Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1215/23.9T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS MIGUEL CALDAS
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO
CONTRATO DE FIANÇA
ASSINATURA ELECTRÓNICA
INDEMNIZAÇÃO CONTRATUAL
PRINCÍPIOS DA BOA FÉ E PROPORCIONALIDADE
ABUSO DO DIREITO
QUESTÕES NOVAS
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – FIGUEIRA DA FOZ – JUÍZO LOCAL CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 227.º, 342.º, 376.º, 487.º, N.º2, 627.º, N.º1, 762.º, N.º2, 810.º, N.º 1, 812.º, 1022.º, 1026.º, 1027.º, 1028, 1031.º, 1038.º, ALÍNEAS A) E F), 1039.º E SEGS. , 1043.º, 1045.º DO CÓDIGO CIVIL.
ARTIGO 2.º, ALÍNEA C), 3.º, N.º2, DO DL N.º 290-D/99, DE 02-08, – REGIME JURÍDICO DOS DOCUMENTOS ELECTRÓNICOS E DA ASSINATURA DIGITAL
Sumário: 1. A celebração de um contrato de locação e de um contrato de fiança com recurso a assinatura electrónica avançada tem a força probatória dos documentos particulares assinados, nos termos do art. 376.º do Código Civil.

2. O contrato de locação é aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar a outrem o gozo temporário de uma coisa, vinculando-se o locador a entregar ao locatário a coisa locada e a assegurar o gozo desta para os fins resultantes do contrato, ficando o locatário vinculado a pagar o montante da retribuição – de forma periódica e pré-terminada –, e a restituir a coisa locada findo o período contratual acordado.

3. O contrato de fiança assume a natureza de uma garantia pessoal das obrigações, através da qual um terceiro assegura a realização de uma obrigação do devedor principal, responsabilizando-se pessoalmente com o seu património por esse cumprimento perante o credor, tendo como características principais a acessoriedade e a subsidiariedade.

4. Não se verifica qualquer ofensa dos princípios da boa fé, proporcionalidade ou abuso do direito, se o fiador foi condenado a pagar à locadora a quantia correspondente ao valor dos alugueres vencidos e não pagos pela locatária até à data da resolução judicial do contrato, acrescida de uma indemnização correspondente ao valor mensal dos alugueres por cada mês da mora na restituição dos bens locados e até à sua efectiva restituição, considerando que a fiança acompanha a obrigação principal.

5. O recurso constitui um meio de modificação ou revogação de uma decisão judicial previamente tomada e não de criação de uma decisão sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo, visando a reponderação das questões já decididas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]

A..., S.A. – anteriormente designada B..., S.A. –, intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, alegando, em síntese, que celebrou com a sociedade C..., Lda. –actualmente designada D..., Lda. – um contrato de locação de equipamentos, garantido pelo réu, na qualidade de fiador, e que aquela sociedade não cumpriu integralmente o acordo o que originou créditos a favor da autora que motivaram o accionamento do réu, nessa qualidade.


*

Após concluir pela procedência da acção, a autora deduziu os seguintes pedidos:

“1.º) Julgada válida a resolução do Contratos de Locação n.º AP-018533, celebrado entre Autora e Réu, por incumprimento definitivo e culposo imputado à Locatária D..., Lda. (anterior C..., Lda.), comunicada extrajudicialmente, nos termos do contrato, por comunicação de 04/03/2020; ou se assim não fosse entendido, declarada a resolução do contrato pelo fundamento alegado;

2.º) O Réu condenado a pagar à Autora as quantias devidas nos termos do Contrato de Locação, alugueres, custos de avisos, indemnização / cláusula penal e juros de mora vencidos, liquidados nos seguintes montantes:

2.1) 888,77 €, respeitante a faturas emitidas, à exceção das faturas emitidas a título de juros de mora, enviadas pela Autora à Ré e não paga;

2.2) 1.579,25 €, IVA incluído, a título de indemnização / cláusula penal, correspondente ao valor dos alugueres vencidos antecipadamente com a comunicação de resolução, remetida em 04/03/2020, ou, subsidiariamente, caso o Tribunal entenda que o IVA não é devido, o montante de 1.283,94 €;

2.3) 1.280,26 € (dos quais 28,80 € já faturados e não incluídos nas faturas peticionadas em 2.1)), respeitante aos juros mora vencidos, desde a data de vencimento das faturas até 01/08/2023, liquidados à taxa convencionada de 15%, sobre os valores peticionados em 2.1);

3.º) O Réu condenado a restituir à Autora os bens locados, melhor identificados nos Docs. n.º 2 e 4, junto a esta P.I., e a suportar os custos de tal restituição; e

4.º) O Réu condenado a pagar à Autora a indemnização legal prevista nos termos do art. 1045.º, n.º 2 do Código Civil, no total de 11.745,67 € (1.235 dias x 9,51 €), vencida desde 14/03/2020 até 01/08/2023, cujo o valor correspondente a 1/30 do dobro do valor do aluguer mensal por cada dia decorrido após a resolução, ou seja, no valor diário de 9,51 €, a liquidar até à data da restituição dos bens locados pelo Réu à Autora;

5.º) O Réu seja condenado no pagamento à Autora das quantias vincendas por cada dia de mora, desde 02/08/2023:

5.1) até efetiva restituição, de indemnização pela mora na restituição dos bens, calculada nos termos do art. 1045.º, n. º 2, do Código Civil, no valor correspondente a 1/30 do dobro do valor previsto para o aluguer mensal, ou seja, o proporcional diário de 9,51 €; e

5.2) até integral pagamento, a título de juros de mora vincendos sobre as quantias do pedidos 2.1), à taxa convencionada de 15%; e

6.º) O Réu condenado nas custas judiciais.” (sic).


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O réu contestou, invocando, no essencial, a nulidade da fiança por falsidade da assinatura, sustentando que não recebeu quaisquer bens ou serviços da autora e não se comprometeu como fiador no contrato de locação, uma vez que a assinatura ali representada não é sua. Mais alega não ter sido informado do teor das cláusulas respectivas.

*

            Seguido o formalismo legal e realizada audiência final foi proferida a seguinte decisão:

            “Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgo parcialmente procedente a presente ação e em consequência:

“1) Declaro resolvido o contrato de locação n.º AP-018533 celebrado entre a Autora A..., S.A. (anteriormente designada B..., S.A) e a sociedade D..., Lda. (anterior C..., Lda.), com fundamento na falta de pagamento dos alugueres, com efeitos na presente data;

2) Condeno o Réu AA a pagar à Autora A..., S.A.:

2.1) A quantia de 740,56€ (setecentos e quarenta euros e cinquenta e seis cêntimos) relativa aos alugueres e prémios de dezembro de 2019, janeiro, fevereiro e março de 2020, acrescida de juros de mora calculados ao abrigo do disposto no artigo 102.º, p. 3 e 4 do Código Comercial, alíneas a) e b) do artigo 1.º da Portaria n.º 277/2013, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 163, de 26 de agosto de 2013, e de acordo com as taxas de juro comercial vigentes na sequência dos sucessivos avisos publicados pela Direção Geral do Tesouro, acrescida de 7%, contabilizados deste 23-06-2021, até integral pagamento;

2.2) a quantia de 10.182,70€ (dez mil cento e oitenta e dois euros e setenta cêntimos) relativas aos alugueres e prémios de seguros vencidos desde abril de 2020 até à presente data, acrescida de juros de mora calculados ao abrigo do disposto no artigo 102.º, p. 3 e 4 do Código Comercial, alíneas a) e b) do artigo 1.º da Portaria n.º 277/2013, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 163, de 26 de agosto de 2013, e de acordo com as taxas comercial vigentes na sequência dos sucessivos avisos publicados pela Direção Geral do Tesouro, acrescida de 7%, i) quanto aos alugueres vencidos antes de 23-06-2021, a partir desta data e até integral pagamento, e ii) quanto aos alugueres vencidos posteriormente a 23-06-2021, os juros serão contabilizados sobre cada um dos alugueres em dívida, a contar do respetivo vencimento até integral pagamento.

2.3) a quantia de 142,66€ (cento e quarenta e dois euros e sessenta e seis cêntimos) por cada mês ou o proporcional correspondente ao período de atraso, à razão de 1/30, o que equivale a 4,75€ (quatro euros e setenta e cinco euros) por cada dia, a título de indemnização pelo atraso na restituição dos bens locados (identificados no ponto 1 da matéria assente) à Autora, devida decorridos 10 dias após a presente data e até efetiva restituição dos bens locados. Absolve-se o Réu do demais peticionado.

Custas da ação sobre a Autora e Réu na proporção de 15%-85% respetivamente.”.


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Inconformado o réu veio recorrer concluindo as suas alegações nos seguintes termos:

“A) da prova produzida, designadamente do depoimento claro e transparente da testemunha BB (de 03'31" a 5'03"; de 5'30" a 6'49"; e de 7'28" a 8'09"), outros não havendo em contrário, ficou patente que deveria ser dado como provado o facto constante da al. E. dos Factos não Provados;

B) na verdade, é notório que com a cessão das quotas, o anterior gerente, aqui R., deixou de usar e ter acesso ao email da empresa (...@hotmail.com), pois ficou provado que após, foram emitidas e enviadas à sociedade diversas faturas que foram pagas, em concreto, as relativas à retribuição acordada até novembro de 2019 (ponto 14. FP), e que a A. remeteu para esse endereço eletrónico (ponto 15. dos FP);

C) isto porque é inequívoco que, se a sociedade - já sem o Réu como gerente, desde fevereiro de 2019 - pagou as faturas até novembro de 2019, é porque as recebeu e - é das regras da experiência - não terá sido o Réu a pagá-las !!! ;

D) as mesmas regras da experiência impõem que, ficando a sociedade com esse endereço de email, tenha alterado a senha de acesso, pelo que é inequívoco que o Réu deixou de ter acesso à caixa de correio eletrónico da sociedade;

E) igualmente resulta do mesmo depoimento que os pontos 3., 4. e 5. dos “Factos Provados” também deveriam ser dados como não provados, bem como eliminada a expressão “e pelo réu, na qualidade de fiador”, do ponto 6.;

F) quanto ao ponto 3., e atenta a forma de assinatura do contrato, o R. não se apercebeu da diferenciação ou dissociação do documento em dois, sendo que a fiança não é, sequer, mencionada no Contrato, como facilmente resulta da sua leitura e da injunção, feita pela A., na qual não invocava qualquer Fiança;

G) que o ora Réu estava completamente insciente de ter assumido uma fiança, mostra-o bem a forma como se defendeu na oposição à injunção (cf. arts. 13 a 15 da mesma), pois, atenta aquela forma de assinatura do contrato, passou despercebido ao Réu esse outro documento, para si sem relevância ou autonomia, sendo a "assinatura" dos dois contratos feita com o envio de um único email, como se depreende de, em ambos, constar a mesma data/hora de validação eletrónica/assinatura: “15:29 BST” (cf. docs. 1 e 2 juntos com a P.I.);

H) ao contrário do que a Mma. Juiz dá como provado, designadamente sob o ponto 4., o endereço eletrónico ...@hotmail.com, para o qual o contrato foi remetido pela Autora não era pertencente ao gerente da sociedade (aqui Réu), mas sim pertencente à própria sociedade;

I) isso mesmo resultou com clareza do excerto do depoimento da testemunha BB, acima transcrito, nomeadamente entre 7'28" e 8'09", do qual decorre, também, que o gerente, ora R., tinha já, ao tempo, e tem ainda, um outro endereço de email;

J) também quanto ao ponto 5. FP, há manifesto erro na apreciação da prova, pois, demonstrado que o único endereço de email da sociedade era o já referido e que o ora R. tinha um outro, é fácil de concluir que a declaração de fiança não foi enviada para o Réu através desse email, mas sim, para a sociedade, através de tal email;

K) da mesma forma, portanto, e ao contrário do que consta do ponto 6., o endereço em causa não foi indicado pelo Réu, enquanto tal, enquanto pessoa física, mas sim pela empresa, à qual esse endereço pertencia e era o único que a mesma tinha, e foi indicado apenas como tal e não como endereço do R., que tinha outro;

