Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO | ||
Descritores: | CO-AUTORIA E CUMPLICIDADE TENTATIVA ACABADA E TENTATIVA INACABADA PUNIÇÃO DA TENTATIVA DESISTÊNCIA DA TENTATIVA INACABADA PRESSUPOSTOS DA MEDIDA DE COACÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO COM VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA REVOGAÇÃO DA MEDIDA DE COACÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 05/14/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 22º N.º 1 E N.º 2, AL. C), 24º, 26º, 27º, 204º, N.º 1, AL. D), E N.º 2, AL. G), DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 193.º, N.ºS 2 E 3, 198º, 200º, N.º 1, ALS. A), C) E D), 201º, N.º 1, 202º, N.º 1 E 204º, N.º 1, AL. C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; ARTS 27.º, N.º 3, AL. B), 28º, N.º 2, E 32º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. | ||
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Sumário: | 1 - O furto é qualificado, além do mais, nas situações em que o agente atue explorando situação de especial debilidade da vítima, o que a torna particularmente indefesa, abrangendo a debilidade por idade, deficiência, doença ou gravidez.
2 - A cumplicidade diferencia-se da coautoria pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através do auxílio físico (cumplicidade material) ou psíquico (cumplicidade moral), constituindo essa prestação de auxílio toda a contribuição que tenha possibilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor. 3 - A cumplicidade traduz-se num mero auxílio, não sendo determinante da vontade dos autores nem participa na execução do crime, mas é sempre auxílio à prática do crime e, nessa medida, contribui para a prática do crime, é uma concausa da prática do crime. 4 - A tentativa pode ser acabada ou inacabada. 5 - Tentativa acabada é aquela em que o agente (está convencido de que) já realizou todos os atos de execução necessários para a consumação material do crime. 6 - Tentativa inacabada é aquela em que o agente está convencido de que ainda não realizou todos os atos de execução necessários para a consumação material do crime. 7 - A aferição da fronteira entre a tentativa inacabada faz-se por referência à representação mental que o agente tinha sobre o processo causal no momento do último ato de execução, segundo a denominada teoria da consideração conjunta. 8 - A distinção tem efeitos práticos relevantes: a desistência da tentativa acabada exige um arrependimento ativo do agente no sentido de impedir a consumação material do crime; ao invés, a desistência da tentativa inacabada exige apenas que o agente omita (deixe de realizar) os demais atos de execução necessários à consumação material do crime – por exemplo, desiste da tentativa inacabada do crime de homicídio o agente que, tendo decidido matar a ex-companheira, afrouxou a pressão sobre o pescoço dela, permitindo que recuperasse os sentidos e deixou-a abandonar a casa onde se encontravam. 9 - Segundo a previsão do artigo 24º, do CP a desistência só é relevante quando o agente, de forma espontânea ou voluntária: - Deixe de prosseguir na execução do crime [1.ª parte do n.º 1], estando-se no domínio da tentativa inacabada – o agente abandona a resolução delitiva porque assim o decidiu, e não porque fracassaram os atos que encetou; ou - Impeça a consumação do crime [2.ª parte do n.º 1], estando-se no âmbito da tentativa acabada – o agente praticou todos os atos de execução que deveriam produzir como resultado o crime consumado; para que não seja punido é necessário que, por atividade própria e voluntária, consiga evitar o resultado, o que não impede que nessa intervenção se possa servir do concurso de outras pessoas; ou - Impeça a verificação do resultado não compreendido no tipo [2.ª parte do n.º 1], também no âmbito da tentativa acabada – pressupõe que a consumação não chegue a ocorrer. 10 - Uma vez que os crimes formais se consumam independentemente da produção do resultado eles ficarão impunes se o agente, tendo-os embora consumado, evita, por intervenção própria e voluntária – que admite o concurso de outras pessoas – que se produza o resultado em vista do qual a lei incriminou a respetiva ação. 11 - A punição da tentativa funda-se em razões de perigo e o dolo traduz a perigosidade manifestada na intenção. Mas, num direito penal do facto, a perigosidade tem de manifestar-se também no facto e não apenas na intenção. | ||
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Decisão Texto Integral: | * * Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. - RELATÓRIO 1. No âmbito do processo de inquérito n.º 11/25.3GCFVN, no Juízo de Instrução Criminal de Leiria - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, foram os arguidos AA, BB, CC, DD e EE submetidos a primeiro interrogatório judicial de arguido detido em 05.02.2025, tendo, a final, sido proferido despacho judicial mediante o qual foi decidido [transcrição[1]]: «a) Que os arguidos aguardem os ulteriores termos processuais em obrigação de permanência na habitação, porquanto fortemente indiciados da prática dos crimes aludidos em §4. e nos termos dos artigos 193 n.º 1 e 3, 204 n.º 1 c), e 201 n.º 1 e n.º 3 do C.P.P.. b) Enquanto não estiverem reunidas as condições de execução da medida referida em a), aguardarão os arguidos em prisão preventiva, nos termos dos artigos 193 n.º 1, 204 n.º 1 c), e 202 n.º 1 d) do C.P.P.. c) Solicite-se à DGRSP relatório id. no art. 7º da Lei 33/2010; d) Comunique-se ao E.P., ao TEP/DGRSP, entregando-se mandado, e termos do art. 194 n.º 10 do C.P.P..».
2. Não se conformando com o assim decidido, vieram os arguidos AA, CC, DD e EE interpor o recurso, sendo a motivação rematada pelas seguintes conclusões e petitório [transcrição[2]]: «A) Foram indiciados os arguidos pela prática de crime e p pelo art 204 n1 alínea de f e n 2 alínea g do cod penal e um crime de furto na forma tentada p.p. pelos arts22 23 e 204 n 1 alínea d e f e n 2 g A moldura penal no seu limite máximo é de 5anos. B) As arguidas aceitam a existência de fortes indícios da prática de um crime de furto qualificado, discutem a vulnerabilidade, na medida em que idade não permite conclusão exarada, nem resulta na prova indicada as alegadas incapacidades físicas ou cognitivas. C) Sem prejuízo, A 1 situação decorre de um diálogo, pacifico, normal, em plena luz do dia junto ná porta de ventrada da ofendida. Cujos valores rondamos 400 euros, todos recuperados e entregues. D) DD confessou os factos, mostrou-se crítica consciente arrependida, livre sincera e consciente, mostrando discernimento ativo, consciência crítica e arrependimento sincero E) É primária, tem inserção social e familiar, filho menor e seu cargo F) AA, exerceu o direito de prestar declarações esclareceu que penas fez de motorista recebeu valor para efetua transporte salvo melhor entendimento não se pode concluiu por uma coautoria quando muito uma cumplicidade pois a sua intervenção ao não é essencial para o desfecho dos pretensos crime. Arguido primário, inserido, morada conhecida, família e filhos, sem antecedentes criminais. Ademais recorrentes não prestaram declarações, se o silêncio não n a prejudica é certo que não beneficia, todavia estão inseridas e não resulta factualidade que inculque uma culpa que determine por medida tão gravosa. G) No que furto tentado resulta que as arguidas abandonam o local por si sem intervenção do OPC e diga-se que a vulnerabilidade da vitima fez com que ciente e que não eram vizinhas as afastasse, ou seja dotada consciente determinada tudo menos vulnerável frágil, todavia entende-se que não houve qualquer ato de execução pois H) O tribunal tem apenas para apreciar das concretas situações um único dia, valores recuperados (na 1º situação sem consequências na vida e na forma de estar de viver da ofendida. I) O sucedido não determina razões de prevenção geral especial para estatuto tão grave, é, por conseguinte, violado o disposto no art nº 202 e 204, a medida deve ser adequada e proporcional aos factos apurados e à sanção que viera a ser aplicada em decisão final. J) Temos presente do CRC destes arguidos, sem antecedentes inseridos e sem consequências da conduta que qualquer que seja o entendimento num juízo de prognose falível não se vislumbra uma pena efetiva. K) Deve por conseguinte ser revogada medida de coação privativa de liberdade e em sua substituição determinar-se apresentações quinzenais para FF[3] e DD e semanais para os demais mais se admite proibição de se ausentarem fora da área da sua residência, por se entender, mais adequada justa e proporcional aos factos e ao direito. L) Foram violadas as seguintes normas 193, 204, 120 nº 3 alinea c), art126 nº3 do C.P.P.»
