar esse desiderato. O reclamante não facultou conscientemente dados pessoais, intransmissíveis ou secretos; pode acontecer (mas nem isso se apurou) que tenha sido induzido a facultar esses dados, na convicção profunda de que o interlocutor era o prestador legítimo dos serviços e de que o podia / devia fazer, iludido pela criação de uma aparência de seriedade na troca de informação com o seu (afinal, falso) interlocutor, crente de que estariam a falar com a entidade correta.

Ou seja, o caso diz respeito a uma situação de fraude ou burla associada à utilização de meios de pagamento, sendo certo que é a reclamada que responde por danos causados ao reclamante fruto da utilização desses meios. À luz do exposto, a reclamação deve ser julgada procedente.


Decisão

Nestes termos e com base nos fundamentos expostos, julga-se a reclamação totalmente procedente, por provada, e condena-se a reclamada a pagar ao reclamante 1.376,66 eur (mil trezentos e setenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), acrescidos de juros à taxa legal desde a data da notificação da decisão arbitral.”.

***

Não se conformando com a decisão arbitral supra referida, a demandada apresentou o competente pedido de anulação, formulando as seguintes conclusões:

A. A presente ação declarativa foi intentada pelo Reclamante contra a ora Recorrente, ali Reclamada, junto do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) – Polo de Viseu.

B. O presente pedido de anulação de sentença arbitral vem interposto da sentença que julgou totalmente procedente a presente ação declarativa.

C. A Recorrente intenta o presente pedido de anulação de sentença arbitral uma vez que a sentença, com o devido respeito, não consubstancia a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso “sub judice” das normas legais e dos princípios jurídicos adequados.

D. A Recorrente não se conforma com o enquadramento, interpretação e aplicação das normais legais que subjazem a sua condenação e, nesta senda, não se poderá conformar com a decisão proferida.

E. Do formulário de reclamação apresentado pelo Reclamante já resultava fortemente indiciado que a causa de pedir assentava em factos suscetíveis de enquadramento jurídico penal.

F. Resultando ainda do próprio pedido que o Reclamante pretendia ser ressarcido no valor de €1.376,66 por transação que lhe havia sido imputada e que por aquele, alegadamente, não havia sido efetuada.

G. Entendeu o Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) – Polo de Viseu, que o processo deveria prosseguir e ser tramitado, culminando com a realização da audiência arbitral no dia 25 de março de 2025.

H. No decurso da referida audiência arbitral veio-se a confirmar que o valor ascendente a €1.376,66 decorrente de transação realizada a 22 de setembro de 2024 com o cartão de pagamento denominado Cartão Universo e identificado com o n.º ...86 apenas se terá verificado por prática de crime.

I. Designadamente: apropriação ou partilha de dados pessoais pelo Reclamante ou através de atividade criminal levada a cabo por terceiros desconhecidos quer ao Reclamante quer à Reclamada, ora Recorrente.

J. Mais resultando, inclusivamente, da exposição do litígio constante da sentença proferida “(…) o reclamante recorreu à arbitragem para dirimir o conflito atinente à utilização de um cartão de pagamento. O reclamante alega que lhe foi atribuído pela reclamada um cartão de pagamento, o qual foi utilizado fraudulentamente por desconhecidos, tendo sido prejudicado na quantia de 1376,66 eur. (…)”.

K. Face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, procedeu a Reclamada, ora Recorrente, à apresentação de requerimento oral, através do qual invocou a exceção dilatória de incompetência material do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) – Polo de Viseu.

L. Todavia, conforme resulta da sentença proferida, decidiu o Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) – Polo de Viseu julgar improcedente a exceção invocada.

M. A ora Recorrente não poderia discordar mais da decisão proferida pelo Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) – Polo de Viseu (!), razão pela qual intenta o presente pedido de anulação de sentença arbitral.

N. Nos termos do artigo 4.º/4 do Regulamento do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC), de sua epígrafe Competência material, o Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal.

O. Sendo esta uma questão unânime tanto em sede jurisprudencial como doutrinal.

P. Resulta do artigo 46.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro (Lei da Arbitragem Voluntária) que a sentença arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se a sentença contém decisões que ultrapassam o âmbito desta, e/ou se o tribunal arbitral conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento e/ou o tribunal verificar que o objeto do litígio não é suscetível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português.

