Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS MIGUEL CALDAS | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO REJEIÇÃO PROVIDÊNCIA CAUTELAR CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA RESOLUÇÃO ENTREGA JUDICIAL REQUISITOS REGRA DA PROPORCIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 07/08/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 4 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 368, N.º 2, 376.º, N.º E 640.º, N.º 1, ALS. A), B) E C), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ARTIGO 21.º DO DL N.º 149/95, DE 24 DE JUNHO | ||
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Sumário: | 1. Sendo impugnada a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, o recorrente, além de ter de cumprir os ónus de alegação, de especificação e de conclusão, deve obrigatoriamente especificar, no requerimento recursivo, sob pena de rejeição: (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (ii) os concretos meios probatórios para proferir nova decisão, (iii) e a decisão substitutiva sobre a matéria de facto que deverá ser proferida, de harmonia com as alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC.
2. A providência cautelar prevista no art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24-06, prevê a possibilidade de o locador requerer judicialmente a resolução do contrato de locação financeira e a restituição do bem locado, caso o locatário não o faça voluntariamente após o termo do contrato, não exigindo a lei – para lá da resolução do contrato e da não restituição do bem – qualquer outro requisito adicional, nomeadamente a alegação e prova de qualquer perigo em concreto. 3. A regra da proporcionalidade, prevista no art 368.º, n.º 2, do CPC, não se aplica aos procedimentos cautelares nominados, por força do n.º 1 do art. 376.º do CPC.. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]
Banco 1..., S.A., intentou providência cautelar de entrega judicial, nos termos do disposto no art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24-06, na redacção do DL n.º 30/2008, de 25-02, contra A..., Lda.. Para tanto alegou, em síntese, que celebrou um contrato de locação financeira mobiliária com a requerida, referente a uma máquina skaymaster vm2000; esta deixou de pagar as rendas a que estava obrigada; a requerente resolveu o contrato e a requerida não restituiu o bem locado. * Por decisão exarada em 27-01-25, o tribunal a quo decidiu, sem audição da requerida: “Face ao exposto, julgo a presente providência cautelar procedente e, em consequência: - Determina-se a imediata apreensão da máquina skaymaster vm2000, e a sua entrega à requerente acompanhada de todas as suas componentes; - Dispensa-se a requerente do ónus de propositura da ação principal. - Solicite a apreensão à entidade policial competente. - Depositário: o que vier a ser indicado pela requerente, notificando-a para o efeito. Custas: pela requerente, provisoriamente, sem prejuízo do que vier a ser decidido em caso de apresentação de oposição (cfr. arts. 527º e 539º nº 1 do CPC). (…)”. * Após dedução de oposição e produção de prova, foi exarada decisão final, em 04-04-25, com o seguinte teor: “Pelo exposto, julga-se improcedente a oposição deduzida pela requerida e, em consequência: 1. Confirma-se integralmente a decisão inicial, que decretou a providência cautelar de entrega judicial; 2. Determina-se a imediata apreensão da máquina skaymaster vm2000, e a sua entrega à requerente acompanhada de todas as suas componentes; 3. Dispensa-se a requerente do ónus de propositura da ação principal. - Solicite a apreensão à entidade policial competente - Depositário: o que vier a ser indicado pela requerente, notificando-a para o efeito. Custas: pela requerida (cfr. arts. 527º e 539º nº 1 do CPC). - Valor: o indicado. Registe e notifique.”. * Não se conformando com a decisão final, a requerida recorreu aduzindo as seguintes conclusões: “1. Fundamenta o Recorrente a sua pretensão, não só por ser seu direito o acesso ao recurso, constitucionalmente consagrado, mas por querer impugnar a sentença proferida sobre a matéria de facto, bem como, a matéria de direito; 2. Não pode o Tribunal a quo, com o ressalvado respeito, proferir a sentença tal como proferiu; 3. Esteve mal aquele Tribunal em não proceder a uma correcta aplicação do direito, e decretar a providência cautelar; 4. No entanto, ressalvado o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo fez disso “tábua rasa”, dos factos enunciados, dos documentos juntos pelo recorrente, bem como da aplicação da lei corretamente, por exemplo a má aplicação do art.º21.º do DL n.