Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
476/22.5T8LSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
REGRAS DE HIGIENE
INEXIGIBILIDADE DA MANUTENÇÃO DA RELAÇÃO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 07/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – LOUSÃ – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 432.º, N.º 1, 1022.º, 1023.º, 1047.º, 1079.º 1081.º, 1083, N.º 1 E 2, 1084.º, N.º 1, E 1087.º DO CÓDIGO CIVIL.
ARTIGO 14º, N.º 1, DA LEI N.º 6/2006, DE 27 DE FEVEREIRO
Sumário: 1. Considerando o disposto no n.º 2 do art.º 1083º do CC, para a pretensão resolutiva do arrendamento proceder, terá o autor de demonstrar, não apenas que ocorreu determinada situação de incumprimento contratual culposo, mas ainda de alegar circunstanciadamente que tal situação de incumprimento, imputável à parte que desrespeitou o contrato, deve determinar - num juízo objetivo, proporcional e razoável - a inexigibilidade de manutenção da relação contratual.

2. Provando-se, além do mais, que o Réu/arrendatário não cumpre, reiteradamente, com as regras de higiene do imóvel (acumulando lixo à entrada do apartamento e existindo dejetos de animais no seu interior e falta e/ou recusa de limpeza), o que origina cheiro fétido, intenso e constante para o restante edifício e incomoda e afeta os vizinhos (maioritariamente, pessoas idosas), tal situação corporiza grave incumprimento do arrendatário das regras de higiene e de boa vizinhança, o que torna inexigível a manutenção do arrendamento pelo senhorio, atenta a gravidade, constância e consequências de tal violação.

3. A resolução é aqui efeito da própria sentença de despejo, como sentença constitutiva.

4. A Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:         *

Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Carlos Moreira
              Moreira do Carmo

         

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        

            I. Santa Casa da Misericórdia da ... e Hospital de ..., Instituição Particular de Solidariedade Social, representada pelo seu Provedor, intentou a presente ação declarativa comum contra AA, pedindo que seja condenado «1) [a] Desocupar o locado por ser inexigível ao A., ora senhorio, a manutenção do contrato de arrendamento face à violação das regras de higiene e utilização do prédio contrária à lei e aos bons costumes, acrescendo o facto do arrendatário, ora R., violar os deveres a que está adstrito, nomeadamente com o dever de facultar a vistoria do imóvel arrendado, à luz dos normativos previstos nos artigos 1038º b) e d), n.º 1 e n.º 2 alíneas a) e b) do artigo 1083º, todos do Código Civil; 2) (...) ao pagamento do valor de € 173,06 (...), a título de sanção pecuniária compulsória por cada mês de atraso na entrega do locado; 3) [a] pagar o valor despendido na Notificação Judicial Avulsa, no valor de € 51 (...).»

           Alegou, em síntese: é dona do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...22 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16, e do apartamento 14 inserido nesse prédio, que deu de arrendamento ao Réu, para fins habitacionais pelo prazo de 5 anos, com início a 01.4.2016, mediante o pagamento da renda mensal inicial de € 173,06; o Réu não cumpre com as regras de higiene do prédio - v. g., face à presença de um cheiro fétido intenso e constante proveniente do respetivo apartamento, que incomoda os vizinhos  - nem permite ao locador o exame/vistoria do imóvel; efetuou notificação judicial avulsa comunicando ao Réu a resolução do mencionado contrato de arrendamento, no dia 23.5.2022, mas este permanece no imóvel.

           O Réu contestou, impugnando a qualificação do contrato celebrado com a A. (arrendamento social, contrato de hospedagem ou contrato misto de arrendamento e prestação de serviços); negou a alegada falta de higiene e suas consequências; rematou afirmando que a dita notificação judicial avulsa contem factos falsos, a inadmissibilidade legal da pretendida resolução contratual e a falta de outra residência para onde possa ir morar. Concluiu pela improcedência da ação.

            Foi proferido despacho saneador que firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

           Realizado o julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 19.12.2024, julgou a ação parcialmente procedente, declarando resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre A. e Réu, com a consequente condenação do Réu no despejo do local arrendado, livre e devoluto de pessoas e bens, absolvendo-o do demais peticionado.

            Dizendo-se inconformado, o Réu apelou formulando as seguintes conclusões:[1]

            1ª - Dos factos provados, impugna-se os indicados em 6, 8, 9, 10, 12 e 13 que devem ser declarados não provados.

            2ª - Atento o objeto do litigio fixado na presente ação a questão essencial que se impõe responder é saber se ocorreu a resolução do contrato de arrendamento em questão nos autos por efeito da notificação judicial avulsa realizada em 23.5.2022 (doc. 5 junto com a PI), e por consequência da sua resposta condenar na desocupação ou não.

           3ª - O facto provado em 6, que se impugna enquanto facto provado da resolução do contrato de arrendamento, não como facto da comunicação, consta o seguinte “Em 23.5.2022, foi comunicado ao R. pela A., mediante notificação judicial avulsa por contato pessoal do funcionário judicial, a resolução do referido contrato de arrendamento, por violação das regras de higiene e utilização do prédio contrária à lei e aos bons costumes, e pelo facto do Réu violar o dever de facultar à A., a vistoria do imóvel arrendado, exigindo-lhe a desocupação do locado no prazo de 30 dias.”

           4ª - Face aos fundamentos invocados para a resolução do contrato de arrendamento comunicados pela notificação judicial avulsa que a A. enviou ao Réu, decorre da lei que a resolução do contrato de arrendamento não pode operar por via extrajudicial.

            5ª - A resolução comunicada pela notificação judicial avulsa pela Recorrida ao Recorrente é inoperante, e portanto, totalmente ineficaz, como resulta do disposto no Artigo 1083º n.º 1 e 2, a) e b) e Art.º 1084º n.º 1 do Código Civil (CC).

           6ª - Ao declarar resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre Autora e Réu e em consequência condenar o Recorrente no despejo do local arrendado, livre e devoluto de pessoas e bens, o tribunal claramente condena além do pedido.

           7ª - A Recorrida não peticiona a declaração da resolução do contrato de arrendamento por violação grave de deveres do arrendatário!

            8ª - A sentença deve inserir-se no âmbito do pedido e da causa de pedir, não podendo o juiz condenar além do pedido ou em objeto diverso do pedido, sob pena de violação do principio do dispositivo previsto do art.º 3º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), sendo causa de nulidade da sentença nos termos do art.º 615º, n.º 1, e) do CPC, conjuntamente com o art.º 609 do CPC.

            9ª - Face ao pedido da ação, a identificação do objeto do litigio, os temas da prova, o encadear lógico e dedutivo exposto na sentença, a pronúncia do tribunal deve cingir-se a apreciar a resolução do contrato de arrendamento realizada pela notificação judicial avulsa alegada pela Recorrida, e os seus efeitos.

           10ª - Ainda que assim se não entenda, atentemos, face ao alegado e provado, se existiria justa causa para a resolução do contrato de arrendamento.

           11ª - O recorrido considera não provado, e como tal deve ser declarado, o facto constante da sentença em 8 dos factos provados, que se transcreve, “O Réu não permitiu ao locador, o exame do imóvel locado.” - nenhuma prova consta dos autos que confirme que o R. não permitiu ao locador o exame do imóvel locado.

            12ª - Na petição inicial, a Recorrida alega que o Recorrente não permite a vistoria do imóvel, contudo a única prova que apresenta sobre tal facto, é o doc. 4 junto com a PI, o qual constitui uma suposta missiva, sem remetente, sem indicação de dia para a vistoria, sem nenhuma assinatura do suposto remente, nem prova da sua receção. Este documento não tem qualquer valor de prova de comunicação.

            13ª - Em 18º da PI, a Recorrida alega “não obstante as várias e repetidas solicitações do requerente para que o requerido permitisse a vistoria do imóvel, bem como a manutenção da higiene do locado”, contudo, a Recorrida não alega em concreto os atos / factos, circunstâncias de modo, espaço e tempo, em que se consubstanciaram as várias e repetidas solicitações, sendo que como prova apenas junta o doc. 4.

            14ª - O mesmo se diga com o que a Recorrida alega em 32º da PI, “Tendo o A. insistido diversas vezes com o R. que, reiteradamente, recusa colaborar”, sem mínima concretização de ato / facto, e especificidade de circunstância de tempo, modo, lugar.

           15ª - Nenhuma prova a Recorrida apresentou nem se produziu de que, em determinada data, tenha pedido expressamente a entrada no locado para verificação do estado mesmo. Tal prova, objetivamente fazia-se com a prova de uma carta registada com aviso de receção a comunicar dia e hora para tal pretensão, inexistente nos autos.

           16ª - Nem sequer nenhuma das testemunhas indicadas pela A. confirmou que tenha havido comunicação expressa prévia, para a vistoria do imóvel.

            17ª - Do contrato de arrendamento celebrado entre a Recorrida e o Recorrente consta a possibilidade de o arrendatário beneficiar de determinados serviços da parte da senhoria, como serviços de limpeza doméstica, lavagem de roupa e outros serviços de assistência pessoal, contudo, sem que tal resulte uma obrigação para o arrendatário.

           18ª - As testemunhas da Recorrida que referem que bateram à porta do Recorrido e este não abriu, referiram que o fizeram enquanto cumpriam funções de trabalho para a Recorrida, enquanto suas funcionárias, para saber do Recorrente, lhe perguntar como estava, se precisava de alguma coisa, não que tivessem batido à porta com o sentido específico de fazer o exame do estado do locado em representação da Recorrida e nos termos da lei. Sendo que quando bateram à porta e o Recorrente não abriu, também não afirmaram que o mesmo estivesse dentro da habitação e não quis abrir a porta.

           19ª - A testemunha BB, funcionária da Recorrida referiu que é muito difícil entrar em contacto com o mesmo, porque não abre a porta a ninguém, ou a testemunha CC referiu que tocou imensas vezes na campainha do apartamento do Recorrente e que este nunca atendia.

            20ª - Estas testemunhas referiram-se a ocorrências no âmbito do exercício das suas funções, prestação de serviços enquanto trabalhadoras da Recorrida, que tinham a ver com funções de limpeza nas partes comuns do prédio ou na possibilidade de limpeza no interior do locado por quem solicitasse tal apoio (o que não é o caso do Recorrente), ou prestação de assistência pessoal a quem solicitasse.

           21ª - É de referir que o Recorrente tem 78 anos sofre de doenças crónicas, várias comorbidades - como referiu a testemunha DD, psicóloga - que lhe provoca dores muito severas, como referiu o Recorrente no seu depoimento de parte, o que faz com que passe muito tempo deitado e tenha dificuldade em se levantar; e a prova junta aos autos pelo Centro Hospitalar de Coimbra, com respeito a relatórios e informações médicas a identificar as doenças de que sofre com acompanhamento médico e tratamento terapêutico.

