| Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | LUÍS CRAVO | ||
| Descritores: | CONTRATO DE COMODATO INDICAÇÃO DA FINALIDADE PRAZO | ||
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| Data do Acordão: | 09/16/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CÍVEL – JUIZ 2 | ||
| Texto Integral: | S | ||
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| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 1129.º, 1137º, Nº1, E 1140.º DO CÓDIGO CIVIL | ||
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| Sumário: | I – Do art. 1137º do C. Civil resulta que o contrato de comodato cessa ou termina quando finde o prazo certo porque foi convencionado; ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido; ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija. II – O uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável. III – Apurando-se in casu um acordo de “comodato” entre as partes, no ano de 1995, no sentido de o imóvel em causa se destinar à habitação da ré e da sua família, que ali ficariam a residir até ao fim da sua vida, importa concluir no sentido de que tendo sido acordado o uso da coisa por toda a vida da comodatária aqui Ré, o seu termo, embora incerto, era determinável. IV – Assim, não tendo ainda findado ou terminado o uso determinado para que o dito prédio foi concedido à comodatária – para sua habitação e ali viver – , uso delimitado no tempo – enquanto for viva – , à luz da disciplina do art. 1137º, nº1 do C.Civil, não há obrigação de restituir enquanto se mantiver o uso de habitação familiar do imóvel e a situação habitacional que presidiu à entrega do imóvel à comodatária aqui Ré. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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| Decisão Texto Integral: | * Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1] * 1 – RELATÓRIO AA intentou ação declarativa de condenação, sob a forma única de processo comum, contra BB, deduzindo pedido de que, na procedência da ação, se: - Declare a autora legítima e exclusiva usufrutuária do prédio em discussão; - Condene a ré a entregar o imóvel e o seu usufruto à autora; - Condene a ré ao pagamento da quantia de € 800; - Condene ainda a ré no pagamento de compensação por ocupação indevida do imóvel e pela não restituição do prédio, pelo valor locatício de € 800, desde a presente data até efetiva entrega do imóvel; - Condene a ré nos juros de mora vencidos e vincendos, a taxa legal; - Condene ainda a ré no pagamento das custas e demais encargos com o processo. Para tanto alegou, em suma, que: é mãe da ré e é a exclusiva usufrutuária do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial, o qual a ré tem habitado de forma gratuita nos últimos anos, por permissão sua e do seu falecido marido, sendo a ré dona da nua propriedade do imóvel; no entanto, no início do ano, surgiram acentuados conflitos entre autora e ré, os quais se agudizaram, pelo que a autora não pretende continuar a permitir que a ré e seu agregado habitem de forma gratuita no identificado prédio por não merecer a generosidade de sua mãe e falecido pai, considerando as recentes atitudes e a desonra perante estes. * A ré deduziu contestação, com reconvenção, pedindo, em suma, a extinção do usufruto e, subsidiariamente, que seja declarada a existência de um contrato de comodato nos termos acordados pelas partes, condenando-se a autora a reconhecer que o mesmo produzirá todos os efeitos até à morte da ré, e, a ser procedente que a ré deverá restituir o uso do bem imóvel, de que é proprietária, à autora, que seja esta condenada a pagar uma indemnização pelos danos não patrimoniais provocados à ré, em valor não inferior a 20.000,00€; alegou, ainda, o abuso do direito. * Foi proferido despacho pré-saneador, com convite ao aperfeiçoamento do articulado apresentado pela ré e convite ao contraditório por parte da autora quanto à matéria de exceção (de carácter substantivo) alegada pela ré. * A ré apresentou contestação/reconvenção aperfeiçoada, em 15.03.2024, com a ref.ª citius 3334004. * A autora apresentou resposta à matéria de excepção e réplica. * Foi proferido despacho-saneador por escrito, sem convocação de audiência prévia, atento o facto de as partes terem discutido todas as questões por escrito e nada tendo oferecido em contrário à não convocação de uma audiência prévia; foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. * Foi realizada audiência final, gravada e documentada em ata. Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados e não provados, relativamente aos quais se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que procedendo a pretensão da autora de ver judicialmente reconhecido o seu direito de usufruto relativamente ao prédio ajuizado, sucedia que face ao conjunto da factualidade apurada, era de concluir que os intervenientes no contrato de “comodato” haviam acordado que a ré usaria o imóvel para nele habitar com a sua família, até ao final da sua vida, isto é, enquanto perdurasse esse fim, o da habitação da família, pelo que improcedia a pretensão da autora em ser-lhe entregue o imóvel e o usufruto (bem como os inerentes pedidos de condenação da ré no pagamento das quantias peticionadas pela ocupação do imóvel e juros), sendo certo que face a este entendimento se considerava prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas nos autos (sem prejuízo de se adiantar que estaria aqui em causa uma situação enquadrável no disposto no art. 334º do Código Civil – paralisação do direito de denunciar o contrato por exigência de boa fé/abuso do direito), o que tudo se traduziu no seguinte concreto “Dispositivo”: «IV. DECISÃO Em face do exposto: A. Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência: a) Declaro a autora AA legítima e exclusiva usufrutuária do prédio identificado no ponto 2 dos factos provados; b) Absolvo a ré BB de todos os demais pedidos contra si deduzidos pela autora AA. B. Julgo a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência: a) Julgo não verificada a excepção de extinção do usufruto aqui em discussão, pertencente à autora AA. c) Declaro a existência de um contrato de comodato celebrado entre a autora e a ré, tendo por objecto o imóvel identificado no ponto 2 dos factos provados, destinado a habitação própria da mesma e do seu agregado familiar, até ao final da sua vida (da ré), o qual não se mostra validamente denunciado. b) Consigno que os demais pedidos deduzidos pela ré ficam prejudicados pela decisão supra. C. Condeno as partes no pagamento das custas do processo, na medida do respectivo decaimento, sendo este de 65% para a autora e de 35% para a ré. 