º 149/95 de 24/06, os requisitos cumulativos não se verificaram, nomeadamente, a comunicação da resolução do contrato pelo locador, ser efectivamente efectuada, o que não se encontra nos autos, a carta enviada e o registo não prova que aquela carta diz respeito ao registo, e mais o recorrente NUNCA recebeu a resolução do contrato, NUNCA RECEBEU a comunicação para a restituição da maquina, tal comunicação nem consta dos autos, o recorrido não ofereceu nenhuma prova sumária dos factos alegados; 5. Apenas referiu que se encontram prestações em falta, nunca indicando quais as prestações, quais os valores mensais e como apurou o montante peticionado; 6. O Recorrido em momento algum cumpriu igualmente com o requisito subjectivo de alegar factos verdadeiros; 7. A providência cautelar NUNCA deveria ter sido decretada, mal andou o tribunal a quo; 8. Não olvidando que o ora recorrente já pagou mais de 75% do valor da máquina, e com o facto de deixar de poder trabalhar com a máquina, ficará impedido de continuar com a sua actividade industrial; 9. Mais se refere, que a única razão que se vislumbra será a MÁ FÉ, o que o recorrido pretende é ficar com uma máquina que vale mais de € 100.000.00, por um valor de residual, pois o requerido já liquidou, mais de € 150.000.00, quando o valor inicial foi de € 180.000.00. 10. De acordo com o art.368º, nº2, do Código de Processo Civil, o juiz deve recusar a providência cautelar se o prejuízo resultante dela for superior ao dano que com ela se pretende evitar, o que é o caso; 11. Configurando até uma situação de abuso de direito. Mal andou o tribunal a quo quando não analisou bem esta questão; 12. Ora, conclui-se que mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, o recorrente elencou factos verdadeiros e que assentam em realidades; 13. Posto tudo quanto vai dito, andou mal o Tribunal a quo em decidir como decidiu, urgindo ponderação e decisão diversa da que se plasmou no despacho recorrido. 14. Não poderia o Tribunal decidir como decidiu. 15. Importando a alteração do decisório, devendo a providência Cautelar decretada ser revogada. Nestes termos e nos melhores de direito, requer o Recorrente que este Tribunal da Relação julgue procedente o presente recurso, e decida nessa conformidade aplicando assim a costumada Justiça! * O requerente/recorrido respondeu nos seguintes termos: “A douta sentença com a ref. 110470524 não padece de qualquer vício ou irregularidade, nem merece qualquer censura, encontrando-se a mesma devidamente fundamentada, tendo efetuado uma correta interpretação dos factos carreados para os autos. A Recorrente refere que pretende “impugnar a sentença proferida sobre a matéria de facto, bem como, a matéria de direito”. Sucede que percorrendo todo o recurso, verifica-se que a Recorrente não impugnou a matéria de facto provada, pelo que se conformou com esta. Na verdade, a Recorrente também não cumpriu com o ónus de impugnação da matéria de facto nos termos do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, não especificando: - os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; - os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados; - a decisão que no seu entender devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; Ora, no ponto 2 da matéria de facto provada consta que: “No exercício da atividade financeira a que se dedica, a requerente celebrou com a requerida, em 29/08/2019, a pedido e solicitação desta, o denominado contrato de locação financeira mobiliária nº ...84 junto como doc. 1, que tem por objeto uma máquina skaymaster vm2000”. No ponto 8 da matéria de facto provada consta que: “A partir de 15 de julho de 2024, a requerida não liquidou a 58.ª renda, vencida nessa data, nem as subsequentes”. No ponto 11 da matéria de facto provada consta que: “Por carta registada com aviso de receção datada de 09/10/2024, a requerente comunicou à requerida a resolução do contrato, solicitando a entrega da máquina (doc. 7)”. Ainda no ponto 14 da matéria de facto provada consta que: “A requerida não pagou as rendas em dívida, nem restituiu a máquina objeto do contrato, recusando-se a fazê-lo”. Assim, decorre da matéria de facto provada e que não foi impugnada pela Recorrente que se encontram preenchidos os requisitos para que seja decretado o procedimento cautelar nos termos do artigo 21.