L) independentemente destas propugnadas alterações, os factos provados na sentença não consentem a decisão da douta sentença, plena de judiciosa construção formal, mas totalmente afastada da Justiça e da proporcionalidade, pois, manifestamente, não ponderou, de forma dialética: a) o valor dos bens alugados (cf. ponto 7. FP); b) o valor total das prestações do aluguer, ao longo de 3 anos (cf. pontos 8. e 9. FP); c) que a retribuição mensal teve em consideração o número mínimo de retribuições programadas (36) por forma a amortizar integralmente o custo de aquisição dos bens e a suportar as despesas de execução do contrato (cf. ponto 10. FP); d) que a C... se obrigou a contratar um seguro para os bens locados, ou caso não o fizesse, a A. teria o direito de incluir os equipamentos descritos em 1 na sua apólice e a cobrar à primeira o prémio de seguro correspondente no valor mensal de 9,67€ (cf. ponto 12. FP), sendo que, como resulta do ponto 15. FP, efetivamente a ora A. os incluiu no seu seguro e debitou esses valores;

M) face ao que, e tendo em conta a impossibilidade do cumprimento do dever de restituição dos bens (cf. pontos 28. a 30. FP), é de questionar, desde logo, se o exigido cumprimento não ofende a própria ideia de Justiça, se não há uma manifesta ofensa dos princípios da boa fé e do abuso de direito ao exigir - e a sentença, em grande parte, determinar - uma prestação mensal, ad eternam, desde abril de 2020;

N) mesmo que o R. fosse fiador - e não é -, seria uma violência que ofende a consciência jurídica sujeitar alguém, que não tem na sua disponibilidade restituir os bens à A., um perpétuo pagamento de um aluguer relativo aos mesmos, tanto mais que, com o pagamento dos alugueres e prémios de seguros vencidos desde abril de 2020 até dezembro de 2020 (a data final do contrato, sem renovação), a A. obteria a amortização integral do custo de aquisição dos bens, bem como as despesas de execução do contrato" (cf. ponto 10. FP);

O) há que equacionar, também na esfera jurídica da A., o valor do cumprimento e o valor do incumprimento, pois se, com o cumprimento, a A. obteria aquele retorno (€6.316,98, IVA incluído), pelo seu investimento (de €4.920,00, também IVA incluído) e ver-se-ia, de novo, na posse dos bens (evidentemente depreciados pelo tempo, como é notório), com o incumprimento, a A. obteria – judicialmente - o mesmo retorno, acrescido de uma prestação perpétua de €142,66 mensais;

P) tem, assim, de ser aqui chamado à colação, na senda de Leite de Campos, Sinde Monteiro e outros, o princípio da proporcionalidade, que se tornou obrigatório face ao disposto no artigo 18, n.º 1 da CRP: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”;

Q) tanto mais quanto: a) o contrato é de cláusulas contratuais gerais, inteiramente elaborado pela A./Recorrida, sem qualquer negociação ou conhecimento ou explicação prévia; b) não ser esse cumprimento exigido à devedora principal, mas a um mero (hipotético) fiador; c) e ser essa exigência/condenação um substituto monetário do cumprimento, quando emerge profusamente dos autos a impossibilidade objetiva do cumprimento, ou seja, é violentamente ostensiva a desproporção e o desequilíbrio das prestações;

R) também pela redução do negócio, nos termos do art. 812 do Código Civil, se poderá alcançar a justiça, visto que a cláusula penal fixada para o incumprimento e para a não restituição dos bens - mesmo na modalidade, adotada na douta sentença, do pagamento mensal, em singelo, mas perpetuamente, do montante do aluguer - é, como já foi referido, indutora de um profundo desequilíbrio das prestações;

S) de facto, é preciso ter em conta que os bens alugados não são bens que pudessem ter para a A. qualquer valor outro, que não o seu valor venal, bens que a A. adquiriu, a pedido e por indicação da empresa locatária, com o objetivo expresso de lhos alugar, e que valiam, aquando dessa aquisição, €4.920,00, IVA incluído, tendo sido este o valor que a A./Recorrida despendeu, e pelo aluguer dos quais recebeu já, apesar de tudo, €3.281,18 (também, IVA incluído), resultantes do pagamento de 23 mensalidades ou alugueres, de janeiro de 2018 a novembro de 2019 (cf. pontos 8., 9. e 14. FP);

T) assim - e sem prescindir de que o R. não é fiador, mas na eventualidade de não ser dado provimento à requerida alteração da matéria de facto -, parece exigir-se a redução da pena contratual pelo incumprimento, aos valores dos alugueres de dezembro de 2019 a dezembro de 2020 (face à resolução do contrato em 4 de março, o contrato não se renovou) e, quanto à não restituição dos bens, ao valor dos mesmos, a determinar por recurso à equidade, sempre em valor inferior a €4.000,00 (o seu valor de aquisição, sem IVA), face ao notório facto da sua desvalorização real;

U) sendo mesmo este último valor (dos bens) redundante, uma vez que, como ficou provado (pontos 12. e 15. FP), a A.-Recorrida tinha o direito de incluir os equipamentos na apólice de que é tomadora e a cobrar à locatária o prémio de seguro correspondente, no valor mensal de €9,67 (cf. ponto 12. FP), como fez, pois, efetivamente a ora A. os incluiu no seu seguro e debitou esses valores (cf. ponto 15. FP), e, assim, na impossibilidade objetiva de o R. restituir os bens à A. e igual impossibilidade objetiva de esta os encontrar e reaver, deve haver lugar ao ressarcimento desse dano pelo seguro contratado, que continuou a ser cobrado, mesmo nas faturas não pagas (cf. ponto 15. FP: als. a), b), e) e h)), o que significa que os bens continuavam a ser objeto desse seguro;

V) e é redundante a condenação do ponto 2.2, integrando o valor do seguro, cujo pagamento a A. não provou após março 2020: a) ou a seguradora pagou o valor dos bens, cessando o pagamento do prémio; b) ou, após a resolução, e perante a impossibilidade objetiva da restituição, é um absurdo continuar a pagar o prémio;

W) assim, além da incorreta apreciação da matéria de facto, a sentença recorrida violou, por omissão, deficiente interpretação e/ou incorreta aplicação, os arts. 221, 342 e 1041, n.º 6, todos do Código Civil, bem como o art. 607, n.º 4 do Código de Processo Civil.”.


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Em sede de contra-alegações, a autora/recorrida refere:

“(…) A) Do erro na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto

O Recorrente, coloca em crise parte da factualidade dada como provada, por considerar que existe uma notória contrariedade entre a factualidade dada como provada, em função da prova produzida, em alegada violação do princípio da livre apreciação da prova, por confusão do julgador com a sua íntima convicção, ou seja, por erro de julgamento na interpretação dos factos pelo Tribunal a quo.

A Recorrente, considera que os factos provados 3., 4., 5. e parte do 6. foram erradamente apreciados, face à prova produzida em audiência de julgamento; mais, entende ainda o Recorrente que o facto não provado em E. deveria ter sido dado como provado, contudo, conforme já se referiu, não lhe assiste razão.

Vejamos, A douta sentença, de 29/10/2024, nos “Factos não provados”, alínea E. diz-nos o seguinte: “Desde a cessão de quotas o Réu deixou de acesso à caixa de correio eletrónica da sociedade C..., Lda.”

Tendo o Tribunal a quo na fundamentação, aclarado que o mesmo não se considerou provado porque “(…) Relativamente ao facto E., destaca-se que não é notório, nem presumível que o endereço de e-mail seja transmitido com o negócio da venda da sociedade Locatária ou não fosse alterado, uma vez que se trata de algo facilmente criado, remotamente acedido, ao contrário de uma caixa de correio postal física. Não deixa, pois, de ser plausível o eventual acesso pelo Réu à caixa postal eletrónica em causa, tanto mais que, como se viu, a utilizou a título pessoal aquando da subscrição da fiança.”

A acrescer ao que foi dito pelo Tribunal a quo, importa reforçar que o e-mail utilizado pela Locatária e indicado também pelo Fiador como o seu e-mail pessoal, utilizado assim para assinatura do contrato de locação e da declaração de fiança era o ...@hotmail.com.

O domínio do e-mail não é próprio da locatária, ou seja, não é, a título de exemplo, @C....pt, pois pertence à Microsoft (hotmail.com), pelo que ao contrário do que alega o Recorrente, o mesmo poderia ter continuado a aceder ao e-mail, remotamente desde qualquer dispositivo (smartphone, tablet e/ou computador).

Não sendo notório, como afirma o Recorrente, que se o e-mail era da empresa, ligado aos nomes dos restaurantes, que o Recorrente tenha deixado ter acesso ao mesmo, tanto que foi o único e-mail que o mesmo indicou à Locadora, aqui Recorrente, tal como resulta do depoimento da testemunha CC, gravado no dia 24/09/2024, das 10:57 às 11:59/ 13:24 a 13:47 / 13:48 a 15:11 / 15:12 a 17:32 / 17:36 a 18:27 /18:28 a 20:08 /20:09 a 20:48

Pois, foi o próprio Recorrente, socorrendo-se agora em argumentos vagos, nomeadamente, que se tratava, aquando da celebração dos contratos, de um “jovem” de 29 anos, e portanto sem experiência negocial, apesar de ter assumido a gerência de 2 estabelecimentos comerciais, e que inocentemente, não se apercebeu da existência da declaração de fiança, que apenas indicou o e-mail ...@hotmail.com para a assinatura do contrato e da fiança, tal como foi corroborado pela testemunha CC, e que corresponde ao constante no certificado de assinaturas (Cfr. Doc. n.º 3, da petição inicial).

O que leva a Recorrente a acreditar, tal qual o Tribunal a quo, que o mesmo tivesse acesso ao aludido e-mail. Mais, não resulta do depoimento da testemunha BB, companheira do aqui Recorrente, AA, e trabalhadora da sociedade Locatária aquando da celebração do contrato n.º AP-018553, que o mesmo não tivesse acesso ao email ...@hotmail.com, apenas que o Recorrente/Fiador detinha outro e-mail pessoal, contudo, não indicou qual seria, nem esclareceu o motivo para o mesmo não o ter indicado aquando da celebração do contrato de locação e da assinatura da declaração de fiança.

E não o fez porque não tinha forma de esclarecer tal factualidade. Em primeiro lugar porque vivem em união de facto, o que condiciona o depoimento, e, em segundo lugar, porque a mesma não fazia parte da gerência da sociedade, e bem assim, porque nem sequer presenciou o momento da assinatura do contrato e da declaração de fiança.

Mais, sustenta o Recorrente que se a Recorrida continuou e emitir faturas e a promover pelo seu envio para o e-mail ...@hotmail.com, e as mesmas foram pagas até novembro de 2019, seria um claro sinal de que o Recorrente já não teria acesso ao aludido e-mail.

Contudo, deverá soçobrar o – esfoçado – raciocínio do Recorrente. Nem o Recorrente, nem a Recorrida, conseguem provar que as faturas foram efetivamente recebidas pela sociedade Locatária, atualmente insolvente, no e-mail ...@hotmail.com, até porque as alegações do Recorrente são meras suposições.

Contudo, a Recorrente pode provar, que os pagamentos das faturas dos alugueres e demais quantias devidas eram feitos por débito direto, tal como resulta dos documentos n.ºs 1 (cláusula 6.1) e 4 da petição inicial.

A cláusula 6.1, constante do contrato de locação (Doc. n.º 1 da petição inicial) diz-nos: “O Cliente autoriza desde já que os pagamentos sejam efetuados através de multibanco (…) ou por débito direto.”

Por sua vez, a autorização de débito direto consta do documento n.º 4, da petição inicial, no qual o aqui Recorrido terá indicado o IBAN PT50 ...8.3.

Ao contrário do e-mail, é recorrente que com a cessão de quotas que a conta bancária permaneça aberta, mas na gestão da nova gerência. Assim, enquanto tivesse saldo disponível, em prejuízo de receção das faturas ou não, o pagamento dos alugueres seria feito, tal como foi até novembro de 2019.

O depoimento da testemunha CC, gravado no dia 24/09/2024, das 10:57 às 11:59 corrobora isso mesmo: 29:59 a 30:53.

Assim, deverá improceder o alegado pelo Recorrente quanto à alínea E., da factualidade dada como não provada, devendo a mesma permanecer tal como resulta da douta sentença, de 29/10/2024.

Quanto aos factos dados como provados 3., 4., 5. e a expressão “e pelo Réu, na qualidade de fiador”, elencada no ponto 6., apesar dos esforços do Recorrente, os mesmos deverão continuar a constar como provados.

As pretensões do Recorrente deverão falecer in totum, pois encontram-se despidas de qualquer sustento.

Ainda assim, é de saudar o jogo de cintura do Recorrente e o esforço do mesmo, que por um lado na sua contestação jurava nunca ter assinado a declaração de fiança, mas sim o contrato de locação, para agora afirmar que a assinou sem a consciência que se impunha, por ser um “jovem” com 29 anos, com pouca experiência negocial.

