Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22320/23.6T8LSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
FALTA OU ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
FACTOS ESSENCIAIS NUCLEARES
FACTOS COMPLEMENTARES E CONCRETIZADORES
AUDIÊNCIA PRÉVIA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PORTO DE MÓS DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 6.º, N.º 2, 183.º, N.º 2, AL.ª A), 186.º, N.ºS 1, AL.ª A), E 3, 590.º, N.ºS 2, AL.ª B), E 4, 591.º E 592.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Só a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, e já não a sua mera insuficiência ou imprecisão, acarretará a ineptidão da petição inicial.

II – Incumbindo ao autor a alegação dos factos de cuja verificação depende a procedência das pretensões por si deduzidas, apenas os factos essenciais nucleares (principais) constituem a causa de pedir, interessando os factos essenciais complementares e concretizadores unicamente à procedência da ação.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Catarina Gonçalves

2º Adjunto: Chandra Gracias

                                                                                               

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Arestas e A... Unip., Lda., intenta a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:

1. B... S.A., Sucursal em Portugal e,

2. Companhia de Seguros C..., S.A.,

Pedindo:

- que, considerando-se a 1ª Ré como única e responsável pelos danos causados no veículo de matrícula ..-SM-.., seja condenada a pagar a título de indemnização, a quantia líquida de 23.821,70€, remetendo-se a sua liquidação para execução de sentença, por todos os danos sofridos em resultado do acidente supra descrito, acrescido de juros à taxa de legal supletiva desde a citação;

Caso, assim não se venha a entender, subsidiariamente,

por força do contrato seguro deve a 2ª Ré ser condenada a pagar a título de indemnização, a quantia líquida de 23.821,70€, remetendo-se a sua liquidação para execução de sentença, por todos os danos sofridos em resultado do acidente, acrescido de juros à taxa de legal supletiva desde a citação;

Alegando, para tal, e em síntese:

no dia 27 de setembro de 2020, ocorreu um acidente de viação entre o veículo ..-SM-.., conduzido por um funcionário da autora, e o veículo de matrícula ..-XM-.., por culpa exclusiva do condutor do XM, o qual tinha a sua responsabilidade transferida para a 1ª Ré;

no dia 15 de outubro de 2020, a 2ª Ré declarou a inviabilidade da reparação do veículo SM, por o seu custo, no valor de 17.321, 97 €, ser superior ao seu valor de mercado, ou seja, 12,990,00 €;

no dia 10 de novembro, a 2ª Ré declinou a sua responsabilidade no pagamento dos prejuízos, alegando que os danos vistoriados não se verificavam de acordo com os participados;

por sua vez, a 1ª Ré declinou a sua responsabilidade e no dia 26 de fevereiro de 2021 participou criminalmente contra os condutores dos veículos, imputando-lhes um crime de burla relativa a seguros, crime do qual foram absolvidos;

o condutor do XM é o único civilmente responsável pelo acidente de viação, pelo que, reclama a autora da 1ª Ré a quantia de 17.321,97 €;

mais avalia os danos não patrimoniais no valor nunca inferior a 6.500 €;

caso assim se não venha a entender, subsidiariamente, reclama tais importâncias da 2ª ré.

A 2ª Ré C... contesta invocando a sua ilegitimidade por o acidente ser imputado à culpa exclusiva do condutor segurado na 1ª Ré, ou, assim não se entendendo, pugnado pela sua absolvição do pedido.

A 1ª Ré B... apresentou Contestação, invocando a ineptidão da petição inicial, com a sequente nulidade de todo o processo ou, caso assim se não entenda, pela improcedência da ação.

Pelo Juiz a quo foi proferido o seguinte despacho:

“Atendendo à natureza das questões invocadas em sede de contestação – que integram defesa por exceção – afigura-se pertinente que seja concedida à autora oportunidade de sobre elas se pronunciar por escrito, ao invés de o fazer oralmente em audiência prévia.

Face ao exposto, e ao abrigo do princípio da adequação formal, notifique a autora para exercer o contraditório relativamente à matéria de exceção contida nas contestações.