3. O Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta a tal recurso, que finalizou com as seguintes conclusões [transcrição]: 1º - No dia 05/02/2025 foi realizado o primeiro interrogatório judicial dos arguidos BB, EE, DD, CC e AA com vista à tomada de posição relativamente às medidas de coação. No âmbito desta diligência os arguidos foram submetidos às medidas de coação de TIR e à obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância por meios eletrónicos de controlo à distância. Mais se determinou que “até que se mostrem reunidos todos os requisitos necessários para a implementação dos mecanismos eletrónicos para fiscalização da medida de obrigação de permanência na habitação os arguidos aguardará em prisão preventiva”. 2º - Fundamentou o Mmº Juiz de Instrução Criminal a sua decisão de aplicação da referida medida de coação imputando aos arguidos a perpetração, em autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea g) do Código Penal, em concurso efetivo, com um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, nº1 e nº2, al. c), 23º e 204.º, n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea g) do Código Penal. Considerou ainda a existência de perigo de continuação de atividade criminosa e perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas. 3º - No tocante aos pressupostos para a aplicação à obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância por meios eletrónicos de controlo à distância, atendeu-se à letra do artigo 201º do Código de Processo Penal. 4º - Mostrou-se neste contexto existir obediência aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e, em consequência, aos artigos 191.º, n.º 1 e 193.º, ambos do Código de Processo Penal. 5º - Tiveram-se ainda em conta os perigos que se verificavam e se verificam no caso concreto -perigo de continuação de atividade criminosa e perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas-, assim se concluindo que se afigurava que o único meio adequado a acautelar aqueles era o recurso à medida de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância por meios eletrónicos de controlo à distância. 6º - Neste enquadramento salienta-se a natureza e gravidade dos crimes, o número dos ilícitos criminais e o facto de os arguidos terem como alvo pessoas especialmente vulneráveis e particularmente indefesas, em razão da idade, doença e limitações físicas. Adianta-se que, no mesmo dia, os arguidos percorreram várias localidades, tais como ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., demonstrando uma vontade forte e firme na concretização dos seus intentos. 7º - Acresce que os arguidos demonstram não possuir, na atualidade, rendimentos que lhes permitam assegurar pelo menos na totalidade a sua sobrevivência, os seus gastos pessoais e a satisfação das suas necessidades básicas e elementares. 8º - Atentos os elementos constantes dos autos, designadamente, a natureza e a gravidade dos ilícitos, o número dos mesmos e o facto de os arguidos terem como alvo pessoas especialmente vulneráveis e os atos ocorrerem no interior das suas residências, onde as mesmas se deveriam sentir seguras e protegidas, é igualmente patente a existência de perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, nomeadamente nas zonas onde os factos foram praticados Além do mais, por si só, o número de arguidos que intervinham na prática dos factos é suficiente para criar um forte medo/receio às vítimas. 9º - Cumpre salientar que é notório um receio generalizado da população em geral por crimes desta natureza, os quais têm vindo a ocorrer cada vez com maior frequência, criando assim um sentimento de insegurança na comunidade. É ainda de salientar que tais crimes são amplamente divulgados nas próprias localidades pelos próprios populares e noticiados através da comunicação social na data da sua prática e no momento da realização do 1º interrogatório judicial.
2. Também a arguida BB veio interpor o recurso, que motivou, extraindo as seguintes conclusões: 2. No âmbito daquela diligência, foram considerados fortemente indiciados, a grande maioria dos factos constantes do despacho de apresentação do Ministério Público e foram ainda aplicadas as seguintes Medidas de Coação, ao ora Recorrente: Termo de Identidade e Residência, já prestado; OPHVE. 3. Entende a ora Recorrente, que as Medidas de Coação aplicadas, se revelam desadequadas e desproporcionais quer em razão dos factos considerados indiciados, quer em razão da não verificação concreta dos perigos, bem como das exigências cautelares, que o presente caso reclama. 4. Devendo, a final ser proferida decisão que apenas sujeite o arguido ora recorrente à MC de TIR, às proibições de contactos com as demais arguidas, ofendidas e testemunhas, e ainda, a proibição da arguida se dirigir aos concelhos onde alegadamente ocorreram os factos indiciários. 6. Da necessidade, da Adequação e da Proporcionalidade das Medidas de Coação aplicadas 9. Mais acresce que os mesmos foram praticados em Concelhos distintos do da área de residência da recorrente. 11. Seja este de perturbação da ordem ou tranquilidade pública, ou de perturbação do inquérito, preservação e aquisição da prova. 12. Vejamos que a maioria das alegadas vítimas, poderão ser ouvidas em declarações para memória futura. 13. Mais, existe larga distância entre a residência da recorrente, e as localidades, onde alegadamente, foram praticados os factos. 14. E a ausência nos autos, de qualquer indício ou facto de que o arguido recorrente, haja per si, ou através de terceira pessoa contactado os mesmos, por qualquer meio, seja per si, ou através de terceira pessoa, seja na pessoa dos próprios ou de terceiros. 15. No que diz respeito ao uso dos meios de coação em processo penal, haverá sempre que respeitar os princípios da legalidade (artigos 29º, nº 1, da CRP, e 191º do CPP), excepcionalidade e necessidade (artigos 27º, nº 3 e 28º, nº 2, da CRP, e 193º do CPP),adequação e proporcionalidade (art.º 193º do CPP), como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32°, n° 2 da Constituição. 16. A aplicação das medidas de coacção está enquadrada na confluência de valores antagónicos: de um lado, a procura da verdade e da segurança; de outro, a dignidade da pessoa humana. 17. Para a convergência dos valores neste difícil equilíbrio, em que se deve ter sempre presente o princípio da presunção de inocência do arguido, o legislador sujeitou a aplicação das medidas de coação a vários princípios (a ponderação abstracta), que se devem entender como regras regulamentadoras da decisão do caso em apreciação pela autoridade judiciária (a ponderação concreta), do objectivo dali resultante, a compatibilização prática dos indicados valores. 18. Neste quadro, é preciso ter bem presente o carácter excecional das medidas de coação, perante a restrição que representam nos direitos fundamentais dos cidadãos, direitos esses que resultam do artigo 18º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. 19. Por isso, compreende-se que se imponham vários princípios processuais para a aplicação de tais medidas de coação, desde logo, os de necessidade, legalidade, tipicidade, proporcionalidade e adequação, especialidade e subsidiariedade (quanto à prisão preventiva). 20.Ao decidir como decidiu, o Despacho que aplicou as Medidas de Coação, violou o disposto nos artigos 18º nº 2, 27º nº 3, 28º nº 2 e 32º nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. INCONSTITUCIONALIDADE QUE DESDE JÁ SE ALEGA E REQUER PARA OS DEVIDOS EFEITOS LEGAIS. 21. Por todo o exposto DEVE O DOUTO DESPACHO RECORRIDO SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE NÃO APLIQUE MC PARA ALÉM DO TIR, PROÍBIÇÕES DE CONTACTOS COM OS DEMAIS ARGUIDAS, OFENDIDAS E TESTEMUNHAS JÁ IDEN-TIFICADAS, PROÍBIÇÃO DE SE DESLOCAR AOS CONCELHOS ONDE ALEGADAMENTE FORAM PRATICADOS OS FACTOS. 22. DA VERIFICAÇÃO DOS PERIGOS ELENCADOS NA DECISÃO 23.A ora Arguida não se conforma, de todo, com a decisão proferida, bem como com os fundamentos constantes da mesma, mormente no que à verificação dos perigos tange, pois na falta de factos, inexistem perigos. 26.Logo o arguido não pode contactar ou continuar algo que não existe, e nunca existiu. 27. Por todo o exposto, estamos perante meras considerações/conjeturas, que não se inserem no pressuposto referenciado no art.º 204.º, al. a), pelo que este condicionalismo não se verifica. 28.Em resumo, há que considerar NÃO VERIFICADOS, em concreto, os perigos de perturbação do inquérito, de perturbação da ordem ou tranquilidade pública, e ainda, o perigo da continuação da atividade criminosa. DAS NORMAS VIOLADAS: a) Artigo 18º, nº 1 e nº 2, da CRP; b) Artigo 32º nº 1 e 2 da CRP; c) Artigo 28º nº 2 da CRP; d) Artigo 29º nº 1, da CRP; e) Artigo 191º do CPP; f) Artigo 198º do CPP; g) Artigo 202º do CPP; h) Artigo 203º nº 2 al. b) do CPP; i) Artigo 204º do CPP; (…) Para que, pela vossa douta palavra, se cumpra a consueta Justiça!»
4. O Ministério Público em primeira instância respondeu também a este recurso, concluindo: 6º - No que concerne ao perigo de continuação de atividade criminosa cabe salientar a natureza e gravidade dos crimes, o número dos ilícitos criminais e o facto de a arguida (e os demais arguidos) ter(em) como alvo pessoas especialmente vulneráveis e particularmente indefesas, em razão da idade, doença e limitações físicas. Adianta-se que, no mesmo dia, a arguida (e os demais arguidos) percorreu(ram) várias localidades, tais como ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., demonstrando uma vontade forte e firme na concretização dos seus intentos. 7º - Acresce que a arguida demonstra não possuir, na atualidade, rendimentos que lhe permitam assegurar pelo menos na totalidade a sua sobrevivência, os seus gastos pessoais e a satisfação das suas necessidades básicas e elementares. 8º - Atentos os elementos constantes dos autos, designadamente, a natureza e a gravidade dos ilícitos, o número dos mesmos e o facto de a arguida ( e os demais arguidos) terem como alvo pessoas especialmente vulneráveis e os atos ocorrerem no interior das suas residências, onde as mesmas se deveriam sentir seguras e protegidas, é igualmente patente a existência de perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, nomeadamente nas zonas onde os factos foram praticados Além do mais, por si só, o número de arguidos que intervinham na prática dos factos é suficiente para criar um forte medo/receio às vítimas. 4. Neste Tribunal da Relação, na vista a que se refere o artigo 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer no sentido de serem julgados improcedentes os recursos, mantendo-se o decidido.
5. Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, não houve resposta ao sobredito parecer.
6. Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
* II. – FUNDAMENTAÇÃO
1. Decisão alvo do recurso 1.1 – O Ministério Público requereu a submissão dos arguidos a primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos com fundamento na factualidade, subsunção jurídico penal e prova que ora se transcrevem: «1 - Em data não concretamente apurada, mas coincidente ou anterior ao dia 03-02-2025, os arguidos formularam um plano comum que consistia em se deslocarem a residências sitas nos concelhos ... e ... que fossem habitadas por pessoas idosas e/ou fragilizadas e uma vez no interior daquelas residências, aproveitando a especial vulnerabilidade das vítimas, apoderar-se de quantias monetárias e objectos com expressão económica que aí se encontrassem e que facilmente pudessem levar consigo. 2. Assim, cerca das 09h50m do dia 03-02-2025, os arguidos, actuando em conjugação de esforços e na execução do plano supra descrito, deslocaram-se até ao Bairro ..., ..., no veículo ligeiro de passageiros de marca Opel, modelo Astra, cor branca, com a matrícula ..-..-CH, propriedade de GG, companheira do arguido AA sendo este o condutor. 3. Uma vez chegados ao referido Bairro os arguidos apearam-se da viatura e começaram a deambular pelo Bairro espreitando pelas janelas para o interior das residências. 4. A dada altura as arguidas DD e EE tocaram a campainha da residência sita no n.º ...5 ... a qual era e é habitada por HH, nascida a ../../1935 (89 anos de idade), que padece de significativas fragilidades a nível tanto físico como mental. 5. HH abriu a porta para ver quem tinha tocado a campainha tendo as arguidas DD e EE penetrado no interior da habitação sem dar à HH a oportunidade de lhes fechar a porta. 6. Pelo menos a arguida CC permaneceu no exterior da residência observado as envolvências. 7. No interior da residência supra identificada as arguidas DD e EE encetaram conversa com HH sendo que uma delas lhe retirou dos dedos um anel em ouro com sete escravas no valor estimado de 240,00 € e um outro anel em ouro branco com perola no valor estimado de 152,00 €. 8. Enquanto uma das arguidas dialogava e distraia HH a outra conseguiu percorrer o interior a habitação passando desapercebida tendo retirado de uma mesa de cabeceira do quarto da ofendida um baú de pano não avaliado e um guarda jóias pequeno redondo não avaliado que continham os seguintes objectos: - Uma medalha com imagem do Corpo de Cristo no valor estimado de 4,00 €; - Um fio de fantasia de malha fina no valor estimado de 3,00 €; - Uma pulseira de arco simples de fantasia no valor estimado de 4,00 €. 9. Assim, ao todo as arguidas retiraram do interior da residência, objectos, no valor de pelo menos € 403,00 (quatrocentos e três euros). 10. Acto contínuo as arguidas DD, EE e CC abandonaram o local e subiram ao veículo matrícula ..-..-CH onde foram ocultados os objectos subtraídos e juntamente com os restantes arguidos colocaram-se em fuga em direcção ao IC .... 11. Ainda no dia 03-02-2025, entre as 10h15 e as 10h42, os arguidos, sempre utilizando a viatura matrícula ..-..-CH como meio de transporte, percorreram a baixa velocidade as localidades de ... e a ... enquanto eram seguidos por uma viatura descaracterizada da GNR. 12. Pelas 10h42 a viatura dos arguidos é imobilizada na intercessão da Rua ... com a Rua ... e duas das arguidas descem e percorrem a Rua ... a pé observando as diversas residências enquanto tocam as campainhas de algumas delas. 13. De seguida as duas arguidas regressam ao veículo e todos os arguidos prosseguem marcha no sentido de ... sendo que ao chegarem a essa localidade percorrem as ruas a baixa velocidade. 14. Pelas 11h22 o veículo é imobilizado na intercessão da Rua ... com a Rua ... tendo saído do veículo três das arguidas as quais passam a circular apeadas na Rua ... enquanto observam as diversas residências. 15. Mais tarde, pelas 11h29, repetiram idêntico procedimento na Rua .... 16. Até as 12h25 os arguidos circularam pelas localidades de ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... sempre em baixa velocidade. 17. Às 12h25 em ... o veículo dos arguidos para junto o n.º ... da Rua ... e duas arguidas descem e vão tocando as campainhas de algumas residências. 18. Ao chegarem à residência com o n.º 6 as arguidas batem á porta e contornam a residência dirigindo-se para as traseiras enquanto observam para o interior através das diversas janelas. 19. Os arguidos acabam por retomar marcha e pelo IC ... se dirigem à .... 20. Por volta das 12h44, sempre actuando em conjugação de esforços e na execução do plano supra descrito, o veículo dos arguidos é imobilizado na Rua ... e saem do seu interior todas arguidas uma das quais fica de vigia no passeio em frente à residência com o número 83 enquanto que as outras três arguidas se deslocam às traseiras. 21. De seguida enquanto que uma das arguidas fica de vigilância nas traseiras as duas arguidas restantes batem à porta do terraço das traseiras da residência n.º ...3 da Rua ..., habitada por II, nascida a ../../1950 e com grave défice visual, quem ao perguntar desde o interior quem batia a porta obteve de uma das arguidas a resposta “sou a sua vizinha”. 22. Induzida em erro relativamente à identidade de quem lhe batia à porta II abriu a porta da sua residência tendo duas das arguidas aproveitado a oportunidade para penetrarem imediatamente no interior da habitação. 23. No interior da referida habitação conforme resulta das regras da experiência comum existiam diversos objectos, algum deles essenciais para a economia doméstica, cujo valor patrimonial global era superior a 102,00 €, objectos esses passíveis de serem facilmente transportados designadamente pequenos electrodomésticos, numerário, etc. 24. Já no interior da referida residência as duas arguidas tentaram encetar um diálogo com II tecendo-lhe elogios e pedindo-lhe a dada altura para ir buscar açúcar para uma delas que alegadamente seria diabética. 25. II, que já se apercebera que nenhuma das arguidas era vizinha sua, recusou deixar a divisão onde se encontrava para buscar o açúcar e pede às arguidas para se retirarem o que estas acabam por fazer acabando estas por juntar-se às duas arguidas que tinham ficado no exterior para de seguida, todas juntas, se dirigirem ao veículo estacionado onde o arguido esperava por estas. 26. Quando o veículo matrícula ..-..-CH efectuava manobras para abandonar o local foi abordado por efectivos da GNR que procederam à detenção dos arguidos. 27. Os arguidos agiram com o propósito comum e concretizado de, com recurso à divisão de tarefas e de astúcia, conseguirem introduzir-se abusivamente na residência de pessoas idosas e particularmente vulneráveis e daí retirarem e de fazerem seus os objectos com valor patrimonial supra identificados os quais sabiam não lhes pertencerem, sendo cientes que agiam sem a autorização e contra a vontade dos legítimos proprietários, os quais em virtude da sua avançada idade e precária saúde não estavam em condições de se aperceber das intenções dos arguidos nem de lhes oferecer qualquer tipo de resistência ou oposição circunstancialismo que os arguidos bem conheciam. 28. Os arguidos só não conseguiram subtrair qualquer objecto ou quantia da residência da ofendida II por razões alheias à sua vontade uma vez que aquela se apercebeu atempadamente das intenções dos arguidos antes que estes conseguissem deitar a mão a qualquer um dos objectos com valor patrimonial superior a 102,00 UC que existiam na residência. 29. Os arguidos agiram em conjugação de esforços e intentos na execução de um plano comum e com divisão de tarefas de motorista, vigias e subtractoras, sempre de forma livre, voluntária e consciente e sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal o que, não obstante, não os demoveu. Cometeram assim os arguidos BB, EE, DD, CC, e AA em co-autoria material nos termos do disposto nos artigos 14.º, 26.º e 73.º, todos do Código Penal 1 (um) crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1 alínea d), alínea f) e n.º 2 alínea g) do Código Penal em concurso efectivo com 1 (um) crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo art.-204.º, n.º 1 alínea d), alínea f) e n.º 2 alínea g) do Código Penal.
Resultam tais factos indiciados dos seguintes elementos de prova: A dos autos designadamente: Testemunhal: - Autos de inquirição de HH (ofendida do crime consumado) de fls. 47; JJ (vizinho) de fls. 63; II (ofendida do crime tentado) de fls. 81. * Documental: - Auto de notícia de fls. 30-32; - Aditamento de fls. 40; - Autos de reconhecimento presencial da arguida EE de fls. 54 e 69; - Autos de reconhecimento presencial da arguida DD de fls. 57 e 77; - Auto de reconhecimento presencial do arguido AA de fls. 66; - Auto de reconhecimento presencial da arguida CC de fls. 73; - Auto de reconhecimento de objectos de fls. 60; - Anexo fotográfico (fotografia da viatura matrícula ..-..-CH extraída ainda no local dos factos) de fls. 65; - Auto de busca e apreensão ao interior do veículo matrícula ..-..-CH de fls. 87; - Auto de exame e avaliação dos objectos subtraídos de fls. 89; - Relatório táctico fotográfico de fls. 93; - Auto de apreensão e relatórios tácticos fotográficos de fls. 104 a 111.»
1.2. - Realizado o sobredito interrogatório, com observância das pertinentes formalidades legais, pelo Ex.mo Juiz de Instrução foi proferida a seguinte decisão [ora objeto de recurso]: «1.Detenções válidas porquanto em flagrante delito, ordenada por quem tinha competência, nos termos do art. 256 n.º 2 do C.P.P.. Apresentação dentro do quadro temporal definido no artigo 141º n.º 1 do C.P.P..