           22ª - Também não é prova de que o Recorrente impede a entrada no locado, o auto da inspeção ao local requerida pelo próprio Recorrente, não sendo verdade que o Recorrente tenha inviabilizado a inspeção ao interior do apartamento locado.

            23ª - O impedimento do exame do bem locado, em violação do dever do arrendatário previsto no art.º 1083º, alínea b) do CC, pode constituir fundamento de resolução do contrato de arrendamento, nos termos da cláusula geral contida no n.º 2 do art.º 1083º do CC, desde que constitua incumprimento, que que pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

            24ª - Não havendo prova de que a Recorrida tenha solicitado a visita ao locado, inexiste qualquer incumprimento; não havendo como ponderar qualquer gravidade ou consequências, que a Recorrida nem sequer alega na sua PI.

           25ª - Sobre o facto dado como provado em 9, “O Réu não cumpre com as regras de higiene do imóvel – acumulando lixo à entrada do apartamento, dejetos de animais no interior do locado, inexistindo limpeza regular do interior do locado – exalando mau cheiro para o restante edifício.”, que se impugna, e deve ser declarado não provado, desde logo por se considerar não se tratar de factos mas de meros conceitos abstratos, conclusivos e de direito.

           26ª - Na expressão do indicado facto provado em 9), distinguem-se 4 factos, abstratos, conclusivos ou de direito: – “Que o Réu não cumpre com as regras de higiene do imóvel” - esta expressão, não é um facto, mas um conceito de direito.

           27ª - Inexistindo qualquer regulação específica sobre regras de higiene a observar no imóvel, deve entender-se que cumprir regras de higiene, se refere à diligência normal, de uma pessoa normal, no cumprimento de hábitos e práticas de higiene.

           28ª - Não obstante as testemunhas indicadas pela Recorrida terem referido a existência de cheiro fétido vindo do interior do imóvel habitado pelo Recorrente, na verdade, todas as testemunhas referem não ter entrado no seu interior, e aquelas que entraram não referiram nada em concreto, em específico, que consubstanciasse o conceito de falta de higiene na habitação.

           29ª - “Acumulado lixo à entrada do apartamento” - É um facto genérico, abstrato. O que é que se considera lixo à entrada do apartamento?

           30ª - Apenas a testemunha indicada pela A., EE, referiu ter visto, em algumas ocasiões, o Réu colocar lixo à entrada da porta, o que não é confirmado por mais nenhuma testemunha, inclusive as testemunhas funcionárias da Recorrida, nem a testemunha BB, que fez limpeza nas partes comuns do prédio, incluindo escada e hall de cada piso do prédio, até ao ano de 2020; nem a testemunha CC, “colaboradora da Santa Casa desde 2007, prestando apoio ao Centro de Dia, confirmou que cabe a esta entidade efetuar a limpeza das partes comuns do edifício, de 15 em 15 dias”, mas nada disse sobre o acumular de lixo à porta do Recorrido.

           31ª - Da inspeção ao local, não se verificou o que pudesse ser identificado como lixo à porta do Recorrido - as imagens fotográficas que constam do auto de inspeção ao local do dia 08.11.2023 mostram a porta do Recorrente com o n.º 14, ter uma pasta em plástico, para suporte de documentos, sem nada no seu interior, um saco de plástico grande, sem nada no seu interior, colados/presos à porta, um suporte com um frasco que tudo indica ser desinfetante de mãos, ou seja providências que o Recorrente tomou com o confinamento decretado durante a Pandemia por Covid 19, e que por previdência que a sua idade e doenças o aconselham, mantem atualmente.

           32ª - Nada havendo dentro do saco ou da pasta fixos à porta, destinando-se claramente ao depósito de correspondência ou de bens a serem entregues ao Recorrente, sendo que de tal imagem, nada induz qualquer sentido de falta de higiene no interior do imóvel, bem pelo contrário, indicia um cuidado específico e diligente. Veja-se o depoimento do Recorrente.

            33º - “dejetos de animais no interior do locado” - É um facto genérico, abstrato.

           34ª - Não obstante as testemunhas indicadas pela Recorrida tenham referido que o Recorrente não permitiu que entrassem no seu interior, houve também testemunhas que referiram terem entrado, e nenhuma referiu que tenha visto dejetos de animais no interior do locado; nem a testemunha Dra. FF, nem a testemunha BB.

           35º - A testemunha EE confirma ter visto um gato com o Recorrente; a testemunha BB referiu não ter visto nenhum gato, mas que quando entrou no locado, antes de 2020 como referiu, havia muitos sacos de areia de gato; o Recorrente confirmou que tem uma gata apenas há 3 anos, referindo os cuidados que tem com a mesma.

            36ª - Apenas resultou provado que o Recorrente tem um gato, não que tem animais no interior do locado.

            37ª - “inexistindo limpeza regular do interior do locado” - É um facto conclusivo. Não houve qualquer prova sobre a higiene no interior do locado ou a limpeza regular do interior do locado.

            38ª - É certo que as funcionárias da Recorrida confirmaram que o Recorrente não aceita que a recorrida preste serviços de limpeza no interior da sua habitação. E a tal não é obrigado!

           39ª - Nenhuma testemunha nada sabe sobre a limpeza, e as práticas regulares de atividades de higiene doméstica que o Recorrente faz no interior da sua habitação - o que as testemunhas vieram declarar ao tribunal, com respeito à higiene no interior do apartamento, foi mera suposição, imaginação de cada uma, sem conhecimento próprio e concreto.

           40ª - “exalando mau cheiro para o restante edifício.” - Sobre este facto, o que as testemunhas da Recorrida referiram foi a existência de mau cheiro, que verificam na entrada do prédio e no hall do piso do apartamento locado, 1º andar, que reportam derivar do interior da habitação do Recorrido, por falta de higiene, mas sem conhecimento de causa, sem consubstanciar em concreto e com conhecimento de facto da falta de higiene.

           41ª - As testemunhas reportam o mau cheiro como vindo do interior da habitação do Recorrente, mas sem o poderem garantir, nem poderem garantir que o mau cheiro não seja imputável à Recorrida, por qualquer deficiência existente no prédio que emane cheiros fétidos.

           42ª - É sabido que um espaço à vista impecavelmente limpo, pode ser afetado por cheiro fétido de qualquer proveniência que nada tenha a ver com falta de limpeza do próprio espaço afetado!

           43ª - Da experiência comum, não raro acontece a difusão de odores desagradáveis no interior de habitações em prédios com várias habitações, cuja causa, provém de outras habitações, de deficiências de construção, das condutas de ventilação, de esgotos, de extração de fumos, etc.

           44ª - Hipótese que a própria idade do prédio não permite descartar, pois o ano de inscrição do prédio na matriz data de 1994.

           45ª - Pelo que não há qualquer prova da existência de cheiros fétidos, que provenham da habitação do Recorrente, por falta de higiene imputável ao Recorrente.

           46ª - Note-se que das testemunhas da Recorrida ouvidas, aquelas que depuseram terem batido à porta do Recorrente e este tenha aberto a porta e estabelecido conversa à porta, nenhuma descreve em concreto ter visto lixo acumulado ou imundice que permitisse concluir a falta de higiene no interior da habitação.

           47ª - Da inspeção ao local, verificou-se a existência de mau cheiro no hall do piso, 1º andar do prédio onde se localiza o apartamento do Recorrente e que se fazia sentir na entrada do prédio e escadas até ao primeiro andar.

           48ª - Não resultou provado que haja mau cheiro nos outros pisos do prédio. Não resultou provado a sua causa, que se desconhece.

           49ª - Impugna-se o facto provado em 10, “Existe a presença de um cheiro fétido, intenso e constante, que incomoda os vizinhos” enquanto facto imputado ao Recorrente.

           50ª - Impugna-se o facto provado em 12, “O Réu nascido em ../../1946, tem a idade de 77 anos”, devendo corrigir-se a idade do Recorrente, para 78 anos de idade.

           51ª - Impugna-se o facto dado como provado em 13, pois sendo verdade o que dele consta, o mesmo é muito deficiente na sua redação, não dando como provado na íntegra a situação de doenças de que o Recorrente padece.

            52ª - Tendo em consideração todos os relatórios e informações clínicas juntos aos autos, o facto indicado em 13, deve ser substituído na sua redação, de forma a incluir a globalidade de padecimentos de saúde do Recorrente, designadamente fazendo constar que: O Recorrido é seguido no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, na unidade de dor crónica desde 01/7/2005, estando atualmente medicado, na consulta de reumatologia, por diagnóstico de espondilartrite seronegativa, sob terapêutica medicamentosa, fibromialgia, osteoartrose nodal das mãos, défice de vitamina C, dislipidémia, obesidade, hiperplasia benigna da próstata, com antecedentes de doença coronária (submetido a colocação de stents).

           53ª - Sobre a gravidade ou consequências do incumprimento imputável, que permita concluir pela inexigibilidade da manutenção do arrendamento, nada de facto e em concreto foi alegado em sede de petição inicial.

           54ª - Aliás, o prédio que integra a fração locada ao Recorrente tem outras frações todas habitadas, sendo que, estranhamente, mais nenhum vizinho se queixa do Recorrente nem de mau cheiro a ele imputável, com excepção da vizinha, testemunha da Recorrida, EE.

           55ª - Como referiu a testemunha EE, o prédio tem 4 pisos, servidos por elevador, e acima do último piso com elevador, ainda tem outro piso com 2 apartamentos; sendo que cada piso servido por elevador, tem 4 apartamentos. No mesmo andar em que vive, tem 4 apartamentos, que identifica por números 11, 12, 13 e 14, sendo o seu o apartamento 13 e o do Recorrente o 14.

           56ª - Tem o prédio 18 andares todos habitados, como foi confirmado pela testemunha EE. A testemunha DD referiu que todos os apartamentos estão alugados pela Santa Casa.

           57ª - Se no mesmo piso existem 4 apartamentos todos habitados, porque razão apenas a vizinha do apartamento 13, EE é testemunha dos factos imputados ao Recorrente nos presentes autos? Porque é que mais nenhum vizinho, nem daquele piso, nem dos outros pisos do prédio foram testemunhas?

           58ª - A prova testemunhal produzida da parte da Recorrida, para além da testemunha EE, trata-se de testemunhas, que têm um vinculo profissional com a Recorrida, que têm interesses com a Recorrida, o que naturalmente debilita a credibilidade e imparcialidade na apreciação das suas declarações.