Prazo: 10 dias”

Na sequência de tal convite, a autora veio responder à exceção de ineptidão da p.i., alegando que, havendo contestação, a Ré compreendeu o pedido e a causa de pedir, partindo-se do princípio que pôde exercer o seu direito de defesa, interpretando convenientemente a p.i..; caso assim não se venha a entender, a Autora pode ser convidada à correção da p.i. (nos termos do art. 590º, nºs 2, al. b), 3 e 4 do CPC).

Pelo juiz a quo foi proferido Despacho saneador a julgar procedente a exceção dilatória de nulidade de todo o processo, decorrente da ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido, absolvendo as rés da instância.


*

Não se conformando com tal sentença, o Autor dela interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

 (…).


*

A 2ª Ré apresenta contra-alegações, no sentido da improcedência do recurso.

Dispensados os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº4, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade por falta de convocação da audiência prévia
2. Se, não sendo inepta a petição inicial, era apenas de convidar o autor a corrigir ou completar a petição inicial.
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade da decisão por falta de convocação da audiência prévia

Dispõe o artigo 591.º do Código de Processo Civil:

Audiência prévia

1 - Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:

a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;

b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;

(…)

 Se a realização da audiência prévia constitui a regra no processo declarativo sob a forma de processo comum de valor superior a 15.000,00 €, o nº1 do artigo 592.º do CPC determina que:

“1. A audiência prévia não se realiza:

 (…)

b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.

“Considerando a estrutura da ação declarativa comum e as funções atribuídas à réplica (artigo 584º), a forma mais eficiente de assegurar a aplicação do artigo 592º, nº1, al. b), será o juiz, num ato típico de adequação formal (art. 547º), proferir despacho a determinar a notificação da parte ou das partes para se pronunciarem por escrito sobre a matéria de exceção, assim ficando assegurado o contraditório.

A partir daí, o juiz já terá condições para não realizar audiência prévia e passar logo à prolação de despacho saneador em que, reconhecendo a exceção dilatória, ponha termo ao processo com um juízo de absolvição da instância[1]”.

No caso em apreço, o processo findou no despacho saneador pela procedência da exceção dilatória da ineptidão da petição inicial, exceção esta, relativamente à qual havia já sido dada às partes a oportunidade de sobre ela se pronunciarem.

Como tal, não é de dar razão à Apelante quando sustenta que, ao não se realizar a audiência prévia, tenha havido preterição de formalidade essencial.


*

 2. Se, não se verificando a ineptidão da petição inicial, deveria ter havido lugar a convite ao aperfeiçoamento

A decisão recorrida julgou inepta a petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido, ao abrigo do disposto no artigo 186.º, n.º 1, al. a) do CPC, com base nas seguintes considerações:

“(…) Da petição inicial apresentada pela Autora constatamos que esta pretende ser ressarcida por uma das duas seguradoras pelo sinistro ocorrido no dia 27 de Setembro de 2020. Contudo, não vislumbra o Tribunal do que pretende ser ressarcida. Não se alcança porque razão a Autora pretende o pagamento da quantia de €17.321,97 e não outra qualquer. Não há uma palavra para o destino do veículo automóvel desde a data sinistro e o momento da propositura da ação, não resultando da PI se o veículo se encontra a aguardar reparação, se foi vendido para sucata, nada. A alegação é inexistente e o que não existe, não pode ser suprido através de convite.

Por outro lado, a Autora pede o pagamento da quantia de €6.500,00 a título de compensação pelos danos não patrimoniais, provocados pelo “período em que a Autora ficou inibida de exercer o seu direito e consequentemente ver o veículo automóvel com a matrícula ..-SM-.. reparado e ou adquirir outro” e caso este pedido não seja procedente, deve a 2.ª Ré “ser condenada no pagamento correspondente ao valor do veículo, coberto pelo seguro”, valor que não é mencionado em parte alguma da PI, alegando ainda, no artigo 29.º “pelo que em alternativa e por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados, requer-se a sua liquidação remetida para execução de sentença”.