2.Factualidade indiciada: a acima referida, comunicada aos arguidos, por entrega de cópias e com defensor. Deferido o requerido pelo MP, integrando-se na factualidade imputada a pulseira apropriada pelos arguidos, comunicada à defesa. O arguido AA declarou ser motorista, de tvde, tem 3 filhos. A arguida EE declarou trabalhar nas limpezas, auferindo 300 mensais, vive com companheiro, e tem 3 filhos, recebendo rsi e abono. A arguida DD declarou viver com companheiro, em casa camarária, vendedora ambulante, retirando cerca de 400 euros, tem 6 filhos, 4 vivendo consigo. A arguida BB declarou ser comerciante de roupas, auferindo cerca de 150 euros, vive com companheiro, e tem 3 filhos, sendo um consigo. A arguida CC declarou ter cinco filhos. Não têm antecedentes criminais
3.Dos elementos de prova. Escalpelizados, só há uma narrativa possível neste momento: foi sob a atuação dos arguidos no seu conjunto, com tarefas determinadas que os factos muito provavelmente ocorreram. Na verdade, a prova testemunhal elencada, onde as ofendidas relatam o que ocorreu dentro de suas casas, assim como o testemunho de KK, e entrega pelo id. da matrícula do veículo em que os arguidos se transportavam, bem como os reconhecimentos, onde são identificadas as pessoas que participaram nos furtos, o exame dos objetos tirados e reconhecimentos, reconhecendo a ofendida como seu, o aditamento do auto de notícia em que a polícia relata o que presenciou depois de os arguidos saírem das residências, bem como auto de apreensão, impõem tal conclusão: fortes indícios. As declarações de AA e de DD não têm credibilidade neste momento. Primeiro, as ofendidas depuseram de forma clara e pormenorizada. Sendo pessoas sem ligação ou interesse para com os arguidos, em nenhum momento assinalam o fim que os arguidos expressaram em audição (procura de casa para a arguida BB). Segundo a polícia seguiu-os, e de acordo com o auto realizado a fls. 40 a 42 (“aditamento”) e naquilo que de objetivo ou factual tem, em nenhum momento os comportamentos dos arguidos são compatíveis com a procura de casa para arrendamento, sobretudo por parte de pessoas (como os arguidos) que não são aí residentes, sendo aliás estranhos a ta geografia. Terceiro, apesar de país envelhecido no interior do país, as pessoas com quem as arguidas tiveram interacção são idosas, alvo esse coerente com versão diversa da dos arguidos.
4.Mostram-se indiciados como autores de um crime de furto qualificado e um outro tentado respetivamente previstos nos artigos 204 n.º 1 d) e n.º 2 g) e 22 n.º 1 e n.º 2 c) e 204 n.º 1 d) e n.º 2 g) do C.P.. A ofendida HH nasceu em ../../1935, apresentando assim, como é notório, as debilidades inerentes à terceira idade, sendo, pois, de subsumir ao conceito típico “especial debilidade da vítima” que as acolheu dentro de sua casa, local da apropriação dos objetos pessoais da ofendida. O mesmo se verifica na ofendida II: idosa (nascida em 1950), e com dificuldades de visão, aliás daí o uso da personagem “vizinha” por parte da arguida. A entrada ilegítima que a lei refere (n.º 1 f)) não é o mesmo que o conceito “abusivo” usado na promoção. Em nenhum momento, foi expressa pela ofendida a recusa de entrada, logo não há que subsumir à al. f) apontada pelo MP. Por último, os arguidos, cada um com as suas tarefas, vigia, condução, conversa, vieram à região de ... para furtar casas (factos 12 a 16), e era essa a finalidade. São um grupo de pessoas que se juntam, para praticar um número qualquer de crimes sob o mesmo modo de execução e de valoração típica, sempre na incerteza da realidade que se lhes depara, num local onde a população maioritária é só (ou vivendo em casal) e débil pela idade, obedecendo tão só à sorte da oportunidade para a realização do ilícito-típico, distinguindo-se assim da coautoria (n.º 2 g)). Foi o que ocorreu nos casos em que são ofendidas HH e II.
5.Indiciada a existência de crime, importa responder à questão de saber se é necessário medida cautelar, e qual. a) Por um lado, os arguidos não têm profissões ou empregos regulares. Não são conhecidos na Segurança Social como consta das informações dadas, como consta dos autos. Por outro, não recebem rendimentos médios ou elevados, isto é, superiores a 1400 euros (média nacional, segundo o INE). Ora, como não seja credível que trabalhem de forma regular e formalizada, pois não temos dados para tanto, a necessidade de rendimentos complementares mantém-se. Não é irrelevante o facto de todos terem idades que são próprias da população ativa, logo em liberdade, manter-se-ão como estão. b) Em liberdade, poderiam facilmente continuar em outras zonas do país, longe das suas residências, como o que ocorreu, tal é a facilidade com que se motivaram para o fazer. A estratégia de furtarem noutros espaços não urbanos, com o alvo a idosos, e fora da zona residencial dos arguidos, tem várias motivações: ---desconhecimento por parte dos ofendidos e da comunidade das suas identidades, não precisando de especiais cuidados com a ocultação da identidade física; ---aproveitamento da população idosa e isolada que campeia o nosso país interior. A hospitalidade proverbial vigente nessas comunidades facilita o ilícito, como por todos é sabido. Após, medo que sentem, autoridades distantes, pouca motivação a participarem criminalmente atentos custos de distância, e repetições de tais deslocações (polícia, ministério público, julgamento). Debilidades das vítimas (idade: medo, memória, visão, p. ex.), logo fragilização da prova, para além do mais (doença e outras complicações), atenta a mais que comum demora dos inquéritos (olhando à concreta vítima idosa: um ano de demora para um idoso não é o mesmo para uma pessoa de meia idade, como será fácil perceber; não opção, sem crítica, por tipos processuais céleres e previstos na Lei); ---dispersão de locais, dificultando o controlo pelas autoridades já de si distantes. No caso, houve a sorte de alguém ter visto, KK, e comunicado às autoridades e tirado a matrícula do veículo onde se transportavam os arguidos. Contudo, o assinalado ao nível motivacional implica uma forte probabilidade de êxito como é do domínio público, atentas as diversas notícias de Norte a Sul do país. c) Acresce ainda, as suas personalidades ao participarem no facto e que revela uma sofreguidão pela obtenção do alheio a quem é débil pela idade, sem empatia alguma, e crueldade. Estes factores de personalidade, retirados nos factos realizados, aliados à necessidade de apropriação do alheio, propulsionam execução similar no futuro pois a realidade não se alterou: há idosos, interior desertificado. d) Os factores afirmados, factuais, implicam que há forte probabilidade de continuação da atividade criminosa (art. 204 n.º 1 c) do C.P.P.). e) Por outro lado, atenta a forma de execução, bem como os alvos escolhidos pelos arguidos, denota pelas suas personalidades que há um risco sério de intranquilidade na comunidade geográfica envolvente (artigo 204 n.º 1 c) do C.P.P.).
7.Assim, é necessária medida cautelar. a)É necessária medida apta, aquela que diminua de forma acentuada o risco de repetição, e responda à reposição da tranquilidade na comunidade em causa. b)Apresentando-se às autoridades, proibindo-se a deslocação ao concelho em causa ou até ao distrito de Leiria, diminuiriam ou até desapareciam os riscos assinalados? Não. Bastaria as restantes 23 horas para realizarem idênticos ilícitos, ou noutros distritos como Santarém, Évora, Castelo Branco, onde campeiam terras isoladas, de gente idosa, onde muitos guardam os seus valores em casa (seja porque o banco é longe, seja por tradição).Atentas as personalidades, sem respeito pelo alheio, e cruéis, repetiriam. Pois olhando objetivamente é fácil, e com grande probabilidade de êxito. É o que os factos indiciados fortemente mostram e significam das pessoas dos arguidos. c) A obrigação de permanência na habitação é assim a única que é apta ao elevado risco. Com tal medida ficarão confinados, e controlados eletronicamente. Não se moverão rumo àqueles alvos. Baliza-se tal medida normativamente nos artigos 193 n.º 1 e 3, 204 n.º 1, c), e 201 n.º 1 e 3 do C.P.P.. d) Enquanto não estiverem reunidos os pressupostos logísticos, só a prisão preventiva é medida temporária apta ao efeito compreendido: contenção. Baliza-se tal medida normativamente nos artigos 193 n.º 1, 204 n.º 1 c), e 202 n.º 1 d) do C.P.P..
8. Decide-se: a) Que os arguidos aguardem os ulteriores termos processuais em obrigação de permanência na habitação, porquanto fortemente indiciados da prática dos crimes aludidos em §4. e nos termos dos artigos 193 n.º 1 e 3, 204 n.º 1 c), e 201 n.º 1 e n.º 3 do C.P.P.. b) Enquanto não estiverem reunidas as condições de execução da medida referida em a), aguardarão os arguidos em prisão preventiva, nos termos dos artigos 193 n.º 1, 204 n.º 1 c), e 202 n.º 1 d) do C.P.P.. c) Solicite-se à DGRSP relatório id. no art. 7º da Lei 33/2010; d) Comunique-se ao E.P., ao TEP/DGRSP, entregando-se mandado, e termos d art. 194 n.º 10 do C.P.P..»
1.3. – Mais consta da ata da diligência que todos os arguidos deram o seu consentimento para o uso do dispositivo de vigilância eletrónica, tendo ainda o arguido sido expressamente advertido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 203º do C. P. Penal.
