Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA DA CONCEIÇÃO MIRANDA | ||
Descritores: | ESCUSA JUIZ NATURAL | ||
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Data do Acordão: | 05/28/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL - JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | ESCUSA | ||
Decisão: | INDEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 39º, 40º, 43º A 45º E 426º-A, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; ARTIGOS 32º E 203º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. | ||
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Sumário: | 1 - Não é suscetível de suscitar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz na boa administração da justiça, o facto de, em obediência a uma decisão de um Tribunal Superior, o referido Juiz ter proferido despacho de recebimento da acusação e - mantendo-se a sua intervenção nos autos, por razões de carácter orgânico e funcional, - ter de intervir, na qualidade de juiz presidente, na audiência de julgamento e prolação do acórdão.
2 - O pedido de escusa traduz num desvio ao princípio do juiz natural, que visa assegurar a isenção e independência de um Juiz quando toma uma decisão, só sendo admissível o afastamento do juiz natural quando este não ofereça garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função. 3 - O cumprimento de decisões proferidas por Tribunal de Recurso em sentido contrário ao do Juiz a quo, só por si, não constitui fundamento de escusa por não ser apto a gerar desconfiança da comunidade sobre a imparcialidade e isenção do Juiz no exercício da função. 4 - Se todos os casos em que o recurso interposto da decisão do Juiz obtém provimento, constituíssem motivo de escusa (ou de recusa) do magistrado, estaria encontrada a forma de impedir o andamento normal dos processos. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em Conferência, na 5. Secção do Tribunal – Criminal - da Relação de Coimbra
Relatório Os presentes autos mostram-se instruídos com as peças processuais para a decisão de mérito, não se revela, por isso, necessária a produção de outras provas. Nesta Relação, o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto entende que a pretensão deve ser indeferida. Vejamos, então. Consagra o artigo 203º da Constituição da República Portuguesa o princípio fundamental da independência dos Tribunais, aí se estatuindo que: “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei “. “1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º. 3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis. 4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2. (…)” A densificação que tem sido efetuada, pela doutrina e jurisprudência, desta cláusula geral atinente à imparcialidade de um juiz sublinha que deve ser delimitada numa dupla dimensão subjetiva e objetiva. Na perspetiva subjetiva da imparcialidade do Juiz está relacionada com o que o Magistrado pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real. Nesta perspetiva se internamente o Magistrado Judicial tiver algum motivo para desfavorecer um sujeito processual em favor de outro, ou por outras palavras se tiver um preconceito sobre o mérito da causa, ocorrerá uma situação de parcialidade. A imparcialidade do Juiz presume-me nesta vertente. No concernente à vertente objetiva a imparcialidade do Juiz encontra-se relacionada com o comportamento exteriorizado pelo Magistrado Judicial, apreciado do ponto de vista do cidadão comum e das dúvidas fundadas sobre a sua conduta. Neste particular, realça o Acórdão do Tribunal Constitucional nº.935/96, in www.tribunalconstitucional.pt que: “ (…) Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis. Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao "administrar a justiça", actuem, de facto, "em nome do povo" (cfr. artigo 205º, nº 1, da Constituição)". (…) salienta Ireneu Barreto (cfr. Notas para um Processo Equitativo, Análise do Artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à Luz da Jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado nºs. 49/50, p. 114,115): "A imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos". Ora, como se vê, o Mmº. Juiz não manifesta ter qualquer relação com os sujeitos processuais, nenhum interesse pessoal no caso a julgar, suscetível de comprometer a sua imparcialidade, a qual, aliás, se presume existir. Assim, o que releva decisivamente, neste quadro, é a possível imparcialidade do Mmº. Juiz, na dimensão objetiva, que pode afetar a imagem externa de garantia de isenção para o julgamento da causa. Com efeito, tendo em linha de conta o juízo do homem médio, representativo da comunidade, não se vê que, no caso, o facto do Mmº. Juiz, em obediência a uma decisão de um Tribunal Superior, ter proferido despacho de recebimento da acusação e mantendo-se a sua intervenção nesses autos, por razões de carácter orgânico e funcional, terá de intervir, na qualidade de juiz presidente, na audiência de julgamento e prolação do acórdão, não é suscetível de suscitar desconfiança sobre a imparcialidade do Senhor Juiz na boa administração da justiça. O afastamento do princípio do juiz natural, de consagração constitucional, só deve ocorrer perante motivos que, face à sua seriedade e gravidade, sejam objetivamente aptos a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, o que no caso não se verifica. Coimbra, 28 de Maio de 2025 |