           59ª - Em 24º a 28º da PI, a Recorrida fala em perigo para a saúde pública, que “Havendo na acumulação de lixos e dejetos de animais, uma propensão do desenvolvimento insetos rastejantes, bactérias e outros seres prejudiciais à vida humana”, com “suscetibilidade para o desenvolvimento de doenças que prejudicam o próprio inquilino e ainda os restantes vizinhos”, “sendo o prédio maioritariamente habitado por pessoas idosas”.

           60ª - Alegando o impedimento de exame do locado, e sendo a Recorrida entidade vocacionada para os serviços de assistência ao domicilio a idosos e lar de idosos, e, portanto, com responsabilidades acrescidas, não deixa de ser estranho que não haja qualquer prova nos autos de participação ao delegado de saúde da ..., para que fizesse uma vistoria sanitária, entidade a quem cabe vigiar, defender e promover a saúde pública, e pode mobilizar meios e deliberar o que entendesse.

           61ª - Sobre o alegado em 18º a 23º, 31 e 32º da PI, o Recorrente negou-os, pelo que não se vê como possa ser o seu depoimento de parte indicado como prova de tal articulado, como consta da sentença (veja-se o depoimento do Recorrente prestado no dia 13/10/2023).

           62ª - Consta da sentença que “Na inspeção ao local, que foi requerida pelo próprio réu (ficou vertida em auto o que foi possível observar, fotografar e cheirar), não obstante ter sido requerida pelo Réu para verificação do interior do apartamento locado e para prova da matéria factual por si alegada, não foi possível observar o interior do apartamento habitado pelo mesmo, porquanto, por duas vezes a diligência foi inviabilizada pelo próprio Réu. Consideramos ocorrer por isso, inversão do ónus da prova, ou seja, “(...) tomando por assente um facto cuja prova cabia à parte que o alegou, mas em que, tendo essa prova sido impossibilitada ou tornada extremamente dificultosa pela contraparte, por esta não foi produzida prova a demonstrar a não verificação daquele facto (...).”

           63ª - O Tribunal observou e fotografou (imagens constantes do auto de inspeção) com data de 08.11.2023, o piso 1º junto ao apartamento n.º 14 (habitado pelo Réu) e n.º 13 (habitado pela testemunha EE), e fez constar no auto que, “foi percecionado um odor na entrada do prédio, mas sobretudo um mau odor intenso no patamar junto às portas n.º 13 e 14 (sendo que o apartamento n.º 14 corresponde à habitação do Réu)”.

           64ª - Impugna-se que o Recorrente tenha inviabilizado a inspeção ao local, incluindo a possibilidade de verificar o interior do apartamento locado.

           65ª - Decorre da Ata da sessão de audiência de julgamento do dia 07.11.2023, despacho a deferir a inspeção ao local e o seu agendamento para o dia seguinte, 08.11.2023, pelas 12:00 horas, em concertação de agendas.

           66ª - No dia 08.11.2023, o Recorrente, apresentou aos autos requerimento com o seguinte teor: “O R. por agravamento do seu estado de saúde, com tensões muito altas e agravamento de dores, foi obrigado a recorrer à assistência médica, encontrando-se de momento no hospital, e portanto, ausente de casa. Pelo que requer a V. Exa. se digne designar nova data para realização da inspeção ao local, acautelando um prazo mínimo de uma semana, para que o Réu melhor e se possa realizar a inspeção ao local.”

           67ª - O tribunal entendeu realizar a inspeção ao local na sessão de julgamento do dia 08.11.2023, conforme auto de inspeção ao local, e proferiu despacho a determinar nova ida ao local, para inspeção ao interior da habitação do réu, no dia 28.11.2023, pelas 15:00 horas.

           68ª - No dia 28.11.2023, conforme consta da ata da audiência de julgamento, foi comunicado que o réu se encontrava novamente internado no hospital em Coimbra, havendo impossibilidade novamente na abertura da porta da morada do réu para a inspeção ao local, tendo sido requerido a marcação de nova data para o efeito.

            69ª - Dada a palavra à parte contrária, a mesma alegou manobra dilatória e requereu que se prosseguisse com as alegações para dar por terminado o julgamento.

           70ª - A Recorrida teria todo o interesse em requerer ao tribunal a realização da inspeção ao interior do apartamento como prova essencial e mesmo imprescindível, dos factos a consubstanciar os fundamentos da alegada resolução que comunicou pela notificação judicial avulsa.

            71ª - O Tribunal indeferiu que fosse determinada nova data para a inspeção ao local ao interior do locado.

           72ª - O recorrido é pessoa idosa, com 78 anos de idade, com doenças crónicas, com recurso regular à assistência hospitalar.

           73ª - Não é de estranhar, nem se pode considerar inaceitável, nem se pode considerar mero expediente dilatório, o Réu/recorrente, das duas vezes indicadas para inspeção ao local, estar ausente, por doença e necessidade de assistência no Centro Hospitalar de Coimbra.

           74ª - O Tribunal ad quo deveria considerar a inspeção ao local essencial e imprescindível à descoberta da verdade material, e indicar nova data para a inspeção ao local, para aceder ao interior do locado.

           75ª - Impugna-se que o recorrente tenha tomado qualquer comportamento de impedimento ou de falta de colaboração na realização da prova, tanto mais que foi o próprio que requereu a inspeção ao local, pelo que é errado, excessivo, desadequado, injusto, cominar-se o Recorrido com a inversão do ónus da prova.

           76ª - Tanto que parece-nos até ilógico o raciocínio exposto na sentença, dito em 62ª, supra.

           77ª - A inspeção ao local foi requerida apenas e só pelo Recorrente e não pela Recorrida, pelo que nunca haveria qualquer inviabilização de prova essencial e impossível de obter de outro modo, que tivesse sido requerida pela Recorrida!

           78ª - Não fazendo sentido qualquer cominação, no âmbito da livre apreciação da prova pelo julgador o recurso a um juízo de inversão do ónus da prova.

           79ª - O mau cheiro, ou cheiro fétido, tem de ter uma proveniência e causa, o que não se alcançou conhecer pela prova testemunhal, pela debilidade própria e inerente a este tipo de prova, e a qualidade das testemunhas, funcionárias da Recorrida e apenas uma vizinha, sendo que com respeito a cheiros e falta de higiene no interior do locado, o que depuseram mais não foi do que suspeitas ou suposições, sem conhecimento direto.

           80ª - A inspeção ao interior do locado, atento a imputação fáctica que a Recorrida faz ao Recorrente, é prova essencial para a decisão da causa, que o Tribunal deveria ter exigido inclusive ao abrigo do principio do inquisitório previsto no art.º 411 do CPC, na prossecução do dever de tanto quanto possível, aferir da veracidade dos factos.

            81ª - A inspeção judicial tem por fim a perceção direta de factos pelo Tribunal, cujo resultado é por si livremente apreciado, cf. art.ºs 390º e 391º do CC.

           82ª - O Tribunal ad quo deferiu a inspeção ao local considerando a sua conveniência, nos termos do art.º 490º do CPC; não fixando uma nova data para a realização da inspeção ao local, ao interior do locado, o tribunal impossibilitou a prova requerida pelo próprio R./Recorrido.

            83ª - A inobservância do inquisitório gera nulidade processual, nos termos gerais do n.º 1, do art.º 195º, do CPC, porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa.

            84ª - Termos em que deve ser revogada a decisão proferida por despacho de 28.11.2023, de indeferimento de nova data para a realização da inspeção ao local, ao interior do locado, pois que, também à luz do princípio do inquisitório, importa salvaguardar a conveniência/necessidade de produção do meio de prova da inspeção judicial, por a sua realização se evidenciar patentemente necessária, e ordenar que a mesma seja realizada.

           85ª - Decidindo pela procedência parcial da ação, o tribunal violou os art.ºs 596º, 410º, 516º e 607 n.º 4, do CPC; art.ºs 1083º, n.º 2, alíneas a) e b), 1084º, n.º 1 e 1038º, alínea b) do CC; art.º 9º, n.º 7 da Lei 6/2006 de 27.02; art.ºs 3º, n.º 1, 615º, n.º 1, e) e 609º, do CPC; art.ºs 390º e 391 do CC e 490º e 195º, n.º 1, do CPC.

           Remata dizendo que a sentença deve ser revogada, absolvendo-se o Réu/Recorrente do pedido.

            A A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito, cuja modificação depende da eventual alteração da decisão de facto; c) nulidade da sentença.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

           1) Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ..., sob o artigo matricial n.º ...22 (provém do artigo ...07 da extinta freguesia ... que, por sua vez, proveio do artigo ...40 da referida extinta freguesia ...) o prédio em regime de propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, destinado a comércio e habitação residencial para idosos, composto de 5 pisos (r/c, 1º, 2º, 3º e sótão), sito na Av. ..., ..., inscrito em nome da A..

           2) Está descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo n.º ...16, o prédio urbano inscrito na matriz com o n.º ...40, edifício destinado a comércio e habitação composto por rés-do-chão, 1º, 2º e 3º andares e sótão, confrontando a norte com Avenida ..., a sul, nascente e poente com Santa Casa da Misericórdia da ... e Hospital ..., pela AP. ... de 1962/06/14 – Aquisição por compra, em nome da A..

           3) A A. é dona do prédio urbano sito na Av. ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...22 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16.

           4) Através de denominado contrato de arrendamento social n.º ...16, celebrado entre a A., com sede na Av. ..., ..., ... (representada pelo seu Provedor) na qualidade de senhoria e primeiro outorgante e o Réu, residente na Av. ..., ..., ..., na qualidade de hóspede e segundo outorgante e GG na qualidade de fiador e terceiro outorgante, ficou reduzido a escrito contrato de hospedagem entre as partes.

            5) Entre as cláusulas do referido contrato constam, entre outras:[2] «cláusula 2ª:[3] «cláusula 3ª: «cláusula 4ª: «cláusula 5ª:[4] «cláusula10ª:[5] «cláusula 12ª:[6].

           6) Em 23.5.2022, foi comunicado ao Réu pela A., mediante notificação judicial avulsa por contacto pessoal do funcionário judicial, a resolução do referido contrato de arrendamento, por violação das regras de higiene e utilização do prédio contrária à lei e aos bons costumes, e pelo facto do Réu violar o dever de facultar à A., a vistoria do imóvel arrendado, exigindo-lhe a desocupação do locado no prazo de 30 dias.

            7) O Réu não desocupou o locado.

            8) O Réu não permitiu ao locador, o exame do imóvel locado.