A relação entre as partes aqui em litígio é puramente comercial, B2B, business-to-business, e não entre comerciais e consumidores.

Ora, tal como refere a douta sentença de 29/10/2024, “(…) o Réu não alegou sequer qualquer dificuldade na interpretação do teor da fiança, alegando tão só, que não possuía consciência de se ter vinculado com a Autora na qualidade de fiador. Mais uma vez, ainda que assim fosse (o que não se concebe e não se provou), tal apenas de deve à falta de diligência do Réu. Com efeito, se assinou o documento em causa e não o leu ou lendo-o, não o compreendeu e não solicitou esclarecimentos, é responsável pela sua própria inércia, em particular pela omissão do seu dever de diligência e autorresponsabilização.”

A fiança (Cfr. Doc. n.º 2, da petição inicial) é de fácil leitura, contendo um texto simples e de fácil interpretação.

Mais, a declaração de fiança, tal como referiu a testemunha CC, gravado no dia 24/09/2024, das 10:57 às 11:59, teve de ser preenchida pelo Fiador, ou por indicação deste ao Fornecedor: 18:28 a 20:06

Assim e conforme resulta, aliás, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/03/2011 (Processo 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1), in www.dgsi.pt, do qual consta que “o legislador não tratou o aderente como pessoa inábil e incapaz de adoptar os cuidados que são inerentes à celebração de um contrato e por isso lhe exigiu também um comportamento diligente tendo em vista o conhecimento real e efectivo das cláusulas que lhe estão a ser impostas.”, daí que o Réu, aqui Recorrente, não possa vir, nesta sede alegar que não tinha a consciência de ter assumido uma fiança, pois impunha-se que o mesmo tivesse o cuidado de analisar a documentação que lhe foi disponibilizada, a qual assinou, através da assinatura eletrónica avançada, com o e-mail ...@hotmail.com, e associou tanto ao contrato de locação e à declaração de fiança.

Ora, não restam dúvidas de que o aludido e-mail pertencia à sociedade, contudo, a Recorrente não tinha forma de saber se o mesmo também pelo Fiador, o que, diga-se, é bastante frequente em micro e pequenas empresas, como era o caso da Locatária.

A A..., S.A. ao receber o contrato assinado e a declaração de fiança preenchida e assinada, ainda que com o mesmo e-mail, não tinha forma de saber se o Fiador o utilizava como o seu e-mail pessoal, pelo que a relação contratual assim se formou para a A..., S.A., que procedeu ao pagamento do preço aquando da receção – em 06/12/2017 – do auto de aceitação assinado, também pelo Gerente da Locatária, aqui Recorrente (Cfr. Doc. n.º 4).

Sem prescindir, que entre o momento da assinatura do contrato e da fiança, em 18/10/2017, e a confirmação da entrega dos equipamentos, e o efetivo início dos contratos, em 06/12/2017, o Recorrido nunca suscitou qualquer dúvida e/ou esclarecimento à Recorrida.

Nem mesmo aquando da cessão de quotas da sociedade sua representada, o Recorrente informou tal facto à Recorrida, nem solicitou a substituição da sua fiança, tal como resulta do depoimento da testemunha CC, gravado no dia 24/09/2024, das 10:57 às 11:59 / 1:01:02 a 01:01:19

Pelo que, sempre se dirá que à luz do artigo 236.º do CC, que consagra a teoria da impressão do destinatário, que a A..., S.A. nunca teve dúvidas que o Fiador assinou e prestou a sua fiança à sua representada, atento o já exposto anteriormente, ou seja, no sentido com que a declaração seria interpretada por um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário efetivo, pois a A..., S.A. recebeu toda a documentação assinada e preenchida, nunca lhe foi suscitada qualquer dúvida e, o mais importante de tudo, porque os alugueres foram pagos até novembro de 2019.

Sem olvidar, o Fiador poderia ter indicado outro e-mail, promovido no portal de cliente pela sua alteração e aquando da cessão de quotas, ao pedido de substituição da fiança, por outra pessoa que estivesse relacionada com a sociedade, o que nunca foi feito!

Assim, deverá soçobrar a pretensão do Recorrente, devendo os factos dados como provados 3., 4., 5. e a expressão “e pelo Réu, na qualidade de fiador”, elencada no ponto 6., permanecer na factualidade dada como provada, pois o Recorrente declarou constituir-se fiador.

B) Quanto à matéria de direito, da violação na aplicação das normas artigos 221.º, 342.º e 1014.º, n.º 6, todos do Código Civil, bem como o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, por errada interpretação e/ou aplicação.

Alega o Recorrente, numa clara tentativa de ultima ratio, desresponsabilizar-se, por alegado afastamento da douta sentença de 29/10/2024, da verdadeira justiça e da proporcionalidade da mesma, ou ao invés, da sua desproporcionalidade.

Sucede que, sem razão, pelo que andou bem o Tribunal a quo, ainda que a Recorrida discorde de algumas conclusões do mesmo.

Vejamos, A sentença do Tribunal a quo limitou-se, atenta a prova produzida e com base no princípio da livre apreciação da prova, a condenar o Recorrente/Réu/Fiador no seguinte: (…).

Ora, a Autora compreende o raciocínio do Tribunal a quo, pois dos autos nada consta se a comunicação de resolução do contrato, feita de forma extrajudicial, chegou efetivamente ao conhecimento do aqui Fiador, pelo que se admite pela resolução do contrato em 29/10/2024.

A restante condenação, resulta da prova realizada, do teor do contrato de locação, da declaração de fiança e da legislação em vigor, pelo que não se mostra desajustada e/ou desproporcionada, pois só assim, se fará alguma justiça!

O Recorrente, alega que estamos na presença de uma condenação contraditória, atenta a impossibilidade de restituição dos bens, contudo, tal não corresponde à verdade.

O aqui Fiador/Recorrente, não foi condenado na obrigação de restituição, mas apenas no pagamento da respetiva indemnização pela mora na restituição dos equipamentos, considerando que a fiança acompanha a obrigação principal, por solidária, pelo que a sua responsabilidade é extensível também aos danos causados à Recorrida.

No entanto, o Recorrente alega – numa argumentação nova – e não coincidente com o teor da sua contestação, que:

i) Existe uma desproporção entre o valor da condenação e o somatório dos alugueres que a Recorrida teria a receber, na hipótese de cumprimento do contrato de locação;

ii) Que o pagamento de uma prestação, ad eternam, de 142,66 € mensais, desde abril de 2020, corresponde a uma violência que ofende a consciência jurídica, tanto que não tem na sua disponibilidade restituir os bens da Recorrida;

iii) Pelo que seria ofensivo, pelo menos quanto a bens de valor reduzido, a condenação conforme está configurada, pois permitiria à Recorrida receber uma renda perpétua; e

iv) Em jeito de futurologia, atesta que a Recorrida já terá sido ressarcida pelo seguro, no qual incluiu os bens anteriormente alugados.

Pouco se pode dizer quanto ao alegado pelo Recorrente, contudo, importa apenas recordar que a condenação tem correspondência com o clausulado do contrato e com a legislação em vigor para os contratos de aluguer/locação.

Não tendo sido possível provar que a resolução chegou aos seus destinatários, andou bem o Tribunal a quo ao determinar a sua renovação sucessiva, tal como plasmado no contrato de locação n.º AP-018553, por sucessivos períodos de um mês (Cláusula 3.1, Doc. n.º 1 da petição inicial).

O que resulta na condenação do Recorrente da quantia de 10.182,70 €, ou seja, aos alugueres vencidos de abril de 2020 até 29/10/2024, e não como o mesmo alega, que a sentença em crise o condenou numa indemnização desde abril de 2020 até efetiva restituição dos equipamentos.

A indemnização a que o mesmo foi condenado, de 142,66 € por cada mês na mora da restituição dos bens, apenas produzirá efeitos 10 dias após a data da sentença proferida pelo Tribunal a quo.

E sem prejuízo de a sociedade locatária se encontrar insolvente, nada obsta ao Fiador, apesar de a isso não estar obrigado, a diligências pela restituição dos equipamentos alugados, recorde-se, que são propriedade da A..., S.A..

Os equipamentos alugados constam identificados no auto de aceitação (Cfr. Doc. n.º 4, da petição inicial) e na fatura da fornecedora (Cfr. Doc. n.º 5, também da petição inicial).

Os mesmos correspondem a um sistema de videovigilância e a equipamentos de faturação POS, com monitor Asus e uma impressora; o Fiador, por ter sido gerente da sociedade, é a pessoa capaz de aferir pela localização dos equipamentos, junto dos proprietários onde os restaurantes se encontravam a laborar e/ou junto do Administrador da Insolvência.

Ainda assim, até o presente, o mesmo nada fez para promover pelo pagamento da dívida, nem pela restituição dos equipamentos, para agora tecer considerações sobre o valor atual dos equipamentos.

É certo que a Locadora procedeu ao pagamento da quantia de 4.920,00 €, em 2017; contudo, por serem equipamentos com muita procura no mercado de usados, é impossível determinar qual o seu valor atual.

Valor que a Locadora, aqui Recorrida, está impedida de receber, por os mesmos nunca lhe terem sido restituídos.

A Autora/ Recorrida, para além dos prejuízos com o incumprimento contratual, teve de intentar 2 ações, contratou os serviços de empresa externa para recuperação das quantias de forma extrajudicial, sem olvidar os honorários dos seus mandatários judiciais.

Pelo que, o prejuízo é muito superior aos cálculos que o Recorrente agora se dignou a fazer, mas que se olvidou na sua contestação.

A indemnização pela mora na restituição dos equipamentos alugados, resulta do contrato de locação, bem como do artigo 1045.º do Código Civil, não são invenções da Recorrida, muito menos do Tribunal a quo!

Nem sequer corresponde à cláusula penal inserta no contrato, a qual nos diz o seguinte (Cfr. Doc. 1, da petição inicial): “7.3 A resolução do contrato por incumprimento confere ainda à B... o direito de receber, além dos alugueres e prémios de seguro vencidos, juros de mora e custos de avisos e de não concretização do débito direto, os alugueres vincendos até ao termo da duração inicial do contrato nos termos da cláusula 3.2.”

Conforme refere o Tribunal a quo – página 19 – fica prejudicada a ponderação sobre a mesma é ou não excessiva, considerando que o contrato, apenas foi resolvido em 29/10/2024.

Apenas na hipótese de condenação no pagamento da aludida cláusula penal, é que a mesma estaria sujeita ao eventual crivo da redução, nos termos do artigo 812.º do Código Civil.

Por oposição, a indemnização pela mora na restituição, a que corresponde o ponto 2.3) da condenação, resulta do contrato, mas também do artigo 1045.º do Código Civil, pelo que não se materializa numa cláusula penal, passível de redução.

Assim, sendo a fiança solidária, não se vislumbra qualquer sustento para a argumentação do Fiador, aqui Recorrente.

O seu próprio raciocínio entra em conflito, porque por um lado já admite que a resolução do contrato, operada em março de 2020 será válida, ao passo que afirmou que não teria acesso ao e-mail para o qual a mesma foi enviada.

Pelo que não se percebe onde pretende o Recorrido chegar?! Pois nada lhe convém, nada sabe, nada assinou.

Nas palavras do Recorrido, as suas alegações não passam de um absurdo lógico, repletas de contradições, e com total desconhecimento da sua defesa, descurando por completo o teor da sua contestação.

Sem olvidar, o Recorrente apresenta uma tese assente em futurologia, quanto ao aludido reembolso da Recorrida por parte do segurado onde os equipamentos se encontravam incluídos.

A Autora/Recorrida é uma multinacional que opera em Portugal e Espanha, pelo que celebra milhares de contratos.

A mesma detém uma apólice global, na qual inclui milhares de equipamentos, quando os Locatários(as) não apresentam a sua apólice.

Não se trata de um simples contrato de seguro, com o pagamento de um prémio de seguro de 100,00 €, 200,00 € ou 300,00 €!

Sucede que, para que o seguro possa ser acionado o contrato de locação deverá estar em vigor, e para a Locadora, o mesmo encontrava-se resolvido desde 2020; no caso de desaparecimento dos bens, deverá a Locatário e/ou o Fiador apresentar queixa-crime, por furto, roubo, entre outros, para que o seguro possa ser acionado; e/ou tem de estar provado, que por facto externo (inundação, incêndio, entre outros) que os bens foram destruídos.

Tanto que assim é, que a Locadora transfere para o Locatário(a) todos os direitos que detém sobre os equipamentos, com exceção da sua propriedade, que se mantém inalterada.

