Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
638/23.8T8LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DO PEDIDO
PREMATURIDADE
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU LEIRIA – LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 245.º, N.º 1, E 342.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 591.º, N.º 1, AL. D), 595.º, 596.º, 607.º, N.ºS 3 A 5, E 639.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. - À luz do preceituado nos art.ºs 591.º, n.º 1, al.ª d), e 595.º, ambos do NCPCiv., findos os articulados, é proferido despacho saneador, destinado a conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais suscitadas pelas partes ou de conhecimento oficioso, bem como a conhecer imediatamente do mérito da causa, desde que o estado do processo o permita [al. b) do n.º 1 do art.º 595.º].

2. - Tal conhecimento de meritis apenas deve ter lugar se a matéria de facto relevante para a decisão da causa já estiver estabelecida como provada – consideração, na fundamentação de facto, de todo o factualismo relevante, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

3. - Sendo controvertido, na ação condenatória para pagamento de tornas em consequência da partilha do património comum de ex-cônjuges, diverso factualismo esgrimido em matéria de defesa por exceção – mormente, abuso do direito –, tal como oportunamente alegado pela parte demandada, que arrolou prova pessoal para tanto, não deve conhecer-se de mérito no saneador, antes devendo os autos prosseguir para audiência final, de molde a observar-se integralmente o princípio do contraditório, também no âmbito probatório, evitando-se situações de possível indefesa.

4. - As declarações não sérias, enquanto divergência entre a vontade e a declaração negocial, pressupõem a verificação, com factos de suporte, de um elemento objetivo (mormente, a divergência entre a vontade e a declaração) e outro subjetivo (o caráter voluntário da conduta e a intenção e motivação do declarante ao emitir a declaração desconforme/divergente), cujo ónus da prova cabe à parte que invoca o vício e que dele pretende tirar proveito.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: ***

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa condenatória, com processo comum, contra

BB, também com os sinais dos autos,

pedindo:

a) Seja declarada a nulidade, por falta de seriedade, da declaração outorgada pelas partes no dia 16/03/2009, perante notária, na parte respeitante ao declarado recebimento de tornas (“que de tornas já recebeu da segunda outorgante de que lhe dá quitação” e “importância que repôs de tornas ao primeiro outorgante”), reconhecendo-se assim que as tornas devidas pela R. ao A. não foram efetivamente pagas;

b) Seja declarada a nulidade, por falta de seriedade, da declaração de compromisso de honra outorgada em 27/02/2014 pelo A., através da qual este declarou prescindir das tornas, exonerando a R. do pagamento das mesmas, reconhecendo-se por isso que o mesmo não prescinde do recebimento das tornas devidas pela R. e que estas não foram efetivamente pagas;

c) Cumulativamente com qualquer um dos pedidos anteriores, seja a R. condenada a pagar ao autor a quantia de € 110.811,21, a título de tornas, devidas pela partilha realizada em 16/03/2009 no extinto Cartório Notarial da Lic. CC, em ..., acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

d) Subsidiariamente a todos os pedidos anteriores, seja a R. condenada a pagar ao A., a título de enriquecimento sem causa, a quantia de € 110.811,21, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento;

e) Seja ainda a R. condenada na sanção pecuniária compulsória prevista no art.º 829.º-A, n.º 5, do CCiv. sobre o montante a restituir.

Para tanto, alegou, em síntese:

- terem A. e R. contraído, entre si, casamento no regime da comunhão geral de bens, no dia ../../1978, sendo que, por sentença transitada em julgado no dia 16/03/2009, foi declarado dissolvido o casamento, por divórcio;

- terem, no mesmo dia, A. e R. outorgado escritura de partilha de bens do património comum, constituído por 21 verbas, no montante global de € 348.954,99;

- na partilha, a R. licitou as verbas 1 a 18, no valor global de € 285.288,71, e o A. as verbas 19 a 21, no valor de € 63.666,28, pelo que tinha o A. direito a receber, a título de tornas, o valor de € 110.811,21;

- apesar de exarado na referida escritura que recebeu as referidas tornas, tal recebimento não aconteceu, por a R. não ter disponibilidade económica ao tempo, informando, no entanto, que as pagaria posteriormente, o que nunca fez;

- em 20/01/2014, a Autoridade Tributária instaurou contra o A. um processo de execução fiscal, por dívidas fiscais no valor de € 53.457,80, referentes a mais valias obtidas pela transmissão dos bens que originaram o pagamento de tornas;

- na sequência desse processo, o A. foi aconselhado a entregar declaração à R. onde a desonerava do pagamento de tornas, o que, por sua vez, o desonerava, à data, do pagamento de qualquer imposto;

- esta declaração foi assinada em 27/02/2014 e entregue à R., sendo que ambos sabiam não corresponder à verdade;

- nesse mesmo dia, com receio de que tal declaração pudesse lesar os interesses da Autoridade Tributária e causar problemas de outra índole ao A., solicitou este à R. que a destruísse e que redigisse e assinasse uma outra declaração onde constasse que a mesma ainda não lhe tinha pago as tornas, o que esta veio a fazer, nesse mesmo dia.