 * Registe e notifique. » * Inconformada, apresentou a Autora recurso de apelação contra a mesma, cuja alegação finalizou com as seguintes conclusões: «1ª O tribunal “a quo” fundamentou a improcedência dos pedidos dos factos provados, na validade do comodato perpétuo; e no abuso de direito. 2ª Os factos dados como provados no nº19, 20 devem ser dados como não provados. 3ª O tribunal “a quo” considerou tais factos como provados pela conjugação dos depoimentos das testemunhas, CC, DD, EE, FF, GG, e HH. 4ª A recorrente não se conforma que tais factos tenham sido considerados provados, pois existe um erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente, o que resulta dos seguintes depoimentos: A R. BB, com depoimento gravado no sistema informático integrado no sistema Citius, no dia 16/01/2025, desde as 11.20h às 12.24h., cujas passagens se ressalvam de 02.54 min. a 05 min; 10 min. a 14.15min.-; e 25 min a 26.23 min. HH, com depoimento gravado no dia 16/01/2026 desde as 15.44h até as 16.15 min., cujas passagem se ressalva de 5-25 min. a 16.15min.. DD, testemunho gravado no dia 4/2/2025 desde as 10.17h a 10.28h., cuja passagem de 2.19min. a 4.38 min. ressalvamos. FF, com depoimento gravado no dia 04/02/2025 desde 9.52h a 10.08h, e passagem de 04min. a 5.56 min. se ressalva. EE, depoimento gravado no dia 04/02/2025, desde as 10.08h às 10.16h, cujas passagens se ressalvam, de 02min. a 03.07min. e 4.33 min a 6 min. Finalmente, de CC, depoimento gravado no dia 16/01/2025 desde as 14.40h às 14.54h, cuja passagem se ressalva de 9.52 min. a 12.13 min. 5ª A A. e o falecido marido ao comprarem o usufruto e a R. adquirir a nua propriedade fizeram-no para se salvaguardarem, no futuro, da atitude da filha e ainda em caso de necessidade poderem beneficiar do bem. Assim, toleraram à filha, em solteira, que aí habitasse e posteriormente com a sua família. Tal continuaria a ser assim caso a R., apesar das dificuldades de consenso entre as partes, caso não passassem a existir processos judiciais. Não é normal que uma mãe tenha de continuar a “suportar” a filha, permitindo que habite um imóvel do qual pode retirar rendimento quando existem várias acções judiciais em curso entre ambas. 6ª Não se pode exigir a uma mãe que continue a emprestar o imóvel à filha quando existem conflitos judiciais entre ambas, a forma mais clara de litígio entre as pessoas e que leva às maiores animosidades. Nem pode resultar dos depoimentos das testemunhas referidas, vagos, imprecisos e sem conhecimento directo dos factos, a não ser com suposições, divagações e conclusões pessoais para se concluir, acordaram com esta que o dito imóvel se destinava à habitação da ré e da sua família, que ali ficariam a residir até ao fim da sua vida, sem que eles viessem a exercer o seu direito Como, quando, em que local, de que forma se desenrolou tal acordo para a vida?? 7ª Não se entende a conclusão do tribunal “a quo” que ficou convencido do empréstimo vitalício tal como afirma na pag.09 da sentença recorrida que não concebe como um casal com tanto património tivesse imposto à filha alguma condição de virem a exercer o seu direito ao usufruto, quando não esta provado qualquer facto quanto à extensão do património imobiliário da A.. Trata-se de uma conclusão sem assento em factos provados o que está vedado ao julgador. 8ª Assim, devem os factos serem considerados não provados os factos impugnados, pois nada resulta que a A. emprestasse para a vida o imóvel à R., independentemente da convicção que esta tinha de utilização do apartamento. Alterando-se a resposta à matéria de facto acima impugnada falece a argumentação do tribunal “a quo” devendo proceder as alegações e os pedidos da A. formulados na P.I. 9ª Alterando-se ou não a matéria de facto supra impugnada, considera a recorrente que o contrato de comodato não consente a sua subsistência indefinida e, ainda, que a verificação do abuso de direito não seria susceptível de paralisar o direito à denúncia da A. 10ª O tribunal “a quo” qualificou o contrato verbal dos autos como um comodato para que a R. o utilizasse para o fim específico de habitação familiar. Conclui dizendo que não há obrigação de restituir o imóvel enquanto este continuar a ter esse uso concreto. Alicerçou o tribunal “a quo” a impossibilidade da denúncia livre na interpretação que fez do disposto no art.1137º nº02 do CC. 11ª Considera a recorrente que o tribunal fez errada interpretação de tal preceito legal. 12ª No contrato de comodato no qual as partes não convencionaram prazo certo para a restituição ou não estipularam prazo algum para a restituição, rege o disposto no artigo 1137.º nº2 do Código Civil segundo o qual o comodatário é obrigado a restituir a coisa entregue logo que assim o seja exigido pelo comodante (denúncia ad nutum). 13ª Estando em causa um contrato gratuito, não se deve aceitar que o comodante haja de permanecer vinculado por período de tempo indeterminado que pode ser o da própria vida do comodatário. De resto, num contrato intuitu personae e gratuito - como é o comodato – claramente que não se pretendeu que o comodante ficasse na contingência de não poder reaver a coisa dada em cómodo, no caso dos autos basta aferir da ordem natural da vida, segundo a lei da natureza, a A. falecerá antes que a filha, a ora R. 14ª Quando a coisa é entregue para uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma determinada finalidade, e não a utilização da coisa em si mesma. Não se traduz em comodato para uso determinado o mero empréstimo da casa para habitação Não seria, por isso, à luz do uso determinado da coisa que o comodante ficaria impedido de exigir a restituição “ad nutum”, nos termos do art. 1137.º, n.º 2. 15ª Apenas se trata de uso determinado quando se delimita temporalmente a necessidade que o comodatário visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai perdurar. Um uso genérico e abstrato susceptível de subsistir indefinidamente atingiria a própria noção de comodato plasmada no art. 1129.º, que integra a obrigação de restituir e, assim, revela o carácter temporário do uso. Consequentemente, no caso em apreço, a comodatária está obrigado a restituir a coisa logo que lhe seja exigida, nos termos do art.1137.º n.º 2 do CC, extinguindo-se o comodato, pelo que o tribunal “a quo” fez errada interpretação deste preceito legal. 16ª Assim, a melhor interpretação a considerar do art.1137.º do CC é a seguinte, um contrato celebrado pela duração da vida do comodatário, pelo qual uma pessoa consente à outra a utilização de uma casa para habitação, é um contrato de comodato e é um contrato em que o uso concedido ao comodatário é temporário, tem a duração da vida remanescente deste, o que equivale à aposição de um termo incerto. A morte do comodatário é um termo incerto. Não pode admitir-se que o comodante não possa exigir a restituição da coisa no comodato de imóvel para satisfação de uma necessidade permanente do comodatário: a de habitação ou comodato vitalício. De outro modo, o comodante corria o risco de nunca recuperar a coisa comodatada, que é sua. 17ª Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de prédio para habitação do comodatário. Não tendo o comodato em causa uso determinado, nem prazo certo é subsumível ao disposto no n.º 2 do artigo 1137.º do Código Civil. 18ª Assim, pode dizer-se que a recorrente exerceu o seu direito de denúncia ad nutum, previsto no art. 1137.º, n.º 2. 19ª Tendo ficado provada a deterioração das respectivas relações pessoais e familiares entre A. e R. (factos provados 11), não é exigível manter um vínculo quebrado há tantos anos, também se poderia considerar que a A. exerceu, ao abrigo do art.1140.º, o direito de resolução do contrato por justa causa. Na verdade, o comodante pode resolver o contrato se para isso tiver justa causa, sendo que justa causa será todo o facto susceptível de determinar a inexigibilidade ética e jurídica da subsistência do contrato, e que pode derivar tanto da violação das obrigações legais, como da violação de deveres laterais de protecção, fundados na confiança e na boa-fé, reforçados in casu pela natureza gratuita do contrato. Em suma, tanto o direito de denúncia ad nutum como o direito de resolução por justa causa consentem que os proprietários/usufrutuários mais facilmente emprestem as suas coisas porque sabem que o seu altruísmo não lhes causará problemas no futuro. 