           9) O Réu não cumpre com as regras de higiene do imóvel – acumulando lixo à entrada do apartamento, dejetos de animais no interior do locado, inexistindo limpeza regular do interior do locado – exalando mau cheiro para o restante edifício.

           10) Existe a presença de um cheiro fétido, intenso e constante, que incomoda os vizinhos.

            11) O prédio é maioritariamente habitado por pessoas idosas.

            12) O Réu nascido em ../../1946, tem a idade de 77 anos.

           13) Lê-se no relatório geral do CHUC datado de 23.6.2023, entre o mais, a seguinte informação clínica acerca do Réu: “submetido a angioplastia de lesão significativa da artéria descendente anterior do segmento médio, com colocação de stent”, e “Antecedentes de episódios de sincope que terão motivado terapêutica ablativa com sucesso. Sem queixas de angina ou de insuficiência cardíaca”.

            14) O Réu aufere mensalmente do Instituto de Segurança Social, a quantia de € 883,26 de pensão de velhice.

            2. Cumpre apreciar e decidir.

           a) O Réu/recorrente insurge-se, desde logo, contra a decisão sobre a matéria de facto, cuidando que da sua eventual modificação poderá resultar diferente desfecho dos autos.

           Importa averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade aludida em II. 1. 6), 8) a 10), 12) e 13), supra, pugnando o Réu que se dê como não provada (cf. “conclusão 1ª”, ponto I., supra) ou provada na forma que indica sob as “conclusões 3ª, 11ª, 25ª a 41ª, 49ª, 50ª e 52ª”, ponto I., supra, atendendo, sobretudo, à prova pessoal produzida em audiência de julgamento (máxime, depoimentos do Réu e de quatro testemunhas).

            b) Esta Relação procedeu à audição da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

           c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efetivação do princípio da imediação[7] afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que se verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

           d) Da fundamentação da matéria de facto apresentada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo importa destacar os seguintes excertos [atento o objeto do recurso]:

            «O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e ponderada (...) dos seguintes meios de prova que foram conjugados entre si e com regras da experiência comum:

           - nos documentos juntos aos autos pelas partes (cópia do contrato de arrendamento celebrado entre as partes; caderneta predial urbana do imóvel descrito na p. i.; certidão da Conservatória do Registo Predial ... do referido imóvel; cópia da notificação judicial avulsa; relatório geral dos CHUC com informação clínica respeitante ao Réu; informação prestada pelo ISS);

           - depoimento de parte do Réu (...) aos factos alegados nos artigos 18º a 23º, 31º e 32º da petição inicial;

               - depoimento das testemunhas EE, DD, FF, HH, II, CC, JJ, KK, LL, MM, NN, OO;

           - auto de inspeção ao local[8] requerido pelo réu (tendo sido inviabilizada pelo réu, a inspeção ao interior do apartamento locado).

               No depoimento de parte prestado pelo Réu, este confirmou habitar no apartamento n.º 14 (...) de que é proprietária a autora (...), sendo o Réu arrendatário, há 6 anos. Negou a existência de qualquer mau cheiro proveniente da sua habitação, referiu ter a casa devidamente higienizada, e acrescentou ter no apartamento uma gata há cerca de 3 anos.

               Adiantou que as queixas dos vizinhos, referentes ao mau cheiro, tiveram início após a pandemia, mas que antes da pandemia era efetuada pela Santa Casa de Misericórdia uma limpeza regular no edifício (mas nas partes comuns), pelas funcionárias da Santa Casa, o que deixou de ser feito posteriormente.

           Porém, a concatenação da prova produzida levou a que o Tribunal se convencesse de que a versão apresentada pelo Réu não corresponde inteiramente à realidade dos factos.

                Senão vejamos.

               A testemunha EE disse conhecer o réu porque é sua vizinha há cerca de 6/7 anos, sendo a testemunha moradora no mesmo piso (1º piso) em que habita o Réu (...). A testemunha habita no apartamento n.º 13 e o Réu no apartamento n.º 14, tendo ambos por senhorio a Santa Casa da Misericórdia da ....

               Esta testemunha confirmou ter visto, em algumas ocasiões, o Réu colocar lixo à entrada da porta, e que do interior do apartamento n.º 14 provinha um cheiro nauseabundo que a incomodava, e se espalhava por todo o piso, tendo apresentado queixa disso mesmo à Santa Casa da Misericórdia da .... A testemunha disse inclusive que até no interior da sua casa sentia esse mau cheiro intenso e incomodativo, e que isso teve repercussões na sua vida pessoal, já que deixou de convidar pessoas amigas para irem a sua casa devido ao mau cheiro que emanava do apartamento habitado pelo Réu.

           As testemunhas DD (psicóloga no Lar da Santa Casa da Misericórdia da ... (...)) e FF (Diretora Técnica do Lar e Centro de Dia da Santa Casa da Misericórdia da ..., desde 2013), afirmaram ambas que receberam queixas dos vizinhos (vários dos inquilinos daquele prédio), devido ao mau cheiro proveniente do apartamento n.º 14 habitado pelo Réu.

               Também a testemunha HH, Agente de execução, disse ter notado a presença de um mau cheiro forte, incomodativo, logo no hall da entrada do prédio, e que se sentia um cheiro nauseabundo à porta do apartamento n.º 14 habitado pelo Réu, o que testemunhou quando foi efetuar uma citação pessoal do réu, em 30.9.2022.

           O mesmo foi referido pela testemunha BB, ajudante no Lar da Santa Casa da Misericórdia da ..., isto é, (...) confirmou ter notado mau cheiro no interior da casa do Réu, em poucas das vezes que entrou na habitação daquele. Com efeito a testemunha efetuava limpezas nas partes comuns do edifício, porquanto era funcionária da Santa Casa, e prestava apoio aos utentes do Lar da Santa Casa que residiam naquele edifício e houvessem pedido tal apoio. Corroborou o que já havia sido referido pelas testemunhas anteriores, designadamente, que os vizinhos do réu, se queixavam com frequência, do mau cheiro proveniente do apartamento do Réu, o que já acontecia em momento anterior à pandemia, e que o mau cheiro é mais intenso no 1º andar onde habita o réu. Referiu que o cheiro a fezes e urina de gato, se fazia sentir logo na abertura da porta do edifício.

           Ainda esclareceu esta testemunha que, fez parte da equipa de limpeza que competia limpar o lixo nas partes comuns do prédio, e chegou a ver líquidos derramados pelo chão desde a porta da casa do réu, até ao elevador, e daí até à porta de saída do edifício.

               Disse ser do seu conhecimento, que o Réu recusou o serviço de limpeza ao interior do apartamento (que lhe seria proporcionado pela Santa Casa da Misericórdia) e que é muito difícil entrar em contacto com o mesmo, porque o réu não abre a porta a ninguém.

           A testemunha CC, que disse ser colaboradora da Santa Casa desde 2007, prestando apoio ao Centro de Dia, confirmou que cabe a esta entidade efetuar a limpeza das partes comuns do edifício, de 15 em 15 dias, e que a testemunha é o elo (...) entre os inquilinos que habitam nos apartamentos, e a Santa Casa da Misericórdia.

           Também corroborou o que disseram as anteriores testemunhas, quanto às queixas que fizeram os demais inquilinos do prédio onde habita o Réu, sobre o mau cheiro intenso proveniente do apartamento daquele, que a própria afirmou ter-se apercebido e identificou que daí emanava.

            Adiantou que tocou imensas vezes na campainha do apartamento habitado pelo Réu, ao que este nunca atendia, de tal modo que num determinado dia em que o cheiro era intenso e já não era visto o Réu por cerca de duas semanas, nem respondia ao toque na campainha, decidiram chamar os bombeiros com prévia autorização do Provedor da Santa Casa da Misericórdia, com vista a certificarem-se se o Réu estaria bem de saúde dentro do apartamento por ele habitado.

           A testemunha JJ, bombeiro de profissão, confirmou que foi chamado para entrar na habitação do Réu – com a justificação de que este não era visto há algum tempo pelos vizinhos e por parte do pessoal da Santa Casa da Misericórdia, e temiam que algo lhe tivesse acontecido – pelo que tentaram entrar pela varanda do apartamento, uma vez que o Réu não abria a porta, nem respondia ao toque de campainha.

           A testemunha acrescentou que ele e outro colega bombeiro, conseguiram abrir umas janelas, sem as arrombar, e viram que o Réu estava em casa, de pijama, porém este terá recusado a entrada dos bombeiros no apartamento, pelo que tiveram de ir-se embora sem que chegassem a entrar no seu interior.

           A testemunha disse não ter notado a presença de mau cheiro emanado do apartamento do réu, mas esclareceu que apenas chegou a estar na varanda do apartamento do Réu, e não entrou no interior da habitação (...) é perfeitamente viável que tendo estado numa varanda, sendo mais exposta ao ar livre, a testemunha bombeiro não tivesse notado a presença de qualquer mau cheiro.

               Ademais nesse mesmo dia em que os bombeiros se deslocaram ao apartamento do réu (pela varanda), o militar da GNR KK, esteve junto à porta do apartamento do réu, no seu depoimento, afirmou que no mesmo dia em que os bombeiros se deslocaram ao local juntamente com a GNR, visando a entrada no interior do apartamento do Réu (inclusive referiu que nessa porta estava colado um grande envelope branco), e daí era proveniente um mau cheiro intenso da zona do apartamento do Réu, um cheiro a lixo, muito forte e desagradável.

           Várias testemunhas afirmaram terem sentido um mau cheiro intenso, em diferentes momentos, por diversas vezes, junto ao apartamento do Réu, onde era notado como muito mais intenso em relação a outras partes do edifício (assim o disse a testemunha HH - agente de execução), bem como quando este abriu a porta, pelo menos por uma vez, às testemunhas DD, FF e BB, que igualmente notaram o mau cheiro intenso que se fazia sentir a partir da habitação do réu.

            Por sua vez, as testemunhas LL e NN, que disseram nunca terem entrado na habitação do Réu, logicamente nada esclareceram sobre a existência ou não de qualquer mau cheiro no seu apartamento ou sequer sobre se havia ou não higienização do apartamento pelo Réu. Tendo ainda a segunda testemunha referido que durante o confinamento (entre 2020 e 2022) foi entregar-lhe encomendas à porta, por 3 ou 4 vezes, e não voltou a fazê-lo após o confinamento.

               Por sua vez a testemunha MM, disse não vê o Réu há cerca de 5 anos, e seguramente desde antes da pandemia, desconhecendo onde o mesmo habita. Esta testemunha só esteve uma única vez em casa do Réu, mas não sabia precisar nem a data, nem em que local se situava essa habitação, pelo que não logrou esclarecer se foi ou não em momento em que o réu já habitava no prédio da Santa Casa da Misericórdia. Mais acrescentou saber que o réu é doente cardíaco há muitos anos.