Contestou a R. – altura em que também deduziu reconvenção, que não veio a ser admitida, tendo da respetiva decisão de rejeição sido interposto recurso, âmbito em que o TRC confirmou o decidido, com trânsito em julgado –, concluindo pela improcedência da ação e alegando que:

- a expressa declaração exarada pelo A., na escritura em questão, de que lhe haviam sido repostas as tornas devidas é irretratável;

- ocorre prescrição do pedido fundado em enriquecimento sem causa, bem como a caducidade do pedido pelo decurso do prazo da arguição de anulabilidade;

- inexiste qualquer enriquecimento do património da R. à custa do património do A., por não poder este receber em partilha mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado no regime de comunhão de adquiridos, o que não sucedeu, atenta a proveniência de alguns dos bens que foram objeto de partilha, enquanto outros não foram partilhados, tendo o A. ficado com os mesmos, assim concluindo que há muito repôs as tornas ao A., antes tendo sido este quem enriqueceu à sua custa;

- por carta endereçada ao A. no dia 27/04/2009, manifestou o entendimento de não ser devedora de qualquer importância e que por essa razão não pretendia efetuar qualquer pagamento.

Na réplica, o A. defendeu que a R. não põe em causa que as declarações prestadas nos documentos referidos na petição são “não sérias”, mais pugnando pela improcedência da matéria de exceção invocada.

Por despacho de 14/10/2024, foi assim determinado:

a) “Uma vez que a audiência prévia se destinaria apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do artº 591º nº 1 do CPC, dispensa-se a realização da mesma, nos termos do disposto no artº 593º nº 1 do CPC, (tanto mais que já houve lugar a uma diligência deste tipo, destinada a apreciar a competência material deste Tribunal, revogada em conformidade com o acórdão constante dos autos apensos).

Assim, passa-se de imediato a proferir os despachos referidos nas alíneas a) a c) do nº 2 do mesmo artigo”;

b) “Considerando os elementos carreados para o processo, designadamente o facto de a própria ré admitir que não procedeu ao pagamento das tornas (cf. artº 87º da p.i) a par dos factos que integram a causa de pedir nesta acção, é nosso entendimento que o estado dos autos permite que desde já seja proferida decisão do mérito da causa, sem prejuízo de, perante eventuais argumentos expendidos pelas partes, podermos ponderar entendimento diverso.

Não obstante o disposto no artº 590º nº 1 al. b) do CPC, fazendo uso do dever de gestão processual e do princípio da adequação formal previstos, respectivamente nos artºs 6º e 547º do CPC, entendemos revelar-se adequada a prolação por escrito, dispensando-se a realização de audiência prévia, também para estes efeitos.

Assim, notifique as partes para em 10 dias dizerem o que tiverem por conveniente quanto à possibilidade da prolação da subsequente decisão por escrito, com a advertência de que, nada dizendo, se entenderá como não oposição”.

A R., tomando posição, pugnou pelo prosseguimento da tramitação dos autos, designadamente para conhecimento das questões suscitadas em matéria de defesa por exceção.

Com data de 15/03/2025, foi proferido saneador-sentença, com o seguinte dispositivo:

«I- Julgo a acção procedente e em consequência:

a) Julgo inexistente a declaração do autor no dia 16 de Março de 2009 perante a Exma. Notária, de que recebeu as tornas devidas da ré e de que lhe deu quitação assim como a declaração de que prescindia das mesmas efectuada no dia 27 de Fevereiro.

b) Condeno a ré a pagar ao autor a quantia de € 110.811,21, a título de tornas, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.».

Inconformada, recorre a R., apresentando alegação e as seguintes

Conclusões:

«1ª) O tribunal a quo não designou audiência prévia, tentativa de conciliação, como; não determinou o objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.

2ª) Independentemente, da questão da declaração da confissão, exarada em escritura pública de partilha, outorgada em 16/03/2009, o A. em documento autenticado em 27/02/2014, por si assinado, declarou sob compromisso de honra, que, prescindia do recebimento do valor de € 110.911,21; desonerando a Ré de tal pagamento, deixando o mesmo de constituir uma obrigação legal para a Ré.

3ª) O Tribunal a quo não apreciou, nem decidiu, sobre as excepções suscitadas, na defesa da Ré, nomeadamente: de renúncia, de abuso de direito, de caducidade e; que lhe incumbia julgar.

4ª) Como na sentença proferida, o tribunal a quo não apreciou nem julgou factos articulados relevantes para a boa decisão da causa, desconhecendo-se, assim, se os teve por provados ou não provados.

5ª) A sentença enferma de vício de omissão de pronúncia; o que, motiva causa da sua nulidade.

6ª) Os factos articulados, sob os pontos: 15º a 23º; 45º; 75º (2ª parte); 77º; 78º e 79º da Contestação, aqui dados por reproduzidos, não foram tidos em consideração e, sendo essenciais para a prova da matéria de excepção, pelo tribunal a quo deviam sê-lo.

Porém,

7ª) Face aos elementos probatórios constantes do processo e, os admitidos por acordo, além de confissão reduzida a escrito, os mesmos devem ser considerados provados e aditados aos factos provados e, enunciados na douta sentença, dados aqui por reproduzidos. Por outro lado,

8ª) O A. não demonstrou a falta ou vícios de vontade.

9ª) A acção devia ser julgada totalmente improcedente, com custas a cargo do A.

Quando assim, se não entenda,

10ª) O processo na fase de saneador, não se encontrava em estado de, se conhecer, imediatamente, de facto e do mérito da causa.

11ª) Por erro de leitura, análise, interpretação e aplicação; a decisão proferida, não se revela a mais consentânea, nem assertiva, com os princípios gerais do direito civil, processual civil e a mens legis.