Constata-se que a Autora não concretizou que danos se verificaram no veículo automóvel SM.

A Autora não alega o fundamento para o pedido patrimonial apresentado, não alega qual o destino dado ao veículo automóvel, assim como não alega qualquer facto que funde o pedido de pagamento de €6.500,00 a título de danos não patrimoniais.

A Autora confunde a compensação por danos não patrimoniais, com pedido ilíquido, alega de forma conclusiva e confusa, não sendo perceptíveis que danos pretende que sejam ressarcidos, nem qual a sua causa.

Para além de pedido ininteligível, constatamos também por ininteligibilidade da causa de pedir, por alegação insuficiente, conclusiva e ausência de alegação dos factos essenciais para a procedência do pedido.

A inexistência de alegação concreta dos factos essenciais, a confusão na formulação dos pedidos, não permitem compreender qual é o pedido formulado, nem qual a causa de pedir subjacente – não bastando invocar a existência de acidente de viação, i.e., os poucos fundamentos de facto alegados, ainda que de forma conclusiva não permitem perceber onde radica a pretensão de indemnização e compensação manifestada.

Ao contrário do que a Autora defende, a total ausência de alegação dos factos essenciais para a procedência do pedido não poderá ser suprida pelo convite ao aperfeiçoamento, uma vez que o convite se encontra limitado às “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”, cfr. artigo 590.º, n.º 3 do CPC.”

A Apelante insurge-se contra o decidido com base nos seguintes fundamentos, que assim se sintetizam:

1. das respetivas contestações resulta que, quer a 1ª Ré, quer a 2ª ré, entenderam perfeitamente quais os danos patrimoniais reclamados – sendo que, do doc. 3 junto com a p.i., consistente num email em que a 2ª Ré comunica que, após vistoria à sua viatura ..-SM-.. por D..., Lda., a reparação não será aconselhável, na medida em que o seu custo estimado de 17.321,97 € é superior ao seu valor de mercado;

2. quanto aos danos não patrimoniais, sendo a causa de pedir o acidente de viação e a responsabilidade transferida para a 1ª ré; a autora reclama o período de tempo da resolução do acidente, em virtude de haver uma queixa crime, respeitante ao período temporal entre a data do acidente e a data da propositura da presente ação, período durante o qual a autora ficou inibida de exercer o seu direito e privada de ser ressarcida dos prejuízos sofridos no seu veículo;

3. a liquidação da execução de sentença deve-se ao facto de que só com a decisão da causa pode reclamar de todo o tempo que ficou privado e sem ser ressarcido de uma indemnização, danos estes, resultantes da morosidade no ressarcimento, que não podem ser quantificados na propositura da ação;

3. por fim, caso assim se não entender, a autora pode ser convidada à correção da p.i, nos termos do artigo 590º, nº2, al. b) e nº3 e 4 do CPC.

Cumpre, assim, apreciar, se, ao contrário do decidido, as deficiências de exposição dos factos na petição inicial relativamente à determinação dos danos são suscetíveis de correção, desde já, se adiantando encontrar-se a razão do lado da Apelante.

Dispõe o Artigo 183º do Código de Processo Civil, sob a epigrafe:

Ineptidão da petição inicial

1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2 - Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

De uma primeira leitura de tal norma sobressai, desde logo, que não é qualquer deficiência na formulação do pedido e na exposição dos fundamentos que o sustentam que importa a ineptidão da petição inicial, mas, tão só, aquela que os torne ininteligíveis.

Por outro lado, a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial constitui um vício sanável, no caso de verificação da circunstância prevista no nº3.

A exigência de indicação de um pedido e de uma causa de pedir – factos constitutivos da situação jurídica que se pretende fazer valer ou negar – tem por objetivo a identificação da causa para efeitos de delimitação do objeto da ação.

Salientamos, a tal respeito, a opinião de Anselmo de Castro:

“(…) a aptidão da petição inicial cifra-se nisto: na existência “de um pedido formulado em termos de o tribunal poder exercer o seu poder de cognição ou jurisdição, dado que lhe não é licito conhecer ultra petitum ou extra petitio, e também que haja uma causa petendi uma vez que se tem de mover dentro dos limites da causa de pedir invocada.