           Ainda a testemunha OO, serralheiro civil de profissão, que conhece o Réu há 7 anos, disse tê-lo ajudado a fazer a mudança de casa, quando o Réu veio de ... para a atual residência no prédio da Santa Casa – ajudou-o a colocar móveis, prateleiras, alcatifas, entre outras coisas, isso tudo aconteceu antes da pandemia. Acrescentou que durante a pandemia, foi poucas vezes entregar encomendas à porta do apartamento habitado pelo Réu, mas não notou cheiros fora do normal, designadamente em 2021 quando entrou no hall do apartamento do Réu.

           Na inspeção ao local, que foi requerida pelo próprio réu (ficou vertida em auto o que foi possível observar, fotografar e cheirar), não obstante ter sido requerida pelo Réu para verificação do interior do apartamento locado e para prova da matéria factual por si alegada, não foi possível observar o interior do apartamento habitado pelo mesmo, porquanto, por duas vezes a diligência foi inviabilizada pelo próprio Réu.

            (...)

           O Tribunal observou e fotografou (com imagens constantes do auto de inspeção), o piso 1º junto ao apartamento n.º 14 (habitado pelo Réu) e n.º 13 (habitado pela testemunha EE), e confirmou-se a presença de um intenso mau cheiro, insuportável, na zona do apartamento do Réu.

           Da concatenação da prova produzida, aliada às regras de experiência comum e mais tendo por base as regras de repartição do ónus da prova (artigos 342º, n.º 2 e 344º, n.º 2 do Código Civil), o Tribunal formou a convicção de que o mau cheiro intenso e insuportável que se presenciou no piso 1º junto ao apartamento n.º 14, é proveniente do interior do apartamento habitado pelo Réu, o qual, cabendo-lhe provar o contrário, não o logrou fazer.

               A prova dos factos descritos nos pontos 1. a 6. da matéria factual, teve por base o teor dos documentos juntos aos autos (certidão matricial e predial do edifício de que é dona a Autora; cópia do contrato de arrendamento social n.º ...16 e respetivas cláusulas; cópia da notificação judicial avulsa).

               Sobre os factos referidos nos pontos 7. a 11., a prova dos mesmos resultou da conjugação da prova testemunhal produzida – todas as testemunhas prestaram depoimentos espontâneos, coerentes, sem contradições, por forma séria, pelo que se consideraram credíveis.

               O referido nos pontos 12. e 14. apurou-se com base em informações prestadas nos autos, pelo Instituto de Segurança Social. O referido em 13., resulta do teor do relatório geral do CHUC datado de 23.06.2023 que foi junto aos autos.»

            e) Esta perspetiva da Mm.ª Juíza do Tribunal a quo afigura-se, em geral (e como se reproduz na alínea anterior), correta.

Vejamos alguns excertos dos (invocados) depoimentos prestados em audiência de julgamento:

            - EE (fls. 97):

           “(...) Esse Sr. (Réu) quando ele entrou lá para a casa (...) ele, tudo quanto era lixo, punha à entrada da porta, encostava tudo (...), ele amontoava ali o lixo; (...) na marquise dele, via-se tudo amontoado até ao teto; (...) para mim, neste momento, o que me está a prejudicar, é eu estar dentro da minha casa, na minha cama, com aquele cheiro nauseabundo que não se suporta, (...) o cheiro que está naquele patamar e que me entra dentro de casa, porque as portas não fecham bem, não sei..., e é um cheiro insuportável, é isso que me incomoda (...); não faz bem a ninguém, é de dia é de noite, é sempre assim...; (...) uma vez vi-o ir para o carro e ele levava um gato, (...) saiu com esse gato e entrou; (...) ele não abre a porta a ninguém, a ninguém; (...)  [em determinada altura, interpelou-o, à porta do apartamento] (...) ele abriu a porta, só pôs de fora o nariz; (...)  [a depoente disse-lhe] ´Sr. AA eu não aguento estar em minha casa com o mau cheiro que vem daí, eu agradeço que o Sr. mande limpar a sua casa, porque eu não sou obrigada a estar dentro da minha própria casa a levar com o seu cheiro...`; e ele respondeu, ´cheiro?, eu não tenho cheiro nenhum!´, foi o que ele me respondeu (...) e bate-me com a porta na cara e foi para dentro; (...) a minha porta é a 13 e a dele é a seguir...; [nesse patamar/andar] há mais dois [apartamentos], cada andar tem quatro apartamentos (...) é o 11, 12, 13 e 14, dois para a frente e dois para trás, está tudo ocupado; (...) comentam comigo ´cheira mal`, já me têm feito esse comentário à entrada da porta [e no elevador]; [o prédio compreende] (...) três andares e sótão, está tudo habitado... (...).” 

            - DD (fls. 97):

            Os blocos de apartamentos em causa “pertencem à Santa Casa; (...) aqueles blocos tanto o A como o B pertenceriam à Santa Casa e precisamente no bloco onde vive o Sr. AA tem outros utentes (...) com quem eu também convivo diariamente e que pagam renda à Santa Casa; (...) eu fiz duas tentativas junto da Dr.ª PP, que é Diretora Técnica da Instituição, deslocamo-nos ao apartamento do Sr. AA por queixas de outros utentes que vivem no mesmo bloco, a primeira tentativa que eu fiz com a Dr.ª PP, o Sr. AA abriu-nos um bocadinho da porta e conversou um bocadinho com a Dr.ª PP, negando o mau cheiro, não nos permitiu a entrada em casa (...); negou sempre a entrada em casa, nunca nos deixou entrar, nem no hall de entrada, negou o mau cheiro - que não havia mau cheiro nenhum, na opinião dele -, negou ajuda da nossa parte; se precisasse ajuda da nossa parte nós colocámo-nos à disposição, ele negou; e depois nós tivemos que vir embora; da segunda vez que lá fomos o Sr. AA não abriu a porta (...), estando ele ou não; (...) houve, sim, uma tentativa de ele vir à Instituição falar com o Sr. Provedor para tentarmos aqui encontrar uma solução para a situação mas ele sempre negou qualquer tipo de encontro, de ajuda da nossa parte, (...) eu acho que até o Sr. Provedor lhe pôs a possibilidade de ele ir para ERPI, para o Lar, e ele sempre negou tudo..., que não precisa de ajuda; (...) até porque ele tem muitas questões de saúde (...) e que seria uma mais-valia para ele estar mais acompanhado, mas ele nega qualquer tipo de ajuda; (...) sou psicóloga da Instituição, falo com outros utentes que vivem no mesmo bloco, ainda há duas semanas tive uma utente a telefonar e a dizer que efetivamente, que vive no andar de cima, (...) a queixar-se, se nós já tínhamos feito alguma coisa porque o cheiro estava cada vez mais insuportável; todos os outos utentes que vivem lá referem queixas, eu própria quando fui visitar, aquelas duas visitas ao Sr. AA com a Dr.ª PP, assim que abra a porta, no hall, cá em baixo, o cheiro já se sente;  (...) ainda, supostamente, está nas suas faculdades físicas e mentais, e nós não podemos obrigar o utente a ter os nossos serviços, se ele não os quiser; (...) ele desloca-se sozinho; eu tenho alguma noção das comorbidades que ele tem pela primeira fase em que ele era nosso utente do Centro de Dia e até ia lá realizar alguns tratamentos de fisioterapia com a nossa fisioterapeuta e eu falava muitas vezes com ele e sei que ele tem alguns problemas de saúde, mas à posteriori quando ele começou a vir para os apartamentos houve uma fase que ele deixou completamente de... e ele agora já não é nosso utente do Centro de Dia ele (...) é só mesmo nosso inquilino, (...) não tem qualquer outro tipo de serviço; (...) nunca pediu (ajuda, inclusive, para deslocações ao hospital); (...) recusa até o diálogo; (...) o cheiro é muito intenso”, situação que afeta os utentes do prédio e também o Réu.

            - Depoimento de Parte do Réu (fls. 103 verso):