As alegações de direito do Recorrente não colocam em crise os artigos que o mesmo indica nas suas conclusões, a saber: artigos 221.º, 342.º e 1014.º, n.º 6, todos do Código Civil, bem como o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

As alegações de direito não passam de convicções – erradas – do aqui Recorrente, sem qualquer suporte, e das quais o mesmo se convenceu.

Não se verifica qualquer abuso de direito, por parte da Recorrida. Mas, a existir abuso de direito, será apenas do Recorrente, que ao prestar a fiança, se responsabilizou solidariamente com a pessoa afiançada, e até ao presente, não procedeu ao pagamento das quantias vencidas, e a que foi condenado.

Em conclusão: O Recorrente não apresenta quaisquer fundamentos válidos que ponham em causa sentença proferida, pois não se verifica qualquer erro na apreciação da prova, com influência na decisão final, nem mesmo violação artigos 221.º, 342.º e 1014.º, n.º 6, todos do Código Civil, bem como o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, por errada interpretação e/ou aplicação; os quais nem sequer encontram sustento no alegado pelo mesmo.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente e mantida a decisão que condenou o Recorrente, e feita a acostumada justiça!”.


*

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, importando dirimir, no âmbito deste recurso, por ordem lógica, as seguintes questões:

1. Impugnação da matéria de facto (conclusões A a K): (i) se o facto não provado E) deveria ser dado como provado; (ii) se os factos provados n.ºs 3, 4 e 5 deveriam ser considerados não provados; (iii) se a expressão “e pelo réu, na qualidade de fiador”, do ponto 6, deveria ser eliminada.

2. Errada apreciação jurídica da causa: (i) ofensa dos princípios da boa fé, proporcionalidade e abuso do direito (conclusões L a Q); (ii) redução da cláusula penal (conclusões R a T); (iii) existência de contrato de seguro (conclusões U e V) – cf. arts. 221.º, 342.º e 1041.º, n.º 6, do Código Civil.


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A. Fundamentação de Facto

Na decisão recorrida consignou-se:

Com relevo para a decisão em apreço foram considerados os seguintes:

Factos provados

1. Em 18/10/2017, a Autora A..., S.A. (anteriormente designada B..., S.A) celebrou um acordo escrito com a sociedade C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.), com o n.º AP-018553, no âmbito do qual cedeu à sociedade C..., Lda. o gozo temporário dos seguintes bens, mediante retribuição:

a. 1 DVR Dream 16 Canais 1080P C/Disco 2TB 2G0503BPAPXGUK8

b. 16 Câmeras Mini Dome Dream 1080IR 3.6MM c/Acessórios ligação 2l04F20PAL01...

c. 1 Monitor Asus VS197DE TN18.5" H9LMTF160881

d. 1 POS Titan 160 c/Factus 4 B5AR500015

e. 1 Impressora Dream 100 B5AR700861

f. 1 Gaveta Dinheiro S/n.

2. Em 18/10/2017, o Réu AA era gerente da sociedade C..., Lda (atualmente designada D..., Lda.).

3. Em 18/10/2017, o Réu AA declarou constituir-se fiador, com renuncia ao benefício da excussão prévia, perante a Autora relativamente ao cumprimento de quaisquer obrigações assumidas pela no contrato de locação AP-018553, bem como de quaisquer outras responsabilidades decorrentes desse contrato, desde a data da celebração do contrato, pagando e/ou reembolsado a Autora, ao primeiro pedido e obrigando-se a pagar a totalidade da quantia em dívida imediatamente após a receção da comunicação da Autora declarando que a sociedade C..., Lda (atualmente designada D..., Lda.) não cumpriu com as obrigações assumidas.

4. O acordo mencionado em 1. foi remetido para o endereço eletrónico ...@hotmail.com, pertencente ao então legal representante da sociedade C..., Lda (aqui Réu) e foi assinado eletronicamente, quer pela A., através do endereço eletrónico info@B....pt, quer pela sociedade C..., Lda., através do endereço eletrónico ...@hotmail.com.

5. A declaração de fiança acima aludida foi enviada para o Réu, através do e-mail ...@hotmail.com, e foi assinada eletronicamente pelo mesmo no próprio dia.

6. O endereço eletrónico ...@hotmail.com foi indicado pela sociedade C..., Lda. e pelo Réu, na qualidade de fiador, para outorga dos acordos referidos em 1 e 3, e para o envio das faturas.

7. Os equipamentos descritos em 1 e a fornecedora dos mesmos foram escolhidos pela sociedade C..., Lda e adquiridos pela Autora, no interesse da primeira, por compra, pelo preço de 4.920,00 €, com o objetivo exclusivo de ceder o gozo temporário dos mesmo, contra o pagamento de uma retribuição mensal, à sociedade C..., Lda.

8. O acordo referido em 1. prevê uma duração inicial de 36 meses, renovável por sucessivos períodos de um mês, com início na data da receção dos bens, que ocorreu em 06/12/2017, mas com início da contagem do prazo no 1.º dia do mês seguinte, ou seja, com início da contagem do prazo em 01/01/2018 e termo em 31/12/2020, caso não se renovasse.

9. A retribuição mensal acordada foi de 142,66 €, acrescida de IVA, a pagar através de débito direto, com vencimento ao dia 1 de cada mês, pagos antecipadamente no mês anterior.

10. A retribuição mensal acordada teve em consideração o número mínimo de retribuições programadas (36) por forma a amortizar integralmente o custo de aquisição dos bens por si escolhidos, bem como a suportar as despesas de execução do contrato.

11. Os equipamentos deviam ser a restituídos no final do contrato, sendo os respetivos custos suportados pela sociedade C..., Lda.

12. A sociedade C..., Lda. obrigou-se a contratar um seguro para os bens locados, ou caso não o fizesse, a Autora teria o direito de incluir os equipamentos descritos em 1 na apólice de que é tomadora e a cobrar à primeira o prémio de seguro correspondente no valor mensal de 9,67€.

13. Os bens referidos em 1 foram entregues à sociedade C..., Lda. em 06-12-2017.

14. Após, foram emitidas e enviadas à sociedade C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.) diversas faturas que foram pagas, em concreto, as faturas relativas à retribuição acordada até novembro de 2019.

15. A Autora emitiu e remeteu para o endereço eletrónico ...@hotmail.com as seguintes faturas:

a. FT PT2019/66004, no valor de 185,14 €, com data de vencimento em 01/12/2019, relativa ao aluguer de dezembro de 2019 e prémio de seguro.

b. FT PT2019/73015, no valor de 185,14€, com data de vencimento em 01/01/2020, relativa ao aluguer de janeiro de 2020 e prémio de seguro.

c. FT PT2019/80518, no valor de 34,13€, com data de vencimento em 16/12/2019, relativa a 1.º aviso ou interpelação e custos de processamento.

d. FT PT2019/81176, no valor de 114,08€, com data de vencimento em 01/01/2020, relativa a 2.º aviso ou interpelação e custos de processamento.

e. FT PT2019/82551, no valor de 185,14 €, com data de vencimento em 01/02/2020, relativa ao aluguer de fevereiro de 2020 e prémio de seguro.

f. FT PT2019/87964, no valor de 10,44€, com data de vencimento em 22/01/2020, relativa a juros de mora e custos de processamento.

g. FT PT2019/88872, no valor de 7,85€, com data de vencimento em 12/02/2020, relativa a juros de mora e custos de processamento.

h. FT PT2019/89938, no valor de 185,14 €, com data de vencimento em 01/03/2020, relativa ao aluguer de março de 2020 e prémio de seguro.

i. FT PT2019/95922, no valor de 10,51€, com data de vencimento em 04/03/2020, relativa a juros de mora e custos de processamento.

16. A sociedade C..., Lda (atualmente designada D..., Lda.) não pagou as faturas mencionadas em 15.

17. Em 28/12/2019, 11/01/2020 e 27/02/2020, a Autora remeteu para o endereço ...@hotmail.com, avisos relativos à falta de pagamentos das faturas referidas em 15.

18. A sociedade C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.) obrigou-se a pagar à Autora, em caso de necessidade de remessa de avisos de pagamento, o valor de 25,00€ (+IVA) pelo 1.º aviso e 90,00€ (+IVA) pelo 2.º aviso, acrescendo a estes valores os montantes em dívida e juros de mora.

19. Em caso de atraso na restituição dos bens, a Autora e a sociedade C..., Lda.  (atualmente designada D..., Lda.) convencionaram o pagamento de uma compensação à primeira, calculada com base no montante que seria devido a título de alugueres como se o contrato se encontrasse vigor na proporção do período temporal até à efetiva restituição.

20. Em caso de mora no pagamento dos alugueres, Autora e a sociedade C..., Lda.  (atualmente designada D..., Lda.), convencionaram a obrigação de pagamento do dobro do valor do aluguer mensal ou o seu proporcional diário.

21. A Autora e a C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.) convencionaram que em caso de mora de qualquer quantia são devidos juros à taxa legal para as operações comerciais, acrescida de 7%.

22. A Autora e a C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.) convencionaram que o atraso no pagamento dos alugueres superior a 30 dias confere à Autora a possibilidade de resolver o contrato, esgotadas as interpelações e prazos.

23. Em caso de resolução do contrato por incumprimento, foi estipulado que a Autora tem direito a receber os alugueres e prémios vencidos, juros de mora, custos de avisos e de não concretização do débito direto, os alugueres vincendos até ao termo da duração inicial do contrato, e à restituição dos equipamentos.

24. A sociedade C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.) não pagou qualquer quantia.

25. A Autora enviou uma comunicação via correio eletrónico, dirigida ao Réu, para o endereço eletrónico ...@hotmail.com, em 04/03/2020, a informar o não cumprimento das obrigações pela Sociedade e que considera resolvido o contrato, concedendo a possibilidade de o Réu evitar os efeitos jurídicos da resolução contratual através do pagamento da quantia de 917,57€, esclarecendo e peticionando, caso se mantenham os efeitos da resolução do contrato, o pagamento do valor global de 2.496,82, relativo a faturas vencidas, os juros de mora à taxa convencionada correspondente à taxa convencionada de 15,00%, e solicitou a restituição dos bens alugados no prazo de 10 dias.

26. As quantias descritas supra não foram pagas.

27. Até à data os equipamentos não foram entregues à Autora.

28. Em 19-01-2022, a sociedade D..., Lda. (anteriormente designada C..., Lda.) foi declara insolvente no âmbito do processo n.º 90/22...., que correu termos no Juízo do Comércio de Coimbra – J2 do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

29. O processo de insolvência mencionada terminou por insuficiência da massa para satisfação das custas do processo e dívidas da massa insolvente, tendo o Administrador da Insolvência nomeado cessado funções em 26-05-2022.

Da contestação

30. Em 12-02-2020, ocorreu a alteração dos sócios e da gerência e, posteriormente, ocorreu a alteração da denominação da sociedade C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.)

31. O acordo referido em 1. não faz alusão à existência de uma fiança.

32. O endereço eletrónico utilizado no acordo referido em 1. e na declaração referida em 3. é o mesmo: ...@hotmail.com.

33. Em 27-03-2020, a A. apresentou requerimento de injunção contra a empresa e contra a sociedade C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.) e o ora R., no qual não invocou a existência de uma garantia pessoal (fiança) prestada por este.

34. Os termos do acordo referido em 1. foram integralmente elaborados pela A., com cláusulas previamente predispostas a um universo de potenciais clientes.

35. Entre a Autora e a sociedade C..., Lda. não houve qualquer contacto físico ou conversa.

36. O teor dos acordos escritos referidos em 1 e 3 não foram explicados à sociedade C..., Lda., nem ao Réu.

37. Por acordo escrito datado de 20-02-2019, DD e EE cederam as quotas da sociedade C..., Lda. a E... e à sociedade E..., Unip. Lda..

38. Em 23-06-2021, o deduziu oposição à injunção acima referida em 33., tendo aí junto o acordo escrito aludido em 37.

39. A Autora não comunicou ao Réu qualquer incumprimento por carta e para a sua morada.


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            Factos não provados

A. O endereço eletrónico ...@hotmail.com foi indicado pela sociedade C..., Lda.  e pelo Réu, para a troca de correspondência e envio das interpelações e da resolução do contrato.

B. A Autora enviou à sociedade C..., Lda. (atualmente designada D..., Lda.) uma comunicação via correio eletrónico, para o endereço eletrónico ...@hotmail.com, em 04/03/2020, a informar o não cumprimento das obrigações pela Sociedade e que considera resolvido o contrato, concedendo a possibilidade de o Réu evitar os efeitos jurídicos da resolução contratual através do pagamento da quantia de 917,57€, esclarecendo e peticionando, caso se mantenham os efeitos da resolução do contrato, o pagamento do valor global de 2.496,82, relativo a faturas vencidas, os juros de mora à taxa convencionada correspondente à taxa convencionada de 15,00%, e solicitou a restituição dos bens alugados no prazo de 10 dias.