O autor terá, pois, de, na petição inicial, formular um pedido inteligível quanto ao objeto mediato e imediato, e indicar o facto genético do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer, não lhe sendo, todavia, exigido que faça, desde logo uma exposição completa do elemento factual.

Para que a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objeto jurídico mediato e imediato da ação.”

Ocorre a falta ou ininteligibilidade de indicação do pedido quando nenhum pedido chegou a ser deduzido ou o pedido se acha enunciado de forma tão obscura que não possa descortinar-se qual seja.

Verifica-se a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, quando a causa de pedir é referida em termos de tal modo vagos ou genéricos que não constituam factos concretos, não podendo saber-se qual o ato ou facto jurídico (negócio jurídico, conduta ilícita, vício invalidante, direito de uma coisa, etc.) em que o autor se baseia para enunciar o seu pedido[2].

No caso em apreço, reconhecendo-se que a petição inicial não pugna pela clareza na exposição dos factos e dos fundamentos da pretensão que deduz relativamente a cada uma das rés (contendo, nomeadamente, alguns lapsos de escrita), uma leitura atenta de tal articulado, em conjugação com os documentos anexos e a resposta dada pelas contestações de cada uma das rés, permite alcançar o sentido dos pedidos formulados relativamente a cada uma das rés.

A autora pretende ser ressarcida dos danos para si decorrentes do acidente de viação ocorrido entre o seu veículo de matrícula ..-SM-.. e o veículo XM, com culpa exclusiva do condutor deste, o qual tinha a sua responsabilidade civil por acidentes de viação transferida para a 1ª ré.

A título principal, pretende a condenação da 1ª Ré:

- no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais correspondentes ao valor da reparação do veículo, orçamentada em 17.321,97 € (valor este que corresponde ao atribuído pelas rés, conforme doc. 3, um email enviado pela 2ª ré);

- a título de danos não patrimoniais, uma indemnização pelos danos decorrentes da mora no recebimento da indemnização, que estima em 6.500 €, a liquidar em execução de sentença (o dano só terminará com a prolação da sentença e o pagamento efetivo da mesma);

ou, subsidiariamente,

a condenação da 2ª ré no pagamento de tais valores, por força do contrato de seguro (na modalidade de danos próprios) que a autora celebrou com esta.

A ação encontra-se definida quanto às causas de pedir em que faz assentar os pedidos que formula contra cada uma das rés.


*

Ainda que assim não fosse, tal como sustenta a Apelante, tendo a 1ª Ré contestado a pretensão da recorrente, nomeadamente por impugnação, sempre a eventual nulidade se teria de ter por sanada, ao abrigo do disposto no nº3 do artigo 186º do CPC.

Senão, vejamos.

Da leitura da contestação apresentada pela 1ª Ré, constata-se que, apesar de invocar a “ininteligibilidade do pedido, resultado de uma exposição fáctica impercetível no que aos danos respeita que, por sua vez, corresponde a ininteligibilidade da causa de pedir”, também ela entendeu o pedido formulado pela autora:

a) relativamente à avaliação dos danos da viatura SM, no montante de 17.321,97 € (remetendo para os arts. 21 a 25, onde os mesmos se encontram descritos), a Apelante faz assentar a alegada ininteligibilidade no facto de a autora apelidar tais danos como “danos não patrimoniais”;

b) quanto ao 2º capítulo, igualmente intitulado “danos não patrimoniais” (artigos 26º a 29º da p.i.), alega que “a autora parece requerer reclamar à ré qualquer “prejuízos causados pelo período de resolução do presente litigio”, sem que concretize quais e em que medida; terminando esse capitulo “por defeito, avalia os danos não patrimoniais, de um valor nunca inferior a 6.500 €, pelo que, em alternativa e por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta datam requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença; afinal tais danos são ou não passiveis de determinar neste momento.

