Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
297/24.0T8LMG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
PRESSUPOSTOS
FUNDADO RECEIO DE LESÃO
GRAVIDADE DO DANO
USO ABUSIVO DA PROVIDÊNCIA
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 362.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Na providência cautelar comum, o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação implica que dano tenha uma gravidade assinalável de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil – a violação receada não será qualquer uma, mas aquela que modificando o estado actual, possa frustrar ou dificultar muito a efectividade do direito de uma parte.

II – O periculum in mora refere-se ao perigo no retardamento na tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido. Caberá, assim, ao requerente provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis.

III – Sucede que, antecipando uma acção judicial, é natural que o procedimento cautelar se suporte na normalidade da maior demora da acção, mas esta realidade não pode apreciar-se abstractamente quando o procedimento vem a ser instaurado na pendência da acção, e mais, quando esta já decorre, e decorre, em termos de duração, sem evidenciar qualquer atraso por parte do requerido.

IV – Os tribunais devem estar atentos ao eventual uso abusivo de instrumentos provisórios para resolução de litígios, na medida em que seja de intuir que aquilo que o requerente pretende é beneficiar de uma medida que, ainda que provisória, sirva para alavancar exigências irrazoáveis contra a parte contrária, provocando um desequilíbrio que prejudique, a final, a justa composição da lide.

V – Até porque, a providência não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal, da qual depende.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

AA intentou o presente procedimento cautelar comum - por apenso aos autos de divisão de coisa comum - contra BB, peticionando que se julgue procedente a presente providência cautelar e, em consequência;

«A) Seja o Requerido condenado a assinar a escritura de compra e venda dos prédios supra identificados;

B) Seja a divisão da quota do Requerido e Requerente nos prédios supra identificados realizada;

C) Seja decretado a inversão do contencioso, nos termos do art. 369.º do CPC;»

Por despacho datado de 02/07/2025 - ref.ª 98346906 -, e pelos fundamentos aí expendidos, foi a requerente convidada a pronunciar-se sobre a verificação dos requisitos de que depende o decretamento da requerida providência cautelar, mormente quanto à concretização de factos consubstanciadores do periculum in mora, veio a requerente alegar que os factos relativos ao periculum in mora, como pressuposta da tutela cautelar se encontram nos artigos 24.º e 25.º do seu requerimento inicial, e também, no seu entender, nos artigos 12.º a 17.º do mesmo requerimento.

Mais acrescentando que «Os danos que a Requerente sofrerá enquanto aguarda pela prolação de decisão na acção já intentada, estão bem explícitos nos artigos 11º e 12º, do seu requerimento inicial, porquanto as despesas inerentes ao referido imóvel são todas da responsabilidade da Requerente, pelo que tal facto acresce em elevado montante às despesas correntes da Requerente.»


*

No Juízo Local Cível de Lamego foi proferida a seguinte decisão:

Assim, face ao exposto e ao abrigo das disposições legais citadas indefere-se liminarmente a presente providência cautelar.

Custas a cargo da requerente (sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia) – artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Valor da causa: € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), cf. artigos 299.º, n.º 1, 304.º, n.º 3, al. e), 306.º, n.º 1, todos do Código Processo Civil.

Registe e notifique.

A Juíza de Direito

CC

(assinado electronicamente na data certificada pelo sistema)

[Texto elaborado ao abrigo da escrita anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990]


*

AA, Requerente, nos autos à margem referenciados, não se conformando com tal decisão dela interpôs recurso formulando as seguintes conclusões:

(…).


*

BB, requerido nos autos à margem referenciado, notificado das alegações de recurso, vem dizer que a decisão (sentença) proferida nos presentes autos, é justa, corresponde inteiramente à factualidade apurada e por isso inatacável.

*

2. Do objecto do processo

O presente procedimento cautelar é o meio próprio para a requerente exercer os seus direitos? A lesão alegada pela requerente é grave e de difícil reparação?

A 1.ª instância entendeu indeferir liminarmente o requerido, escrevendo:

No caso dos autos, a requerente funda a sua pretensão no facto de, sendo requerente e requerido comproprietários de dois prédios, não estando de acordo quanto às suas quotas partes na divisão dos prédios em causa, o requerido se ter recusado a assinar uma escritura pública para alienação dos imóveis.

Igualmente alega que celebrou um contrato promessa para venda dos imóveis e pretende que, a título cautelar, o Tribunal condene o requerido a assinar a escritura de compra e venda e proceda à divisão da quota do requerido e requerente na proporção que alega existir.

Por fim alega que é a requerente que desde sempre suporta todas as despesas inerentes ao imóvel sem qualquer contrapartida e sem qualquer uso, sendo uma situação «desgastante para a Requerente, danosa para a saúde mental da mesma, uma vez que vive num stress constante, bem como para a economia mensal» e que viola o seu direito constitucional à propriedade privada.

(…)

Crê-se, assim pelas razões que supra se deixaram expostas e sob pena de se banalizar por completo o recurso à figura excepcional da providencia cautelar, não estar alegada a existência de periculum in mora em termos que justifiquem o decretamento da providência.