C. O contrato de locação foi apresentado à sociedade C..., Lda. para assinatura, conjuntamente com o material, através da vendedora do material, FF ou GG.

D. E... e a uma sociedade deste, defraudaram os bancos, fornecedores, delapidaram a sociedade D..., Lda. (anteriormente C..., Lda.).

E. Desde a cessão de quotas o Réu deixou de acesso à caixa de correio eletrónica da sociedade C..., Lda.

F. O R. não recebeu as comunicações da Autora referidas em 15, 17 e 25, nem as faturas juntas com a p.i.

G. A sociedade D..., Lda. fez desaparecer os bens identificados em 1.

H. Os bens identificados em 1, ao fim de 3 anos, têm um valor diminuto.


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B. Fundamentação de Direito

Considerando a factualidade que a 1.ª instância considerou provada e não provada, analisemos as questões do recurso, começando pela impugnação da matéria de facto (conclusões A a K).

No que tange à impugnação da matéria de facto, no domínio da sua finalidade e limites da apreciação em sede de recurso, dispõe o n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil (CPC), que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

A apreciação da factualidade emergente do julgamento pelo tribunal ad quem abrange, por um lado, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (maxime, as normas do Código Civil) – onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles – e, por outro lado, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.

Nestes casos, o apelante tem o dever de observar o ónus de impugnação previsto no art. 640.º do CPC, estabelecendo o n.º 1 desse preceito que aquele deve obrigatoriamente e sob pena de rejeição especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham a decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Acrescenta a alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC que, no caso de terem sido invocados meios probatórios gravados como fundamento do erro na apreciação do recurso, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens gravadas em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

São estes os requisitos de forma que a lei estabelece como imprescindíveis ao conhecimento da impugnação, mostrando-se os mesmos suficientemente preenchidos no caso concreto, pelo que se passará à verificação dos fundamentos do recurso de facto que estão invocados, recordando-se que a análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no art. 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com o estatuído pelos arts.s 410.º e segs. do mesmo código e com a disciplina substantiva dos arts. 341.º e segs. do Código Civil.

Isto posto, passemos a apreciar os concretos pontos da matéria de facto que o recorrente entende terem sido mal julgados:

 (i) Se o facto não provado E) deveria ser dado como provado.

O tribunal a quo deu como não provado que: “Desde a cessão de quotas o Réu deixou de acesso à caixa de correio eletrónica da sociedade C..., Lda.”

Para tal expendeu a seguinte justificação: “Não resultou minimamente demonstrado, porquanto inexiste prova documental idónea e suficiente para o efeito e a prova testemunhal produzida não logrou fornecer qualquer informação nesta parte (ónus da Autora). Relativamente ao facto E., destaca-se que não é notório, nem presumível que o endereço de e-mail seja transmitido com o negócio da venda da sociedade Locatária ou não fosse alterado, uma vez que se trata de algo facilmente criado, remotamente acedido, ao contrário de uma caixa de correio postal física. Não deixa, pois, de ser plausível o eventual acesso pelo Réu à caixa postal eletrónica em causa, tanto mais que, como se viu, a utilizou a título pessoal aquando da subscrição da fiança” (sic).

O réu/recorrente entende que, contrariamente ao alvitrado pela 1.ª Instância, aquele facto deveria ser considerado provado com base no depoimento da testemunha BB (de 03'31" a 5'03"; de 5'30" a 6'49"; e de 7'28" a 8'09").

Salvo o devido respeito não assiste razão ao recorrente.

Em primeiro lugar importa salientar que o email ...@hotmail.com, utilizado pela locatária, foi indicado pelo recorrente (fiador) como seu email e utilizado quer para assinar o contrato de locação quer a declaração de fiança, pelo que, contrariamente ao que o mesmo invoca, o recorrente poderia ter continuado a aceder àquele email, remotamente, desde qualquer dispositivo (smartphone, tablet e/ou computador).

Aliás, a testemunha CC, funcionária da autora/recorrida desde Janeiro de 2017 e que presentemente, aproximadamente desde Dezembro de 2023/Janeiro de 2024, exerce as funções de directora de operações, corroborou no seu testemunho que foi esse o único endereço de email que o próprio recorrente indicou à locadora/recorrida.

A testemunha detalhou que a A... utiliza um sistema ligado ao Informa DB (base de dados em Portugal) para verificar informações da empresa (representantes, dados fiscais, balanços, demonstração de resultados, processos judiciais, insolvência) e que essa consulta é paga.  Os dados (como moradas) são validados entre o cliente e o fornecedor. O fornecedor verifica o email do cliente, que muitas vezes consta do Informa DB, e que é actualizado frequentemente; se o email não estiver actualizado, o cliente informa o email correcto ao fornecedor, que o insere na plataforma, sendo o contrato enviado para esse email, existindo um mecanismo de validação. Detalhou, também, que o contrato é disponibilizado ao locatário – e ao fiador, se houver fiança – por email através de uma plataforma digital de assinatura electrónica avançada chamada DocuSign, pagando a A... um valor mensal por esta plataforma.

A testemunha explicou pormenorizadamente todo o processo de assinatura do contrato explicitando que, ao abrir o email, o cliente é direcionado para a plataforma DocuSign. São os clientes (locatários e fiadores) quem indica ao fornecedor (e à A...) qual o endereço de email a utilizar e a validação dos emails é feita com os clientes e através do portal do fornecedor: quando o cliente assina o contrato principal é obrigado a fazer scroll down, para verificar as cláusulas e assinar, continuando para assinar o documento de fiança, o qual apenas tem o nome do fiador. Quem assinou o contrato principal tem de assinar a fiança e embora a A... envie dois emails separados (um para assinar o contrato, outro para a fiança), o processo só fica concluído quando ambos estiverem completamente preenchidos.

No caso, não há qualquer dúvida de que foi o próprio recorrente quem apenas indicou o email ...@hotmail.com para a assinatura do contrato e da fiança, tal como foi corroborado pela testemunha CC, o que tem correspondência no certificado de assinaturas a que corresponde o documento n.º 3 da petição inicial (Certificado de assinaturas da Docusign).

Acresce referir que o depoimento da testemunha BB, companheira do réu/recorrente, e trabalhadora da sociedade locatária aquando da celebração do contrato sub judice – pese embora não tenha presenciado o momento da assinatura do contrato –, contrariamente ao referido pelo recorrente, não permite concluir que o mesmo não tivesse acesso ao email ...@hotmail.com, não obstante a testemunha ter afirmado que o recorrente dispunha de outro email (pessoal) que, contudo, não indicou qual seria, não esclarecendo o motivo para o recorrente não o ter indicado aquando da celebração do contrato de locação e da assinatura da declaração de fiança.

Acresce referir que o facto da recorrida ter continuado a emitir facturas e a enviá-las para o email ...@hotmail.com, as quais foram pagas até ao mês de Novembro de 2019, nada demonstra sobre o facto do recorrente ter ou (alegadamente) não acesso àquele email, tanto mais que os pagamentos das facturas dos alugueres dos equipamentos e demais quantias devidas eram realizados por débito direto, tal como resulta dos documentos n.º 1 (cláusula 6.1) e n.º 4 da petição inicial.

Deste modo, soçobra, nesta parte, o recurso da matéria de facto, mantendo-se a alínea E) dos factos não provados.

(ii) Se os factos provados n.ºs 3, 4 e 5 deveriam ser considerados não provados.

O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

“3. Em 18/10/2017, o Réu AA declarou constituir-se fiador, com renuncia ao benefício da excussão prévia, perante a Autora relativamente ao cumprimento de quaisquer obrigações assumidas pela no contrato de locação AP-018553, bem como de quaisquer outras responsabilidades decorrentes desse contrato, desde a data da celebração do contrato, pagando e/ou reembolsado a Autora, ao primeiro pedido e obrigando-se a pagar a totalidade da quantia em dívida imediatamente após a receção da comunicação da Autora declarando que a sociedade C..., Lda (atualmente designada D..., Lda.) não cumpriu com as obrigações assumidas.

4. O acordo mencionado em 1. foi remetido para o endereço eletrónico ...@hotmail.com, pertencente ao então legal representante da sociedade C..., Lda (aqui Réu) e foi assinado eletronicamente, quer pela A., através do endereço eletrónico info@B....pt, quer pela sociedade C..., Lda., através do endereço eletrónico ...@hotmail.com.

5. A declaração de fiança acima aludida foi enviada para o Réu, através do e-mail ...@hotmail.com, e foi assinada eletronicamente pelo mesmo no próprio dia.”

Para tal a 1.ª Instância expendeu a seguinte motivação (que abrange, aliás, outros factos não impugnados pelo recorrente):

“Factos 3 e 32– provém do documento 2 da p.i. Relativamente aos contratos mencionados em 1 e 3, alega o Réu que a assinatura que consta dos documentos 1 e 2 é falsa uma vez que não foi aposta pelo seu punho. Ora, dos autos resultou que as assinaturas em causa não foram efetivamente apostas pelo punho do Réu, por si e na qualidade de representante legal da sociedade D..., Lda. (anteriormente designada C..., Lda). Na verdade, as assinaturas correspondem a uma reprodução mecânica, dado que foram remetidos e assinados eletronicamente, conforme explicou a testemunha CC, circunstância compatível com o clausulado do contrato de locação, o qual prevê expressamente que a formalização do contrato ocorreria por via eletrónica (cl. 13.1).

Após assinatura destes contratos, o Réu ainda assinou eletronicamente, na qualidade da representante legal da sociedade C..., Lda, o auto de aceitação dos equipamentos atestando que os meus foram entregues (documento 4 da p.i.).

Ora, a entrega dos bens foi posterior à assinatura do contrato de locação e da declaração de fiança, o que nos leva a concluir que a Autora cuidou da prévia outorga dos contratos. Depois, resulta alegado que a sociedade C..., Lda, atualmente designada D..., Lda., pagou várias faturas (facto provado 14), donde concluímos pelo efetivo encontro de vontades expresso no documento 1.

Relativamente à declaração de fiança não se suscitam dúvidas de que foi assinada pelo Réu e, em face do seu conteúdo, entendemos que anuncia de forma clara o seu objeto e destinatário, ou seja, que é destinada à vinculação pessoal do Réu, pessoa singular e não em representação da sociedade, na qualidade de garante.

Ainda que dúvidas existissem, importa considerar que, nos contratos onerosos deve prevalecer o sentido que conduzir ao maior equilíbrio nas prestações (artigo 237.º do CC). Ora, na falta de elementos adicionais, a declaração de fiança retratada no documento 2 deve ser interpretada à luz do sentido que o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante – artigo 236.º, n.º 1 do CC. Assim não sucederá se o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n.º 2 do mencionado preceito).

No caso, a declaração é simples, curta e concisa e o seu teor está ao alcance de um declaratário normal, não tendo resultado demonstrado pelo Réu qualquer circunstância que obstasse à compreensão da mesma, após simples leitura do respetivo conteúdo. Realça-se que a declaração de fiança faz alusão a um contrato de cessão da posição contratual, porém, é evidente do contexto da declaração, primeiro, que tal representa um lapso material suscetível de correção à luz do artigo 249.º do CC e, segundo, que a obrigações garantidas são as emergentes para a sociedade C..., Lda., do contrato de locação AP-018553, devidamente identificado na declaração em apreço.

O Réu, pessoa singular, foi gerente da sociedade C..., Lda., e como tal, não pode ignorar o mundo dos negócios, os cuidados e riscos associados, porquanto, assumiu funções de gerente de uma sociedade e nessa qualidade tomou contacto com essa realidade. Ainda que assim não fosse, a palavra fiança está hoje francamente vulgarizada e o seu significado, mais ou menos perfeito, é apreendido pelo cidadão medianamente formado.

A circunstância de a assinatura resultar associada ao mesmo endereço eletrónico da assinatura aposta no contrato de locação não obsta a tal conclusão, porquanto, nada impõe que o endereço eletrónico do fiador deva ser distinto do da sociedade garantida. Na verdade, é o garante subscritor da fiança quem está em condições de informar qual o endereço que pretende utilizar e, ainda de proceder a eventuais alterações no futuro. No caso, conforme esclareceu a testemunha CC, o endereço cedido para o efeito foi o mesmo e, a verdade é que o Réu assinou a declaração certificada pelo documento 3, sem levantar qualquer problema.