º do DL nº 149/95, de 24/06: i) resolução do contrato e ii) não restituição do bem. A lei não exige mais, nomeadamente a alegação e prova de qualquer perigo em concreto. Uma vez que a Recorrente se conformou com a matéria de facto provado, verifica-se que o seu recurso é totalmente improcedente. Nem se compreende a alegação da Recorrente de que nunca lhe havia sido requerida a entrega do bem locado, que não havia sido comunicada a resolução do contrato de locação financeira, nem havia sido interpelado. Por dever de ofício sempre se diga que é falso que nunca lhe havia sido requerida a entrega do bem locado, que não havia sido comunicada a resolução do contrato de locação financeira, nem havia sido interpelado, conforme decorre da matéria de facto provada. A recorrente confessou que deixou de pagar as prestações acordadas após 17 de março de 2023. É falso que a requerida desconhecesse de que forma deveria efetuar os pagamentos. Nem se compreende como é que a Recorrente conseguiu efetuar o pagamento das prestações até à renda 57 e não conseguiu efetuar os pagamentos das restantes rendas porque não tinha na sua posse os dados de pagamento. No contrato de locação financeira consta expressamente o IBAN onde devem ser efetuados os pagamentos das prestações. Por outro lado, o contrato de penhor alegado não foi celebrado com a requerida, não se conseguido alcançar o pretendido pela sua alegação. Conforme decorre da douta sentença, a “alegação de que parte do crédito foi garantido por penhor não impede o exercício do direito à resolução do contrato, nem constitui fundamento para a improcedência da providência. Tal penhor, ademais, foi acionado após a resolução do contrato e apenas parcialmente, como resulta dos documentos juntos pela requerente e pela própria requerida, pelo que não afeta a providência de entrega”. No n.º 2 do artigo 368.º do CPC está prevista a possibilidade da providência cautelar ser recusada quando o prejuízo dela resultante exceda consideravelmente dano que com ela o requerente pretende evitar. Sucede que a referida norma não é aplicável aos procedimentos cautelares especificados por força do n.º 1 do artigo 376.º do CPC, sendo que o presente procedimento cautelar é especificado, estando expressamente previsto no artigo 21.º do DL nº 149/95, de 24/06. Conforme supra alegado, os requisitos para que seja decretado o procedimento cautelar nos termos do artigo 21.º do DL nº 149/95, de 24/06 são: i) resolução do contrato e ii) não restituição do bem. A lei não exige mais, nomeadamente a alegação e prova de qualquer perigo em concreto. Com efeito, a referida norma do n.º 2 do artigo 368.º do CPC pressupõe um perigo de uma má decisão causar um prejuízo grave a um interesse legítimo da requerida. Uma vez que a requerida confessou que não cumpriu com o pagamento das prestações e não entregou o bem locado, é forçoso concluir que o direito do requerente existe, não existindo, por esse motivo, qualquer perigo de existir uma decisão errada. Por outro lado, caso fosse seguido o entendimento da requerida, nunca poderia ser decretado um procedimento cautelar, porque os locatários sempre poderiam alegar que ficar sem o bem locado lhes causa prejuízo. Na verdade, a requerida pretende apenas continuar a utilizar o bem que não é seu, depois de resolvido o contrato que lhe daria título para o fazer, o que consubstanciaria numa violação do direito de propriedade do requerente. Resulta, desta forma, que o procedimento cautelar de entrega judicial é o meio adequado para o locador, no contrato de locação financeira obter contra o locatário insolvente a restituição dos bens objetos do contrato de que este é detentor. Finalmente, o contrato de locação financeira tem como objeto a cedência do uso da coisa locada, por um determinado período, não a transferência da sua propriedade, não obstante o locatário financeiro poder, findo o contrato, optar pela sua aquisição. Deste modo, as rendas liquidadas pela Recorrente tiveram como contrapartida a cedência do uso do bem locado, pelo que não se compreende a alegação de má fé da Recorrente. E conforme supra alegado, estão preenchidos os requisitos para que seja decretada a presente providência cautelar, pelo que não há lugar a qualquer abuso de direito. Termos em que o recurso de apelação apresentado deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida. * Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar os recursos, sendo as seguintes as questões a decidir, por ordem lógica: 1 – Impugnação da matéria de facto. 2 – Erro na aplicação do Direito: 2-a) Falta de verificação dos requisitos do art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24-06: falta de demonstração da comunicação da resolução do contrato pelo locador; falta de discriminação das prestações em falta; 2-b) Má fé e abuso do direito do locador ao pretender ficar com uma máquina que vale mais de € 100 000,00, por um valor de residual, pois o requerido já liquidou, mais de € 150 000,00, quando o valor inicial foi de € 180 000,00 – aplicação do art. 368.º, n.