20ª Assim, interpretando-se o art.1137º do CC nos termos acima expostos terá de se considerar extinto o comodato. E considerar-se, inclusive, a possibilidade de resolução nos termos do art.1140º do CC de um empréstimo feito a uma filha que criou vários conflitos, exigindo o pagamento com juros de valores investidos numa propriedade dos próprios pais! 21ª Provou-se nos nº12 a 14 dos factos provados que por carta de 17/11/2023 foi a R. interpelada pela A. para entregar a casa ou passar a pagar uma renda de 800€/mês, a partir de 01/12/2023, pelo que há que reconhecer que o contrato findou, pelo menos no fim desse ano, a partir de 01/12/2023 face à rejeição da R. Pelo que, incorreu a R. em mora no cumprimento daquela obrigação, com a inerente obrigação de indemnizar a A., que se viu impedida de proceder à utilização do usufruto arrendando o imóvel a terceiro. Pelo que, deve a R. ser condenada a pagar à A. a quantia de 800€ mensais 01/12/2023 até integral e efectivo pagamento. Sendo o crédito indemnizatório em apreço líquido, fundando-se em responsabilidade civil por facto ilícito é de concluir, ante o disposto nos artigos 805.º e 806.º do CC, que, quanto à obrigação de indemnizar, a Ré se constituiu em mora com a sua citação, vencendo-se juros desde essa data sobre as quantias mensais. 22ª Não se vislumbra um abuso de direito por parte da A, tal como o configura o tribunal “a quo”. A conduta do agente, para ser integradora de abuso de direito terá, objectivamente, de trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, impondo-se que os factos apurados demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, no concreto, uma clara injustiça, o que não ocorreu. Quanto muito tal abuso, a verificar-se o que não se concede, não seria susceptível de paralisar o direito à denúncia da A. Nestes termos requer a V.Exªs se dignem considerar procedente e provado o presente recurso, e em consequência revogarem a douta sentença dando por procedentes os pedidos formulados na P.I.» * Apresentou a Ré contra-alegações a este recurso, das quais extraiu as seguintes conclusões: «a)-A Autora interpõe o presente recurso por não se conformar com a decisão que julgou, entre o mais, a ação parcialmente procedente e, em consequência, declarou a Autora legítima e exclusiva usufrutuária do prédio identificado no ponto 2 dos factos provados; Absolveu a Ré BB de todos os demais pedidos contra si deduzidos pela Autora AA e, ainda, julgou a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, julgou não verificada a excepção de extinção do usufruto, pertencente à Autora e declarou a existência de um contrato de comodato celebrado entre a Autora e a Ré, tendo por objecto o imóvel identificado no ponto 2 dos factos provados, destinado a habitação própria da mesma e do seu agregado familiar, até ao final da sua vida (da Ré), o qual não se mostra validamente denunciado, consignando que os demais pedidos deduzidos pela Ré ficam prejudicados pela decisão supra. b)-Como tal, vêm os Réus impugnar os factos provados nºs 19. e 20.. c).A Recorrente não se conforma que tais factos tenham sido considerados provados, pois, segundo a Recorrente, existe um erro na apreciação dos factos impugnados acima indicados, por os depoimentos em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente. (sublinhado nosso) d)-Ora, o Tribunal a quo, quanto à motivação da matéria de facto, no que concerne aos factos descritos, entre o mais, nos pontos 19 e 20 dados como provados, baseou-se na conjugação dos depoimentos das testemunhas HH, filho mais velho da Ré, GG, amiga da Ré há muitos anos, FF, amiga da Ré mas também de toda a família, tendo privado muitas vezes com a Autora e o falecido marido, EE, filho mais novo da Ré e DD, ex-marido e atual companheiro da Ré, que se afiguraram credíveis, com o teor das declarações de parte da Ré. e)-Para o Tribunal a quo, de facto, da prova produzida, mormente do depoimento dos filhos da Ré, principalmente o filho mais velho, HH, resultou evidente que o usufruto constituído pelos avós apenas serviria para obter spreads mais baixos e para ter uma garantia caso alguma coisa corresse mal com os companheiros dos filhos da autora e do falecido marido, de forma a garantir que o prédio da ré não ficasse para terceiros.(negrito nosso) f)-Ademais, resultou também claro para o Tribunal a quo, do depoimento da Autora, que o falecido II era muito ligado ao investimento e à melhor forma de rentabilizar o seu património, sendo que tinha um vasto património, designadamente, imobiliário, ficando também evidente que a relação entre a Autora e a Ré nunca foi das melhores, havendo implicâncias mútuas entre elas, mas que o mesmo não acontecia com o falecido II, que por várias vezes foi referido em sede de julgamento, por todos os que o conheciam, como sendo justo. g)-Para o Tribunal a quo a Ré, de forma credível e honesta, afirmou que o pai ia ajudando sempre o irmão, mas que sempre lhe disse que mais tarde a iria compensar, o que denota esse carácter justo, ainda que não o tenha chegado a fazer em vida. h)-Assim, para o Tribunal a quo ficou claro que “não se concebe como é que um casal com tanto património, designadamente, imobiliário, e tendo ajudado tanto o filho (como, aliás, resultou evidente do depoimento da autora, que declarou que o filho vive numa vivenda que é sua e do falecido marido, com muito melhores condições do que qualquer outro apartamento), tivesse imposto à filha (ou sequer ao filho, o que aqui não se discute) alguma condição para a possibilidade de virem a exercer o seu direito de usufruto caso necessitassem, já que esta era a casa onde a filha sempre morou com a sua família.” i)-“Neste conspecto, o Tribunal ficou convencido que o usufruto era realmente e apenas uma forma de garantia perante terceiros, não ficando patente o seu verdadeiro exercício por parte dos pais da ré durante todos estes anos. Tanto mais que do julgamento, mormente, do depoimento de parte da autora, também ficou evidente que o seu filho, a testemunha CC, mora numa casa na zona de Coimbra, com muito melhores condições que o apartamento da filha, aqui ré (e do próprio apartamento que havia sido comprado ao irmão da ré), o que levou ao Tribunal a confirmar a versão desta no sentido de existirem mais benefícios em relação ao seu irmão do que em relação a si e não ter chegado a ser compensada em vida do falecido pai.” j-“Pelo que não ficou minimamente demonstrado que os usufrutos constituídos nos imóveis dos filhos fossem com a intenção de um dia mais tarde os exercerem se precisassem. Neste ponto, refira-se que apenas a testemunha CC, filho da autora, foi ao encontro da versão desta, mas de uma forma que nos pareceu interessada, pouco espontânea e sem qualquer sustento noutra prova, fosse documental ou testemunhal.”. k)-Efetivamente, não corresponde de todo à verdade que o Tribunal “a quo” tenha errado na apreciação da matéria de fato, pelo contrário, o Tribunal a quo decidiu e bem, conjugando toda a prova. l)-A Autora AA, com depoimento gravado no sistema informático Citius, no dia 16-01-2025, desde as 10H32 min às 11H26 min, disse, entre o mais, na passagem 43.38 min a 44.29 min, que não precisa da casa hoje pois tem uma casa para habitação, tem as suas reformas, mas precisa é do valor do usufruto porque precisa da sua vida, de passear, tendo já uma excursão marcada para Roma para o mês de Março, precisa de gozar aquilo que ainda não gozou. m)-E, ainda, disse a Autora na passagem 44.51 min. a 45.20 min, a instância da Srª Meritíssima Juíza, quando perguntou à Autora se alguma vez o marido disse à filha (Ré) que podia viver na casa para sempre, a Autora respondeu que achava que não terá dito mas subentendia-se. n)-Com esta resposta da Autora não restam quaisquer dúvidas que a vontade da Autora e do seu falecido marido foi, aquando a aquisição do usufruto, no sentido de autorizar que a Ré e a sua família habitassem a casa de que eram usufrutuários, de forma gratuita, até ao fim dos seus dias, tendo sido prestada perante ela, no dia 26/Dezembro/1995 --data da celebração da escritura de compra e venda do imóvel--, e continuando a Ré e a sua família, ainda hoje, a habitar a casa, aí residindo de forma permanente, é inequívoca a manifestação da sua vontade de utilizar a casa nos termos autorizados pela Autora e seu falecido marido. o)-Isto foi confirmado também pela Ré BB, quando questionada, na passagem 24.52 min. a 25.04 min., se tinha a certeza que os pais tinham acordado com ela que ficaria a viver para o resto da sua vida na casa, a mesma respondeu “com certeza absoluta”. p)-Disse, também, a Ré na passagem 4.21 min. a 4.47 min. que o usufruto era uma forma de assegurar caso um dos filhos da Autora e do falecido marido, viesse a falecer antes de ter filhos; que o pai queria usar o usufruto como garantia para depois investir na bolsa e dar o valor do usufruto para baixar o spread e que uma casa era dela outra era do seu irmão. q)-E, ainda, na passagem 34.06 min. a 35.38 min., disse a Ré que a Autora nunca precisou da receber a renda da sua casa porque tem milhões em ações, tem casas, rendas, um milhão pelo menos em ações, muitas casas com rendas, e não precisa desta casa., tem casas na Amadora, no Cabo Carvoeiro, Coimbra, tem muitas casas, ela tem realmente muito. r)-.Na verdade, bastava ouvir Autora e Ré, pois foram ambas quem estiveram presentes à data da escritura de compra e venda do imóvel descrito nos autos bem como a aquisição do usufruto, uma vez que o ex-marido da Autora já faleceu, para se poder concluir que os conflitos existentes entre ambas, há pelo menos 8/9 anos, devido ao fato da Autora ter vindo a beneficiar o filho CC, estiveram na origem da presente ação. s)-Afinal a Autora precisa de exercer o direito de usufruto para poder gozar a vida, ir passear! t)-Por sua vez a Ré precisa do imóvel, cuja nua propriedade é sua, para viver, pois não tem outra habitação. u)A Autora afirmou que acha que não terá dito á Ré que alguma vez o marido disse à filha (Ré) que podia viver na casa para sempre, porém, acrescentou, mas subentendia-se. v)-Dispõe o n.