Factos 4, 5, 6, 7, 10, 14, 34, 35, 36 – advêm do depoimento da testemunha da Autora CC que explicou, de forma precisa, coerente e detalhada a tramitação utilizada para formalização do contrato e da declaração em causa, a génese e escopo da Autora, envio de faturação e processamento do pagamento, não se suscitando dúvidas a este respeito.” (sic).

O réu/recorrente sustenta que a leitura da matéria de facto inserta nos pontos n.ºs 3, 4 e 5 é errada pelos seguintes motivos:

– Quanto ao ponto 3: “… atenta a forma de assinatura do contrato, o R. não se apercebeu da diferenciação ou dissociação do documento em dois, sendo que a fiança não é, sequer, mencionada no Contrato, como facilmente resulta da sua leitura e da injunção, feita pela A., na qual não invocava qualquer Fiança (…) o ora Réu estava completamente insciente de ter assumido uma fiança (…) pois, atenta aquela forma de assinatura do contrato, passou despercebido ao Réu esse outro documento, para si sem relevância ou autonomia, sendo a "assinatura" dos dois contratos feita com o envio de um único email, como se depreende de, em ambos, constar a mesma data/hora de validação eletrónica/assinatura: “15:29 BST” (cf. docs. 1 e 2 juntos com a P.I.);

– Quanto ao ponto 4: “… o endereço eletrónico ...@hotmail.com, para o qual o contrato foi remetido pela Autora não era pertencente ao gerente da sociedade (aqui Réu), mas sim pertencente à própria sociedade”, estribando-se no depoimento da testemunha BB (7'28" e 8'09") “…do qual decorre, também, que o gerente, ora R., tinha já, ao tempo, e tem ainda, um outro endereço de email”;

– Quanto ao ponto 5: “…o único endereço de email da sociedade era o já referido e que o ora R. tinha um outro, é fácil de concluir que a declaração de fiança não foi enviada para o Réu através desse email, mas sim, para a sociedade, através de tal email”.

Uma vez mais não assiste razão ao recorrente, e acompanha-se a motivação da 1.ª Instância.

Desde logo, no que tange à impugnação do ponto n.º 3 dos factos provados, além de se tratar, em rigor, de uma questão nova, o invocado pelo recorrente está em oposição frontal com o que o próprio réu/recorrente alegou em sede de contestação, mormente nos arts. 10.º, 14.º, 15.º, 16.º, 18.º e 27.º, em que afirmou “preto no branco” que nada assinou, apodando de falsa a assinatura.

Porém, a verdade é que, contrariamente ao invocado, tal como já antes se referiu, resultou do testemunho de CC que a declaração de fiança teve de ser preenchida pelo fiador, ou por indicação deste ao fornecedor. Acresce referir que a mera leitura do documento n.º 2 da petição inicial (“Declaração de Fiança à B..., S.A”, datada de 18-10-2017) evidencia que o mesmo é de fácil leitura e compreensão, não olvidando que, in casu, pese embora se trate de cláusulas contratuais gerais, estamos no âmbito de uma relação comercial e não de uma relação com um consumidor final.

Como se refere, certeiramente, na sentença sob recurso, “(…) o Réu não alegou sequer qualquer dificuldade na interpretação do teor da fiança, alegando tão só, que não possuía consciência de se ter vinculado com a Autora na qualidade de fiador. Mais uma vez, ainda que assim fosse (o que não se concebe e não se provou), tal apenas de deve à falta de diligência do Réu. Com efeito, se assinou o documento em causa e não o leu ou lendo-o, não o compreendeu e não solicitou esclarecimentos, é responsável pela sua própria inércia, em particular pela omissão do seu dever de diligência e autorresponsabilização.”

A este propósito veja-se, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-03-2011, Proc. 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1 (referido nas contra-alegações), onde se menciona que “o legislador não tratou o aderente como pessoa inábil e incapaz de adoptar os cuidados que são inerentes à celebração de um contrato e por isso lhe exigiu também um comportamento diligente tendo em vista o conhecimento real e efectivo das cláusulas que lhe estão a ser impostas.”[2]

Por conseguinte, é incompreensível que o recorrente afirme que não tinha a consciência de ter assumido uma fiança, pois impunha-se que tivesse o cuidado de analisar a documentação que lhe foi disponibilizada, a qual assinou, através da assinatura eletrónica avançada, com o email ...@hotmail.com, que associou tanto ao contrato de locação como à declaração de fiança.

Por outro lado, como bem observa a recorrida: “A A..., S.A. ao receber o contrato assinado e a declaração de fiança preenchida e assinada, ainda que com o mesmo e-mail, não tinha forma de saber se o Fiador o utilizava como o seu e-mail pessoal, pelo que a relação contratual assim se formou para a A..., S.A., que procedeu ao pagamento do preço aquando da receção – em 06/12/2017 – do auto de aceitação assinado, também pelo Gerente da Locatária, aqui Recorrente (Cfr. Doc. n.º 4)”.

Não deixa de ser significativo anotar que desde o momento da assinatura do contrato e da fiança, em 18-10-2017, e a confirmação da entrega dos equipamentos, em 06-12-2017, decorridos praticamente dois meses, o réu/recorrente nunca suscitou qualquer dúvida e/ou esclarecimento à recorrida, não tendo informado a mesma da cessão de quotas, nem solicitado a substituição da fiança por si assumida, como resultou do depoimento da testemunha CC.

Em consonância, improcede, outrossim, a impugnação dos pontos de facto n.ºs 3, 4 e 5, cuja redacção se mantém.

(iii) Se a expressão “e pelo réu, na qualidade de fiador”, do ponto 6, deveria ser eliminada.

O tribunal a quo deu como provado, sob o n.º 6: “O endereço eletrónico ...@hotmail.com foi indicado pela sociedade C..., Lda e pelo Réu, na qualidade de fiador, para outorga dos acordos referidos em 1 e 3, e para o envio das faturas”.

O recorrente considera que “… o endereço em causa não foi indicado pelo Réu, enquanto tal, enquanto pessoa física, mas sim pela empresa, à qual esse endereço pertencia e era o único que a mesma tinha, e foi indicado apenas como tal e não como endereço do R., que tinha outro”.

Louvando-nos no que já antes mencionámos é ostensivo que não assiste razão ao recorrente, uma vez que foi o próprio, como se demonstrou, quem indicou aquele email quer para o contrato principal, quer para a fiança.

Destarte, improcede, outrossim, esta questão de recursiva.

Em suma: a impugnação da matéria de facto claudica na totalidade, sendo de manter a matéria de facto provada e não provada nos seus precisos termos.

2. Errada apreciação jurídica da causa: (i) ofensa dos princípios da boa fé e proporcionalidade e abuso do direito (conclusões L a Q); (ii) redução do negócio (conclusões R a T); (iii) existência de contrato de seguro (conclusões U e V) – cf. arts. 221.º, 342.º e 1041.º, n.º 6, do Código Civil.

Resulta da matéria de facto apurada nos autos que, como bem decidiu a 1.ª Instância, estamos perante uma situação emergente do incumprimento obrigacional de um contrato de locação (de equipamentos), tendo-se o réu constituído como fiador relativamente às obrigações emergentes do assinalado contrato.

Quer o contrato de locação, quer a declaração de fiança do réu, foram assinados com recurso a assinatura electrónica avançada, tal como emerge do art. 2.º, alínea c), do DL n.º 290-D/99, de 02-08, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 88/2009 de 09-04 (em vigor à data dos factos) – Regime Jurídico dos Documentos Electrónicos e da Assinatura Digital

(RJDEAD) [3] –, através dos emails ...@hotmail.com – quanto à locatária, D..., Lda. (anterior C..., Lda.) e a quanto ao fiador e aqui réu/recorrente – e info@B....pt – quanto à locadora, aqui autora/recorrida.

Conforme resulta do art. 3.º, n.º 2, do RJDEAD, a estes documentos é atribuída a força probatória de documento particular assinado, quando lhes seja aposta uma assinatura qualificada emitida por uma entidade certificadora credenciada, nos termos do art. 376.º do Código Civil – cf., ainda, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 22-06-2023, Proc. n.º 114256/20.2YIPRT.P1.S1.

O contrato de locação é aquele pelo qual uma das partes (o locador) se obriga a proporcionar a outrem (o locatário) o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, obrigando-se o locador a entregar ao locatário a coisa locada e a assegurar o gozo desta para os fins resultantes do contrato – cf. arts. 1022.º e 1031.º do Código Civil.[4]

O locatário, além de outras obrigações instrumentais, fica vinculado a pagar o montante da retribuição e restituir a coisa locada findo o período contratual acordado – cf. arts. 1038.º, alíneas a) e f), 1039.º e segs. e 1043.º e segs. do Código Civil.

A retribuição é, por norma, periódica e pré-terminada, tal como a duração do contrato, sendo a afectação do uso da coisa a um determinado fim recorrente no contrato de locação – cf. arts. 1026.º, 1027.º, 1028.º, 1031.º, al. b), e 1038.º, al. c), todos do Código Civil.

In casu, o contrato foi incumprido pela locatária, sendo inequívoco que o recorrente constituiu-se fiador daquela, relativamente ao cumprimento de todas e quaisquer obrigações que a locatária assumiu perante a locadora/recorrida, no âmbito do contrato de locação celebrado, bem como de quaisquer outras responsabilidades decorrentes desse contrato, desde a data da celebração da sua celebração, pagando ou reembolsado a locadora ao primeiro pedido e obrigando-se a pagar a totalidade da quantia em dívida imediatamente após a recepção da comunicação  da locadora declarando que a locatária não cumpriu com as obrigações assumidas.

Emerge do art. 627.º, n.º 1, do Código Civil, que “o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor”. Trata-se de uma garantia pessoal das obrigações, através da qual um terceiro assegura a realização de uma obrigação do devedor principal, responsabilizando-se pessoalmente com o seu património por esse cumprimento perante o credor, tendo a fiança como características principais a acessoriedade e a subsidiariedade: a (i) acessoriedade emerge do n.º 2 do 627.º do Código Civil[5]; a (ii) subsidiariedade reconduz-se à possibilidade de o fiador invocar o benefício da excussão prévia, conforme resulta do art. 638.º do Código Civil, obstaculizando a que o credor possa executar o seu património enquanto não tiver tentado (sem sucesso) a execução através do património do devedor. Porém, a subsidiariedade da fiança constitui uma característica não essencial, porquanto o fiador pode renunciar a ela, conforme se prevê no art. 640.º, al. a), do Código Civil.[6]

Como refere Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, p. 655, “contrária ao benefício da excussão é a solidariedade entre o devedor e o fiador, prevista em relação às obrigações mercantis no artigo 101.º do Código Comercial”.

Em face de uma situação de responsabilidade contratual emergente do incumprimento das obrigações assumidas pelo fiador, prevista no art. 798.º[7] e segs. do Código Civil, o art. 799.º, n.º 1, consagra a presunção de que o não cumprimento é imputável ao devedor, e consequentemente, desonera o credor de provar a culpa: ou seja, uma vez provados os restantes elementos da responsabilidade civil (base da presunção de culpa), presume-se que o devedor actuou com culpa, cabendo-lhe provar o contrário

Assim sendo e de harmonia com a regra do art. 342.º do Código Civil, ocorrendo dano, na responsabilidade contratual, competia ao devedor provar que a falta de cumprimento (ou o cumprimento defeituoso) da obrigação não resultou de culpa sua, uma vez que a lei, estabelecendo uma presunção de culpa neste tipo de responsabilidade, apenas onera o credor com a prova de que a obrigação não foi cumprida ou que foi cumprida defeituosamente (facto ilícito), fazendo recair o ónus da prova da ausência de culpa, em exclusivo, ao devedor.

Fixados os contornos do caso, impõe-se salientar estarmos perante um contrato regulado por cláusulas contratuais gerais (cf., em especial, os factos provados n.ºs 34, 35 e 36), tendo o recorrente suscitado, nas conclusões do seu recurso, as seguintes questões: (i) ofensa dos princípios da boa fé, proporcionalidade e abuso do direito (conclusões L a Q); (ii) redução do negócio (conclusões R a T); (iii) existência de contrato de seguro (conclusões U e V).