º 2, do CPC. * A. Fundamentação de facto. Na decisão sob recurso consignou-se: Atenta a prova documental junta e a confissão expressa da requerida de que não pagou as rendas a partir de março 2023, nem entregou o bem após a resolução do contrato pela requerente, resultam indiciariamente demonstrados os seguintes factos: 1. A requerente dedica-se à atividade bancária, estando autorizada a praticar operações de locação financeira (leasing) de acordo com a legislação em vigor; 2. No exercício da atividade financeira a que se dedica, a requerente celebrou com a requerida, em 29/08/2019, a pedido e solicitação desta, o denominado contrato de locação financeira mobiliária nº ...84 junto como doc. 1, que tem por objeto uma máquina skaymaster vm2000; 3. A requerente adquiriu a máquina ao fornecedor pelo preço de 170.000,00 + IVA (doc. 2), a pedido e por expressa indicação da requerida, tendo o mesmo sido entregue e instalado pelo fornecedor na requerida (doc. 3); 4. Nos termos acordados, a requerida obrigou-se ao pagamento de 84 rendas mensais, no valor, a primeira de 81.000,00€ + IVA, e as restantes no montante mensal de 1.188,71€ cada uma, sujeitas à taxa de IVA em vigor, acrescidas de 0,81€ de valor residual; 5. A requerida foi declarada insolvente por sentença de 24/10/2023 proferida no P. nº 3935/23.... do Juízo de Comércio de Leiria - J2 (doc. 4); 6. À data (14/11/2023), a locatária não tinha liquidado a renda que se venceu em 17 de abril de 2023, nem as seguintes; 7. No âmbito do referido processo de insolvência foi aprovado e homologado o Plano de Insolvência (doc. 5) que previu para o contrato de locação financeira n.º ...84 o seguinte: - A Consolidação dos valores vencidos e não pagos a liquidar nas prestações remanescentes; - O vencimento da primeira renda decorridos 30 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória (trânsito esse que ocorreu a 11/06/2024); - A manutenção das condições contratuais; 8. A partir de 15 de julho de 2024, a requerida não liquidou a 58.ª renda, vencida nessa data, nem as subsequentes; 9. Por carta de 23/09/2024, a requerente interpelou a requerida para pagar as rendas vencidas e não pagas, acrescida de juros no prazo de 15 dias, a fim de evitar a resolução do contrato; 10. Em 09 de outubro de 2024, o valor das rendas emergentes do contrato de locação financeira que se encontravam em dívida, vencidas e não pagas, acrescida dos respetivos juros de mora calculados até àquela data, ascendia ao montante global de 22.381,38 € (doc. 7); 11. Por carta registada com aviso de receção datada de 09/10/2024, a requerente comunicou à requerida a resolução do contrato, solicitando a entrega da máquina (doc. 7); 12. Em 29/08/2019, AA e BB celebraram o denominado “contrato de penhor específico sobre depósito a prazo” com e a favor do Banco 1...,SA, através do qual constituíram penhor sobre o depósito a prazo de que são titulares naquele Banco, para garantia do cumprimento das responsabilidades assumidas pela A..., Lda provenientes do contrato de locação financeira referido em 2, até ao montante máximo de 25.000,00€ (doc. 1 da oposição); 13. Em 29/10/2024 a requerente procedeu à execução do contrato de penhor pelo montante de 12.519,12 € (doc. 2 da oposição); 14. A requerida não pagou as rendas em dívida, nem restituiu a máquina objeto do contrato, recusando-se a fazê-lo. * B. Fundamentação de Direito. Comecemos por analisar a primeira questão recursiva atinente à impugnação da matéria de facto. A interposição de um recurso jurisdicional exerce-se através de requerimento que contenha a fundamentação e o pedido, de modo a delimitar o objecto da impugnação, estabelecendo o n.º 2 do art. 637.º do Código de Processo Civil (CPC) que “o requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade” e impondo o n.º 1 do art. 639.º, ao recorrente, o dever de “apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos porque pede a alteração ou anulação da decisão”. No actual figurino do recurso de apelação, admitido o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, a Relação pode, por um lado, controlar a convicção do julgador de 1.ª instância – quando esta se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos, sindicando aquela convicção –, e deve, por outro lado, apreciar os meios de prova de que pode lançar mão para procurar e formar a sua própria convicção – analisando criticamente as provas indicadas como fundamento da impugnação (ou outras), de modo a criar a sua convicção autónoma e a fundamentá-la.[2] Estando nós no âmbito de um procedimento cautelar apenas se pode falar em factos indiciariamente provados e não em factos provados, implicando que, “[a] resposta positiva a um determinado facto no âmbito de uma decisão cautelar, afasta, em princípio, a possibilidade de utilização extraprocessual das provas tal como se encontra previsto no art. 421.