2. Apreciação dos recursos 2.1. - Decorre do artigo 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida. Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso e dos vícios que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[4]]. O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente e, outras, de conhecimento oficioso[5]. No caso concreto, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, e não se vislumbrando quaisquer nulidades de conhecimento oficioso, as questões a decidir reconduzem-se às seguintes: Recurso dos arguidos AA, CC, DD e EE: - Subsunção jurídico penal dos factos indiciados: - Verificação da circunstância qualificativa “explorando situação de especial debilidade da vítima”; - Coautoria ou cumplicidade por parte do arguido AA; - (In)existência de atos de execução do crime tentado/ desistência; - (Des)necessidade, (des)adequação e (des)proporcionalidade da medida de coação obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica;
Recurso da arguida BB: - (In)existência em concreto dos perigos elencados na decisão recorrida - (Des)necessidade, (des)adequação e (des)proporcionalidade da medida de coação obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica;
2.2. – Analisemos as questões suscitadas observando a ordem lógica do seu conhecimento, sendo certo que, apesar da sua individualização, estão intimamente relacionadas entre si, repercutindo-se, nalguns casos, os argumentos aduzidos a respeito de umas nas demais, não se repetindo, porém, por razões de economia processual. Mais se consigna que, no que respeita à questão que é comum a ambos os recursos, serão apreciados conjuntamente os argumentos neles convocados.
2.2.1 – Subsunção jurídico penal dos factos indiciados No recurso apresentado pelos arguidos AA, CC, DD e EE, se bem compreendemos a alegação, que padece das supra sinalizadas vicissitudes e dificulta sobremaneira a sua inteligibilidade, os recorrentes põem em causa a subsunção jurídica dos factos indiciados sob diversas vertentes. Assim, os identificados recorrentes discutem, desde logo, a verificação da circunstância qualificativa “explorando situação de especial debilidade da vítima”, sustentando, em resumo, que a idade das vítimas não permite concluir pela vulnerabilidade das mesmas e não resulta da prova as alegadas incapacidades físicas ou cognitivas. Vejamos. O tribunal a quo considerou indiciada a prática por todos os arguidos, em coautoria, de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelo artigo 204º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. g), do Código Penal, tendo por vítima HH, e de um crime de furto qualificado, sob a forma tentada, previsto e punível pelos artigos 204º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. g), e 22º, n.º 1 e n.º 2, al. c), do Código Penal, tendo por vítima II. A alínea g) do n.º 1 do artigo 204º do Código Penal prevê a qualificação do furto nas situações em que o agente atue “explorando situação de especial debilidade da vítima”. Como assinala Paulo Pinto Albuquerque[6], a « especial debilidade da vítima» identifica-se com a situação de pessoa particularmente indefesa prevista nos artigos 132º, n.º 2, al. c), 152º, n.º 1, al. d), 152º-A, n.º 1, 155º, n.º 1, al. b), e 158º, n.º 2, al. e), visando, portanto, a debilidade em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez. Em causa está a agravação da pena quando haja aproveitamento da condição de inferioridade da vítima, designadamente, por uma das apontadas razões. No caso vertente, HH tinha 89 anos e II tinha 74 anos e padecia de grave défice visual. Estão ambas na faixa etária daquilo que, normalmente, em Portugal, se designa por “terceira idade”, abrangendo os cidadãos com idade superior a 65 anos, considerados idosos. Objetivamente, decorre das regras da experiência comum que pessoas com aquelas idades apresentam uma diminuição das suas faculdades físicas e mentais, de grau variável consoante a pessoa, mas normalmente progressivo, acompanhando o decurso dos anos, o que implica necessariamente uma menor capacidade de reação e, consequentemente, uma maior vulnerabilidade. Aliás, terá sido isso mesmo que os arguidos procuraram, como decorre da escolha do perfil de ambas as vítimas, não só para ser mais fácil perpetrar os atos ilícitos, mas também para evitar a sua posterior responsabilização penal, nomeadamente, o acionamento das vias legais para tanto, a identificação/reconhecimento daqueles, a capacidade de prestar depoimento, etc., conforme desenvolvido na decisão recorrida. Como assinala a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, mesmo em relação ao crime tentado, não fica afastada tal qualificativa pelo facto de a vítima ter, a dado passo, percebido que as pessoas a quem deu acesso à sua residência não eram suas vizinhas e que o pedido de empréstimo de açúcar era um falso pretexto, tendo o discernimento de lhes ordenar que abandonassem o local. Afigura-se-nos, pois, que nenhuma censura merece a subsunção da atuação dos arguidos à alínea g) do n.º 1 do artigo 204º do Código Penal.
Mais sustentam que não se pode concluir que a atuação do arguido AA reveste a modalidade de coautoria, mas, quanto muito, de cumplicidade, pois a intervenção dele não foi essencial, podendo as demais arguidas praticar o crime recorrendo a outro condutor ou veículo. Nos termos do artigo 26º do Código Penal, a noção de autoria abrange os casos de comparticipação com pluralidade de agentes (coautoria), na qual são essenciais dois requisitos: a) - uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado (acordo prévio); b) – e uma execução igualmente conjunta (participação direta, mediata ou imediata na execução do facto). O acordo pode ser expresso ou tácito, desde que seja concludente no sentido da vontade de executar o facto e de contribuir para a realização da ação típica. A (com)participação direta na execução, juntamente com outro ou outros, supõe um exercício conjunto e com domínio do facto. A atuação conjunta, não exige, porém, que todos os arguidos intervenham em todos os atos, da mesma forma, bastando que a atuação de cada um dos agentes seja elemento componente do conjunto da ação, mas indispensável à produção da finalidade e do resultado a que o acordo se destina. A essência da coautoria consiste em cada comparticipante querer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e mediante esforços conjugados. Por seu turno, nos termos do artigo 27º, é cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso. A cumplicidade diferencia-se da coautoria pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através do auxílio físico (cumplicidade material) ou psíquico (cumplicidade moral), constituindo essa prestação de auxílio toda a contribuição que tenha possibilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor. A cumplicidade traduz-se num mero auxílio, não sendo determinante da vontade dos autores nem participa na execução do crime, mas é sempre auxílio à prática do crime e, nessa medida, contribui para a prática do crime, é uma concausa da prática do crime. Assim, enquanto o coautor tem um papel de primeiro plano, dominando a ação, já que esta é concebida e executada, com o seu acordo, inicial ou subsequente, expresso ou tácito, o cúmplice é um interveniente secundário ou acidental, isto é, só intervém se o crime for executado ou tiver início de execução e, além disso, mesmo que não interviesse, aquele sempre teria lugar, porventura em circunstâncias algo distintas. A sua intervenção embora seja concausa do crime praticado não é causal da existência da ação[7]. Retornando ao caso sub judice, resultou indiciado, além do mais, que o arguido AA participou, desde logo, na formulação do plano delineado entre todos os arguidos, que consistia em se deslocarem a residências sitas nos concelhos ... e ... que fossem habitadas por pessoas idosas e/ou fragilizadas e, uma vez no interior daquelas residências, aproveitando a especial vulnerabilidade das vítimas, apoderar-se de quantias monetárias e objetos com expressão económica que aí se encontrassem e que facilmente pudessem levar consigo. Em execução do acordado, em conjugação de esforços com as demais arguidas, cada um desempenhando o seu papel, atuou pela forma descrita no elenco de factos indiciados, sendo que aquele foi o condutor do veículo ligeiro de passageiros, propriedade da sua companheira, utilizado nas deslocações ali mencionadas, em particular para as residências das vítimas, e no qual foram guardados os bens subtraídos a HH. É, pois, por demais evidente que o arguido AA participou no plano inicial e na execução do mesmo, em conjugação de esforços e intentos com as demais arguidas, tendo um papel essencial e pleno domínio do facto, subsumindo-se a sua atuação, inquestionavelmente, à figura da coautoria.