           “(...) [o apartamento onde reside] é arrendado; (...) [“(...) refere-se que terá havido alguma situação, ou não, pergunto-lhe, de no hall de entrada do imóvel, de dejetos de animais, de mau cheiro para o edifício?”] É completamente falso. Eu tenho uma pequena gata que hoje tem três anos e, como saberá, os gatos são os animais domésticos mais asseados; eu tenho uma caixa própria p´ra ela. (...) [“(...) Houve essa pretensão de alguém lá ir da parte da Santa Casa, para ver o interior da sua casa e ver as condições de higiene, isso aconteceu?] Não. O que aconteceu foi o seguinte. Eu estava doente...; (...) já foi há tempos, foi antes da entrada da ação, muito antes, após a pandemia eu fui contactado por duas funcionárias da Santa Casa dando-me a conhecer que havia uma denúncia relativamente a maus cheiros. Eu disse que não, não, não tinha conhecimento, não havia cheiro nenhum, não o pressentia sequer e, portanto, disse que não havia nada e eu fui alertado para o facto de ´veja lá, veja bem isso, porque isto até pode converter-se numa situação de higiene pública` e eu disse tudo bem, por mim tudo bem, não tenho mais que fazer que é a minha vida; ´nós voltamos cá daqui a uma semana`. Não voltaram passado uma semana, voltaram talvez passado duas semanas ou três. (...) Na segunda visita disseram que o Sr. Provedor queria falar comigo para eu me dirigir à porta da secretaria, estávamos a seguir à pandemia, se calhar ainda estávamos na pandemia porque eu fui convocado para falar com o Sr. Provedor à porta da secretaria e eu disse, ´olhe, eu tenho dificuldade em movimentar, tenho estado doente, acamado, digam-me quando eu ir, a que horas é para eu apanhar levar o carro ou então chamar um táxi`; ´então, mas o Sr. não pode atravessar daqui ali?` Eu disse, olhe, não porque tenho dificuldade em andar. [“Se lhe foi solicitado alguma vez por parte da Santa Casa para entrar na sua habitação?”] Não. [“(...) e ver o estado de higiene, nunca ninguém lhe pediu para lá entrar?”] Não. [“E o Sr. se lhe pedissem deixaria lá entrar, é isso?”] Certamente, com toda a certeza, aliás, se me permite, com o devido respeito, na segunda vez que fui visitado eu fui alertado para o facto de, ´cuidado porque o Sr. Provedor é que manda nisto tudo, veja lá`, e eu disse, olhe eu tenho muita pena mas se é o Provedor que manda nisto tudo por que é que ele não vem falar comigo? E uma das senhoras, não me recordo qual ou, aliás, eu sei quem foi mas não me recorda agora o nome, PP, não sei se, talvez, ´então mas se o Sr. Provedor cá vier o Sr. recebe-o na sua casa?` E eu disse, com certeza, porque é que não o hei de receber. Foi isto que se passou. [“(...) diz o Sr. que ninguém lhe solicitou da parte da Santa Casa para entrar na sua casa?”] Não.  [“Não foi solicitado por alguém para lá entrar?”] Não. [“É referido aqui (...) que não haverá cumprimento de regras de higiene, no prédio, da sua habitação, isto acontece não acontece, o Sr. o que é que tem a dizer?”] Não acontece. (...) [“(...) saberá ou não, pergunto-lhe, se os vizinhos se queixam que há, designadamente, lixo à entrada do apartamento, se os vizinhos se queixam disso?”] Nunca, eu sublinho, nunca coloquei um saco nem que papéis contivesse à porta da minha casa. Dois - nunca houve lixo alimentar à entrada da minha casa. Três - a casa está higienizada nas condições normais; a vizinha do lado queixou-se de que tinha cheiros nauseabundos; se era nauseabundos deveriam ter queixas não só da vizinha do lado; não tenho conhecimento que as outras vizinhas se tenham queixado. [“E quando diz a vizinha do lado, qual é a porta?] É a porta à minha direita é a 14, n.º 12 apartamento 14 ... (...); à minha direita, é contíguo. [“(...) à direita quando sai para fora ou quando vai a entrar?”] Quando a pessoa entra é à esquerda, quando eu entro na minha casa, a vizinha fica à minha esquerda, uma Sra. de nome EE. (...) Presentemente, que eu veja, não há limpeza periódica (nas partes comuns do prédio - escadas, elevadores...). [“(...) se existe efetivamente algum cheiro intenso, (...) fétido e constante que incomode os vizinhos?”] Mas não há. Vossa Excelência, peço desculpa, mas não há ou se há não é da minha casa! [“(...) algum vizinho se terá queixado de aqui haver sobras de alimentos?”] Não. [“(...) à entrada do seu apartamento?”] Mentira, falso; eu repito, falso, por uma simples razão, eu raramente como em casa e o que como é através do micro-ondas; eu repito, se me permite, com a devida vénia é falsa essa afirmação. [“(...) no hall de entrada do imóvel já aqui lhe foi perguntado se há dejetos de animais visíveis e que projete mau cheiro, o Sr. também, já...?”] Eu só tenho uma gata; aliás, nessa altura, ela teria um ano e tal ela tem agora três anos, fez em maio; é uma gata que está a ser acompanhada pela veterinária da ..., tem chip, portanto não há problema (...), tudo bem; mas é falso isso. [“(...) o Sr. não permitiria ao senhorio a vistoria do imóvel, a ir lá dentro do seu apartamento?”] Nunca ninguém mo pediu, aliás, fui eu que disse, a uma das senhoras que me visitou pela segunda vez que me perguntou quando eu disse, se o Sr. Provedor manda nisto tudo porque é que o Sr. Provedor não vem cá e a senhora perguntou-me ´então mas se o Sr. Provedor cá vier o Sr. recebeu na sua casa?` Com certeza, porque é que não havia de receber - foi a única vez, que eu fui diretamente ou indiretamente, como queira, avisado que, se... [“E avisado por quem, sabe com quem é que falou?”] Foi uma das senhoras que lá foram, foi ou uma psicóloga ou uma assistente social, penso que uma Dr.ª PP se não estou enganado no nome. [“(...) terá lhe sido pedido então por mais do que uma vez para colaborar, quanto à questão, ao entrar no seu imóvel ou colaborar em questão de limpeza, isso foi-lhe alguma vez pedido?”] Não. Perguntaram-me só, ´o Sr. precisa de ajuda?` E eu disse não! (...) [“Quando essa vizinha se queixou a si disse-lhe alguma coisa, disse-lhe o quê concretamente?”] Ela disse-me ´olhe que está aqui um cheiro muito grande`. [“Aqui onde?”] Aqui à entrada da minha casa e da dela, são contíguas as portas praticamente, fazem um ângulo de 90 graus; ´o Sr. não sente?` E eu disse, não, não sinto, de cá de casa não é; ´ah, mas cheira muito...`; se fosse nauseabundo acho que chegaria do rés-do-chão ao último andar, aliás essa Sr.ª até terá pensado que eu tinha morrido e provavelmente com o cheiro que viria da casa que seria do meu cadáver razão pela qual os bombeiros entraram pela varanda, partiram-me a porta de entrada da varanda, que eu ainda não a consegui abrir nem fechar, ela está empenada, está impossibilitada de abrir, os bombeiros bateram à porta, empurraram a porta, a porta abanou a ponto de uma aduela cair, está caída ainda, depois eu estava deitado, tinha tomado medicação, eu sofro de espondilite ancilosante, são dores incríveis, eu estava deitado e os bombeiros, subitamente, para além de baterem à porta, (...) parecia uma sirene de um bombardeamento, batiam à campainha, assustadoramente, como se tivesse havido um cataclismo e os bombeiros depois entram pela varanda, entram na varanda, eu tinha as portas fechadas, tentam arrombar as portas da varanda. [“Mas antes disso ninguém lhe tocou à campainha?”] N vezes. [“E o Sr. não foi abrir?”] Porque eu, eu quis abrir, mas eu tenho dificuldades em levantar-me quando estou com dores e como não ia à porta eu nunca pensei que me fossem arrombar a janela da marquise, ninguém me telefonou. [“Então diz o Sr. que e além da vizinha EE, mais alguém lhe disse que havia algum cheiro ou da Santa Casa, foram lá?”] Não. [“Da Santa Casa ninguém lhe disse que havia cheiros? Ninguém o confrontou com essa situação?”] Não. Nem nenhuma das funcionárias que era suposto fazer a limpeza do condomínio nenhuma me chamou a atenção; se viam lá o lixo... [“E a psicóloga PP, quando falou consigo, não falou que haveria...?”] Qual PP? [“O Sr. falou que era o nome PP?”] Sim, salvo erro eu penso que... [“Essa Sr.ª que o Sr. diz que possa ser psicóloga ou que sabe que o nome era PP, não lhe terá falado se havia ou não cheiro se havia alguma queixa?”] Ela disse-me que havia uma queixa dessa Sr.ª, do lado, da Sra. EE. [“E (...) a própria ter-lhe-á pedido para entrar na sua casa?”] Não. [“Não lhe pediu para entrar na casa?”] Não. Se me permite, eu peço desculpa, uma das minhas interrogações é o facto de se queixarem de que há lixo à porta, e de que há restos de comida à porta e de que há um cheiro nauseabundo, nunca, da parte da Santa Casa, as senhoras que tomam conta do condomínio, que tomavam porque agora penso que fizeram uma ligação no último piso deste edifício com o edifício do lado que também é propriedade da Santa Casa, (...) mas acho estranho que só a vizinha do lado se tenha incomodado com o cheiro, se tenha incomodado com o lixo à porta, se tenha incomodado com os restos de comida e nenhuma das senhoras que fazia a limpeza tivesse alguma vez batido à porta e dizer-me ´olhe o Sr. não pode ter aqui o lixo; olhe o Sr. sabe que tem aqui alimentos`. Nunca! [“Eram as senhoras que faziam limpeza, era até, mais ou menos tem ideia, que ano, até que ano é que isso aconteceu?] Foi antes da pandemia. [“Fizeram limpeza até antes da pandemia?”] Sempre. [“Eram pessoas contratadas naturalmente para fazer limpeza, é isso?”] Não, eram as pessoas que ficavam lá durante a noite, cada andar, o meu andar pelo menos, tem uma campainha diretamente ligada ... a essas senhoras funcionárias do último andar, aliás, penúltimo, porque ainda há um último andar, temos uma campainha para no caso de nos sentirmos mal ou na casa de banho ou no quarto para carregarmos na campainha e as senhoras desciam; hoje, não vale a pena carregar porque não está lá ninguém. [“Então, antes da pandemia existia quem fizesse a limpeza?”] Havia. [“Depois da pandemia deixou de haver?”] Deixou. (...) eu como tenho dificuldades em fazer pesos, houve uma vez eu tive dificuldade em subir a entrada da porta com sacos de supermercado e vinha uma senhora que tomava conta do prédio e eu pedi-lhe ajuda, a Sra. não se importa de me dar uma ajuda e ela disse ´peço desculpa mas não podemos`, pronto e eu, com sacrifício, subi; mais tarde, um mês, não sei, passado algum tempo, eu tive a mesma dificuldade e vinha a entrar uma outra cuidadora do prédio que me disse ´o Sr. quer ajuda`, eu disse não porque vocês não podem, ah deixe lá não se preocupe, mas não podem porquê? ´Ah, temos uma ordem escrita para não podermos ajudar, mas não tem problema eu ajudo`.  Portanto, há muito tempo que eu serei pessoa não grata naquele prédio, não sei se Vossa Excelência achará por bem pedir o livro de registo de acontecimentos do prédio para verificar o que é que se passa relativamente a mim? [“Livro de registo, como assim?”] Há um livro tanto quanto eu pressuponho, uma das funcionárias disse-me que no livro de registo de ocorrências durante os dias em que as senhoras lá dormiam, estava registado o facto de não me ser dada a possibilidade de ajuda a transportar fosse o que fosse; há muito tempo!... (...) [“O Sr. falou que alguém terá perguntado penso até disse que foi a Sr.ª ou Dra. PP, psicóloga?”] Dr.ª PP. [“... que terá perguntado, indagado, se o Provedor quisesse visitá-lo em sua casa o Sr. o recebia? (...) solicitaram que fosse o Sr. à Santa Casa, que se deslocasse a falar com o Provedor, ou não?”] A primeira vez, sim, e perante a minha impossibilidade a Sra. chamou-me a atenção, a Dr.ª PP chamou-me à atenção ´tome cuidado, eu estou a medir as palavras e sei o que estou a dizer, tome cuidado que o Sr. Provedor é a pessoa que manda nisto tudo!` - nesse tom; eu senti uma ameaça e eu disse-lhe, então, mas se o Sr. Provedor é o dono disto tudo por que é que o Sr. Provedor não vem aqui e a Sr.ª Dr.ª PP perguntou-me, ´mas se o Sr. Provedor aqui vier o Sr. recebe-o na sua casa?` E eu disse-lhe por que é que não o hei de receber? Com certeza! Mais nada.”