12ª) Mostra-se violado o disposto nos arts.: 352º; 355º; 356º; 357º e 358º do Código Civil e; arts.: 5º, nº 1; 152º; 195º; 591º; 594º; 595º; 596º; 607º e 615º, nº 1, al. d) do CPC.

13ª) O recurso deve merecer provimento, revogando-se a douta decisão em causa e, substituída por Acórdão, a julgar a acção totalmente improcedente, com custas a cargo do A.

JUSTIÇA» (destaques retirados).

O A. contra-alegou, pugnando, por sua vez, pela improcedência do recurso e confirmação do julgado.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, com subsequente manutenção, neste Tribunal ad quem, do regime e do efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([1]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, cabe saber ([2]):

a) Se ocorre nulidade processual a que alude o art.º 195.º do NCPCiv. (conclusões 1.ª e 12.ª da Recorrente);

b) Se está demonstrada nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (conclusões 3.ª, 5.ª e 12.ª);

c) Se o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre factualidade relevante para a decisão da causa, devendo ocorrer ampliação da matéria de facto, com julgamento do respetivo factualismo como provado (conclusões 4.ª, 6.ª e 7.ª);

d) Se o estado do processo não permitia decisão de meritis, obrigando à revogação do saneador-sentença (para prosseguimento do processo, com ulterior conhecimento de facto e de direito) – conclusão 10.ª;

e) Se, em matéria de direito, não se demonstrando a falta ou vícios da vontade, a ação deve ser julgada improcedente (conclusões 8.ª, 9.ª e 11.ª a 13.ª).


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III – Fundamentação

         A) Da nulidade processual

Na sua apelação, a R. vem dizer, na conclusão 1.ª, que foram omitidos diversos atos processuais devidos (audiência prévia, tentativa de conciliação, enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova).

Porém, liminarmente se dirá que parece não retirar consequências práticas dessa invocação, apenas mencionando, na conclusão 12.ª, ter sido violado, para além do mais, o disposto no art.º 195.º do NCPCiv., e limitando-se a impetrar, em sede de petitório recursivo, a revogação da decisão impugnada – não a declaração de nulidade de qualquer ato processual –, com prolação de acórdão, em substituição, de total improcedência da ação (conclusão 13.ª).

O que logo se traduziria, em rigorosa análise, em inconsequente inconformismo e decorrente improcedência de argumentação.

Todavia, se pretendia invocar invalidade processual, cabe também dizer que, caso nulidade processual houvesse (a entender-se que a arguiu no recurso), ela haveria de ter-se como sanada, por não ter sido arguida no prazo legal (art.º 195.º, n.º 1, do NCPCiv.), visto que houve notificação da decisão de dispensa da audiência prévia e nada foi arguido a respeito – cfr. despacho de 14/10/2024 (parte I), devidamente notificado, sem que houvesse, na sequência, sido invocada a nulidade processual (vide tomada de posição da R. de 22/10/2024, a fls. 635 e segs. do proc. físico).

Ficou, pois, sanada – assim tem de concluir-se, salvo o respeito devido – a eventual invalidade processual.

Ademais, a tentativa de conciliação não seria obrigatória – cfr. art.º 594.º, n.º 1, do NCPCiv., que alude a poder ter lugar, em qualquer estado do processo, tentativa de conciliação, se, desde logo, a causa couber no âmbito dos poderes de disposição das partes e, outrossim, estas conjuntamente o requererem (o que não se mostra ter ocorrido nos autos) ou o juiz a considerar oportuna. Ou seja, por determinação/decisão (espontânea) do Tribunal, a tentativa de conciliação tem um caráter facultativo, dependendo de um critério de oportunidade do juiz ([3]), ao qual, por isso, a lei confere a (possibilidade de) ponderação sobre a adequação da designação/realização desse ato processual, destinado à obtenção de transação sobre o objeto do litígio (se o juiz, segundo um critério de oportunidade, entender que é viável a aposta na conciliação das partes) ([4]).

Por sua vez, a enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova só deveria ter lugar, logicamente, se os autos houvessem de prosseguir para instrução e audiência final (cfr. art.º 596.º, n.º 1, do NCPCiv.), o que, manifestamente, não ocorreu, atento o desfecho conferido à causa pelo Tribunal a quo.

Tendo sido conhecido do mérito no saneador-sentença, não era caso, como resulta evidente, de enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova.

Questão diversa seria a de saber se os autos dispunham efetivamente de todos os elementos necessários a decidir de mérito, matéria que se prende já com o eventual erro de julgamento e não com qualquer questão de nulidade processual.

Improcedem, pois, as conclusões em contrário da Recorrente.

         B) Da nulidade da sentença

A Apelante vem esgrimir, em matéria de nulidade do saneador-sentença recorrido, que ali não se conheceu, contra oportuna invocação expressa em sede de defesa da R., de questões de que deveria ter-se conhecido, ao não se tomar posição decisória sobre as exceções deduzidas de renúncia, abuso do direito e caducidade, das quais não se poderia deixar de conhecer ao sentenciar o pleito. Daí que esteja verificado o vício de omissão de pronúncia, gerador da nulidade da sentença (conclusões 3.ª e 5.ª).

Cabe apreciar quanto a tal invocado vício.

Trata-se, pois, da causa de nulidade da sentença a que alude o art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., que comina com a nulidade da decisão judicial o vício que se traduz em o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou, ao invés, conhecer de questões de que não pudesse tomar conhecimento, sendo aquela primeira vertente a aqui em causa.

Na 2.ª parte do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo NCPCiv. prescreve-se que não pode o juiz ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, questões essas que, naturalmente, deverá apreciar, a não ser que devam ter-se por prejudicadas.