Os recorrentes repudiam, ainda, a prática do crime de furto sob a forma tentada, sustentando que inexistem atos de execução e que, ainda, que os haja, sempre teria de se considerar a desistência, atento o abandono do local de livre vontade. A dilucidação da questão assim tão lapidarmente colocada demanda um complexo exercício jurídico, como veremos de seguida. A tentativa de cometimento de furto é sempre punível por força do disposto no artigo 203º, n.º 2, do Código Penal. Nos termos do estatuído no artigo 22º do Código Penal, há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se [n.º 1], entendendo-se por atos de execução, segundo o n.º 2, os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime [al. a)], os que forem idóneos a produzir o resultado típico [al. b)] ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies anteriores [al. a)]. A respeito da punibilidade da tentativa, sustentam Leal- Henriques e Simas Santos[8]: «Têm sido propostas várias formas de fundamentar a punibilidade da tentativa: a teoria objectiva baseia-se unicamente no perigo que a acção cria para bens protegidos pelo direito criminal; a teoria subjectiva encontra esse fundamento na resolução, na vontade manifestada contrária ao direito; a teoria eclética parte da teoria subjectiva mas combina-a com elementos objectivos; para ela a punibilidade da tentativa funda-se na vontade contrária a uma norma de conduta, mas só poderá ser afirmada quando minar a confiança da comunidade na vigência da ordem jurídica, o sentimento de segurança jurídica (teoria da impressão), ou parte da perigosidade do agente tendo em conta se o perigo criado para o objecto da acção reside na sua vontade de cometer o facto (teoria do autor). Como «prática de actos de execução de um crime que o agente decidiu cometer» (n.° 1), a tentativa viola já o dever ser jurídico-penal expresso na norma. «Pode dizer-se mesmo não ser necessário que a lei preveja expressamente a ilicitude da tentativa, mas só a sua punibilidade. Como realização parcial de um tipo-de-ilícito ela representa já uma violação do ordenamento social jurídico-penalmente protegido» (FIGUEIREDO DIAS, Sumários de Direito Penal, 1976, pág. 11). Diferentemente se pronunciou EDUARDO CORREIA, para quem na tentativa «o direito penal alarga excepcionalmente a punição» (op. cit., pág. 251).» Como ensina Fernanda Palma[9], «a grande fronteira que o Direito Penal não pode ultrapassar é, sem dúvida, a da não punição, em si e por si, de meros pensamentos, intenções, resoluções e atitudes». (…) Não podemos prescindir de qualquer facto externo significativo (activo ou omissivo). Como decorrência de princípios constitucionais, o Direito Penal reclama que o ilícito se construa a partir do confronto com a Ordem Jurídica de modificações da realidade operadas pela livre vontade e não apenas de puras manifestações de vontade. «A culpa, a censurabilidade pessoal e a ideia imanente de liberdade exigem uma noção de acção voluntária constitutiva da realidade que se confronta com a norma. Por isso, uma análise do acontecimento e das suas consequências é não só apoio da compreensão da acção mas também objecto do juízo de imputação.» Sendo de excluir uma punição da mera intenção, há que proceder à avaliação da conduta externa do agente e determinar se essa conduta consubstancia “acto(s) de execução” do crime que esse agente decidiu cometer. Fernanda Palma chama a atenção para a complexidade que os comportamentos podem assumir, referindo que «a complexidade da descrição dos comportamentos pode tornar difícil discernir se não se pune, afinal, apenas uma intenção». «O problema surge, desde logo, com comportamentos cuja identificação enquanto acção de uma certa espécie é equívoca no plano externo-objectivo e que só adquirem significado específico através da compreensão da intenção» (loc. cit. pág. 36), fazendo notar que «na delimitação dos actos de execução de um crime emerge de imediato a questão de saber quando, como e porque um comportamento susceptível de punição se torna um comportamento de certo tipo» (loc. cit. pág. 42). Na síntese de Figueiredo Dias[10], «haverá acto de execução e, portanto, tentativa, quando um certo acto preencha um elemento constitutivo de um tipo-de-ilícito – apreciado na base de um critério de idoneidade, normalidade ou experiência comum, ou na base do plano concreto de realização – apareça como parte integrante da execução típica.» Não basta, pois, a mera intenção para fundamentar a tentativa, exigindo-se que esta se exteriorize em atos que contenham já, eles próprios, um momento de ilicitude. A punição da tentativa funda-se, assim, em razões de perigo e o dolo traduz a perigosidade manifestada na intenção. Mas, num direito penal do facto, a perigosidade tem de manifestar-se também no facto e não apenas na intenção. Em suma, a punição da tentativa da prática de um crime constitui uma extensão da proteção dos bens jurídicos aos atos jurídicos penalmente relevantes, mas não consumados, nos casos em que as respetivas ações sejam merecedoras de punição[11]. Porém, o direito penal tem evoluído no sentido de que nem todas as ações frustradas carecem de punição, ainda que praticados todos os atos de execução idóneos à lesão dos bens jurídicos[12]. Com efeito, segundo Roxin[13], uma resolução não tem de ser tão definitiva que o autor não possa a todo tempo reservar-se uma interrupção no percurso da execução do crime; pois será legítimo para os objetivos do legislador aceitar uma desistência (e não já a falta de uma resolução do facto), sempre que apenas um movimento exterior e interior de retrocesso possa impedir a produção do resultado. Acolhendo tal princípio, estatui o artigo 24º do Código Penal, sob a epígrafe “desistência”: “1 - A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime. 2 - Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidas por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra.” Porém, como salienta Figueiredo Dias, a desistência é um regime de privilégio para o caso de desistência voluntária da tentativa que é tudo menos que evidente[14]. Trata-se, efetivamente, de um domínio muito volátil, com fronteiras muito ténues e de difícil densificação prática. Desde logo, a tentativa pode ser acabada ou inacabada. Tentativa acabada é aquela em que o agente (está convencido de que) já realizou todos os atos de execução necessários para a consumação material do crime. Tentativa inacabada é aquela em que o agente está convencido de que ainda não realizou todos os atos de execução necessários para a consumação material do crime. A aferição da fronteira entre a tentativa inacabada faz-se por referência à representação mental que o agente tinha sobre o processo causal no momento do último ato de execução, segundo a denominada teoria da consideração conjunta[15]. A distinção tem efeitos práticos relevantes: a desistência da tentativa acabada exige um arrependimento ativo do agente no sentido de impedir a consumação material do crime; ao invés, a desistência da tentativa inacabada exige apenas que o agente omita (deixe de realizar) os demais atos de execução necessários à consumação material do crime – por exemplo, desiste da tentativa inacabada do crime de homicídio o agente que, tendo decidido matar a ex-companheira, afrouxou a pressão sobre o pescoço dela, permitindo que recuperasse os sentidos e deixou-a abandonar a casa onde se encontravam[16]. Segundo a previsão do enunciado artigo 24º, a desistência só é relevante quando o agente, de forma espontânea ou voluntária: - Deixe de prosseguir na execução do crime [1.ª parte do n.º 1], estando-se no domínio da tentativa inacabada – o agente abandona a resolução delitiva porque assim o decidiu, e não porque fracassaram os atos que encetou; ou - Impeça a consumação do crime [2.ª parte do n.º 1], estando-se no âmbito da tentativa acabada – o agente praticou todos os atos de execução que deveriam produzir como resultado o crime consumado; para que não seja punido é necessário que, por atividade própria e voluntária, consiga evitar o resultado, o que não impede que nessa intervenção se possa servir do concurso de outras pessoas; ou - Impeça a verificação do resultado não compreendido no tipo [2.ª parte do n.º 1], também no âmbito da tentativa acabada – pressupõe que a consumação não chegue a ocorrer. Uma vez que os crimes formais se consumam independentemente da produção do resultado eles ficarão impunes se o agente, tendo-os embora consumado, evita, por intervenção própria e voluntária – que admite o concurso de outras pessoas – que se produza o resultado em vista do qual a lei incriminou a respetiva ação[17]. A propósito do termo voluntariamente, referiu Eduardo Correia, na 1.ª Comissão Revisora do Código de 1982, que se «situa no centro da polémica quanto ao próprio fundamento do privilégio que através da relevância da desistência se concede ao delinquente: estará aquele fundamento numa ideia ética de arrependimento que se conexiona com a culpa? Ou só numa pura base político-criminal conexionada com o desejo de evitar, tanto quanto possível, resultados criminosos?»[18]. A doutrina inclina-se para este fundamento, acolhido no citado normativo – se é certo que a desistência voluntária tem reflexos na dignidade penal do comportamento, já a impunidade é uma solução fundada em considerações de política criminal, «nomeadamente a de facilitar a dissociação entre o agente e o seu projecto criminoso. De outro modo não se compreenderia que só a desistência lograda tivesse por efeito a isenção da pena»[19]. Desenvolvendo melhor, no caso de tentativa acabada exige-se um arrependimento ativo do agente no sentido de impedir a consumação material do crime, o qual consistirá na prática, pelo desistente, dos atos com o objetivo de evitar a consumação do crime, e que estes atos sejam idóneos para esse efeito, mesmo que o agente recorra à ajuda de terceiros. Só o impedimento da consumação por parte do agente o isenta de punição. Quando tal arrependimento não impeça a consumação material do crime, só poderá relevar para a medida da pena[20]. Como refere Figueiredo Dias, para que a desistência da tentativa acabada seja juridicamente relevante «não basta que o agente abandone o plano, mas tem de voluntariamente impedir a consumação (artigo 24.º, § 1.º, 2.ª alternativa) através de uma atividade própria, eventualmente com o auxílio de terceiros, v.g. de um procurador, de um médico, de polícias, de bombeiros; tem, em suma, de levar a cabo um comportamento ativo e com êxito»[21]. É, no fundo, necessário que o agente “pratique um «acto de sentido inverso» aos que foram praticados (Gegenak)”, ou seja, aquele deve colocar “em marcha um novo processo causal, pelo menos concorrente de outras causas impeditivas da ocorrência do resultado.”[22] Em suma, é imprescindível que o agente desenvolva uma conduta própria e espontânea, embora eventualmente com a colaboração de terceiros, a seu pedido, que seja idónea a evitar a consumação, e que esta efetivamente ocorra. O agente deve, pois, para ser considerado desistente e beneficiar da impunidade, dominar, ou, no mínimo, condominar o processo de salvamento do bem jurídico ameaçado pela sua conduta[23]. O n.º 2 do artigo 24º admite, ainda, a não punibilidade da tentativa quando a não consumação do crime tiver resultado de facto não imputável ao agente, ou seja, quando a conduta deste não tiver sido causal do impedimento da consumação. Todavia, neste caso, a lei exige que o agente se tenha esforçado seriamente por evitar a consumação. Retornando ao caso decidendo, de acordo com a factualidade indiciada, os arguidos encetaram, relativamente a II, atuações em tudo similares às adotadas quanto a HH, a quem subtraíram os bens descriminados no ponto 8, não tendo logrado alcançar o mesmo resultado quanto à primeira porquanto esta, tendo-se apercebido que as arguidas que a abordaram não eram quem diziam ser e que estavam a socorrer-se de subterfúgios, pediu-lhes para se retirarem da sua casa, o que elas fizeram. Ou seja, as arguidas acederam à residência da II com falso pretexto, usaram da mesma forma de abordagem utilizada com a vítima anterior desse dia, com o pretexto de pedido de açúcar, pelo que, de acordo com as regras da experiência comum, os atos empreendidos faziam esperar que se lhes seguissem atos que preenchessem elementos do tipo ou produzissem o seu resultado – a subtração de bens da ofendida –, o que apenas não sucedeu devido à perceção que esta acabou por ter da situação que se lhe apresentava, fazendo-as abandonar o local antes que se apoderassem de bens de valor. Por conseguinte, não foi por iniciativa e vontade própria que as arguidas abandonaram a residência e, como tal, não se pode afirmar que de forma espontânea e voluntária desistiram de prosseguir na execução do crime, mas antes por atuação da ofendida, alheia à vontade dos arguidos. Assim sendo, em face dos elementos fácticos indiciados nos autos, os arguidos praticaram atos de execução do crime de furto que decidiram cometer, à semelhança do que havia sucedido na primeira situação, que apenas não chegou a consumar-se por razões alheias à sua vontade, não tendo havido desistência juridicamente relevante.