Q. Dúvidas não poderão subsistir de que o Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) – Polo de Viseu não apresentava (nem apresenta) competência material para dirimir o litígio em pleito.

R. Uma vez que, resulta fortemente indiciado nos autos que os factos que integram a causa de pedir apresentam enquadramento jurídico-penal: carecendo, assim, o Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) – Polo de Viseu de legitimidade para apreciar e proferir qualquer decisão válida à luz do direito.

S. Resulta dos autos factualidade suscetível de enquadramento penal: mais concretamente, de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º do Código Penal, sem prejuízo dos demais ilícitos criminais previstos e punidos nos termos da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (lei do Cibercrime) e enquadráveis ao caso em apreço.

T. Mal andou o Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) – Polo de Viseu ao julgar improcedente a exceção dilatória invocada pela Recorrente e ao proferir, a final, decisão de mérito.

U. A incompetência material constitui uma exceção dilatória, a qual terá, neste momento, de conduzir à anulação da sentença proferida, com consequente absolvição da Recorrente da instância, o que, expressamente, se requer.”.


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Questão a decidir: competência (material) do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (Pólo de Viseu) para julgar o litígio supra referenciado.


***

II – FUNDAMENTOS.    

2.1. Fundamentação de facto.

Com interesse para a apreciação da presente acção, importar considerar a tramitação processual que vem descrita no relatório antecedente.


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2.2. Enquadramento jurídico.

Sustenta a demandada, com base no Regulamento do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) (art. 4º, nº4) e na Lei da Arbitragem Voluntária, que o referido Centro carece de competência material para apreciar o litígio a que os autos se reportam, o que implica, de acordo com o seu entendimento, a anulação da sentença arbitral que está na génese da presente acção.

Neste âmbito, importar considerar, antes de mais, o quadro normativo que resulta da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, diploma, como é sabido, que se ocupa da arbitragem voluntária.

Sob a epígrafe “Convenção de arbitragem” o art. 1º da mencionada Lei estabelece o seguinte:

1 - Desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros.

2 - É também válida uma convenção de arbitragem relativa a litígios que não envolvam interesses de natureza patrimonial, desde que as partes possam celebrar transacção sobre o direito controvertido.

3 - A convenção de arbitragem pode ter por objecto um litígio actual, ainda que afecto a um tribunal do Estado (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória).

4 - As partes podem acordar em submeter a arbitragem, para além das questões de natureza contenciosa em sentido estrito, quaisquer outras que requeiram a intervenção de um decisor imparcial, designadamente as relacionadas com a necessidade de precisar, completar e adaptar contratos de prestações duradouras a novas circunstâncias.

5 - O Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, na medida em que para tanto estejam autorizados por lei ou se tais convenções tiverem por objecto litígios de direito privado.”,

Estando em causa a anulação da sentença arbitral, é necessário atentar nos critérios que se encontram previstos no art. 46º, nº3, da mesma Lei, o qual apresenta o seguinte teor:

A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:

a) A parte que faz o pedido demonstrar que:

i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afectada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou

ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou

iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou

iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou

v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou

vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.os 1 e 3 do artigo 42.º; ou

vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º; ou

b) O tribunal verificar que:

i) O objecto do litígio não é susceptível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português;

ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.”.        

Como é sabido, a Lei n.º 63/2011 não estabelece as regras que definem a competência material das entidades que julgam litígios em sede arbitral, fixando, apenas, um conjunto de princípios genéricos que devem ser observados neste domínio, em particular os que resultam do art. 1º do diploma legal em apreço.

Por esse motivo, deve atender-se ao regime que se mostra inserido no Regulamento do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC)  [1], o qual corresponde ao Regulamento Harmonizado de Arbitragem [2] referenciado no art. 4º, nº3, da Lei nº144/2015, de 8 de Setembro [3] [4].

O art. 4º do Regulamento, sob a epígrafe “Competência material”, prescreve o seguinte:  

1 – O Centro promove a resolução de conflitos de consumo, conflitos decorrentes do Projeto “Casa Pronta” e de outros para os quais venha a ser autorizado

2 – Consideram-se conflitos de consumo os que decorrem da aquisição de bens, da prestação de serviços ou da transmissão de quaisquer direitos destinados a uso não profissional e fornecidos por pessoa singular ou coletiva, que exerça com caráter profissional uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios.