Vem sendo entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência o de que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira, “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda” ([5]).

E, segundo Alberto dos Reis, “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” ([6]).

Ora, no caso dos autos a Apelante pretende que o vício cometido – omissão de pronúncia – consistiu em se não ter conhecido de diversa matéria de exceção, por si expressamente deduzida, pelo que importa sindicar nessa perspetiva o decidido.

Assim, estando em causa as exceções perentórias de renúncia, abuso do direito e caducidade, certo é que na decisão recorrida se considerou, desde logo, procedente a invocação da contraparte (A.) no sentido da qualificação do caso em sede de “declarações não sérias”:

«(…) não obstante a declaração do autor constante da escritura pública de que já havia recebido da ré as tornas que lhe eram devidas por esta, gozando de força probatória plena o facto de que tal declaração foi efectivamente feita, nada impede o autor de demonstrar que, não obstante a sua existência, tal declaração não é séria.

Ora, o que resulta da factualidade acima descrita é que, na realidade, se tratou de uma declaração não séria, reconhecida pela ré, nos dois momentos descritos nos factos 5 e 6.» (cfr. fundamentação de direito da decisão em crise).

E acrescentou, nessa senda, o Tribunal recorrido, que “não se poderá sustentar sequer a existência de qualquer declaração negocial, devendo concluir-se por uma situação de inexistência jurídica”.

Para, seguidamente, concluir:

«Não podendo ter-se por juridicamente existentes as declarações em que o autor se considera pago do valor das tornas, estando aceite pela ré que não as pagou, tem a mesma que ser condenada no seu pagamento.

Em face do assim decidido, ficam prejudicadas as excepções deduzidas pela ré, pois que o pedido julgado procedente não se funda em enriquecimento sem causa, nem em qualquer anulabilidade.» (destaques aditados).

Ou seja, considerado na decisão impugnada que se trata de declarações não sérias, a não poderem ter-se por juridicamente existentes, logo cairia, com base em tais declarações, a invocação de renúncia (ao direito) por parte do declarante (A.), âmbito em que foi julgada prejudicada, expressamente, a demais matéria de exceção conexa, incluindo, pois, o mencionado abuso do direito e caducidade.

Assim sendo, se foi decidido que determinadas questões ficavam prejudicadas pela decisão de outras (precedentes), então não há omissão de pronúncia, mas decisão de prejudicialidade.

Se essa prejudicialidade existe ou não é já matéria que se prende com o eventual erro de julgamento, e não com o vício de nulidade da sentença por omissão de pronúncia (a questão foi ponderada e entendeu-se encontrar-se prejudicada, razão pela qual se afastou o conhecimento do respetivo mérito).

Inexiste, pois, omissão de pronúncia, sendo de afastar o vício de nulidade da sentença.

C) Da factualidade julgada provada

Na 1.ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

«1- O autor e a ré casaram no dia 04.02.1978 e por convenção antenupcial celebrada no dia 27.01.1978, estipularam o regime da comunhão geral de bens.

2- Por decisão proferida em 16.03.2009, transitada no mesmo dia, no processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos sob o nº ...08/2009, na Conservatória do Registo Civil ..., o casamento referido em 1 foi dissolvido por divórcio.

3- Por escritura pública outorgada no dia 16.03.2009, no Cartório Notarial ..., a autora e o réu declararam proceder à partilha do património comum do dissolvido casal, constituído pelos bens descritos sob as verbas 1 a 21, no valor de € 348.954,99.

4- Na escritura referida em 3 mais ficou consignado que:

As verbas atrás mencionadas sob os números dezanove, vinte e vinte e um, são adjudicados ao primeiro outorgante AA, que assim leva a menos o valor de cento e dez mil oitocentos e onze euros e vinte e um cêntimos que de tornas já recebeu da segunda outorgante de que lhe dá quitação; e

Os imóveis atrás mencionados sob os números um a dezoito, são adjudicados à segunda outorgante BB, que assim leva em excesso o valor de cento e dez mil oitocentos e onze euros e vinte e um cêntimos, importância que repôs de tornas ao segundo outorgante.

5- A ré enviou carta registada ao autor, datada de 27.04.2009, entre o mais do seguinte teor:

Recebi a s/ carta datada de 17 de Abril e 2009 (…), através da qual me é solicitado o pagamento da quantia de 101.000,00 €, relativo a tornas resultantes de excesso de valor por mim recebido em imóveis, na partilha dos bens comuns que faziam parte do património conjugal.

Através desta minha carta pretendo definitivamente esclarecer que não sou devedora de qualquer importância, quer a título de tornas, quer a outro título.

Na realidade, foi por si declarado na escritura de partilha por divórcio comigo outorgada em 16 de Março de 2009, já ter recebido o mencionado valor de tornas, o que significa que com a realização de tal acto de partilha, ficou inteiramente preenchida e meação a que tinha direito nos bens comuns.

Não tendo a validade ou eficácia do referido acto notarial ficado dependente da verificação de qualquer condição ou obrigação, resta-se apenas comunicar que não pretendo efectuar qualquer pagamento, porque o mesmo não é devido.