º 1, do art.º 1137.º, do C.C.: “1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restitui-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.” w)-Desta disposição resulta que se não foi estipulado prazo certo, mas foi estipulado o uso que o comodatário poderia dar à coisa comodatada, a restituição da coisa só pode ser exigida após ter terminado esse uso. x)-Ora, entre a Autora, o seu falecido marido e a Ré não foi convencionado prazo certo para a restituição ou para o uso da coisa (do prédio urbano). y)-.O prazo é certo, sempre que, além de haver a certeza da verificação do facto, se sabe antecipadamente o momento da sua verificação – dies certus an certus. z).A morte da Ré é certa, mas o dia da sua ocorrência é incerto, pelo que estamos perante a fixação de um prazo incerto. aa)-.Quanto ao uso da coisa foi acordado que a casa comodatada se destinava à habitação da Ré e família. bb)-A Autora e o seu falecido marido, declararam permitir, de forma gratuita, que a casa de que eram usufrutuários fosse ocupada pela Ré, para ela e a sua família nela habitarem, enquanto fosse viva, pelo que o uso acordado ficou limitado no tempo=perpétuo cc).Assim, tendo sido convencionado que o comodato do imóvel se destinava a que a comodatária a habitasse até à sua morte, o comodante não pode exigir a restituição desse imóvel, enquanto a comodatária nela residir. dd)-.Pelo que não tendo ainda findado o uso convencionado para que o imóvel mencionado nos autos foi comodatado – o qual, em princípio, só ocorrerá com a morte da Ré, se esta lá continuar a viver - não se verifica o pressuposto legal para que a Autora possa exigir à Ré a restituição do dito imóvel, por cessação do contrato, à luz do art.º 1137.º, do C.C.. ee)-Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto nº TRP_0652373 de 15-01-2007. ff)-Assim, a Ré tem o direito de continuar a habitar o imóvel objeto da discussão nos autos, uma vez que tem por título um contrato de comodato celebrado com a Autora e o falecido marido II, que se encontra válido e vigente. gg)-Efetivamente, não pode, pois, a Autora, sob pena de violação do principio da boa fé imposto no artigo 762º, nº 2, do C.Civil, servir-se da rotura da relação familiar com a Ré, sua filha, para vir agora exercer o direito de usufruto. hh)-Na realidade, tal constitui um abuso de direito por parte da Autora, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil. ii)- E como o Tribunal a quo entendeu que a Autora não denunciou validamente o contrato de comodato celebrado com a Ré e por isso esta apresenta legitimidade para a recusa da entrega do imóvel, o Tribunal a quo, quanto ao abuso de direito, pronunciou-se e bem neste sentido: “…há que dizer que mesmo que assim não se entendesse, ou seja, mesmo que se considerasse válida a denúncia do contrato de comodato, por se considerar ser aplicável o disposto no artigo 1137.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, julga-se que estaria aqui em causa uma situação enquadrável no disposto no artigo 334.º do Código Civil.” jj)-No entanto, esta questão invocada nos autos ficou prejudicada pela decisão proferida pelo Tribunal a quo. Termos em que se requer, muito respeitosamente, a V. Exas. se dignem a negar provimento ao recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se a decisão recorrida. Assim, se fará JUSTIÇA.». * Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir. * 2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte: - impugnação da matéria de facto, devendo passar a dar-se como “não provada” a materialidade dos pontos de facto “provados” sob “19.” e “20.”; - incorreto julgamento de direito [pois que a A., na circunstância, tinha o direito de denúncia ad nutum do “comodato” (art. 1137º, nº2 do C.Civil), porque devia considerar-se a possibilidade de resolução nos termos do art. 1140º do C.Civil, acrescendo que não se vislumbrava um abuso de direito por parte da A. ao reclamar a restituição do imóvel da Ré]. * 3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado como “provado” pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação poderá ter um carácter “provisório”, na medida em que um dos recursos tem em vista a alteração parcial dessa factualidade. Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo: «1. A autora é mãe da ré. 2. Por escritura pública de compra e venda realizada no dia 26.12.1995, no ... Cartório Notarial ..., JJ e KK, na qualidade de sócios gerentes da sociedade por quotas com a firma “A..., Lda.”, venderam à ré, no estado de solteira, maior, a nua propriedade e à autora e falecido marido II, o usufruto, do seguinte prédio: – Fracção autónoma designada pela letra “T”, correspondente ao 5.º andar frente, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta ..., Lote n.º ...0, na cidade, freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...12 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31, com o valor patrimonial de 82.499,20€. 3. Mostra-se registada a favor da ré, BB, pela AP. 7 de 1998/03/05, a aquisição, por compra, da fracção autónoma referida no ponto 2. 4. Mostra-se registado a favor de II e da autora, AA, pela AP. 7 de 1998/03/05, o direito de usufruto sobre a fracção autónoma identificada no ponto 2. 5. A ré e o seu ex-marido, actual companheiro, habitam no imóvel acima identificado desde Janeiro de 1996 e, posteriormente, após o nascimento dos seus dois filhos, HH e EE, estes também o passaram a habitar. 6. A ré tem, assim, habitado de forma gratuita o identificado prédio uma vez que a autora e o seu cônjuge, ainda em vida, permitiram-lhe ali residir, conjuntamente com o seu agregado familiar, por ser sua filha e querendo o seu conforto e estabilidade. 7. A ré adquiriu a nua propriedade do imóvel em discussão com dinheiro doado pela autora e marido. 8. O direito de usufruto sobre o prédio pertencera continuamente, e durante aquele período, à autora e ao cônjuge. 9. II faleceu no dia 29.03.2023, pelo que a autora passou a ter em exclusivo o direito de usufruto. 10. Mesmo após a morte do cônjuge, a autora continuou a permitir a residência gratuita da sua filha, ora ré, e respectivo agregado familiar, naquele prédio. 11. A partir do ano de 2015, começaram a existir conflitos entre a autora a ré, o que justificou, inclusive, o afastamento completo entre ambas, que deixaram de se falar, a propósito de vários processos judiciais pendentes que envolvem não só autora e ré, como também outros elementos familiares, designadamente o Processo n.º 1193/15...., que corre nos termos do Juízo de Competência Genérica de Idanha-A-Nova, Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco. 12. A autora não pretende continuar a permitir que a ré e seu agregado habitem de forma gratuita no identificado prédio. 13. Em 17.11.2023, a autora enviou carta à ré, na qual consta o aviso de que terá de passar a pagar uma renda mensal, para ali permanecer a habitar, no valor de 800€ e a partir de 01/12/2023, inclusive. 14. Informando ainda que, se esse não for o seu entender, e em alternativa, que deve entregar o imóvel à usufrutuária, livre e desocupado de pessoas e bens. 15. Em 27.11.2023, e em resposta, a ré enviou carta à autora, referindo que rejeita ter de pagar qualquer renda à autora e ainda que não pretende abandonar o imóvel. 16. O usufruto da autora tem o valor de 12.974,88€. 17. O imóvel aqui em discussão tem o valor locatício de 810,26€ mensais. 18. A ré, no imóvel em discussão, que é a sua casa de morada de família, ao longo dos anos realizou várias obras de manutenção e conservação nomeadamente, colocação de portas e janelas com vidros duplos, móveis de cozinha, aparelhos de ar-condicionado e recuperadores de calor. 19. A autora e o seu falecido marido nunca habitaram no dito imóvel e nunca pretenderam utilizar o seu direito de usufruto do imóvel até à carta referida no ponto 13. 20. Na data da aquisição do imóvel, a autora e falecido marido, pais da ré, acordaram com esta que o dito imóvel se destinava à habitação da ré e da sua família, que ali ficariam a residir até ao fim da sua vida, sem que eles viessem a exercer o seu direito, porquanto os mesmos nunca iriam necessitar daquele imóvel, pois eram proprietários de outros imóveis. 