º do CPC, dada a natureza perfunctória na análise do litígio e o carácter indiciário dos factos provados em sede cautelar, oferecendo assim, menores garantias que o processo comum” – neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07-02-2019, Proc. n.º 3235/16.0T8PDL-B.L1-6. Preceitua o art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Destarte, sendo impugnada a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, o recorrente além de ter necessariamente de cumprir os ónus de alegação, de especificação e de conclusão, deve obrigatoriamente especificar, no seu requerimento recursivo, sob pena de rejeição: (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (ii) os concretos meios probatórios para proferir nova decisão, (iii) e a decisão substitutiva sobre a matéria de facto que deverá ser proferida, de harmonia com as alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC. [3] Esses requisitos implicam a rejeição dos denominados recursos genéricos, porquanto, para que se altere a decisão da matéria de facto da 1ª Instância, não basta divergir da leitura que esta fez da factualidade em litígio – ao considerar determinados factos provados e outros não provados –, impondo-se demonstrar que ocorreu erro no julgamento que contrarie, de forma clara e evidente, as regras da ciência da lógica e da experiência, apontando, de modo inequívoco, para o julgamento do facto num sentido diverso. Com este regime, pretende-se que seja rejeitada a admissibilidade de recursos em que as partes se insurgem em abstracto contra a decisão da matéria de facto, devendo ser especificados os exactos pontos da matéria de facto que foram erradamente decididos, e indicados, também com precisão, os factos que se considera deverem ser dados como provados, impedindo “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, restringindo-se a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”.[4] Na situação vertente, não se mostram minimamente respeitados os pressupostos do art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, não tendo a recorrente enumerado qualquer facto indiciário que impugne. É assim ostensivo que não foram observados, em termos mínimos, os requisitos para a impugnação da matéria de facto, mormente os previstos no art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC, que impõem ao recorrente a obrigatoriedade de especificação dos “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, uma vez que a apelante não impugna nenhuma da factualidade dada como indiciariamente provada. Por conseguinte, nesta parte, o recurso, ao não cumprir os pressupostos exigíveis para a impugnação da matéria de facto, improcede. Passemos assim à segunda questão do recurso – erro na apreciação do direito: 2-a) Falta de verificação dos requisitos do art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24-06: falta de demonstração da comunicação da resolução do contrato pelo locador; falta de discriminação das prestações em falta; 2-b) Má fé e abuso do direito do locador ao pretender ficar com uma máquina que vale mais de € 100 000,00, por um valor de residual, pois o requerido já liquidou, mais de € 150 000,00, quando o valor inicial foi de € 180 000,00 – aplicação do art. 368.º, n.º 2, do CPC. A providência cautelar prevista no art. 21.º do DL n.º 149/95, de 24-06, refere-se à possibilidade de o locador requerer judicialmente a resolução do contrato de locação financeira e a restituição do bem locado, caso o locatário não o faça voluntariamente após o termo do contrato. Esta providência cautelar apenas tem lugar no âmbito dos contratos de locação financeira, que são aqueles em que há a cedência temporária de um bem adquirido ou construído por indicação do locatário e em que, findo o período do contrato, há lugar a opção de compra, mediante o pagamento de um valor residual acordado. Na decisão recorrida o tribunal a quo expendeu, ao aplicar o direito à factualidade indiciariamente apurada: “Nos termos do art. 21º do DL nº 149/95, de 24/06, o locador tem direito a requerer a entrega judicial do bem objeto do contrato de locação financeira, findo que seja este por resolução, caso o locatário não proceda à respetiva restituição. No caso em apreço, decorre da factualidade provada que se encontram demonstrados os requisitos previstos no citado art. 21º, designadamente: a requerente celebrou contrato de locação financeira mobiliária com a requerida em 29/08/2019; a requerida deixou de pagar as rendas vencidas a partir de março 2023; a