6- No dia 27.02.2014 o autor emitiu declaração, autenticada por termo registado em 27.02.2014, pelas 10.04 horas, entre o mais, do seguinte teor:

Considerando que:

1) No dia dezasseis de Março de 2009 (…) perante a Notária (…) compareceram AA (…) e BB (…);

2) Que foram aqueles casados entre si em regime de comunhão geral de bens, tendo-se divorciado naquele dia, por decisão da Conservatória do Registo Civil ..., que transitou em julgado;

3) Que na mesma data procederam à partilha do património comum do seu dissolvido casal;

4) Que as verbas dezanove, vinte e vinte e um foram adjudicadas ao ex-cônjuge AA, tendo as demais sido adjudicadas à ex-cônjuge BB e, consequentemente, resultando para esta uma obrigação de pagamento de tornas no valor de cento e dez mil oitocentos e onze euros e vinte e um cêntimos;

5) Naquele dia, por indisponibilidade económica (ou outra) não foi imediatamente efectuado o pagamento daquele montante a título de tornas a AA;

AA (…) declara sob compromisso de honra que prescinde do recebimento do valor de € 110.911,21 (…) de tornas a liquidar pela sua ex-mulher, BB, (…) desonerando-a daquele pagamento, e deixando o mesmo de constituir uma obrigação legal para esta.

7- No dia 27.02.2014 a ré emitiu declaração, autenticada por termo registado em 27.02.2014, pelas 16.40 horas, entre o mais, do seguinte teor:

Considerando que:

1) AA (…) foi casado no regime da comunhão geral de bens com BB (…);

2) Em dezasseis de Março de 2009, na Conservatória do Registo Civil ..., por decisão que transitou em julgado, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos sob o número cinco mil quatrocentos e oito, do ano de dois mil e nove, foi decretado o divórcio entre AA e BB;

3) Na sequência do decretado divórcio e no mesmo dia dezasseis de Março de 2009, no Cartório Notarial ..., (…), AA e BB procederam à partilha do património comum do seu dissolvido casal;

4) No âmbito dessa partilha e por ter recebido menor valor, foi apurado um valor de tornas a receber por AA, no montante de € 110.911,21, ainda não pago;

BB (…) declara sob compromisso de honra, que não efectuou até á presente data, o pagamento da quantia de € 110.911,21 (…) devida a título de tornas ao seu ex-marido, AA (…).».

D) Da necessidade de ampliação da matéria de facto e de prosseguimento dos autos

Invoca a parte recorrente que o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre factualidade relevante para a decisão da causa, devendo ocorrer ampliação da matéria de facto, com vista ao alargamento do factualismo a dar como provado (conclusões 4.ª, 6.ª e 7.ª).

Concomitantemente, defende que o estado do processo não permitia decisão de mérito, antes se impondo o prosseguimento do processo, com ulterior conhecimento de facto e de direito (conclusão 10.ª).

Cabia-lhe o ónus de mostrar qual a factualidade relevante que o Tribunal a quo sujeitou a omissão, por não contemplada (indevidamente não elencada nem valorada) na decisão recorrida (cfr. art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Apreciando.

Tal ónus mostra-se suficientemente observado em sede de conclusões de recurso, uma vez que ali se alude aos art.ºs “15º a 23º; 45º; 75º (2ª parte); 77º; 78º e 79º da Contestação” (conclusão 6.ª).

Vejamos, desde logo, o teor desses segmentos do articulado de contestação, a começar pelos art.ºs 15.º a 23.º, com o seguinte teor:

«15 – Como a Ré recebeu por herança do pai o valor pecuniário, foi aplicado, por este, em certificados de aforro, entretanto, resgatados. E,

16 – Ainda de outros valores mobilizados para conta da mãe na Banco 1... sob o nº.  ...04 (Cf. Doc. 5).

17 – Valores esses, serviram para pagar o preço da compra da moradia no Algarve, sita na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito sob o artº. ...11, adquirida pelo preço declarado de €95.000,00 (Cf. Doc. 6). Mas, mais,

18 – Em 09 de Junho de 2017, A e Ré alienaram metade indiviso do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, anexos e logradouro; inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...34 e, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...46, da referida freguesia ..., cuja, quota-parte havia sida adquirida pelo A, por doação dos pais, mediante escritura pública lavrada no Cartório Notarial ..., no dia 14/08/1980, na constância do casamento do A e Ré (Cf. Doc. 7). Na verdade,

19 – A venda efetuada a favor do irmão do A., de nome DD, pelo preço de €102.280,00 (cento e dois mil duzentos e oitenta euros) reverteu exclusivamente para o A. Bem assim,

20 – A quota societária titulada pelo A. no A... Lda, sita na Rua ..., com valor nominal de €1.666,67 (1/3) do capital, figurou no inventário no valor nominal mas, no mercado valia, pelo menos, €30.000,00. Acresce,

21 – A forma da partilha foi gizada e imposta pelo A., com ainda a obrigação de a Ré efetuar, de imediato, doação de imóveis aos filhos: AA e EE (Cf. Doc. 8).

22 – As partilhas assim realizadas estavam, por si, “acertadas”, aliás, conforme o, expressamente, declarado e consignado na respetiva escritura subsequente ao divórcio (Cf. Doc. 9).

23 – Atente-se! Os bens imóveis relacionados e descritos sob as verbas 1 a 15 são propriedades adquiridas pela Ré da herança dos pais, conforme, igualmente, ficou consignado, ou seja, bens próprios!».

Como a R. logo deixou expresso nesse seu articulado, trata-se da matéria referente, apenas, à “LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ” (cfr. ponto I da contestação).

Só depois vem a matéria (específica) de contestação – respetivo ponto “II”, art.ºs 42.º e segs., a começar pela exceção da “confissão/renúncia”.