            - BB (fls. 104):

            “(...) era a responsável pelos apartamentos, trabalhava lá. (...) quando o Sr. AA entrou, já lá estava. (...) No Centro de Dia onde eu estou existem vários utentes que moram no mesmo prédio; (...) acho que o Sr. não estava bem consciente do que era viver num apartamento de renda social; (...) sempre que havia alguma situação as pessoas tocavam à campainha e nós íamos; (...) os cheiros, o estarmos sempre a tocar à campainha porque o Sr. pôs um papel cá fora que era para tocar à nossa campainha, os barulhos de marteladas nas paredes, os vizinhos a queixarem-se que cada vez que o Sr. ia levar o lixo nós tínhamos que ir lavar o hall da entrada porque ficava derramado o líquido do lixo pelo corredor e pelo elevador...; (...) nós saímos em janeiro de 2020, se a memória não me falha... (...), foi quando fomos todos para a sede; (...) mesmo nós para deixarmos a roupa lavada em casa, um dos dias..., nós temos chaves e o Sr. sabe, sempre soube (...), para entramos num caso iminente,  fomos para entregar a roupa (...), não íamos deixar à porta, apenas abrimos a porta e metemos o cesto lá dentro e ´foi um cenário`..., ele não queria de todo, nunca permitiu, até ao ponto de ter mudado a fechadura para nunca mais lá podermos entrar dentro...; (...) fomos diversas vezes a casa do Sr. AA, eu e a Dr.ª PP, com os relatos dos moradores, dos cheiros..., da situação do lixo, do lixo que ele levava para o contentor ia a verter no elevador, no trajeto da entrada, mas nem sempre fomos bem recebidas...; (...) tirando a primeira vez, que entrámos (no apartamento), eu e a Dr.ª PP, nunca mais conseguimos, ou o Sr. não estava, ou não abria a porta, muitas vezes mesmo...; (...) nós quando vamos lá e abrimos a porta, o cheiro é notório (...).” Referiu, ainda, que é efetuada limpeza regular das partes comuns dos prédios.

            - CC (fls. 104):

           A limpeza das partes comuns dos edifícios é efetuada, “em princípio, de 15 em 15 dias; quando há possibilidade, todas as semanas; (...) começaram por se aperceber, e eu também, do cheiro muito intenso, o Sr. AA também é inquilino, (...) mas visto que os outros inquilinos se queixavam imenso pelos cheiros e conseguíamos identificar de onde vinha o cheiro, (...) comecei a tocar mais vezes à campainha para poder conversar, para poder ver se estava tudo bem, (...) não atendia; (...) eu relato tudo o que faço; (...) é um cheiro que já está todos os dias..., no Verão é completamente impossível; (...) chamámos os Bombeiros para ver se o Sr. estava bem; (...) nós não víamos o Sr. há alguns dias, o cheiro era muito intenso...; (...) foi mesmo uma questão de cuidado, (...) porque o cheiro era mesmo muito intenso (...), mesmo nauseabundo; (...) as vizinhas (...) não viam o Sr. há duas semanas; (...) noto um cheiro muito intenso naquele andar, mais do que nos outros andares, com certeza; (...) nota-se mau cheiro especificamente naquela parte, naquela porta, naquela casa, que é do Sr. AA”, e não assim quando são abertas as portas dos restantes apartamentos, inclusive, do mesmo andar.

           - As testemunhas QQ (fls. 104; que levou a cabo a citação de fls. 42/43) e KK (fls. 104) - não indicadas na alegação de recurso - referiram, nomeadamente, o “cheiro nauseabundo”; “cheiro muito forte que incomodava”; “cheiro a lixo misturado..., parecia cheiro de urina, uma coisa horrível”; “cheiro intenso” junto ao apartamento habitado pelo Réu e que daí provinha, próprio do “lixo”.

           f) Alguma da prova documental foi mencionada e analisada na descrita fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, destacando-se os documentos reproduzidos a fls. 18, 20 verso, 22, 38 verso a 43, 65/66, 70/89, 81, 83, 87 e 92.

            Relativamente a tais documentos, importa dizer e/ou sublinhar:

           -  O conteúdo do documento de fls. 22 integra o facto 6), relevando o teor da comunicação/notificação em causa e a forma desse procedimento (independentemente do correspondente efeito jurídico);

           - Demonstram, inequivocamente, a reiterada ou habitual recusa do Réu em abrir a porta da sua residência (a qualquer pessoa) ou perante quaisquer chamamentos, como sucedeu, nomeadamente, aquando da intervenção de funcionários judiciais (cf. fls. 38 verso e 39), dos serviços postais (fls. 41), da agente de execução (fls. 42) e das forças de segurança (fls. 81 verso);

           - A fls. 65/66, 70/89, 87 e 92 (máxime, fls. 70 e 92) temos a totalidade da disponibilizada informação clínica.

           g) A inspeção ao local realizada em 08.11.2023 encontra-se documentada no auto de fls. 110, fazendo-se constar: “foi percecionado um odor na entrada do prédio, mas sobretudo um mau odor intenso no patamar junto às portas nº 13 e 14 (sendo que o apartamento n.º 14 corresponde à habitação do Réu)”.

            Nesse dia, nas circunstâncias ditas a fls. 108 e seguintes, não foi possível inspecionar o interior do apartamento habitado pelo Réu.

           E igual impossibilidade se verificou na nova data que então se decidiu marcar (fls. 110 verso e seguintes).

           O Réu, através da sua Exma. Mandatária, invocou a “impossibilidade de abrir a porta” do apartamento[9], e o Tribunal a quo indeferiu, e bem, a designação de nova data para tal inspeção, quer atendendo ao “risco” de novas pretensas impossibilidades em “abrir a porta” (agora, também para o tribunal, na fase de julgamento...), quer por considerar que, atendendo à prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, “o Tribunal, oficiosamente, não a determinaria”, i. é, não ordenaria, por desnecessária, a realização da dita inspeção ao interior do apartamento habitado pelo Réu.

            Ora, tal diligência, inicialmente tida por conveniente, veio assim a revelar-se desnecessária, inconveniente e inútil (dada a abundante prova sobre a realidade a dilucidar), além de contrária ao normal andamento dos autos.

           A Mm.ª Juíza do Tribunal a quo fez adequado uso dos seus poderes-deveres, designadamente, de gestão processual (art.º 6º, n.º 1, do CPC), respeitou o preceituado nos art.º 130º e 490º, n.º 1, do CPC e não omitiu ato ou formalidade que a lei prescreva (art.º 195º, n.º 1 do CPC).

           Por conseguinte, o despacho proferido na sessão da audiência de julgamento de 28.11.2023 não merece censura.

            3. Face à mencionada prova pessoal e documental, sem prejuízo da modificação a introduzir nos pontos 12) e 13) - simplificando, quanto ao 1º, e alargando e explicitando no tocante ao 2º - podemos dizer que a decisão de facto respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que a Mm.ª Juíza observou, em geral, as normas do direito probatório material e inexistem elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou - considerada, nomeadamente, a exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[10] -, porquanto não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[11]

           A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

           A aludida prova documental e testemunhal em nada permite modificar a realidade dada como provada mencionada em 6), 8), 9) e 10) objeto da presente impugnação, sendo que, relativamente aos factos 8) a 10) a prova pessoal leva, necessariamente, à sua completa afirmação/demonstração.

            4. Relativamente aos factos 12) e 13), atendendo ao doc. de fls. 20 verso e à aludida informação clínica, introduz-se a seguinte modificação:

            12) O Réu nasceu a ../../1946.

            13) O Réu é seguido no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, mantendo-se atualmente medicado por diagnóstico de espondilartrite seronegativa, fibromialgia, osteoartrose nodal das mãos, défice de vitamina D, dislipidémia, obesidade e hiperplasia benigna da próstata; foi submetido a angioplastia de lesão significativa da artéria descendente anterior do segmento médio, com colocação de stent. 

           Termos em que a pretendida modificação da decisão de facto fica parcialmente atendida.

            5. Preceitua o Código Civil:

           - Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (art.º 1022º).

           - A locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel (art.º 1023º).

            - São obrigações do locatário: Facultar ao locador o exame da coisa locada; Não fazer dela uma utilização imprudente (art.º 1038º, alíneas b) e d)).

           - A resolução do contrato de locação pode ser feita judicial ou extrajudicialmente (art.º 1047º).

           - O arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei (art.º 1079º).

           - A cessação do contrato torna imediatamente exigível, salvo se outro for o momento legalmente fixado ou acordado pelas partes, a desocupação do local e a sua entrega, com as reparações que incumbam ao arrendatário (art.º 1081º, n.º 1).

            - Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte (art.º 1083º, n.º 1). É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio: a) A violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio; b) A utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública (...) (n.º 2).[12]

           - A resolução pelo senhorio com fundamento numa das causas previstas no n.º 2 do artigo anterior é decretada nos termos da lei de processo (art.º 1084º, n.º 1).[13]

            - A desocupação do locado, nos termos do artigo 1081º, é exigível após o decurso de um mês a contar da resolução se outro prazo não for judicialmente fixado ou acordado pelas partes (art.º 1087º).

           6. A ação de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo (art.º 14º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27.02, que estabeleceu o novo regime do arrendamento urbano/NRAU).

            7. Perante o descrito quadro normativo e a factualidade apurada, nenhuma censura merece a sentença recorrida quanto ao que se vê impugnado, mormente quando refere:

            - Estamos perante a existência de um contrato misto: prestação de serviços e arrendamento, dominando a vertente de arrendamento / “habitacional”.

            - A resolução é a destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato.[14]

            - Atento o disposto nos art.ºs 432º, n.º 1 [“aquele que resolve o contrato só o pode fazer se tiver na lei ou no próprio contrato (...), fundamento para tal”], 1038º, alíneas b) e d) e 1083º, n.ºs 1 e 2 [a situação que confere o direito à resolução tem de configurar um “incumprimento (de deveres contratuais ou legais, incluindo a vertente de proteção de terceiros) que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”; as circunstâncias previstas na alínea a) do n.º 2 compreendem situações de incumprimento de regras de ‘convivência’ e de ‘relacionamento social’, pelo que só relevam como causa de resolução se houver repercussão no espaço exterior ao locado, e se atinja ou possa atingir a esfera pessoal ou jurídica de terceiros - situações cujas consequências, contendendo com as boas regras de convivência e inter-relacionamento social, se repercutem no espaço exterior ao locado e atinjam ou sejam suscetíveis de atingir a esfera pessoal ou jurídica de terceiros, de acordo com uma apreciação objetiva e não em função do simples incómodo eventualmente sentido pelo terceiro; circunstâncias que representem falta de higiene, mas circunscritas ao interior do locado, relevarão enquanto violação da obrigação do arrendatário de não fazer do locado uma utilização imprudente, atento o disposto na alínea d) do art.º 1038º do Código Civil[15]] do CC e a factualidade descrita, principalmente, em II. 1. 8) a 11), supra, assiste à A. o direito de fazer cessar o contrato de arrendamento celebrado com o Réu, porquanto, além do mais, a situação a que deu causa atenta contra o direito a um ambiente de vida sadio que os demais inquilinos têm (também eles maioritariamente idosos), bem como os respetivos direitos de cada um, a uma habitação em condições de higiene ou salubridade.