21. Os conflitos entre a autora e a ré surgiram em 2015 essencialmente pelo facto de os pais da autora prestarem ajudas económicas ao filho, irmão da ré, em detrimento desta. 22. O que levou ao afastamento progressivo e à ruptura de relações familiares, deixando, inclusive, a autora de atender os telefonemas que a ré lhe fazia. 23. Entre a autora, o seu falecido marido e a ré não foi acordado qualquer prazo para a restituição ou para o uso do imóvel aqui em discussão. 24. A ré contava utilizar o bem imóvel até ao fim da sua vida, onde tem, juntamente com os seus filhos que, apesar de maiores, têm a sua vida ali fixada desde que nasceram, aí têm toda a sua vida pessoal, familiar e social inserida. 25. Com a presente acção, a ré sentiu-se ofendida perante a sua posição social e familiar. 26. O filho da autora, irmão da ré, tem um imóvel em condições idênticas ao do referido no ponto 2.» * Sendo consignado o seguinte em termos de factos “não provados” pelo tribunal a quo: «a) A autora e o seu agregado só têm habitado o imóvel em discussão desde os últimos anos. b) Foi no início do ano de 2023 que surgiram acentuados conflitos entre autora e ré. c) No processo referido no ponto 11, a ré procurou por inúmeras vezes criar uma falsa imagem de sua mãe, inventando uma série de questões que permitissem percepcioná-la de forma extremamente negativa e visando, dessa forma, a remoção daquela do conselho de família (entre outras ações). d) Face aos recentes acontecimentos, e ainda ao facto de que a ré tem vindo a invocar por inúmeras vezes e de forma negativa o nome da autora e do seu falecido pai, a autora sentido muito desrespeitada, encontrando-se visivelmente entristecida por todo este contexto, não esquecendo ainda o sofrimento que a tem acompanhado pela recente perda do seu marido. e) O referido no ponto 12 deve-se ao facto de a ré não merecer a generosidade de sua mãe e falecido pai, considerando as recentes atitudes e a desonra perante aqueles. f) A carta referida no ponto 13 teve subjacente a consideração pela autora de não haver necessidade de expulsar a sua filha daquela casa e deixá-la em situação de desalojada. g) A ré e o seu agregado familiar têm habitado de forma gratuita o dito imóvel pelo facto de a autora e o seu falecido marido terem permitido à ré ali residir desde solteira, com a obrigação de o restituir caso lhe fosse exigido. h) A ré sabia que utilizava o imóvel em causa por mera tolerância dos seus pais. i) A ré sempre disse que tinha intenção em adquirir uma moradia para aí viver com a família. j) A ré tinha a convicção de que o usufruto poderia terminar em qualquer altura. k) É a autora quem beneficia do usufruto do prédio referido no ponto 26, recebendo as rendas que gera. l) O usufruto da autora tem o valor de 16.499,84€.» * 3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz no alegado impugnação da matéria de facto, devendo passar a dar-se como “não provada” a materialidade dos pontos de facto “provados” sob “19.” e “20.”. Será assim? Apreciemos com o necessário pormenor e detalhe cada um dos pontos de facto questionados. Começando pela apreciação relativamente ao ponto de facto “provado” sob “19.”. O seu teor literal é: «19. A autora e o seu falecido marido nunca habitaram no dito imóvel e nunca pretenderam utilizar o seu direito de usufruto do imóvel até à carta referida no ponto 13. » Salvo o devido respeito, relativamente à redação deste primeiro ponto de facto, nem sequer se descortina qual é a verdadeira razão de discordância da A./recorrente, já que nunca particulariza na impugnação o que dele consta, nem aborda em concreto qual o eventual segmento do mesmo que entende não poder subsistir. Assim sendo e sem necessidade de maiores considerações, improcede a impugnação no que ao mesmo diz respeito. ¨¨ Ponto de facto “provado” sob “20.”, cujo teor literal é: «20. Na data da aquisição do imóvel, a autora e falecido marido, pais da ré, acordaram com esta que o dito imóvel se destinava à habitação da ré e da sua família, que ali ficariam a residir até ao fim da sua vida, sem que eles viessem a exercer o seu direito, porquanto os mesmos nunca iriam necessitar daquele imóvel, pois eram proprietários de outros imóveis.» A A./recorrente, para fundamentar a sua pretensão quanto a este particular [que este ponto de facto passasse a figurar como “não provado”], invoca a prova gravada, mais concretamente as declarações da Ré BB, os depoimentos das testemunhas HH [filho mais velho da Ré], DD [ex-marido e agora companheiro da Ré], FF [amiga da família], EE [filho mais novo da Ré] e CC [filho da Autora], transcrevendo pequenas súmulas avulsas do teor do relatado em audiência por cada uma delas. Na correspondente argumentação recursiva, a A./recorrente começa por sustentar que tribunal “a quo” considerou o facto em apreciação como “provado” «(…) pela conjugação dos depoimentos das testemunhas, CC, DD, EE, FF, GG, e HH», como, aliás, sublinhado na própria sentença, residindo o erro de apreciação precisamente em que “os depoimentos prestados em audiência”, conjugados com a restante prova produzida, impunham uma conclusão diferente, sendo certo que “os depoimentos prestados em audiência” a valorar com precedência seriam precisamente os primeiramente citados. Que dizer? Desde logo se constata que a Exma. Juiz a quo, na “motivação” que fez constar da sentença recorrida, invocou todas as referidas testemunhas e declarante, apreciando criticamente o que por cada uma delas foi dito em audiência, naturalmente incluindo os segmentos que a A./recorrente entende ser de valorar decisivamente nas alegações recursivas. Ora é precisamente por assim ser, que compulsados os depoimentos invocados – a cuja audição integral se procedeu! – se conclui que não existiu erro de julgamento neste particular, posto que os meios de prova produzidos em audiência não “impunham” uma decisão diversa [cf. art. 662º, nº1 do n.C.P.Civil], termo verbal este que obviamente tem um sentido e significado muito estrito, naturalmente muito restritivo do deferimento das alterações das decisões proferidas sobre a matéria de facto, donde ficarem de fora as situações em que os meios de prova “permitiam” uma decisão diversa… Vejamos. Desde logo importa sublinhar que este ponto de facto tem um contexto temporal muito preciso, a saber, que o “comodato” ajuizado havia sido acordado entre a Autora e falecido marido (pais da Ré) e a Ré, na data da aquisição do imóvel. Na medida em que essa aquisição teve lugar no longínquo ano de 1995 [cf. facto “provado” sob “2.”], é óbvio que seriam de valorar decisivamente quanto ao em causa neste ponto de facto, os depoimentos de quem tivesse presenciado um tal acordo ou que dele tivesse conhecimento direto (ao tempo). Sucede que sendo a esse tempo a Ré ainda solteira [cf. facto “provado” sob “2.”], ademais se apurou que «A ré e o seu ex-marido, actual companheiro, habitam no imóvel acima identificado desde Janeiro de 1996 e, posteriormente, após o nascimento dos seus dois filhos, HH e EE, estes também o passaram a habitar.» [cf. facto “provado” sob “5.”] Ora se assim é, temos que as testemunhas HH [filho mais velho da Ré], DD [ex-marido e agora companheiro da Ré] e EE [filho mais novo da Ré] ficam naturalmente excluídas daquele lote de pessoas com eventual conhecimento direto e pessoal do sucedido. O que igualmente se diga relativamente à testemunha GG [amiga da Ré há muitos anos], por não ter evidenciado qualquer conhecimento direto e pessoal do sucedido! E bem assim quanto à testemunha FF [amiga da família], pois que não obstante a razão de ciência invocada [amizade já do tempo do sucedido] apenas revelou um conhecimento indireto e vago do assunto (testemunha de “ouvir dizer”)... Resta-nos, assim, a testemunha CC [filho da Autora/irmão da Ré] e as declarações de Autora e Ré. Vejamos. Na medida em que se encontra sindicada a convicção alcançada pela Exma. Juiz de 1ª instância, impõe-se perscrutar a “motivação” expressa pela mesma na decisão recorrida. Na verdade, perfilhamos o entendimento de que quando há impugnação da matéria de facto e ao tribunal de recurso é impetrada uma decisão à luz do disposto no art. 662º do n.C.P.Civil, a “Fundamentação”/“Motivação” do tribunal a quo vai ser o objeto precípuo da atenção do tribunal de recurso, pois que o labor deste se orienta para a deteção de qualquer “erro de julgamento” naquela decisão da matéria de facto, em termos da apreciação e valoração da prova produzida (não podendo obviamente limitar-se à análise da coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto operada pelo tribunal a quo). Sem embargo, «não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento».[2] E assim o é em atenção ao entendimento de que a efetiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 662º do n.C.P.Civil), impõe que a Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo tribunal recorrido. É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento fixado no dito art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil, o qual vale com idêntica amplitude na 2ª instância. Vejamos então a “motivação” do Tribunal de 1ª instância, no que ao particular deste aspeto do acordo de “comodato” no ano de 1995 diz respeito: «(…) aquando do seu depoimento, a autora não pôs em causa que a ré morasse com a sua família desde sempre, pelo contrário, tendo afirmado que eles estavam lá há 30 anos e que a ré fez obras e manutenção ao longo dos anos, bem como também afirmou que não foi acordado qualquer prazo para que a ré ali residisse. Concretamente quanto às obras, muito embora a autora tenha referido que os vidros duplos e ar condicionado fora feito por si e o seu marido, tal não resultou da restante prova, antes pelo contrário, tendo sido credível, em sede de declarações de parte, a ré BB, no sentido de o andar modelo não englobar vidros duplos, ar condicionado entre outras coisas que foram sendo por si colocadas na casa. E estas declarações, que se nos afiguraram muito credíveis e espontâneas, foram corroboradas por outras testemunhas ouvidas em juízo, que também se apresentaram credíveis e sinceras, não obstante as relações que têm com a ré: HH, filho mais velho da ré, GG, amiga da ré há muitos anos, FF, amiga da ré mas também de toda a família, tendo privado muitas vezes com a autora e o falecido marido, EE, filho mais novo da ré, DD, ex-marido e actual companheiro da ré. Assim, a prova dos demais factos descritos nos pontos 19, 20, 21, 22, 24, 25 e 26 (sendo este também corroborado pelo testemunho do irmão da ré, CC) resultou da conjugação dos depoimentos daquelas testemunhas, que se afiguraram credíveis, com o teor das declarações de parte da ré. De facto, da prova produzida, mormente os filhos da ré, principalmente o filho mais velho, HH, resultou evidente ao Tribunal que o usufruto constituído pelos avós apenas serviria para obter spreads mais baixos e para ter uma garantia caso alguma coisa corresse mal com os companheiros dos filhos da autora e do falecido marido, de forma a garantir que o prédio da ré não ficasse para terceiros. Ademais, do depoimento da autora resultou também claro para o Tribunal que o falecido II era muito ligado ao investimento e à melhor forma de rentabilizar o seu património, sendo que tinha um vasto património, designadamente, imobiliário. Porém, também ficou evidente que a relação entre a autora e a ré nunca foi das melhores, havendo implicâncias mútuas entre elas, mas que o mesmo não acontecia com o falecido II, que por várias vezes foi referido em sede de julgamento, por todos os que o conheciam, como sendo justo. Acresce que a ré, de forma credível e honesta, afirmou que o pai ia ajudando sempre o irmão, mas que sempre lhe disse que mais tarde a iria compensar, o que denota esse carácter justo, ainda que não o tenha chegado a fazer em vida. Assim, não se concebe como é que um casal com tanto património, designadamente, imobiliário, e tendo ajudado tanto o filho (como, aliás, resultou evidente do depoimento da autora, que declarou que o filho vive numa vivenda que é sua e do falecido marido, com muito melhores condições do que qualquer outro apartamento), tivesse imposto à filha (ou sequer ao filho, o que aqui não se discute) alguma condição para a possibilidade de virem a exercer o seu direito de usufruto caso necessitassem, já que esta era a casa onde a filha sempre morou com a sua família. Neste conspecto, o Tribunal ficou convencido que o usufruto era realmente e apenas uma forma de garantia perante terceiros, não ficando patente o seu verdadeiro exercício por parte dos pais da ré durante todos estes anos. Tanto mais que do julgamento, mormente, do depoimento de parte da autora, também ficou evidente que o seu filho, a testemunha CC, mora numa casa na zona de Coimbra, com muito melhores condições que o apartamento da filha, aqui ré (e do próprio apartamento que havia sido comprado ao irmão da ré), o que levou ao Tribunal a confirmar a versão desta no sentido de existirem mais benefícios em relação ao seu irmão do que em relação a si e não ter chegado a ser compensada em vida do falecido pai. Resultaram também do julgamento imensas quezílias entre a família, mormente, noutros processos judiciais, as quais agudizaram as relações. Nessa medida, o Tribunal ficou plenamente convencido que a autora e o seu falecido marido, nunca tiveram, durante todos estes anos todos, até à carta referida no ponto 13, qualquer real interesse em um dia poder vir a usufruir do usufruto, nem tal era ponto assente entre eles e os filhos. De facto, por mais que também tenha ficado evidente uma certa “ganância” subjacente a este casal (autora e falecido marido) no sentido de permanentemente quererem rentabilizar o património, a verdade é que também ficou patente que no que toca à aquisição dos apartamentos com iguais condições para os dois filhos, pretenderam beneficiá-los, sobretudo à ré, que sempre ali morou com a sua família, pelo que não ficou minimamente demonstrado que os usufrutos constituídos nos imóveis dos filhos fossem com a intenção de um dia mais tarde os exercerem se precisassem. Neste ponto, refira-se que apenas a testemunha CC, filho da autora, foi ao encontro da versão desta, mas de uma forma que nos pareceu interessada, pouco espontânea e sem qualquer sustento noutra prova, fosse documental ou testemunhal. Com efeito, esta testemunha referiu que o seu imóvel, situado em ..., que lhe foi comprado pelos pais nas mesmas condições que o da ré (cfr. ponto 26) e sobre o qual também existe um direito de usufruto, estava arrendado e quem recebia as rendas era a sua mãe. Mas nenhuma outra prova corroborou essa versão, designadamente, prova documental. Por outro lado, a ré referiu que os problemas ocorreram a partir de 2015, confessando que a partir dessa data começou a exigir aos pais aquilo que os mesmos tinham dado ao filho CC, o que nos parece credível em face de toda a demais prova que corroborou essa versão e que acima ficou referida. Sendo que, existindo tantas quezílias e sendo evidente a propensão da autora para ajudar o seu filho CC, as relações não se tivessem agudizado apenas no início do ano de 2023, mas muito antes, sem que tenha surgido qualquer intenção de exercer o usufruto. Para além disso, a próprio autora, em depoimento de parte, afirmou que pretendia agora exercer o usufruto porque ia a uma excursão a Roma e queria aproveitar a vida, o que denota a intencionalidade subjacente à presente acção, mais consonante com a aversão da ré de que se trata de represália do que uma mera vontade de exercer um direito que até nos pareceu nitidamente esquecido até á presente data. Acresce a tudo isto a inverosimilhança do depoimento da autora no sentido de afinal ter sido a sua filha a beneficiada apenas pelo facto de a ter ajudado com os filhos quando o filho CC reside numa vivenda em Coimbra, pela qual não paga qualquer renda com a justificação de que “a usamos quando vamos ao hospital”. Tudo para concluir que não se apresentou credível a autora com a pretensa ofensa por parte dela e do falecido marido relativamente à ré. Por fim, diga-se, ainda, a incoerência que resultou também do seu depoimento ao afirmar que a ré recebeu uma determinada quantia da tia, sua cunhada e irmã do seu falecido marido, e que este lhe terá dito que “a BB devia estar presa”, quando essa quantia era supostamente da tia e esta faria com ela o que quisesse. Quando a autora foi confrontada com a razão de terem ficado tao ofendidos com o facto de a tia da ré lhe ter dado dinheiro que era dela e que ela faria o que quisesse com ele, a autora limitou-se a encolher os ombros sem saber responder, mais ressaltando à evidência a catadupa de litígios emergentes desta família. E mais se diga que sendo tão evidentes estes conflitos entre a autora e a ré, sendo que esta relação nunca foi a melhor, mesmo quando não havia conflitos, dificilmente se concebe por que razão nessa altura não tivesse logo sido exercido o direito de usufruto se realmente fosse intenção dos pais da ré algum dia virem a exercê-lo. Assim, em face dos depoimentos das testemunhas filhos da ré e marido, conjugados com as testemunhas GG e FF, o Tribunal não teve dúvidas em dar como provado que todos estes conflitos originados pelo facto de os pais da ré ajudarem financeiramente o seu irmão e ela pretender ser compensada, determinaram a ruptura das relações mormente em 2015, sentindo-se a ré ofendida com a posição ora tomada pela autora.» Que dizer então quanto ao acordo de “comodato”, no ano de 1995, no sentido de o imóvel em causa se destinar à habitação da ré e da sua família, que ali ficariam a residir até ao fim da sua vida? Desde logo que a “motivação” da sentença recorrida se encontrava particularmente elaborada de forma extensa e pormenorizada, distribuindo-se ao longo de mais de 6 páginas, com uma análise crítica