2.1 Relativamente à (i) ofensa dos princípios da boa fé, proporcionalidade e abuso do direito, refere o recorrente, assinalando que se trata de um contrato ao qual se aplica o regime das cláusulas contratuais gerais, em síntese, que “tendo em conta a impossibilidade do cumprimento do dever de restituição dos bens (…), é de questionar, desde logo, se o exigido cumprimento não ofende a própria ideia de Justiça, se não há uma manifesta ofensa dos princípios da boa fé e do abuso de direito ao exigir [ao] determinar uma prestação mensal, ad eternam, desde abril de 2020”; “mesmo que o R. fosse fiador (…) seria uma violência que ofende a consciência jurídica sujeitar alguém, que não tem na sua disponibilidade restituir os bens à A., um perpétuo pagamento de um aluguer relativo aos mesmos, tanto mais que, com o pagamento dos alugueres e prémios de seguros vencidos desde abril de 2020 até dezembro de 2020 (a data final do contrato, sem renovação), a A. obteria a amortização integral do custo de aquisição dos bens, bem como as despesas de execução do contrato” e “há que equacionar, também na esfera jurídica da A., o valor do cumprimento e o valor do incumprimento, pois se, com o cumprimento, a A. obteria aquele retorno (€6.316,98, IVA incluído), pelo seu investimento (de €4.920,00, também IVA incluído) e ver-se-ia, de novo, na posse dos bens (evidentemente depreciados pelo tempo, como é notório), com o incumprimento, a A. obteria – judicialmente - o mesmo retorno, acrescido de uma prestação perpétua de €142,66 mensais”.

Na fundamentação de direito da decisão recorrida – saliente-se, de excelente e inegável qualidade jurídica –, que constitui o silogismo judiciário subjacente à condenação do réu/recorrente, expendeu-se, entre o mais:

–  “(…) [S]ão devidos os alugueres dos meses titulados nas faturas juntas aos autos ((facto provado 15./a., b., e., h.) e ainda os alugueres dos meses subsequentes até à presente data, considerando que não foi alegado, nem resultou dos autos que o contrato de locação tenha sido denunciado pelo Administrador da Insolvência da Locatária Insolvente (artigo 108.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas), razão pela qual, na falta de oposição à renovação (não alegada/concretizada/demonstrada), este renovou-se a 01/01/2021.

O contrato de locação prevê o vencimento dos alugueres, de forma antecipada, ao dia 01 de cada mês (facto provado 8). Assim, a Locatária entrou em mora no cumprimento, tornando-se responsável pelos danos que tal situação causou à Autora, in casu, à luz do peticionado em 5.2 do petitório (artigo 609.º do CPC), os danos correspondentes aos juros moratórios vencidos após a data de vencimento de cada um dos alugueres (…)”;

“Da restituição dos bens locados

Peticiona a Autora a restituição dos bens locados, com os respetivos custos suportados pelo Réu. O contrato de locação prevê expressamente que os equipamentos devem ser restituídos até 10 dias após a cessação do contrato, devendo os custos respetivos ser suportados pela locatária (facto provado 11), não tendo sido convencionada a possibilidade de aquisição do bem pela Locatária. Ademais, é obrigação legal do locatário restituir a coisa locada (artigos 1038.º, i) e 1043.º do CC). Assim, com a cessação do contrato verificada em face da resolução agora declarada, assiste à Autora o direito à restituição do bem nos termos acordados e ao abrigo das indicadas normas legais. Nos termos convencionados, tal restituição deverá ocorrer até 10 dias após a cessação do contrato, operada pela presente data, findo o qual, ocorre mora na restituição dos bens locados”;

“Da indemnização ao abrigo do artigo 1045.º, n.º 2 do CC

Peticiona a Autora a indemnização prevista no indicado normativo, desde a resolução até efetiva entrega dos bens locados. Dispõe o artigo 1045.º do CC, relativo à indemnização pelo atraso na restituição da coisa:

“1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a títulode indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.

2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro”.

Reconheceu o legislador o direito do locador a ser indemnizado pelo atraso na restituição da coisa. No n.º 1, previu uma indemnização simples, correspondente ao valor do aluguer convencionado. No n.º 2, previu uma indemnização agravada, correspondente ao dobro do valor do aluguer convencionado. Verificamos, porém, que as parte outorgantes do contrato de locação afastaram a norma legal prevista no citado normativo, tendo previsto que, em caso de atraso na restituição dos bens, a C..., Lda (atualmente designada D..., Lda.) incorre na obrigação de pagar uma compensação à primeira, calculada com base no montante que seria devido a título de alugueres como se o contrato se encontrassem vigor na proporção do período temporal até à efetiva restituição (facto  rovado 19). O acordado nesta matéria afigura-se admissível à luz do artigo 405.º do CC, não resultando da ratio do artigo 1045.º (equilíbrio das posições contratuais) a impossibilidade de ser acordada uma indemnização inferior à legalmente prevista. Assim, ao abrigo do convencionado no contrato, a Autora apenas tem direito a uma indemnização equivalente ao montante do aluguer acordado, ou seja, (142,66€)/mês ou o proporcional correspondente ao atraso, à razão de 1/30, o que equivale a 4,75€/dia”.

“Da responsabilidade do Réu

Apurada a responsabilidade da Locatária nos termos supra explanados, cumpre aferir da responsabilidade do Réu. Ao abrigo da fiança por este prestada, nos termos do disposto nos artigos 627.º, n.º 1 e 497.º, n.º 1 do CC, o Réu é responsável solidário pelas obrigações emergentes para a Locatária, do contrato de locação objeto dos autos. A responsabilidade do fiador perante a Autora relativamente ao pagamento dos alugueres vencidos e respetivos juros de mora não suscita dúvidas. Verifica-se alguma divergência ao nível da exigibilidade ao fiador das indemnizações devidas após a cessação do contrato. (…) No caso dos autos, como vimos, o Réu renunciou a esse benefício, pelo que, duvidas não existem que a sua obrigação é solidária. Quanto ao seu âmbito, à luz do artigo 634.º do CC, a responsabilidade do fiador abrange tudo aquilo a que o devedor principal está obrigado, não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (artigo 798.º do CC) ou a pena convencional que, porventura, se haja estabelecido (artigo 810.º do CC) – neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed. Revista e atualizada, fevereiro de 2011, Coimbra Editora, p.651-652. Apenas a convenção entre o credor e fiador pode afastar a amplitude da fiança nos termos do disposto no artigo 631.º, n.º 1, do CC, o que não se verifica no caso em apreço uma vez que da declaração de fiança subscrita pelo Réu não consta que as partes tenham pretendido excluir da fiança prestada as consequências legais do incumprimento contratual, designadamente os danos derivados da mora do devedor na restituição do locado. Concluímos assim que o fiador responde perante o credor pela indemnização da responsabilidade do devedor resultante da mora na entrega do locado e já depois da resolução do contrato de locação (neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 18597/20.7T8PRT.G1, Relator: Alcides Rodrigues, de 26-09-2024, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo 43/14.7T8PFR.P1, Relator: Carlos Querido, de 05-03-2018; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo: 9785/21.0T8VNG.P1, Relator: Paulo Duarte Teixeira, de 28-09-2023)”.

“Carece de total fundamento a argumentação do Réu relativa à transmissão da sociedade a terceiros, porquanto, tal circunstância não exonera a sociedade locatária das obrigações assumidas para com a aqui Autora, decorrentes do contrato de locação em causa. E, bem assim, é inócuo o facto de o Réu ter renunciado à gerência da sociedade locatária, uma vez que a fiança, sendo uma garantia pessoal, acompanhada a obrigação independentemente da relação do fiador com a sociedade garantida”;

“No momento da sua desvinculação em relação à sociedade locatária, incumbia ao Réu, além do mais, na qualidade de fiador, comunicar à Autora esta alteração e diligenciar pela eventual substituição da garantia pessoal por si prestada, a uma sociedade com a qual deixou de manter um relacionamento profissional. Com efeito, a alteração das circunstâncias verificou-se na esfera jurídica do Fiador (e da locatária), pelo que, era um ónus/interesse seu diligenciar no sentido de tentar assegurar a cessação/substituição da garantia pessoal por si prestada e ainda, não o tendo feito, acompanhar de alguma forma a sociedade locatária por forma a controlar o cumprimento por parte desta das obrigações assumidas e das quais é garante pessoal com todo o seu património. O comportamento do Réu, no sentido do alheamento das responsabilidades assumidas pela locatária, não tendo sequer cuidado de evitar que o negócio em causa fosse transmitido ou fosse cessado, nomeadamente por oposição à renovação, traduz uma falta de cuidado, zelo e diligência que só a si podem ser imputáveis. A fiança é um negócio de risco e não deve ser assumida de forma leviana. Impõem-se ao garante os deveres de cuidado e diligência por forma a manter-se informado do estado das obrigações garantidas. Tendo-se “desresponsabilizado” dessa tarefa, não pode o Réu, legitimamente, invocar circunstâncias que ele próprio omitiu, violando os deveres acessórios de informação, procurando por essa via, desvincular-se, mas sem fundamento legal e factual, da fiança que declarou aceitar”;

“Importa agora ponderar se a obrigação de restituir os bens locados, propriamente dita (artigo 1038.º, i) do CC), é exigível ao fiador, no caso em apreço. Adiantamos que, segundo entendemos, tal obrigação é inexigível ao fiador, o qual permanecerá, contudo, obrigado a indemnizar o credor nos termos contratuais, à semelhança do artigo 1045.º do CC, embora pelo valor equivalente ao aluguer e não ao dobro, pelo atraso nessa entrega, devendo adotar uma postura diligente para o efeito. Com efeito, tratando de bens móveis entregues à Locatária, tal obrigação será, em princípio infungível. Depois, não se demonstrou que os bens locados estivessem na posse fiador, viabilizando-se a entrega dos mesmos pelo próprio. Donde, desconhecendo-se se os bens locados estão na posse do Réu, por forma a conceber a possibilidade de reunir condições para cumprir a obrigação do devedor principal de entregar os mesmos à autora, não podemos condenar o Réu na mesma. Ao decidir de outra forma, estaríamos a atribuir ao fiador uma obrigação que se afigura impossível de cumprir por motivos alheios ao fiador e, como tal, inexigível. No caso dos autos, a Autora não alegou que o fiador estivesse ou pudesse estar na posse dos bens locados e, da instrução da causa, tal não resultou demonstrado. Assim, a obrigação de restituição dos bens locados propriamente dita não pode, in casu, ser diretamente satisfeita pelo fiador, aqui, Réu, sobrevindo apenas os deveres de diligência para o efeito na medida em que permanecerá obrigado a satisfazer a indemnização do credor pelo atraso nessa entrega”.

Acompanhamos, sem reservas, a fundamentação do tribunal a quo.

O princípio da boa fé tem subjacente os subprincípios da lealdade e da confiança impondo-se, quer na negociação dos contratos, quer na sua execução.

Enquanto regra geral de conduta das pessoas, singulares e colectivas, o princípio da boa fé nas relações jurídicas obrigacionais assenta em valores como a lealdade e a correcção – cf., com relevo, o estatuído no art. 762.º, n.º 2, do Código Civil.

Importa ter presente, outrossim, o prescrito no art. 227.º (Culpa na formação dos contratos), segundo o qual: “Quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte” (n.º 1).

Na decorrência desses deveres de boa-fé, de lealdade e de lisura contratual impõe-se que a parte, que conheça ou saiba – ou deva saber com a normal diligência – que algum risco ameaça o sucesso do processo negocial, o comunique à contraparte, advertindo-a, em particular, da necessidade de adequada prudência na realização de gastos.

Em suma, o legislador exige que as partes orientem o seu comportamento pelo princípio da boa fé, surgindo esta como regra normativa de conduta humana, dirigida à colaboração entre as partes em qualquer relação negocial.

Como refere Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1.º Volume, p. 145, o princípio da boa fé e da colaboração no âmbito das obrigações determina, por um lado, um non facere, traduzido num dever geral de não prejudicar a parte contrária, do que decorre que está de má fé aquele que age com o objectivo directo ou necessário de lesar os interesses de outrem; e por outro lado, impõe a tomada de posições concretas por quem é parte no contrato, segundo as circunstâncias, com vista à satisfação do interesse da parte contrária, do qual emergem diversos deveres acessórios como sejam os deveres de lealdade, honestidade, notificação, informação, etc.

Colocando-se a questão de saber qual a “medida de colaboração” entre os contratantes, na execução do contrato que é exigida pelo princípio da boa fé – art. 762.º, n.º 2 –, podemos socorrer-nos da norma legal inscrita no art. 487 nº 2 do Código Civil que faz referência ao bonus pater familias e que nos diz que a culpa, na falta de outro critério legal, é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso. A este respeito, ensina-nos Menezes Cordeiro, op. cit.. p. 153: “Não obstante a referência legal citada surgir, em sede de culpa, na responsabilidade civil, a figura do bom pai de família deve ser tratada, primordialmente, no campo da diligência devida, em termos de boa fé”.