           - É de tal forma intenso, fétido e permanente o mau cheiro emanado do apartamento em causa, que se exterioriza e repercute na vida dos demais inquilinos, passível de afetar a sua saúde e o sossego; daí, pois, a gravidade do incumprimento do arrendatário Réu das regras de higiene e de boa vizinhança, pelas consequências já manifestadas, para terceiros, tornando inexigível a manutenção do arrendamento pelo senhorio, atenta a gravidade, constância e consequências de tal violação de regras de higiene e de boa vizinhança.

           - Verificam-se os pressupostos de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio (art.º 1083º do CC), pelo que, declarada judicialmente a resolução do contrato de arrendamento, recai sobre o arrendatário/Réu a obrigação de restituir o imóvel arrendado, desocupação que é exigível, em regra, após o decurso de um mês a contar da resolução (art.ºs 1047º e 1087º do CC).

           8. A resolução tem lugar em situações de variada natureza, resultando, não de um vício da formação do contrato, mas dum facto posterior à sua celebração, normalmente um facto que vem iludir ou frustrar a legítima expetativa duma parte contratante, muitas das vezes, um facto da contraparte que traduza o inadimplemento de uma obrigação.

           Tal forma de cessação dos efeitos negociais tem normalmente por fundamento (embora nem sempre – cf. art.º 1140º do CC) uma perturbação na execução do contrato que afeta o interesse do credor.[16]

            9. Considerando o disposto no n.º 2 do art.º 1083º do CC, para a pretensão resolutiva do arrendamento proceder, terá o autor de demonstrar, não apenas que ocorreu determinada situação de incumprimento contratual culposo, mas ainda de alegar circunstanciadamente que tal situação de incumprimento, imputável à parte que desrespeitou o contrato, deve determinar - num juízo objetivo, proporcional e razoável - a inexigibilidade de manutenção da relação contratual.[17]

           10. Como vimos e se deixou explicitado na sentença recorrida, na situação em análise, encontram-se alegadas e demonstradas circunstâncias que – num juízo objetivo e concreto de ponderação e proporcionalidade – tornam razoável e adequada a produção do efeito extintivo da relação de arrendamento.

           11. A A./recorrida pediu a não manutenção (cessação/resolução) do contrato de arrendamento nos termos dos art.ºs 1038º, alíneas b) e d) e 1083º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), do CC; trata-se da resolução do contrato “(...) por ser inexigível ao A., ora senhorio, a manutenção do contrato de arrendamento (...)”, com fundamento nas referidas normas do art.º 1083º do CC.[18]

            Para o efeito lançou mão da ação de despejo prevista nos art.ºs 1047º e 1084º, n.º 1, do CC e 14º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27.02 (NRAU).

            A resolução é aqui efeito da própria sentença de despejo, como sentença constitutiva.[19]

           Por conseguinte, observados os requisitos adjetivos que a lei prevê e demonstrados os factos que fundamentam a pretendida cessação do contrato de arrendamento, não se vê de que forma o Tribunal possa ter condenado além do pedido ou em objeto diverso do pedido - cf. “conclusões 6ª a 9ª”, ponto I., supra.   

           12. Soçobram, desta forma, as demais “conclusões” das alegações de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.

    *

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida (com a “modificação” da decisão de facto dita em II. 4., supra).

            Custas pelo Réu/recorrente.


*

08.7.2025



[1] Com alguma simplificação/expurgação.
[2] Reproduziu-se, por simples colagem, o teor do documento junto a fls. 18, no tocante às mencionadas cláusulas.
[3] Que assim reza: «Pelo presente contrato, a PRIMEIRA OUTORGANTE cede ao SEGUNDO OUTORGANTE o APARTAMENTO 14 Bloco B do prédio acima mencionado. / § PRIMEIRO - A primeira outorgante reserva-se no direito de, com o consentimento do segundo, instalá-lo em qualquer outro apartamento da primeira outorgante situado na vila da .... / § SEGUNDO - No caso de o segundo outorgante ser acometido de um estado de saúde precário que o impossibilite de cuidar de si, nomeadamente confecionar refeições, cuidar da sua higiene pessoal, procurar cuidados médicos, etc., com carácter duradouro, a primeira outorgante reserva-se no direito de o transferir para outras instalações da Santa Casa da Misericórdia da ... onde lhe possam ser assegurados todos os cuidados que se revelarem necessários
[4] Com o seguinte teor: «Pela cedência feita pela PRIMEIRA OUTORGANTE ao SEGUNDO, o SEGUNDO OUTORGANTE pagará à PRIMEIRA a quantia mensal de € 173,06 (...), correspondente à renda que estiver em vigor na data da efetividade do contrato, que atualizará anualmente de acordo com o coeficiente legal estipulado pelo Governo. / § único: A primeira atualização terá lugar 1 (um) ano após a entrada em vigor do presente contrato
[5] Assim redigida: «O SEGUNDO OUTORGANTE reconhece expressamente que o apartamento referido na cláusula 1ª deste contrato se encontra em perfeito estado de conservação e limpeza, obrigando-se a entregar as partes cedidas no termo do contrato em igual e perfeito estado de conservação e limpeza, ressalvadas as deteriorações resultantes do uso normal e prudente das mesmas
[6] Com o teor: «1. Uma vez terminado o presente contrato, por caducidade, denúncia ou resolução, o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a restituir de imediato o apartamento à PRIMEIRA OUTORGANTE, no mesmo estado de conservação em que o mesmo se encontra atualmente. / 2. Em caso de atraso na entrega das PARTES cedidas, nos termos do disposto no número anterior, o SEGUNDO OUTORGANTE pagará à primeira outorgante, por cada dia de atraso, uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 20 (...).»

[7] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[8] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[9] Ainda que desconhecidas quaisquer especiais/particulares dificuldades de locomoção por parte do Réu (ou outras atinentes, por exemplo, à audição ou às faculdades mentais - além do mais, o Réu demonstrou ter uma muito boa memória e firmeza no discurso), estranha-se, por exemplo, a aparente impossibilidade em facultar a chave do apartamento a uma outra pessoa com vista à realização da inspeção, que sempre seria simples e breve.
[10] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[11] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e A. Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.

[12] Dispõem os n.ºs 3 a 6 do mesmo art.º: «3 - É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte. 4 - É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte. 5 - É fundamento de resolução pelo arrendatário, designadamente, a não realização pelo senhorio de obras que a este caiba, quando tal omissão comprometa a habitabilidade do locado e, em geral, a aptidão deste para o uso previsto no contrato. 6 - No caso previsto no n.º 4, o senhorio apenas pode resolver o contrato se tiver informado o arrendatário, por carta registada com aviso de receção, após o terceiro atraso no pagamento da renda, de que é sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos.»

[13] Preceituam os n.ºs seguintes: «2 - A resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista nos n.ºs 3 e 4 do artigo anterior bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida. 3 - A resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, nos termos do n.º 3 do artigo anterior, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês. 4 - O arrendatário só pode fazer uso da faculdade referida no número anterior uma única vez, com referência a cada contrato. 5 - Fica sem efeito a resolução fundada na oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública se, no prazo de 60 dias, cessar essa oposição.»

[14] Vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, Reimpressão da 7ª edição, 2004, pág. 275.

[15] Quanto a esta problemática, citou-se o acórdão da RP de 24.10.2024-processo 1764/21.3T8VNG.P1 [com o sumário: «I - Ao senhorio é facultada a resolução do contrato de arrendamento escudado na verificação das circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 2 do art.º 1083º do CC ou fora delas, isto é, em comportamentos do arrendatário que representem violação de outra(s) disposição(ões) legal(is) ou estipulação(ões) contratual(is). II - Quer num caso, quer noutro, contudo, a resolução do contrato pelo senhorio pressuporá sempre a verificação da cláusula geral da ´inexigibilidade da manutenção do arrendamento` prevista no corpo daquele normativo. III - As circunstâncias previstas na alínea a) do n.º 2 - violação de `regras de higiene, de sossego ou de boa vizinhança` ou de ´normas constantes de regulamento de condomínio` - compreendem situações de incumprimento de regras de “convivência” e de “relacionamento social”, pelo que só relevam como causa de resolução se houver repercussão no espaço exterior ao locado e se atinja ou possa atingir a esfera pessoal ou jurídica de terceiros. IV - Circunstâncias que representem falta de higiene, mas circunscritas ao interior do locado, a relevar, relevarão, sim, enquanto violação da obrigação do arrendatário de não fazer do locado uma utilização imprudente, atento o disposto na alínea d) do art.º 1038º do Código Civil. (...)»], publicado no “site” da dgsi.
[16] Vide, nomeadamente, C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição (2ª Reimpressão), por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2012, págs. 627 e seguintes e J. Baptista Machado, RLJ, 118º, 278, nota (9).
   Em idêntico sentido - vide I. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, 1986, págs. 432 e seguintes e nota (1) da pág. 440 -, com o entendimento de que a palavra «resolução» parece ter no Código Civil um significado que abrange quer a revogação, mas só quando unilateral, quer a rescisão, consistindo, esta, na destruição dos efeitos de um ato jurídico por vontade ou iniciativa de uma das partes com base num fundamento objetivo (justa causa), como nos contratos bilaterais o não cumprimento pela outra parte.
   Explicita o mesmo Autor (ob. cit., págs. 430 e 440) que a rescisão, “sendo obra do credor e não do juiz, opera por efeito da vontade do primeiro. Mas é necessário, obviamente, que este leve essa sua vontade ao conhecimento da outra parte, i. é, que lhe ´comunique` a sua decisão de rescindir o contrato.”

[17] Cf. acórdão do STJ de 13.02.2014-processo 43/09.9TCFUN.L1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[18] De entre os temas de prova, figurava o seguinte: «(...) 3.º- Verificação dos pressupostos da resolução do dito contrato, invocados pela Autora (artigos 18.º a 32.º, 35.º, da p. i.);» - cf. fls. 53 verso.
[19] Vide F. M. Pereira Coelho, Arrendamento, Lições ao curso do 5º ano de Ciências Jurídicas no ano letivo de 1986-1987, Coimbra, 1987, pág. 241.