requerente resolveu validamente o contrato por comunicação escrita através de carta registada com aviso de receção de 09/10/2024; a requerida não restituiu o bem. Com efeito, decorre da oposição apresentada que a requerida confessou que deixou de pagar as prestações após 17/03/2023. A resolução do contrato foi válida e comunicada à requerida por carta registada com aviso de receção. A interpelação para pagamento e a comunicação da resolução foram entregues no domicílio convencionado da requerida, com prova documental do respetivo envio e receção anteriormente junta aos autos. A alegação de que parte do crédito foi garantido por penhor não impede o exercício do direito à resolução do contrato, nem constitui fundamento para a improcedência da providência. Tal penhor, ademais, foi acionado após a resolução do contrato e apenas parcialmente, como resulta dos documentos juntos pela requerente e pela própria requerida, pelo que não afeta a providência de entrega. A alegação de desconhecimento do valor em dívida e de como pagar o remanescente é infundada e contraditória, dado que a requerida efetuou pagamentos durante anos e sabia como efetuá-los, constando o IBAN do contrato e das comunicações enviadas. Quanto à invocada desproporcionalidade, importa sublinhar que o nº 2 do art. 368º CPC não se aplica os procedimentos cautelares especificados, como é o presente, por força do art. 376º, nº 1 do CPC. Mesmo que aplicável, não se verifica qualquer desproporção: o contrato foi validamente resolvido, o bem é propriedade da requerente e tem direito à sua restituição, sendo o incumprimento assumido expressamente pela requerida, inexistindo, também, qualquer litigância de má fé da requerente. Deste modo, e sem necessidade de mais considerandos, julga-se improcedente a oposição deduzida, mantendo-se nos exatos termos a providência decertada.” (sic). A decisão afigura-se totalmente correcta e o que existe é uma discordância da recorrente com o teor da decisão e com os seus fundamentos, alcançando-se perfeitamente da leitura da decisão impugnada que a fundamentação, de facto e de direito, e o segmento decisório são logicamente congruentes, concluindo-se pela justeza da decisão tomada. Na verdade, da matéria dada como sumariamente demonstrada resulta que entre a requerente e a requerida foi celebrado um contrato de locação financeira, no qual o requerente – o locador financeiro – concedeu à requerida – o locatário financeiro – o gozo temporário de uma coisa corpórea, adquirida, para o efeito, pelo próprio locador a um terceiro. O locatário, no âmbito do contrato, pagará uma retribuição que traduz a amortização do bem e juros e no final poderá ou não adquirir esse bem; o contrato em causa constitui assim, um contrato oneroso, sinalagmático e bivinculante, cujo regime está estabelecido no DL n.º 149/95, de 24-06 – alterado sucessivamente, a última das quais pelo DL n.º 30/2008, de 25-02. O contrato de locação financeira é essencialmente um negócio de crédito, pelo que não lhe são aplicáveis as normas da compra e venda, nomeadamente as regras da compra e venda a prestações, estabelecendo o art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 149/95, com as alterações operadas pelos DL nºs 265/97, de 02-10, e DL n.º 30/2008, de 25-02: “Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente”. Por sua vez, o n.º 4 deste artigo acrescenta que: “O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.”. Tal como vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-09-2024, Proc. n.º 9630/17.0T8LSB.L2-2: “Um dos requisitos da providência cautelar de entrega judicial prevista no art. 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24-06 (Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira) é o termo do contrato de locação financeira, quer por resolução, quer por decurso do prazo sem que o locatário tenha exercido o direito de compra do bem, sendo que, como resulta do art. 17.º, n.º 1, desse diploma legal, o contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte.”. Revertendo à matéria de facto indiciariamente apurada importa assinalar os seguintes aspectos: – “A partir de 15 de julho de 2024, a requerida não liquidou a 58.ª renda, vencida nessa data, nem as subsequentes” (n.º 8); – “Por carta registada com aviso de receção datada de 09/10/2024, a requerente comunicou à requerida a resolução do contrato, solicitando a entrega da máquina (doc. 7)” (n.º 11); – “A requerida não pagou as rendas em dívida, nem restituiu a máquina objeto do contrato, recusando-se a fazê-lo” (n.