Das críticas que deduz à exposição dos factos e ao modo como formula os pedidos, resulta que a autora entendeu devidamente (ou devia ter entendido) as pretensões da autora:

- o autora peticiona a condenação da 1ª ré no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor da reparação do veículo (17.321,97 €), sendo que a circunstancia de alegação respeitante a tais danos se encontrar sob a epigrafe “Dos danos não patrimoniais” (artigos 21º a 25º da p.i.), contém manifestamente um lapso de escrita, uma vez que ao capítulo seguinte é atribuído o título de “Dos danos não patrimoniais”, pelo que um dos títulos tinha de conter um lapso, tornando-se óbvio que o lapso ocorre no 1ª título;

de qualquer modo, ainda que se não tratasse de um lapso manifesto, mas de uma errada qualificação dos danos, em nada altera a perceção do dano em causa – a autora pretende ser ressarcida do valor correspondente ao custo da reparação do veículo;

quanto aos danos não patrimoniais, o dano invocado pela autora corresponde ao “dano decorrente da mora no recebimento da indemnização” – ou seja, corresponderá ao dano decorrente se ver privado do valor necessário à reparação da viatura; quanto à sua não concretização, ou quanto a não fornecer qual o modo de calculo de tal dano (correspondente à taxa de juro de mora? à inflação, ou seja, à diferencia entre o valor que agora é necessário para proceder à mesma reparação), não constituirá motivo de ininteligibilidade da pretensão do autor, podendo eventualmente, carecer de algum esclarecimento.

Quanto à referência ao relegar a liquidação do pedido para execução de sentença, percebe-se porquê, uma vez que o dano por se ver desapossado do valor da indemnização correspondente ao valor de veículo perdurará no tempo até ao ressarcimento efetivo pelo autor de tal indemnização. Ou seja, embora estimado pelo autor em 6.500,00 €, desconhece-se por quanto tempo mais ficará o autor privado do valor correspondente ao custo do veículo.

“É preciso distinguir as situações em que o teor da petição inicial é de tal modo deficitário que se reconduz à falta de ininteligibilidade de pedido ou de causa de pedir, gerando a ineptidão da petição e da correspondente absolvição da instancia, dos casos em que, estando embora presentes estes elementos objetivos da instancia, há insuficiências ou imprecisões na formulação do pedido ou na exposição ou concretização da matéria de facto, as quais devem ser remediadas mediante a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do art. 590º, nº4[3]”.

Quanto à 2ª ré, C..., apresenta contestação, pugnando pela improcedência da ação no que a si respeita, com a seguinte alegação:

uma vez que o processo deixou de ser regularizado por si em sede de Convenção IDS, a reclamação da autora não deveria ter sido feita junto da ré C..., mas sim e apenas, junto da B..., seguradora do XM, o único responsável pelo acidente;

das condições da apólice do seguro celebrado com a 2ª ré C..., constata-se que, no âmbito da modalidade de seguro de danos próprios, o valo venal do veículo SM, relativo à cobertura de choque, colisão e capotamento, era de 13.150 €, pelo que, deduzida a franquia de 350 €, caso a autora optasse pela causa de pedir assente na responsabilidade contratual, apenas poderia ser peticionada contra a C... a quantia de 12.800,00 €;

quanto à indemnização por dano morais, no valor de 6.5000 € ou outro, não está coberta pela Apólice contratada com a C....

Ou seja, também a 2ª Ré compreendeu na integra as pretensões que a autora pretende exercer com a presente ação.


*

Quanto à análise que tribunal a quo faz da petição inicial, com base na qual veio a decretar a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido, temos que as críticas que lhe move, umas, afiguram-se infundadas e outras integram deficiências que, quanto muito, poderiam por em causa a procedência da ação:

Não se alcança porque razão a Autora pretende o pagamento da quantia de €17.321,97 e não outra qualquer. Não há uma palavra para o destino do veículo automóvel desde a data sinistro e o momento da propositura da acção, não resultando da PI se o veículo se encontra a aguardar reparação, se foi vendido para sucata, nada.