3 – Consideram-se incluídos no âmbito do número anterior os bens, serviços prestados e transmitidos pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidas maioritariamente pelo Estado, pelas Regiões Autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos essenciais.

4 – O Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal ou que estejam excluídos do âmbito de aplicação da Lei RAL.

5 – O Centro pode recusar litígios em que se verifique o disposto nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 11.º da lei RAL, fixando-se em dois anos o prazo referido na alínea e) do mesmo preceito.”,

A problemática que a demandada suscita prende-se com a exclusão prevista no art. 4º, nº4, do Regulamento, uma vez que essa norma faz referência a litígios em que estejam indiciadas infracções de natureza criminal, o que seria o caso dos autos.

Não se afigura, salvo melhor entendimento, que no caso vertente o Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo não tenha competência para dirimir o litígio que foi submetido à sua apreciação, uma vez que, conforme resulta do acervo fáctico que integra a sentença impugnada, o ilícito em apreço foi praticado por terceiros.

Com efeito, as partes que intervêm no processo arbitral não são autores ou agentes do crime indiciado, estando, por isso, unicamente em causa um conflito de consumo, na acepção prevista no art.4º,nº2, do Regulamento.

A propósito desta matéria, importa referir a seguinte jurisprudência, que se pronunciou no sentido da incompetência material dos Tribunais Arbitrais em situações em que a infracção criminal indiciada era imputada a um dos intervenientes no processo arbitral:

- Acórdão da Relação de Guimarães de 18/5/2023 (Aresto que se encontra disponível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/4cfd65968ceb3aef802589c6002e90e6?OpenDocument): “O Tribunal Arbitral não é materialmente competente para conhecer da ação de simples apreciação negativa de inexistência de consumo irregular de energia, cuja cobrança, a fornecedora pretende obter, estando pendente processo-crime em que é imputada ao cliente a prática daqueles factos.   “;

- Acórdão, igualmente da Relação de Guimarães, proferido em 13/7/2021 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/d0bd7c85bdc6bc1c802587490030e1be?OpenDocument): “Estando pendente processo-crime pelos factos que são imputados ao agente, o tribunal arbitral não pode considerar-se materialmente competente para conhecer da pretensão por aquele deduzida sob a forma de uma ação de apreciação negativa, alicerçada na alegada não prática daqueles factos.”.  

Atentas as razões indicadas, improcede o pedido de anulação, devendo decidir-se em conformidade, com os efeitos daí resultantes.


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III – DECISÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar a acção improcedente e, em consequência, manter a sentença arbitral impugnada, nos seus precisos termos.

Custas pela autora (demandada no processo arbitral).

Coimbra, 30 de Setembro de 2025


(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

(relator)

Hugo Meireles

(1º adjunto)

Cristina Neves

(2ª adjunta)



[1] Regulamento que se encontra disponível em https://www.cniacc.pt/pt/regulamentos.
[2] O Regulamento Harmonizado de Arbitragem encontra-se disponível em https://www.consumidor.gov.pt/upload/processos/i006707.pdf.
[3] A Lei nº144/2015, de 8 de Setembro, transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, que altera o Regulamento (CE) n.º 2006/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de outubro de 2004, e a Diretiva 2009/22/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, estabelecendo os princípios e as regras a que deve obedecer o funcionamento das entidades de resolução alternativa de litígios de consumo e o enquadramento jurídico das entidades de resolução extrajudicial de litígios de consumo em Portugal que funcionam em rede.
No art. 4º, nº3, desta lei:
[4] O art. 4º, nº3, da Lei nº144/2015, dispõe que “As entidades agregadas na rede de arbitragem de consumo devem utilizar o sistema de informação comum e adotar procedimentos harmonizados nas atividades de informação, mediação, conciliação e arbitragem de litígios de consumo mencionadas no n.º 1, incluindo o regulamento harmonizado elaborado pela Direção-Geral do Consumidor e pela Direção-Geral da Política de Justiça.”.