Está, assim, a presente providência votada ao insucesso, não podendo proceder, impondo-se, consequentemente o seu indeferimento liminar (artigo 590.º, n.º al. a) do Código de Processo Civil).

Ora, salvo o devido e merecido respeito pela alegação da Apelante/Requerente, entendemos que a decisão da 1.ª instância é de manter.

Senão vejamos.

O artigo 362.º, do Código de Processo Civil estipula que:

1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.

2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.

3. Não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte.

4. Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado.

Por conseguinte, o presente procedimento cautelar comum há-de assentar em três requisitos:

i) a existência de um litígio;

ii) o justo receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação; e,

iii) não existir providência cautelar específica para o acautelar (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/2/95, in Colectânea de Jurisprudência, ano 1995, tomo I, pág. 280).

O que brota dos autos:

1.Corre termos acção de divisão de coisa comum n.º 297.24.0T8LMG, na qual é Requerente a ora Apelante e Requerido o ora Apelado, no qual se pretende pôr termo à indivisão do prédio urbano, sem andares, nem divisões susceptíveis de utilização independente, sito na União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., Distrito ..., composto por uma casa de andar com 2 divisões e 7 vãos, e loja com 1 divisão e 2 vãos, com 3 pisos, destinada a habitação, descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...57, e inscrita na respectiva matriz sob o artigo n.º ...98, e de um prédio rústico composto por 3 parcelas de cultura, com área de 499m2, União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., Distrito ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...57, e inscrita na respectiva matriz sob o artigo n.º ...86, conforme certidão da Conservatória do Registo Predial ... e caderneta predial, ambos sitos no Lugar ..., ... ....

2.A Apelante/Requerente – neste procedimento cautelar -  funda a sua pretensão no facto de, sendo requerente e requerido comproprietários de dois prédios, não estando de acordo quanto às suas quotas partes na divisão dos prédios em causa, o requerido se ter recusado a assinar uma escritura pública para alienação dos imóveis.

3.Alega, ainda, que celebrou um contrato promessa para venda dos imóveis e pretende que, a título cautelar, o Tribunal condene o requerido a assinar a escritura de compra e venda e proceda à divisão da quota do requerido e requerente na proporção que alega existir.

4.Por fim alega que é a requerente que desde sempre suporta todas as despesas inerentes ao imóvel sem qualquer contrapartida e sem qualquer uso, sendo uma situação desgastante para a Requerente, danosa para a saúde mental da mesma, uma vez que vive num stress constante, bem como para a economia mensal e que viola o seu direito constitucional à propriedade privada.

5.A julgadora da 1.ª instância, por despacho de 2.7.2025 - Referência: 98346906 –, determina:

Para além da requerente, neste apenso, se limitar a repetir o já alegado em sede de pedido de divisão de coisa comum, quanto ao direito que se arroga, voltando a persistir na alegação da existência de uma compropriedade de ambos os requerentes sobre os prédios em causa, o que já foi verificado inexistir como alegado nos autos principais;

Sucede que, embora a requerente enuncie em 24.º e 25.º do seu requerimento inicial os citados requisitos, não alega quaisquer factos concretos susceptíveis de integrar os mesmos.

Mormente factos que justifiquem o periculum in mora, ou seja, não são alegados factos dos quais resulte que a demora na prolação de uma decisão final poderá colocar em risco o direito que a requerente alega e que é aquele que pretende acautelar.

Dos factos alegados pela requerente não se pode concluir que se tiver que aguardar pela prolação de decisão em acção já intentada para o efeito, sofrerá danos superiores aos que alega já ter sofrido desde que se iniciou o litígio entre ambos, e de que forma tais danos são irreparáveis.

Ante o exposto, afigura-se ao Tribunal que o presente procedimento cautelar deve ser indeferido, pelo que se concede à requerente o prazo de 5 (cinco) dias para o exercício do contraditório.

6.Na resposta, esclarece a Requerente:

A Requerente não se limita a repetir o já alegado em sede de pedido de divisão de coisa comum, a Requerente, identifica cabalmente os requisitos do procedimento cautelar, tanto que requisito do periculum in mora, como pressuposto da tutela cautelar comum, está, nos artigos 24º e 25º, do seu requerimento inicial.

No douto despacho refere V. Exa., que, “…não alega quaisquer factos concretos susceptiveis de integrar os mesmos”.

Ora, os factos susceptiveis de integrar os requisitos do procedimento cautelar, bem como o periculum in mora, estão enunciados dos artigos 12º a 17º, do seu requerimento inicial.

Os factos que justificam o periculum in mora sãoos factos que tornam verosímil a violação ou a ameaça de violação do direito, ora tal verifica-se, quando o direito da Requerente em dispor da sua propriedade está colocado em causa, é quanto basta para que se imponha a realização de diligências probatórias sobre os factos controvertidos.

Os danos que a Requerente sofrerá enquanto aguarda pela prolação de decisão na acção já intentada, estão bem explícitos nos artigos 11º e 12º, do seu requerimento inicial, porquanto as despesas inerentes ao referido imóvel são todas da responsabilidade da Requerente, pelo que tal facto acresce em elevado montante às despesas correntes da Requerente.