É certo que a R. formulou então pedido incidental de condenação do A. por litigância de má-fé:

«2) - Ser condenado como litigante de má-fé em multa e, indemnização expressivas, sendo a última, à favor da Ré, a fixar com observância dos critérios previstos nos arts. 542º e 543º do CPC, que se requer».

Pedido esse que improcedeu na decisão recorrida.

Acontece que a invocada relevância/“essencialidade” desta factualidade foi expressamente restringida – pela Recorrente – “para prova da matéria de exceção” (conclusão 6.ª), quando se trata, ab initio, de factualidade apenas alegada no âmbito (e para efeitos) do incidente de litigância de má-fé.

Portanto, não se trata de matéria fáctica alegada no âmbito das exceções deduzidas contra o peticionado na ação, mas apenas na esfera incidental de litigância de má-fé.

Acresce que nada foi pedido no recurso no concernente à decisão incidental absolutória de litigância de má-fé.

Donde se conclui que, inexistindo impugnação recursiva em matéria de litigância de má-fé, nada haverá a sindicar nessa sede, com a consequente irrelevância da respetiva factualidade alegada.

Assim improcede nesta parte a pretensão da Recorrente.

Passando aos invocados art.ºs “45º; 75º (2ª parte); 77º; 78º e 79º da Contestação”, estes com o seguinte teor:

«45 – Em documento exarado com data de 27/02/2014, onde, deixou consignado:

- “Prescinde do recebimento do valor de €110.911,21desonerando à daquele pagamento e deixando o mesmo de constituir uma obrigação legal para esta”. [alegado em matéria de exceção de “confissão/renúncia”]

(…)

75 – Os bens relacionados sob as verbas 1 a 15 são bens próprios da Ré, porquanto, adquiriu-os da herança do seu falecido pai, enquanto, imóvel relacionado sob a verba 18 foi adquirido e, pago com dinheiro próprio da Ré.

(…)

77 – O A. exigiu e impôs, no próprio dia do divórcio, a Ré doasse imediatamente a quase totalidade da propriedade raiz aos filhos de ambos (Cf. Doc.8).

78 – Outrotanto, nessa partilha ou qualquer outra entrou o valor recebido da venda da quota-parte de metade indivisa do bem imóvel doado ao A em 14/08/1980 pelos seus pais, mediante escritura notarial do prédio urbano (moradia), inscrita sob o artº. nº. ...24, sito na Rua ... e que, veio a vender em 09/06/2017, por escritura pública ao irmão, ficando no entanto, o mesmo com a totalidade do preço, do montante, pelo menos, de €102.280,00 (Cf. Docs. 11 e 12).

79 – A quota social de capital da sociedade de A..., Lda. seria avaliada no mercado em pelo menos €50.000,00. [todos estes alegados em matéria de impugnação]».

Que dizer?

Dir-se-á, desde logo, quanto ao aludido art.º 45.º, que essa materialidade fáctica – a que se reporta a Recorrente – já consta, expressamente, do elenco dos factos provados da decisão em crise, sob o respetivo ponto 6, parte final, onde pode ler-se:

«6- No dia 27.02.2014 o autor emitiu declaração, autenticada por termo registado em 27.02.2014, pelas 10.04 horas, entre o mais, do seguinte teor:

(…)

AA (…) declara sob compromisso de honra que prescinde do recebimento do valor de € 110.911,21 (…) de tornas a liquidar pela sua ex-mulher, BB, (…) desonerando-a daquele pagamento, e deixando o mesmo de constituir uma obrigação legal para esta.».

Por isso, nada mais haverá a acrescentar neste particular.

A matéria invocada do art.º 75.º é essencialmente conclusiva/valorativa – saber se determinados bens relacionados são bens próprios da R., por via de aquisição mortis causa (herança do seu pai), enquanto o imóvel relacionado sob a verba 18 foi adquirido e pago com dinheiro próprio da R. –, por se reportar à aquisição do direito de propriedade, âmbito em que importaria alegar e provar, se relevantes, os factos de que depende a aquisição do direito (causa ou modo de aquisição) e não a conclusão (jurídica) de que se é o dono/proprietário.

Assim sendo, havendo de ter assento na sentença (ou no saneador-sentença) os factos objetivos de suporte (cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv.), e não as conclusões de direito que deveriam ter esses factos como fundamento – as quais, por sua vez, apenas na fundamentação jurídica da sentença poderão ser extraídas (perante os pertinentes factos de suporte, se alegados e provados) –, logo se constata, salvo o respeito devido, que a formulação pretendida pela Recorrente não pode ser acolhida no elenco dos factos provados da causa, termos em que improcede nesta parte a pretensão daquela.

A impugnante conclui, por outro lado, que a matéria do invocado art.º 77.º deve ser considerada provada, com base em prova documental (cfr. referência ao “Doc.8” e conclusões 6.ª e seg.).

No entanto, na sua alegação/motivação (a fls. 13) admite essa materialidade como controvertida (no sentido de “ser produzida prova”).

De qualquer modo, está em causa saber, segundo o invocado, se o A. exigiu e impôs, no próprio dia do divórcio, que a R. doasse imediatamente a quase totalidade da propriedade raiz aos filhos de ambos.

Ora, a Apelante não explicita para que efeito jurídico tem esta factualidade relevância, em matéria de defesa por exceção, para além de também se considerar, ademais, tratar-se de materialidade com dimensão essencialmente conclusiva: a exigência e imposição de uma doação imediata a outrem é matéria que teria de demonstrar-se através de factos pertinentes de suporte (descrição dos atos integrantes da alegada conduta impositiva).