… autora não concretizou que danos se verificaram no veículo SM”.

Como resulta das considerações expostas anteriormente, é claro que o valor de 17.321, 97 € peticionado pela autora corresponde ao valor estimado para a reparação do veículo sinistrado (art. 11º da p.i. e doc. 3, junto com a p.i., através do qual a 2ª ré comunica que “o custo da reparação estimado em 17.321,97 € é superior ao seu valor de mercado).

Quanto à falta de alegação respeitante ao destino do veículo automóvel, se o veículo se encontra a aguardar reparação, se foi vendido para sucata, quais os danos que apresenta, a entender-se ser a mesma necessária à aferição da bondade da pretensão da autora, no que toca aos danos ocorridos diretamente no seu veículo na sequencia do acidente, sempre poderia ser suprida mediante convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

Também não acompanhamos a crítica do tribunal a quo, de ausência de alegação de qualquer facto que fundamente o pedido de pagamento de 6.500 € a título de danos não patrimoniais e de que tal falha não possa ser suprida mediante o convite ao aperfeiçoamento.

A autora pretende ser ressarcida pelo dano decorrente do facto de, desde a data do acidente, se encontrar privada do valor necessário à reparação do veículo, e como é obvio, tal dano só cessará com o efetivo recebimento da correspondente indemnização, daí a remessa para da liquidação de tal pedido para momento posterior.

Reconhecemos que a alegação da autora é, de facto, insuficiente a esse nível, uma vez que não indica qual o critério em que se baseia para o cálculo do valor a atribuir a tal dano e que estará na base no valor por si estimado de 6.500 €, relativamente ao dano ocorrido até à propositura da ação (taxa de juros de mora, inflação, ter-se visto obrigada a alugar uma outra viatura?).

Como salienta Miguel Teixeira de Sousa[4], apenas os factos essenciais nucleares constituem a causa de pedir, interessando os factos essenciais complementares e concretizadores unicamente à procedência da ação.

Não há que confundir, nesta sede, os factos necessários à determinação da causa de pedir, cuja falta implica a rejeição da petição inicial por ineptidão [art. 186º, n2, al. a)] ou de absolvição do réu da instância [arts. 577º, al. b) e 287º, nº1, al. b)] e factos necessários para a concludência da causa de pedir invocada, cuja falta será, a se, geradora da improcedência da ação[5]”.

Concluindo, as insuficiências de alegação contidas na petição inicial relativamente aos concretos factos que sustentam o valor dos danos cuja reparação é peticionada nos autos, não acarretam a ineptidão da p.i., justificando, tão só, um convite à autora ao completamento ou concretização do articulado, ao abrigo do disposto nos artigos 590º, ns. 2, al. b) e 4, do CPC.

 Como tal, dando-se razão à Apelante, conclui-se não se verificar falta de causa de pedir integradora de ineptidão da petição inicial, integrando os apontados vícios meras insuficiências na exposição da matéria de facto, suscetível de suprimento mediante ao convite ao aperfeiçoamento, ao abrigo dos artigos 590º, nº4, e 6º, nº 2, do CPC.

A apelação será de proceder, com a sequente revogação da decisão recorrida.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente a Apelação, revogando-se a decisão recorrida de ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir, determinando-se o prosseguimento dos autos, mediante a prolação de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos do artigo 590º, ns. 2, al. b) e 4, do CPC.

Custas da apelação a suportar pelas Apeladas.                     

   Coimbra, 30 de setembro de 2025   


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).                                          


[1] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, p. 690.
[2] Cfr., Francisco Manuel Lucas Ferreira da Silva, “Direito Processual Civil”, Vol. I, Almedina 2010, p. 523, e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, Coimbra Editora, p. 353.
[3] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, p. 222, e Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo, 2ª ed., pp. 24 e 155.
[4] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL Editora, pp. 412-414
[5] José Manuel Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2ª ed., Almedina, pp. 81, e, em igual sentido, [5] Cfr., Ac. TRC de 05-03-91, relatado por Nuno Cruz, in BMJ nº 405, p. 543.