Pelo que se reitera os pedidos já feitos no requerimento inicial, com a alteração da alínea B), porquanto se requer a V. Exa, que enquanto não houver prolação de decisão no processo de Inventário que corre termos no Tribunal já identificado no mesmo, o valor da venda fique à guarda deste douto Tribunal.

Ora, na providência cautelar comum, o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação implica que dano tenha uma gravidade assinalável de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil - a violação receada não será qualquer uma, mas aquela que modificando o estado actual, possa frustrar ou dificultar muito a efectividade do direito de uma parte. Para justificar o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação não basta um acto qualquer, mas sim aquele que é capaz de exercer uma dificuldade notável, importante para o exercício do direito/Manuel Rodrigues, in Processo Preventivo e Conservatório, pág. 67. Relativamente aos interesses meramente pecuniários, a reparabilidade da lesão afere-se pela suficiência ou insuficiência do património do requerido ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial.

O periculum in mora refere-se ao perigo no retardamento na tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido. Caberá, assim, ao requerente provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis.

Sucede que, antecipando uma acção judicial, é natural que o procedimento cautelar se suporte na normalidade da maior demora da acção, mas esta realidade não pode apreciar-se abstractamente quando o procedimento vem a ser instaurado na pendência da acção, e mais, quando esta já decorre, e decorre, em termos de duração, sem evidenciar qualquer atraso por parte do requerido.

Como assinala a 1.ª instância:

(…)

Neste particular saliente-se que o processo principal a que a este procedimento está apenso, cujo pedido é a divisão da coisa comum, se encontra desde Outubro de 2024 a aguardar a tomada de posição da autora, aqui requerente, sobre a correcta definição do objecto do pedido tendo, em conta que esta alega a compropriedade sobre os dois bens imóveis, quando 1/2 dos mesmos foi adquirida na constância do casamento dos requeridos e existe um processo de inventário subsequente ao divórcio a correr os seus termos normais.

Pelo que, qualquer demora no processamento dos autos onde se pretende a definição das quotas dos requerentes e a sua respectiva divisão, só à requerente é imputável, encontrando-se inclusive, os mesmos autos a aguardar o decurso do prazo estatuído no artigo 281.º, n.º 1 do Código Processo Civil.

Assim – para lá da repetição de pretensões, na acção e no procedimento – não pode, em concreto, afirmar-se que existe periculum in mora, decorrente da demora da acção, interposta antes do procedimento cautelar.

A este propósito, devem os tribunais estar atentos ao eventual uso abusivo de instrumentos provisórios para resolução de litígios, na medida em que seja de intuir que aquilo que o requerente pretende é beneficiar de uma medida que, ainda que provisória, sirva para alavancar exigências irrazoáveis contra a parte contrário, provocando um desequilíbrio que prejudique, a final, a justa composição da lide – neste preciso sentido, por ex. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil - 5. Procedimento Cautelar Comum, pág. 108.

Até porque, a providência não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal, da qual depende.

Por isso, como escreve a 1.ª instância-decisão que acompanhamos:

(…)

Qual será a lesão grave e de difícil reparação que sucederá, caso o requerido não outorgue uma escritura de compra e venda dos imóveis em causa nos autos?

Desde já, e por antecipação, se diga que nenhuma lesão grave e de difícil reparação se vislumbra.

Como acima referido, alega a requerente que o requerido já anteriormente se recusou a outorgar uma escritura de compra e venda dos imóveis, mas quanta ao contrato promessa que junta aos autos nada alega quanto à interpelação/recusa do requerido em outorgar a referida escritura.

Igualmente alega que, sozinha, suporta todas as despesas dos imóveis sem qualquer fruição do mesmo o que lhe causa desgaste.

Não se despreza a inconveniência que é o pagamento de despesas de bens em compropriedade não usufruídos por quem efectua a despesa, todavia, ainda que tais inconvenientes fossem concretamente alegados – que não foram, v.g. qual a razão de não estar a requerente a usufruir dos bens? – os mesmos não revestiriam a especial gravidade da lesão que o legislador exige para o decretamento da tutela cautelar.

Na verdade, não se mostram concretamente alegados factos que demonstrem uma especial danosidade para a requerente resultante das não concretizadas despesas que paga ou na recusa do requerente em outorgar a escritura de compra e venda na sequência de um contrato promessa só pela requerente assinado. Bem como no desacordo do requerido quanto à proporção de cada um na propriedade dos imóveis.

(…)

Acrescente-se que quer o pagamento de despesas de coisa comum, quer a privação do uso de algo, podem ser susceptíveis de causar dano à requerente. Mas é um dano que, alegando a devida causa de pedir, potencialmente poderá ser compensado pela via indemnizatória, nos termos dos artigos 564.º e 566.º do Código Civil.

Improcede, pois, a Apelação.

Sumário:

(…).

3.Decisão

Na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Local Cível de Lamego.

Custas a cargo da Apelante.

Coimbra, 30 de Setembro de 2025

(José Avelino Gonçalves - relator)

(Catarina Gonçalves – 1.ª adjunta)

(Maria João Areias – 2.ª adjunta)