Termos em que também nesta parte não pode acolher-se a pretensão da impugnante.

Por fim, pretende a impugnante que a matéria dos art.º 78.º e 79.º, por relevante e controvertida, seja objeto de produção de prova (cfr. fls. 13 da alegação de recurso), muito embora nas conclusões 6.ª e seg. defenda um juízo imediato de “provado”, com aditamento aos “factos provados”.

Ora, tratando-se de casamento ocorrido em ../../1978 e sujeito ao regime da comunhão geral de bens (ponto 1 dos factos provados), e conhecido que foi invocada a exceção, para além do mais, do abuso do direito, bem como a ausência de enriquecimento (da R.) à custa do património do A. (onde entronca a questão da invocada omissão de partilha de bens/receitas que o demandante teria, indevidamente, feito seus, em detrimento da esposa, por se tratar de ativo que ingressara no património comum), saber, então, se houve, ou não, partilha do valor alegadamente recebido da venda da quota-parte de metade indivisa do bem imóvel (moradia) doado ao A. em 14/08/1980 pelos seus pais, venda essa, datada de 09/06/2017, ao irmão, ficando o A. com a totalidade do preço, no montante de € 102.280,00 ([7]), é matéria que pode assumir relevância para a boa decisão da causa, vistas as plausíveis hipóteses de solução da questão de direito.

É certo, como argumentado na fundamentação jurídica do saneador-sentença em crise, que «(…) o pedido julgado procedente não se funda em enriquecimento sem causa, nem em qualquer anulabilidade».

Por isso se considerou ali «prejudicadas as excepções deduzidas pela ré», conclusão com que, todavia, não pode, sem mais, concordar-se, atento o contexto e as vicissitudes do caso.

Com efeito, está provado que o A./Recorrido declarou/assumiu, formal e reiteradamente, que foi reposta a importância das tornas devidas, prescindindo do respetivo valor, enquanto a contraparte, por sua vez, declarou não ter ainda efetuado o pagamento.

E é sabido que na decisão em crise foram aquelas declarações do A. consideradas, tal como invocado pelo mesmo, como não sérias e, assim, juridicamente inexistentes.

Para tanto, ponderou o Tribunal a quo:

“(…) assumido pela ré que não foi feito o pagamento das tornas, no momento em que é feita a declaração constante da escritura correspondente a esse pagamento e respectiva quitação, não desconhecia aquela que a mesma não correspondia à verdade.”.

Esta explanação é feita com reporte aos pontos 6 e 7 dos factos dados como provados, dos quais se retira que, numa mesma data (27/02/2014), uma das partes (A.) declarou, formalmente, prescindir do recebimento do valor das tornas a liquidar pela ex-mulher, desonerando-a do respetivo pagamento [dita declaração tida por não séria], enquanto a outra parte (R.), declarou que “não efectuou até à presente data, o pagamento (…)”.

Neste contexto ([8]), não nos parece, salvo o devido respeito, poder afastar-se, sem mais, a relevância da matéria de exceção tendente a esbater o pedido do A., este direcionado, em derradeira análise, ao pagamento do valor das tornas.

Se o A. vem exigir agora – ação intentada em 2023 (quando a partilha é de março de 2009) – esse pagamento, no valor de capital de € 110.811,21, a título de dívida de tornas ou, subsidiariamente, com base no enriquecimento sem causa, e a R., por seu lado, em defesa por exceção, invoca o abuso do direito, para além da inexistência de enriquecimento indevido, por o A. ter feito seus – e omitido a apresentação à partilha – bens/ativo integrante do património comum (mormente o valor/preço aludido de “€ 102.280,00”), então importa apurar, no quadro dessa defesa por exceção, tendo em conta as plausíveis possibilidades de solução jurídica do pleito, quanto a tal factualidade (tida por controvertida pela própria impugnante), a alegada sob o dito art.º 78.º da contestação, em vez de uma imediata decisão do litígio, sem que ocorra pronúncia probatória sobre aquela específica factualidade alegada, que não foi dada como provada nem como não provada, e sem decorrente resposta, no plano jurídico, à questão do abuso do direito (considerada prejudicada).

Ou seja, os autos devem prosseguir para produção de prova quanto à dita factualidade do art.º 78.º da contestação (matéria de exceção perentória), termos em que, com todo o respeito devido, é prematura a operada decisão final em sede de saneador-sentença.

Donde que deva ter-se a factualidade em apreciação como ainda controvertida, devendo à R./Apelante ser permitido fazer prova, designadamente pessoal (como oferecido em sede de requerimento tempestivo de provas), sobre a matéria, com total garantia, assim – como haverá de facultar-se –, do princípio do contraditório, também no plano probatório, afastando-se eventuais situações de indefesa, que o art.º 20.º, n.º 4, da CRPort. proíbe ([9]).

O que obriga à revogação da decisão em crise, para prosseguimento dos autos e oportuna produção de provas em audiência final.

Quanto, por fim, à matéria alegada sob o art.º 79.º, deve dizer-se que a respetiva materialidade se conjuga com a do art.º 20.º da mesma contestação, com o seguinte teor: «A quota societária titulada pelo A. no A... Lda, sita na Rua ..., com valor nominal de € 1.666,67 (1/3) do capital, figurou no inventário no valor nominal mas, no mercado valia, pelo menos, € 30.000,00».