Improcedem, pois, todos os argumentos recursivos expendidos pelos identificados recorrentes no âmbito da primeira questão analisada.
2.2.2 – (In)existência em concreto dos perigos elencados na decisão recorrida A recorrente BB expressamente refere no seu recurso que não se conforma com a decisão proferida e respetivos fundamentos, mormente no que à verificação dos perigos tange, porquanto entende que inexiste o perigo de continuar a atividade criminosa, pois os factos foram alegadamente praticados escassas horas antes da detenção, e inexiste o perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente, no que concerne à aquisição, conservação e veracidade da prova, sublinhando que não lhe é imputado qualquer facto relativo a alegados contactos com os ofendidos ou eventuais testemunhas. Conclui que há que considerar não verificados, em concreto, os perigos de perturbação do inquérito, de perturbação da ordem ou tranquilidade pública, e ainda, o perigo da continuação da atividade criminosa. Vejamos. O artigo 204º, n.º 1, do Código de Processo Penal estabelece os requisitos gerais para a aplicação de qualquer medida de coação, à exceção do termo de identidade e residência, que são os seguintes: a existência de fuga ou perigo de fuga [alínea a)]; a existência de perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova [alínea b)]; a existência de perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas [alínea c)]. O perigo de que falam as três alíneas do citado artigo deve ser real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo. Outrossim, deve resultar da ponderação da factualidade conhecida e da sua gravidade, nomeadamente da natureza e circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, designadamente, a idade, saúde, situação profissional e civil, inserção familiar e social, reportadas ao concreto processo[24]. O Ex.mo Juiz
de Instrução explicita, no despacho recorrido, as razões pelas quais entende verificarem-se, em concreto, os aludidos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, previstos na al. c), do n.º 1, do artigo 204º – e apenas estes, razão pela qual não se compreende a alusão da recorrente ao perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente, no que concerne à aquisição, conservação e veracidade da prova, que não está em causa. Da fundamentação do despacho recorrido emerge com nitidez que aquele que assume maior intensidade é o perigo de continuação da atividade criminosa. Tal perigo deverá resultar de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, a efetuar a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta. Conforme refere Irineu Cabral Barreto[25], o artigo 5º, n.º 1, al. c), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ao estabelecer que ninguém pode ser privado da sua liberdade salvo quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infração, «não cobre uma política de prevenção geral contra uma pessoa ou categoria de pessoas que se revelem perigosas”, mas visa “evitar a prática de uma infração concreta e específica». Também Germano Marques da Silva[26] ensina que «o fundamento da medida de coação referido na alínea c) do art. 204º deve ser cuidadosamente interpretado, em termos que o seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao próprio processo, e não de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada. O perigo de continuação da atividade criminosa há de resultar das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade. Atentas as circunstâncias do crime ou a personalidade do arguido pode ser de recear a continuação da atividade criminosa, o que importa evitar e a lei permite que para tal sejam aplicadas medidas de coação. Assim, por ex., se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da atividade criminosa pode justificar-se a prisão preventiva. A aplicação de uma medida de coação não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está indiciado. É que nem a lei substantiva permite aplicação de medidas de segurança a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual atividade criminosa, mas apenas medidas cautelares para prevenir a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está já indiciado». Ora, no caso vertente, tal como assinalado no despacho recorrido, os arguidos/recorrentes não têm ocupação laboral regular e consistente, auferindo essencialmente prestações sociais, tendo agregados familiares compostos por muitos elementos, nomeadamente, filhos, com os inerentes encargos, o que os impulsionou a subtrair bens e valores alheios, como meio de complementar os rendimentos que auferem para fazer face a tais encargos. A circunstância de terem delineado um plano, envolvendo cinco pessoas, com papéis definidos, que implicava a deslocação em viatura automóvel conduzida por um deles, pertença da sua companheira, para concelhos distintos daquele em que residiam, com o propósito de entrarem em residências habitadas por pessoas idosas, numa área territorial consabidamente envelhecida e de menor densidade populacional, que as torna alvos mais fáceis – quer pela menor capacidade de resistência própria, quer pela menor probabilidade de socorro por terceiros, nomeadamente, vizinhos –, indicia uma personalidade focada na resolução criminosa e na indiferença e falta de empatia pela situação de vulnerabilidade das vítimas, da qual, aliás, se prevaleceram, sendo esse o critério de seleção. Ademais, como decorre da narrativa dos factos indiciados, maxime, dos pontos 11 a 19, os arguidos deslocaram-se a várias localidades, abeiraram-se de diversas residências – além das pertencentes às duas identificadas vítimas, nas quais entraram –, que observaram, tocando as campainhas de algumas, denotando persistência do propósito criminoso, que apenas foi interrompido em virtude de terem sido detidos por militares da GNR. Sobressai, assim, de forma cristalina, a verificação do perigo de continuação da atividade criminosa, o qual se afigura real, atenta a personalidade evidenciado pelos arguidos e as circunstâncias que rodearam a prática dos factos indiciados, havendo, pois, que o acautelar.
Por outro lado, as circunstâncias de os factos indiciados terem sido perpetrados por cinco pessoas atuando em conjugação de esforços, escolhendo vítimas idosas, em zona territorial tendencialmente desertificada e habitada essencialmente por pessoas de idades avançadas, são de molde a causar um sério risco de intranquilidade na comunidade geográfica envolvente, pois as pessoas que aí residem em idêntica situação sentem-se potenciais vítimas, substanciando o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. De resto, a recorrente focou-se em refutar a existência de perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente, no que concerne à aquisição, conservação e veracidade da prova que o tribunal a quo não convocou no caso concreto, razão pela qual não apresentou argumentos suscetíveis de rebaterem os fundamentos pelos quais aquele entendeu – e bem, refira-se – que se verificavam os perigos os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem ou tranquilidade pública [al. c) do n.º 1 do artigo 204º]. Improcede, pois, também esta questão.
2.2.3 – (Des)necessidade, (des)adequação e (des)proporcionalidade da medida de coação de prisão preventiva – substituição desta pelas medidas de coação de “afastamento e proibição de contacto com as ofendidas, com apresentações periódicas no órgão de polícia criminal” ou, assim não se entendendo, pela obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica Os recorrentes AA, CC, DD e EE sustentam que a medida de coação aplicada não é adequada nem proporcional, porquanto – se bem se interpreta a intrincada alegação recursiva –, em síntese, apenas estão em causa duas situações, ocorridas no mesmo dia, tendo os bens subtraídos sido recuperados, trata-se de crimes patrimoniais, não têm antecedentes criminais e estão integrados em termos familiares, a culpa e as exigências de prevenção geral e especial não são significativas e, sendo a moldura penal de máximo não superior a 5 anos de prisão, as penas em que vierem a ser condenados poderão ser suspensas na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º do Código Penal. Concluem que deve de ser revogada a medida de coação privativa da liberdade e, em sua substituição, determinar-se apresentações quinzenais para o AA [refere-se FF, por manifesto lapso] e a DD, e semanais para os demais arguidos, admitindo, ainda, a proibição de se ausentarem para fora da sua área de residência. Por seu turno, a recorrente BB entende, em apertada síntese, que as medidas de coação aplicadas se revelam desadequadas e desproporcionais, quer em razão dos factos considerados indiciados, quer em razão da não verificação concreta dos perigos, bem como das exigências cautelares que o presente caso reclama, devendo, a final, ser proferida decisão que apenas a sujeite a termo de identidade e residência, à proibição de contactos com as demais arguidas, ofendidas e testemunhas e, ainda, a proibição de se dirigir aos concelhos onde alegadamente ocorreram os factos indiciários. Argui, ainda, inconstitucionalidade normativa nos seguintes termos: «Ao decidir como decidiu, o Despacho que aplicou as Medidas de Coação, violou o disposto nos artigos 18º nº 2, 27º nº 3, 28º nº 2 e 32º nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. INCONSTITUCIONALIDADE QUE DESDE JÁ SE ALEGA E REQUER PARA OS DEVIDOS EFEITOS LEGAIS». Vejamos. É consabido que as medidas de coação constituem meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias[27] e, por isso, emergem como condição indispensável, embora num quadro de excecionalidade, à realização da justiça[28]. Há, porém, que ter em conta o princípio constitucional da presunção da inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória [art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa]. Este princípio constitucional estruturante do processo penal impõe, relativamente ao arguido como sujeito objeto de medidas de coação, que estas não devem ultrapassar o «...comunitariamente suportável, face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente...»[29]. Daí que a aplicação das medidas de coação em geral e, muito especialmente, as mais gravosas, como é o caso da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação – às quais é expressamente atribuído carácter excecional ou subsidiário –, têm necessariamente que obedecer aos princípios constitucionais basilares da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 18º, 27º e 28º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa[30]. O regime de aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial é, assim, enformado por um conjunto de princípios acolhidos no direito ordinário, mas com génese constitucional, como sejam os seguintes: - Princípio da legalidade e tipicidade, do qual decorre que apenas são passíveis de aplicação as medidas de coação previstas na lei, quer no Código de Processo Penal, quer em legislação avulsa [artigos 191º do Código de Processo Penal e 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa]; - Princípio da precariedade, que impõe que as medidas de coação sejam imediatamente revogadas, quando deixarem de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação, ou substituídas, se se verificar uma atenuação das exigências cautelares, por outra menos grave ou determinando a sua execução de forma menos gravosa, podendo ser novamente aplicadas se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação [artigos 212º, n.