da prova produzida (testemunhal, pericial e documental) relativamente a cada facto (ou conjunto de factos), quer os “provados”, quer os “não provados”. Ora, estabelece o nº 5 do art. 607º do n.C.P.Civil que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, exceto se a lei exigir, para a respectiva prova, alguma formalidade especial, o que não se verifica no caso concreto. Por outro lado, a jurisprudência é uniforme no entendimento de que a utilização da gravação dos depoimentos em audiência de discussão e julgamento não modela de forma diversa o princípio da prova livre ínsito no direito adjectivo, nem dispensa as operações de carácter racional ou psicológico que geram a convicção do julgador. O que bem se compreende, em virtude dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração consagrados no nosso ordenamento jurídico, em matéria de prova, no que à decisão sobre a matéria de facto operada pelo Tribunal de 1ª instância diz respeito. É também a jurisprudência unânime no entendimento de que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode em caso algum subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto. Deste modo, o uso pelo Tribunal superior dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados. Dito de outra forma: só existindo um erro evidente na apreciação da matéria de facto é que devem ser modificadas as respostas dadas aos temas de prova. Ademais, consabidamente, «na impugnação da matéria de facto, ao recorrente não basta fazer uma apreciação geral de toda a prova, fazendo dela a sua interpretação e tirar a conclusão de que todos os factos impugnados devem ser dados como provados na forma por si apontada. (…) [E]sta não é manifestamente a forma de alterar a matéria de facto, pela via da impugnação ampla, ou seja com base em erro de julgamento, em que na reapreciação da concreta prova se vai constatar se a testemunha disse ou não o que foi vertido na sentença, que não tem a ver com a valoração que o tribunal dá ao depoimento. Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum. Não se verifica o vício do erro quando o tribunal, face às versões contraditórias, justifica devidamente a sua opção.».[3] Por último, não deverá esquecer-se que a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: «Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.».[4] Será então que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar por positivamente “provado” um acordo de “comodato”, no ano de 1995, no sentido de o imóvel em causa se destinar à habitação da ré e da sua família, que ali ficariam a residir até ao fim da sua vida, que figura na sentença? À luz dos critérios e ensinamentos vindos de enunciar, afigura-se-nos claro e inequívoco que a resposta tem de ser negativa. Senão vejamos. É que tendo-se procedido à audição integral de todos os depoimentos convocados nas alegações recursivas, desde logo nos ressalta como apodítico que acabam por ser decisivamente de valorar as declarações de Autora e Ré quanto a esse concreto particular. Na verdade, no essencial, constata-se que as testemunhas supra referidas [HH, DD, EE, GG e FF], produziram depoimentos vagos, imprecisos e sem conhecimento directo dos factos, resvalando em grande medida para suposições, divagações e conclusões pessoais. Por outro lado, quanto à testemunha CC [filho da Autora/irmão da Ré] não podemos deixar de subscrever a apreciação crítica constante da “motivação” da sentença recorrida, a saber, «(…) filho da autora, foi ao encontro da versão desta, mas de uma forma que nos pareceu interessada, pouco espontânea e sem qualquer sustento noutra prova, fosse documental ou testemunhal»… Neste quadro, constata-se que a própria Autora, questionada pela Exma. Juíza de 1ª instância, se alguma vez o marido disse à filha (Ré) que podia viver na casa para sempre, a Autora respondeu que “achava que não terá dito, mas subentendia-se” [cf. gravação áudio, 44.51 min. a 45.20 min.]. Por sua vez, questionado à Ré se os seus pais lhe disseram que “era para ali viver para sempre sem qualquer condição”, a Ré respondeu afirmativamente, que os pais nunca falaram em nada até receber a carta do exercício do usufruto, nunca lhe passou pela cabeça que um dia poderiam querer usufruir [cf. gravação áudio, 5.36 min. a 6.16 min]. Ora se assim é, conjugando estas “declarações” com a restante prova produzida, mormente o depoimentos das testemunhas familiares diretos da Ré [ex-marido/companheiro e filhos] no sentido de que nunca ninguém falava que os pais da Ré lhe podiam exigir a casa, sendo até desconhecida a existência do usufruto, parece-nos ser razoável e lógico concluir – até por presunção natural e judicial! – que fora acordado entre os pais da Ré e esta, no momento da aquisição do imóvel a terceira pessoa, que a Ré gozava de um direito de usar (para habitação) o imóvel em causa, de forma perpétua/vitalícia, imóvel esse de que logo ab initio ficou titular da nua propriedade. Sendo certo que não existe efetivamente no nosso atual sistema jurídico-legal uma qualquer impossibilidade de ser utilizada para formar a convicção probatória sobre pontos de facto que se possam considerar “favoráveis” à parte, ou que tenha resultado das “declarações de parte” da mesma. Isto sempre no quadro da livre convicção probatória – que é o paradigma do nosso sistema (cf. art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil, expressamente mencionado no nº 3 do art. 466º do mesmo normativo). De referir que as “declarações da parte” podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar - congruentemente - outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento. Isto é, «a valoração das declarações de uma parte, que forem favoráveis a essa parte, fora do esquema típico do depoimento de parte poderá ser livremente valorada pelo julgador, ainda que com o apoio em outras presunções judiciais, ou valerá como indício ou princípio de prova, conquanto apoiado noutras provas ou em presunções naturais (presunções simples ou hominis) extraídas das regras da experiência.»[5] Não há, assim, como aprioristicamente denegar ou contrariar a potencialidade das “declarações de parte” na formação da convicção do juiz. Ora é por assim ser que em nosso entender não existiu qualquer erro de julgamento pelo tribunal a quo quanto a este particular. Na verdade, a nosso ver, dúvidas não existem de que as “declarações de parte” da Ré [que, diga-se, divergem do “depoimento de parte”], se devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado, na circunstância mostraram-se suficientemente corroboradas pelo depoimento das testemunhas supra referidas em último lugar. Donde, cremos que está encontrada a resposta para o ponto de facto “provado” sob “20.”, a saber, no sentido da improcedência total da impugnação que versava sobre o mesmo. * 4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Cumpre agora entrar na apreciação da questão neste particular supra enunciada, esta já diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito [pois que a A., na circunstância, tinha o direito de denúncia ad nutum do “comodato” (art. 1137º, nº2 do C.Civil), porque devia considerar-se a possibilidade de resolução nos termos do art. 1140º do C.Civil, acrescendo que não se vislumbrava um abuso de direito por parte da A. ao reclamar a restituição do imóvel da Ré]. Será assim? Para nos elucidar e orientar na apreciação e decisão correspondente, importa rememorar brevemente o quadro dogmático do contrato de “comodato” em causa. Vejamos então. Segundo o art. 1129º do C.Civil, «[C]omodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.». Sendo que, na paradigmática definição que nos é dado em aresto do nosso mais alto Tribunal «É, por natureza, um contrato gratuito. Esta nota da gratuitidade – ausência de contrapartida pelo direito pessoal de gozo da coisa - permite, independentemente do regime que as partes estipularem, distingui-lo de outros contratos, precisamente pela ausência de contrapartida. É também um contrato temporário – sobre o comodatário recai a obrigação de restituir -, obrigacional, real (quoad constitutionem) – é graças ao comportamento do comodante que o vínculo jurídico surge; a lei não impõe ao comodante a obrigação de entrega da coisa -, unilateral (só cria obrigações para o comodatário - art. 1135.º) ou bilateral imperfeito (não sinalagmático: cria obrigações também para o comodante que, porém, não se encontram numa relação de interdependência e reciprocidade com aquelas do comodatário), pessoal (não se empresta uma coisa, móvel ou imóvel, a qualquer pessoa; existe, via de regra, um laço pessoal entre os interessados que conduz à celebração do contrato) e não formal (art. 219.º) – a entrega da coisa não se traduz numa forma. De resto, é a natureza pessoal do contrato que justifica a disciplina consagrada no art. 1140.