Daí que a R. tenha alegado (dito art.º 79.º) que essa quota social comportava avaliação no mercado em pelo menos € 50.000,00.

Assim sendo, no contexto referido dos autos, também esta factualidade, por relevante perante a matéria de exceção aludida, deverá ser sujeita à prova, com o prosseguimento da ação nos moldes apontados.

É que, à luz do preceituado nos art.ºs 591.º, n.º 1, al.ª d), e 595.º, ambos do NCPCiv., findos os articulados, deve ser proferido despacho saneador, destinado a conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais suscitadas pelas partes ou de conhecimento oficioso, bem como a conhecer imediatamente do mérito da causa, desde que o estado do processo o permita [al. b) do n.º 1 do art.º 595.º].

Ora, tal conhecimento de meritis apenas deve ter lugar se a matéria de facto relevante para a decisão da causa já estiver estabelecida como provada, pelo que importará, ainda agora, a consideração, na fundamentação de facto, de todo o factualismo relevante, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Em suma, procedendo nesta parte a apelação (cfr. conclusão 10.ª), deve ser revogada a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos, com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova (art.º 596.º do NCPCiv.), com vista a ulterior audiência final, onde haverão de ser produzidas as provas pertinentes oferecidas, ficando, por isso, prejudicadas as demais questões suscitadas.

Uma última nota, relativamente à matéria substantiva das declarações não sérias, que a parte recorrente também coloca em causa.

Como dito na decisão em crise, citando doutrina a respeito, estamos perante «vício em que existe uma divergência entre a vontade e a declaração, a qual, apesar de intencional, não visa enganar ninguém, já que é feita na expectativa de que a falta de seriedade não passe despercebida».

E como referem Pires de Lima e Antunes Varela, são “declarações não sérias as jocosas (causa ludendi), cénicas ou didácticas. Nelas não há o intuito de enganar e há mesmo a expectativa do declarante de que não sejam tomadas a sério” ([10]).

Daqui se retira que a integração no âmbito das declarações não sérias sempre pressuporá a verificação de um elemento objetivo e outro subjetivo.

No âmbito objetivo, importa a verificação de factos de suporte demonstrativos, desde logo, da divergência entre a vontade e a declaração.

Mas, a mais disso, tem de demonstrar-se o elemento subjetivo, a intencionalidade subjacente (a intenção do declarante ao emitir a declaração desconforme/divergente).

Enquanto divergência entre a vontade e a declaração negocial, a figura jurídica substantiva convocada (cfr. art.º 245.º, n.º 1, do CCiv.) pressupõe, então, a verificação, com factos de suporte (cujo ónus da prova, no caso, cabe ao A., nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), de um elemento objetivo (mormente, a divergência entre a vontade e a declaração) e outro subjetivo (o caráter voluntário da conduta e a dita intenção do declarante, com motivo determinado, ao emitir a declaração desconforme) ([11]).

Ou seja, no caso, lida a parte fáctica da decisão em crise, faltam, salvo o devido respeito, factos de suporte desse elemento subjetivo/intencional: factualidade demonstrativa de que o declarante, por motivo determinado, apesar do sentido do declarado, não visava enganar ninguém, agindo na expectativa de que a contraparte perceberia a falta de seriedade do assim declarado e, por isso, não o tomaria a sério.

Termos em que importará, a final, que seja revista esta verificada lacuna fáctica da decisão.

Vencido, o A./Recorrido suportará as custas da apelação (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

                                               ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): (…).

                                               ***

V – Decisão
Pelo exposto, julgando-se procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos, com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova (art.º 596.º do NCPCiv.), nos moldes anteriormente mencionados – factualidade dos art.ºs 78.º e 79.º, em conjugação com o art.º 20.º, da contestação –, com vista a ulterior produção de provas em audiência final.

Custas da apelação pelo A./Recorrido (vencido no recurso).

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 16/09/2025

Vítor Amaral (relator)

João Moreira do Carmo

Alberto Ruço


([1]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([2]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão de outras.
([3]) Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, não pode olvidar-se, nesta latitude do sistema, “o juízo de oportunidade do juiz”, definindo a lei que “pode a tentativa de conciliação ter lugar”, havendo, então, um poder “discricionário” do juiz quando a iniciativa é oficiosa – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 654.
([4]) Sobre a finalidade da tentativa de conciliação, cfr. também Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 693 e seg..
([5]) Cfr. Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., p. 57.
([6]) Vide Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, p. 143.
([7]) Sob o art.º 19.º da contestação havia sido alegado que “A venda efetuada a favor do irmão do A., de nome DD, pelo preço de €102.280,00 (…) reverteu exclusivamente para o A.».
([8]) Note-se que, segundo o alegado pelo próprio A. (na sua petição inicial), ocorreram sucessivas declarações desconformes com a verdade, com opacidade perante a Administração Tributária, não se compreendendo – nem os factos apurados no saneador-sentença permitem compreendê-lo –, desde logo, a motivação para um quadro em que, apesar de exarado na escritura ter o A. recebido as tornas, tal recebimento não tenha acontecido: se o demandante não recebeu as tornas, para quê ter declarado, ab initio, que as havia recebido? Ainda que o tivesse feito de forma não séria (apesar de por meio notoriamente formal), qual a razão/motivação que o levou a agir assim (dar, falsamente, como satisfeito um seu crédito que estava por pagar)?
([9]) Estabelece esta norma constitucional que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão (…) mediante processo equitativo”.
([10]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 231.
([11]) Ver Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 9.ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2003, ps. 149 a 151, 218 e 219.