O recorrente alude, ainda, ao princípio da proporcionalidade, previsto no art. 18.º da Constituição da República Portuguesa.

Como se exarou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2001, de 02-05-2001[8]: “O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:

Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);

Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);

Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)”.

Por sua vez, o instituto do abuso do direito, previsto no art. 334.º do Código Civil estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.

O legislador sufragou a concepção objectivista do abuso do direito que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico, o que não significa, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado, Volume I, 2.ª edição, p. 277 –,“que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334.º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido”.

O abuso de direito pode revestir várias modalidades: Menezes Cordeiro faz referência ao “venire contra factum proprium”, à “inalegabilidade de nulidades formais”, à “suppressio”, à “surrectio”, ao “tu quoque” e ao “desequilíbrio no exercício jurídico”Da Boa Fé no Direito Civil, p. 719 e segs.

Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita do seu exercício, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante, não se exigindo que o titular do direito consciencialize que o seu procedimento é abusivo, bastando que os limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, não obstante serem relevantes os factores subjectivos.

Ou seja, o abuso de direito pressupõe o exercício pelo seu titular de uma forma de tal modo arbitrária, exacerbada ou desmesurada, que, porque ofensivo da Justiça, atentas as concepções ou o sentimento ético-jurídico dominante na colectividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei, se mostre inadmissível.

A figura do abuso de direito surge, no fundo, como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigente em determinada época, evitando que se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado configurar abuso do direito é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, que se pode definir como o exercício de um direito que, devido a circunstâncias extraordinárias, dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício

Evidentemente, não é qualquer conduta que é susceptível de integrar o conceito de abuso do direito, já que a norma civilística impõe o exercício de um direito em termos substancialmente reprovados pela lei, ou seja, pese embora seja respeitada a estrutura formal do direito, ocorre violação da afectação substancial, funcional ou teleológica do mesmo.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, p. 217: “Os tribunais só podem pois fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63). O Prof. Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (Abuso do direito, no Bol. N.º 85, pág. 253).”

Analisada a decisão recorrida e o seu segmento condenatório verifica-se que o réu/recorrente foi condenado a pagar à autora/recorrida, na sua qualidade de fiador, a quantia de € 10 182,7, que corresponde ao valor dos alugueres vencidos desde Abril de 2020 até 29-10-2024 (data da resolução judicial do contrato), e não como o mesmo vem algar, que a sentença em crise o condenou numa indemnização perpétua até à efectiva restituição dos equipamentos.

Ademais, a indemnização a que o mesmo foi condenado, de € 142,66 por cada mês na mora da restituição dos bens, apenas é devida decorridos 10 dias sobre a data da prolação da sentença e até efectiva restituição dos bens locados, tendo o réu sido absolvido do demais peticionado pela autora.

Ou seja, o fiador/recorrente, não foi condenado na obrigação de restituição, mas apenas no pagamento da respectiva indemnização pela mora na restituição dos equipamentos, considerando que a fiança acompanha a obrigação principal, por solidária, pelo que a sua responsabilidade é extensível também aos danos causados à Recorrida.

Por conseguinte, não obstante a sociedade locatária se encontrar insolvente, nada obsta que o recorrente/fiador diligencie pela restituição dos equipamentos alugados que são propriedade da A..., S.A., os quais estão identificados no auto de aceitação e na factura da fornecedora (correspondentes a um sistema de videovigilância e a equipamentos de faturação POS, com monitor Asus e uma impressora) – cf. docs. n.sº 4 e 5 juntos à petição inicial. Aliás, como bem acentua a recorrida, o fiador, por ter sido gerente da sociedade, é a pessoa capaz de aferir pela localização dos equipamentos, junto dos proprietários onde os restaurantes se encontravam a laborar e/ou junto do Administrador da Insolvência.

Acresce que a indemnização pela mora na restituição dos equipamentos alugados, resulta do contrato de locação, bem como do art. 1045.º do Código Civil.

Por fim, como bem acentuado pelo Mmo. Juiz a quo: “A circunstância de a Autora ter recorrido à via judicial em 2023, depois de ter instaurado requerimento de injunção em 27-03-2020 também não pode ser entendido como uma atuação abusiva, conforme alega o Réu em sede de alegações, porquanto, também o Réu, tendo tido conhecimento da situação do alegado incumprimento da locatária nessa ocasião e estando consciente da transmissão das quotas da locatária, da nova gerência, não podendo ignorar, sem culpa, a sua qualidade de garante não desonerado, também nada fez”.

Pelo exposto, improcede esta questão recursiva, não se verificando, pois, qualquer ofensa dos princípios da boa fé, proporcionalidade e abuso do direito.

2.2 Sustenta o recorrente, ainda, a possibilidade de (ii) redução da cláusula penal (conclusões R a T), aduzindo que “a cláusula penal fixada para o incumprimento e para a não restituição dos bens - mesmo na modalidade, adotada na douta sentença, do pagamento mensal, em singelo, mas perpetuamente, do montante do aluguer - é, como já foi referido, indutora de um profundo desequilíbrio das prestações” e que, como tal,  “parece exigir-se a redução da pena contratual pelo incumprimento, aos valores dos alugueres de dezembro de 2019 a dezembro de 2020 (face à resolução do contrato em 4 de março, o contrato não se renovou) e, quanto à não restituição dos bens, ao valor dos mesmos, a determinar por recurso à equidade, sempre em valor inferior a €4.000,00 (o seu valor de aquisição, sem IVA), face ao notório facto da sua desvalorização real” (sic).

Segundo o art. 810.º, n.º 1, do Código Civil: “As partes podem (...) fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama a cláusula penal.”

De acordo com Calvão da Silva – cf. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, p. 247 –, a cláusula penal traduz-se na “estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. Se estipulada para o caso de não cumprimento, chama-se «cláusula penal compensatória»; se estipulada para o caso de atraso no cumprimento, chama-se «cláusula penal moratória»”.

Temos assim, por um lado, a cláusula penal compensatória ou indemnizatória, em que o acordo das partes tem por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de não cumprimento ou de cumprimento defeituoso; por outro lado, a cláusula penal compulsória, em que o acordo das partes tem por finalidade compelir o devedor ao cumprimento e/ou sancionar o não cumprimento.

Como já se referiu anteriormente, in casu, a indemnização pela mora na restituição dos equipamentos alugados, resulta do contrato de locação, bem como do art. 1045.º do Código Civil, e nem sequer corresponde à cláusula penal inserta no contrato, especificamente na cláusula 7.3 do contrato – cf. doc. n.º 1 da petição inicial: “A resolução do contrato por incumprimento confere ainda à B... o direito de receber, além dos alugueres e prémios de seguro vencidos, juros de mora e custos de avisos e de não concretização do débito direto, os alugueres vincendos até ao termo da duração inicial do contrato nos termos da cláusula 3.2.”

A propósito desta específica questão consta da decisão sob recurso o seguinte: “O contrato de locação em análise prevê que a cessação antecipada do contrato confere à Autora o direito de exigir, a título de cláusula penal, um montante equivalente a todos os alugueres que fossem devidos até ao termo do período inicial do contrato (facto provado 22). Ora, o contrato teve início a 01-01-2018 (facto provado 8 - cl. 3.1 do contrato e auto de aceitação – documentos 1 e 4, juntos com a p.i.), pelo que, o termo do período inicial de 36 meses verificou-se a 01-01-2021.Uma vez que a resolução contratual apenas foi declarada na presente decisão e com efeitos reportados igualmente a esta data, resulta prejudicado este pedido, porquanto, a cessação do contrato com fundamento na resolução do mesmo é posterior ao período inicial do contato (36 meses). Consequentemente, resulta ainda prejudicada a ponderação da exceção invocada pelo Réu atinente à redução e inaplicabilidade da cláusula penal” (sic).

O tribunal a quo, correctamente, considerou prejudicada a ponderação da questão da excessividade ou não da cláusula penal, considerando que o contrato foi resolvido em 29-10-2024, sendo certo que a indemnização pela mora na restituição, a que corresponde o ponto 2.3 da condenação, não se materializa numa cláusula penal, passível de redução, sendo essa a situação a que alude expressamente o art. 812.º do Código Civil.[9]

Improcede, outrossim, esta questão do recurso.

2.3 Por fim, suscita o recorrente, ex novo, a questão da (iii) existência de contrato de seguro (conclusões U e V).

Indica a este propósito que “a A. Recorrida tinha o direito de incluir os equipamentos na apólice de que é tomadora e a cobrar à locatária o prémio de seguro correspondente, no valor mensal de € 9,67 (cf. ponto 12. FP), como fez, pois, efetivamente a ora A. os incluiu no seu seguro e debitou esses valores (cf. ponto 15. FP), e, assim, na impossibilidade objetiva de o R. restituir os bens à A. e igual impossibilidade objetiva de esta os encontrar e reaver, deve haver lugar ao ressarcimento desse dano pelo seguro contratado, que continuou a ser cobrado, mesmo nas faturas não pagas (cf. ponto 15. FP: als. a), b), e) e h)), o que significa que os bens continuavam a ser objeto desse seguro” e considera que “é redundante a condenação do ponto 2.2, integrando o valor do seguro, cujo pagamento a A. não provou após março 2020: a) ou a seguradora pagou o valor dos bens, cessando o pagamento do prémio; b) ou, após a resolução, e perante a impossibilidade objetiva da restituição, é um absurdo continuar a pagar o prémio” (sic).

No que tange a esta última questão do recurso (contrato de seguro), trata-se de uma questão nova que o réu não levantou nos seus articulados, mormente em sede de contestação, constituindo doutrina e jurisprudência totalmente pacificada que os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido.

Escreve a propósito Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 2017, p. 109: “[A] natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas”.

Como se escreveu no sumário Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-10-2020, Proc. n.º 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1: “As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida”.

A única excepção a esta regra, como bem se compreende, consiste na apreciação das questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer.

Em suma: o recurso constitui um meio de modificação ou revogação de uma decisão judicial previamente tomada e não de criação de uma decisão sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo, visando a reponderação das questões já decididas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.

Por conseguinte, não se tratando a questão em apreço de situação de conhecimento oficioso, não pode este tribunal apreciar a questão inovatoriamente suscitada pelo recorrente, porquanto, no rigor dos princípios, não existe qualquer decisão de que se recorre.

Nestes termos, também esta última questão do recurso naufraga.


*

Em consonância com o acima exposto, não tendo o recorrente apresentado quaisquer fundamentos válidos que ponham em causa sentença proferida, não tendo ocorrido qualquer erro na apreciação da prova, nem violação dos artigos 221.º, 342.º e 1041.º, n.º 6, todos do Código Civil, nem do artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, o recurso improcede na íntegra, recaindo sobre o mesmo a responsabilidade pelo pagamento das custas processuais, nos termos dos arts. 527.º, nºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2, todos do CPC.

*

            Sumário (art. 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

Decisão:

Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo integralmente a decisão recorrida.                                                  

Custas pelo apelante.


Coimbra, 16 de Setembro de 2025

Luís Miguel Caldas

Cristina Neves

Hugo Meireles



[1] Juiz Desembargador relator: Luís Miguel Caldas /Juízes Desembargadores adjuntos: Dra. Cristina Neves e Dr. Hugo Meireles.
[2] Publicado em http://www.dgsi.pt, tal como os demais que se mencionarem nesta decisão.
[3] O referido diploma foi revogado pelo DL n.º 12/2021, de 09-02 (art. 36.º), que assegura a execução na ordem jurídica interna do Regulamento (UE) 910/2014, relativo à identificação electrónica e aos serviços de confiança para as transacções electrónicas no mercado interno.
[4] No caso sub judice, os bens alugados e a fornecedora foram escolhidos pela locatária e adquiridos pela locadora, no interesse da locatária, por compra, pelo preço de € 4920,00 (quatro mil novecentos e vinte euros), com o objetivo exclusivo de os alugar à locatária (cf. docs. n.ºs 1 a 5). O contrato de locação tinha a duração inicial de 36 (trinta e seis) meses, sendo renovável por sucessivos períodos de um mês, com início na data da receção dos bens, que ocorreu em 06-12-2017, mas com início da contagem do prazo no 1.º dia do mês seguinte, ou seja, com início da contagem do prazo em 01-01-2018 e termo em 31-12-2020, caso não se renovasse (cf. docs n.ºs 1 e 2).
[5] “A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”.
[6] “O fiador não pode invocar os benefícios constantes dos artigos anteriores:  a) Se houver renunciado ao benefício da excussão e, em especial, se tiver assumido a obrigação de principal pagador; (…)”.
[7] “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
[8] Publicado em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010187.html.
[9] “1. A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário.
 2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida”.