º, que, perante a deterioração das suas relações com o comodatário, confere ao comodante o direito de resolução. Por último, trata-se de um contrato em geral celebrado no interesse do comodatário, porquanto a coisa é dada para cómodo de quem a recebe.»[6] Não obstante o vindo de citar, importa desde já sublinhar que, na verdade, se verifica a ausência de qualquer menção, na noção de comodato consagrada no art. 1129º do C.Civil, ao seu carácter temporário, ao contrário do que sucede, por expressa previsão do art. 1022º do C.Civil, no contrato de locação, que implica sempre o gozo temporário de uma coisa. Assim, para além da ausência de fixação legal de um prazo máximo, s.m.j,, a permissão do comodato vitalício, ou mesmo de pais para filhos, é também o que decorre, de forma tácita mas evidente, do regime estabelecido no art. 1141º do C. Civil. Com efeito, se é certo que esse preceito legal prevê que o contrato caduca pela morte do comodatário, a verdade é que, não constituindo essa «uma disposição imposta por razões de ordem pública, é de admitir que os comodantes convencionem a continuação do comodato por morte» do comodatário.[7] Neste aspeto do prazo de duração do contrato, aprofundemos ainda um pouco mais o regime legal. A previsão legal para a restituição colhe-se no art. 1137º do mesmo C.Civil onde se estabelece que, se não tiver sido fixado “prazo certo” e se o empréstimo tiver sido para “uso determinado”, o comodatário deve restituí-la logo que o uso finde (cf. nº1 do preceito), sendo que, se não foi fixado nem prazo nem uso, a restituição tem lugar logo que o comodante a exija (cf. nº2 do preceito). Ora, quanto à dimensão da extensão temporal como traço do contrato, releva-se na jurisprudência do STJ o alcance de que o «(…) uso determinado a que se refere o art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável»[8]. Sendo que em recente douto aresto do nosso mais alto Tribunal[9] foi sublinhado o seguinte: «(…) a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido, maioritariamente, que o «uso determinado», a que se alude no artigo 1137.º, do Código Civil, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada, mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável (...) No quadro normativo vigente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa.» Esta posição, acrescenta-se no mesmo aresto, «(…) é a mais consentânea com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente e traduz também a posição da doutrina dominante.» À luz deste entendimento, temos que devendo o uso acordado ser temporário no comodato, deve o mesmo ter um grau de concretização que permita determinar quando ocorre o seu termo. Dito de outra forma: o uso acordado deve encontrar-se associado a um tempo de utilização. O que tudo serve para dizer que no comodato são necessários dois requisitos para caracterizar o “uso determinado” do empréstimo da coisa: 1º, que ele esteja expresso de modo claro; 2º que esse uso seja de duração limitada. Sendo certo que o uso só é “determinado” quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer. Assim, face ao conspecto fáctico apurado nos presentes autos, mais concretamente um acordo de “comodato”, no ano de 1995, no sentido de o imóvel em causa se destinar à habitação da ré e da sua família, que ali ficariam a residir até ao fim da sua vida [cf. facto “provado” sob “20.”, com a redação que se manteve, por ter improcedido a impugnação que versava sobre o mesmo, tal como flui do supra exposto], importa concluir no sentido de que tendo sido acordado o uso da coisa por toda a vida da comodatária [a ora Ré], o seu termo, embora incerto, era determinável.[10] Donde, não tendo, no caso vertente ainda findado ou terminado o uso (determinado) – o qual, em princípio, só ocorrerá com a morte da Ré (se lá continuar a viver) – para que o dito prédio foi concedido à mesma, não se verifica o pressuposto legal para que a Autora aqui recorrente possa exigir à Ré a restituição do dito imóvel por cessação do contrato (à luz do art. 1137º, nº 2 do C.Civil, aplicável ao designado comodato “precário”). Com efeito, à situação ajuizada é antes aplicável a disciplina do art. 1137º, nº1 do C.Civil, isto é, não há obrigação de restituir enquanto se mantiver o uso de habitação familiar do imóvel e a situação habitacional que presidiu à entrega do imóvel à Ré. Nesta mesma linha de entendimento concluiu-se na sentença recorrida que «[E] o que os intervenientes nesse contrato acordaram foi que a ré usaria o imóvel para nele habitar com a sua família, até ao final da sua vida, o que vale por dizer que enquanto perdurar esse fim, o da habitação da família, perdurará o dito contrato de comodato. Neste conspecto, ao abrigo do contrato de comodato celebrado com os usufrutuários do imóvel aqui em causa, a ré dispõe de título relativamente ao comodante que a legitima a ocupar o imóvel. Sem que a carta referida no ponto 13 possa ser configurada como uma denúncia válida do contrato, uma vez que a ré não é comodatária precária, não sendo a denúncia livre nos termos do disposto no artigo 1137.º, n.º 2, do Código Civil (…)». Nada, assim, a censurar à decisão recorrida neste particular da sua fundamentação. ¨¨ Vejamos agora da argumentação de que também havia desacerto da decisão porque devia considerar-se a possibilidade de resolução nos termos do art. 1140º do C.Civil. Temos presente que «(…) o comodante pode, ao abrigo do art. 1140.º, resolver o contrato. Estando em causa um contrato marcadamente pessoal, justifica-se a solução prevista no art. 1140.º. Tratando-se de um contrato a cuja celebração está subjacente uma certa ligação pessoal entre as partes – porquanto o ato de empréstimo surge, via de regra, por razões familiares, de amizade ou de cortesia - não é de estranhar que o art. 1140.º permita a sua resolução ocorrendo justa causa. O conceito de justa causa é um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo, traduzindo-se na verificação de qualquer circunstância, facto ou situação perante a qual, e segundo a boa-fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual. A aplicação desta ideia parece conferir ao comodante o direito atípico de resolução sempre que ocorra, por exemplo, uma deterioração das relações familiares, de amizade ou de cortesia que estiveram na base da celebração do contrato. A justa causa é referida no sentido comum, tendo em conta que se trata, via de regra, de um contrato de execução continuada e aceitando-se que possa ocorrer um facto, independente de atuação culposa das partes, que justifique a desvinculação, concretamente a obrigação de o comodatário devolver a coisa dada em comodato. Compreende-se, por outro lado, que o conceito de justa causa, num contrato desta natureza, tenha um âmbito mais amplo do que em contratos de diversa natureza. Assim, não deixa o comodante de poder obter a restituição da coisa num grande e significativo leque de circunstâncias.»[11] Sucede que no caso vertente muito embora a Autora tenha aludido à deterioração das relações familiares na p.i. como “explicação” para a dedução da sua pretensão contra a Ré, o que é certo é que não formulou pedido de resolução do contrato, muito menos por “justa causa” à luz do previsto no art. 1140º do C.Civil. Nem, aliás, alegou que tivesse comunicado à Ré tal resolução (cf. art. 436º do C.Civil), antes e apenas se deteta um pedido de entrega/restituição no quadro da interpelação/denúncia ex vi do art. 1137º, nº2 do C.Civil. De referir que se compulsarmos o despacho saneador, não se deteta aí que a resolução do contrato por justa causa (nos termos do art. 1140º do C.Civil) tivesse sido definida como constituindo o objeto do litígio, nem que qualquer materialidade que a pudesse consubstanciar tivesse sido elencada entre os temas de prova… Assim, na medida em que o pedido de resolução, com tal (novo) fundamento de justa causa só agora aparece formulado pela Autora em alternativa (ou subsidiariamente) nas suas conclusões de recurso, importa concluir que tal é manifestamente intempestivo e inoportuno. E daí que nem sequer entremos na apreciação deste aludido fundamento. ¨¨ E que dizer do argumento, derradeiro, de que não se vislumbrava um abuso de direito por parte da A. ao reclamar a restituição do imóvel da Ré? Salvo o devido respeito, anda que na sentença recorrida se tenham tecido algumas considerações sobre essa problemática, esta questão invocada nos autos ficou prejudicada pela decisão proferida pelo Tribunal a quo. E também prejudicada está nesta sede recursiva, por se ter sancionado/confirmado a prevalecente decisão da 1ª instância. Pelo que, brevitatis causa, nos dispensamos da sua apreciação. * 5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…). * 6 - DISPOSITIVO Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos. Custas nesta instância pela Autora/recorrente. * Coimbra, 16 de Setembro de 2025 Luís Filipe Cravo Alberto Ruço Fernando Monteiro 
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