º 1, al. b), e 213º do Código de Processo Penal]; - Princípio da adequação, da proporcionalidade e da necessidade, segundo o qual só devem ser aplicadas quando absolutamente necessárias, por adequadas às exigências cautelares que o caso concreto reclama, e proporcionais à gravidade do crime imputado [artigos 192º, n.º 2, 193º, n.ºs 1 e 3, 195º e 204º do Código de Processo Penal e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa]; - Princípio da subsidiariedade, que manda dar-se prioridade às menos gravosas, desde que da sua aplicação não resultem inconvenientes graves para a prossecução do interesse processual em causa, donde resulta que as medidas de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação sejam de aplicação residual, apenas quando as outras medidas se revelem, no caso concreto, inadequadas ou insuficientes e, dentro daquelas duas, deve dar-se preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que se revele adequada para satisfazer as exigências cautelares do caso [artigos 193.º, n.ºs 2 e 3, 201º, n.º 1, e 202º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 27.º, n.º 3, al. b), e 28º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa]. Com efeito, visando o procedimento penal a defesa de bens jurídicos fundamentais e a reposição de uma multiplicidade de interesses, surge, naturalmente, um conflito entre a preservação da sã e harmoniosa vivência comunitária, com respeito pelos direitos individuais e coletivos, e a liberdade de quem os viola ou coloca em causa. A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica contendem incontornavelmente com dois deveres do Estado, aparentemente, antagónicos – por um lado, o de perseguir eficazmente o autor de um crime e assegurar o direito à integridade dos bens jurídicos comunitários, e, por outro, o de assegurar o direito à liberdade deambulatória, um dos mais nucleares e cuja privação mais graves repercussões implica. A prisão preventiva surge, assim, como a ultima ratio, por se tratar da medida mais gravosa, só podendo ser aplicada a título residual e excecional, ou seja, quando nenhuma outra medida se mostre adequada à satisfação das exigências processuais que se façam sentir no caso concreto. A medida de coação de obrigação de permanência na habitação ou em instituição com vigilância eletrónica[31], prevista no artigo 201º do Código de Processo Penal, é a segunda mais gravosa no leque das medidas de coação taxativamente previstas pela nossa legislação penal. Apesar de ser um minus relativamente à prisão preventiva, não deixa de ser privativa da liberdade. Aliás, de tal modo o legislador pretendeu realçar o cariz privativo da liberdade pessoal e deambulatória inerente à obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica que consignou, expressamente, que o período de permanência na habitação é – tal como o período de prisão preventiva – descontado por inteiro no cumprimento da pena de prisão que porventura venha a ser aplicada [cfr. artigo 80º, n.º 1, do Código Penal), pois pressupõe que o arguido fique obrigado a permanecer na habitação [que pode ser a sua residência ou a residência de outrem ou uma instituição adequada a prestar-lhe apoio social ou de saúde] e só mediante prévia autorização judicial é que poderá ausentar-se da mesma (do respetivo espaço físico a que está confinado). Como decorrência do princípio estrutural da presunção de inocência – consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, artigo 11º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – atenta a natureza mais impactante de tais medidas privativas da liberdade são, naturalmente, acrescidas as exigências para o seu decretamento, nomeadamente, a ponderação dos requisitos materiais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade. Recorde-se que o princípio da necessidade se traduz na impossibilidade de o fim visado pela medida de coação decretada não poder ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido. O princípio da adequação significa que a medida de coação deve ser idónea para satisfazer as exigências cautelares que se fazem sentir, sendo escolhida em função da finalidade a que se destina. Nas palavras de Germano Marques da Silva[32], uma medida de coação é adequada «se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares». Finalmente, o princípio da proporcionalidade postula que a medida a aplicar deve ser proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido em razão da prática do crime, devendo para tanto atender-se a todas as circunstâncias que em geral devem ser consideradas para a determinação da medida da pena, nomeadamente, as relativas à execução do facto, à personalidade do agente e à conduta anterior e posterior.
No caso vertente, apesar da reiterada alusão dos recorrentes, em ambos os recursos, à medida de coação de prisão preventiva, somente há que apreciar a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, que foi aquela que efetivamente lhes foi aplicada, tendo sido decretada a prisão preventiva apenas até estarem reunidas as condições indispensáveis à execução da obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, o que já sucedeu, encontrando-se, por isso, os arguidos submetidos a esta medida de coação. Tendo em perspetiva o supra aduzido a respeito dos princípios que devem presidir à aplicação das medidas de coação e os elementos fácticos indiciados nos autos até ao momento, afigura-se-nos que a medida de coação obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica não é absolutamente indispensável à satisfação das exigências cautelares que o caso reclama, nem proporcional à gravidade dos crimes e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada a cada um dos recorrentes. Com efeito, apesar da forma de execução dos factos indiciados a que supra aludimos, nomeadamente, em comparticipação, envolvendo cinco pessoas, tendo por alvos pessoas idosas, com entrada nas suas residências, não havendo indícios do uso de violência, tendo sido recuperados os bens no caso do furto consumado, não tendo os arguidos antecedentes criminais registados e mostrando-se integrados em termos familiares, admite-se como provável que, em caso de eventual condenação, lhes venham a ser aplicadas penas não superiroes a cinco anos, suscetíveis de serem suspensas na sua execução, ainda que com sujeição a regime de prova e deveres e/ou regras de conduta, nos termos consentidos no artigo 50º e seguintes do Código Penal. Por outro lado, atenta a circunstância de os arguidos terem sido detidos logo após a prática do crime de furto sob a forma tentada e terem sido submetidos a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, afigura-se-nos que medidas de coação não detentivas que os mantenham cientes da sua situação jurídico processual e das repercussões penais da atuação que empreenderam e que os impeçam de contactarem entre si e de se deslocarem para fora do concelho onde residem serão adequadas e suficientes para obstar aos anteditos perigos de continuação da atividade criminosa e de perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. Concretamente, afigura-se-nos que a aplicação cumulativa aos arguidos das medidas de obrigação de apresentação periódica perante o órgão de polícia criminal da sua área de residência, prevista no artigo 198º do Código de Processo Penal, entendendo-se ajustada a periodicidade bissemanal, e de proibição e imposição de condutas, prevista no artigo 200º do mesmo diploma, especificamente, proibição de se contactarem uns aos outros por qualquer meio e de se deslocarem para fora do concelho onde residem [cfr. n.º 1, als. a), c) e d)], será suficiente para obviar às exigências cautelares que se fazem sentir no caso vertente e que assim serão respeitados os princípios acima expostos, nomeadamente, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade. Neste conspecto, procedem, pois, os recursos interpostos, com a consequente revogação do despacho recorrido nessa parte e o decretamento das sobreditas medidas de coação. Resta consignar que é ininteligível a arguição de inconstitucionalidade nos moldes redundantes em que foi efetuada pela recorrente BB, afigurando-se-nos que se pretendeu, tão somente, vincar a alegada violação do disposto nos invocados preceitos da Constituição da República Portuguesa. * *
III. – DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar, quer o recurso interposto pelos arguidos AA, CC, DD e EE, quer o recurso interposto pela arguida BB, parcialmente procedentes e, em consequência, revogar o despacho recorrido, na parte em que aplicou a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, determinando-se que todos os arguidos/recorrentes aguardem os ulteriores trâmites processuais sujeitos, além do termo de identidade e residência, às seguintes medidas coativas cumulativas: - Obrigação de apresentação periódica perante o órgão de polícia criminal da sua área de residência, com periodicidade bissemanal, às segundas e quintas feiras, durante o horário de expediente [artigo 198º do Código de Processo Penal]; - Proibição e imposição de condutas, especificamente, proibição de se contactarem uns aos outros por qualquer meio e de se deslocarem para fora do concelho onde residem [artigo 200º, n.º 1, als. a), c) e d), do Código de Processo Penal].
Sem custas por não haver decaimento total (artigos 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
* * Emitam-se mandados de libertação, a cumprir de imediato, e comunique-se ao órgão de polícia criminal competente as medidas de coação ora impostas aos arguidos com vista à fiscalização das mesmas. * Notifique e comunique de imediato à 1.ª instância. * * (Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
Isabel Gaio Ferreira de Castro [Relatora] Rosa Pinto [1.ª Adjunta] Helena Lamas [2.ª Adjunta]
[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos e, nalguns casos, a alteração da formatação do texto, da responsabilidade da relatora. [2] Quer as conclusões, quer a motivação, estão eivadas de erros de escrita, abreviaturas, frases incompletas, ausência ou deficiência de pontuação, entre o mais, que as tornam quase ininteligíveis, pelo que apenas se corrigiu aquilo que oferece dúvida quanto ao que se pretendia dizer. [25] In A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 2005, pág. 95. [26] In ob. cit., II, págs. 246-247. [30] Vide José António Barreiros, "As medidas de Coação e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal"; Tolda Pinto, in “A Tramitação Processual Penal”, 2ª edição; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, 2a edição, volume II, pág. 250; Leal Henriques e Simas Santos, “Código de Processo Penal Anotado”, vol. 1, 3ª edição, pág. 1270. [32] In ob. cit., II, págs. 246-247. |