º 14). Acresce salientar que a lei não exige mais nenhum outro requisito adicional, nomeadamente a alegação e prova de qualquer perigo em concreto. Do supra exposto se infere resultar da matéria de facto indiciariamente provada – e que não foi impugnada pela recorrente – que se encontram totalmente preenchidos os requisitos para que seja decretado o procedimento cautelar nos termos do art. 21.º do DL nº 149/95, de 24-06, i.e.: i) resolução do contrato e ii) não restituição do bem. Por fim, no que tange à invocada má fé e abuso do direito do locador ao pretender ficar com uma máquina que vale mais de € 100 000,00, por um valor de residual, pois o requerido já liquidou, mais de € 150 000,00, quando o valor inicial foi de € 180 000,00, por aplicação do regime do art. 368.º, n.º 2, do CPC, importa tecer as seguintes considerações. O art. 334.º do Código Civil preceitua que “[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”. No n.º 2 do art. 368.º do CPC está prevista a possibilidade de a providência cautelar ser recusada quando o prejuízo dela resultante exceda consideravelmente dano que com ela o requerente pretende evitar. Desde logo é altamente duvidoso que esta norma seja aplicável aos procedimentos cautelares especificados/nominados, previstos fora do CPC, por força do n.º 1 do art. 376.º do CPC, sendo que o presente procedimento cautelar é especificado, estando expressamente previsto no art. 21.º do DL nº 149/95, de 24/06. Tal como explica Miguel Teixeira de Sousa – cf. Código de Processo Civil Online, 2024, Livro II, p. 48: “A regra de proporcionalidade estabelecida no art. 368.º, n.º 2, não se aplica aos procedimentos nominados (n.º 1). A ponderação de interesses que se impõe nestes procedimentos é aquela que se encontra subjacente à regulação de cada um desses procedimentos ou que se encontra expressamente consagrada quanto a alguns deles (art. 381.º, n.º 2, e 401.º)”.[5] Acresce que os requisitos para que seja decretado o procedimento cautelar nos termos do art. 21.º do DL nº 149/95, são, como sublinhado anteriormente, por um lado, a resolução do contrato e, por outro lado, a não restituição do bem, pressupondo a norma do n.º 2 do art. 368.º do CPC um perigo de uma (má) decisão causar um prejuízo grave a um interesse legítimo da requerida. Ora, tendo a requerida confessado que não cumpriu com o pagamento das prestações e não entregou o bem locado, é forçoso concluir que o direito do requerente se verifica, não existindo, por esse motivo, qualquer perigo de prolação de uma decisão errada, sendo certo que, de outro modo, nunca poderia ser decretado um procedimento cautelar desta jaez, porque o locatário sempre poderia invocar que ficar sem o bem locado lhes causa prejuízo, o que consubstanciaria uma violação do direito de propriedade do requerente. Resulta, desta forma, que o procedimento cautelar de entrega judicial é o meio adequado para o locador, no contrato de locação financeira obter contra o locatário insolvente a restituição dos bens objetos do contrato de que este é detentor. Ademais, conforme refere o recorrido: “Finalmente, o contrato de locação financeira tem como objeto a cedência do uso da coisa locada, por um determinado período, não a transferência da sua propriedade, não obstante o locatário financeiro poder, findo o contrato, optar pela sua aquisição. Deste modo, as rendas liquidadas pela Recorrente tiveram como contrapartida a cedência do uso do bem locado, pelo que não se compreende a alegação de má fé da Recorrente. E conforme supra alegado, estão preenchidos os requisitos para que seja decretada a presente providência cautelar, pelo que não há lugar a qualquer abuso de direito.” (sic). Adita-se, para terminar, no que há figura do abuso de direito diz respeito, as palavras de Daniel Bessa de Melo, O abuso do direito: contributos para uma hermenêutica do artigo 334.º do Código Civil português, “Julgar on-line”, Outubro de 2020, p. 61 : “[N]ão se pretende cometer ao juiz, para além da tradicional função jurisdicional, uma espécie de para-função ética (no que respeita aos bons costumes e à boa fé) e política (no que diz respeito à função económica ou social dos direitos). Ao exigir que o excesso seja “manifesto”, o legislador sapientemente introduziu várias cautelas: a segurança jurídica – ela mesma condição para o exercício da autonomia privada - só poderá ceder perante exigências de justiça material quando a injustiça proveniente do exercício for clamorosa, indeclinável e evidente, ou seja, quando bulir com a axiologia imanente do sistema jurídico e não com o zelo pessoal do juiz; a autoridade formal do legislador apenas deverá ser levantada naqueles casos atentatórios da própria razão de ser da sua autoridade”.[6] É assim patente que não se regista má fé ou abuso do direito por parte do requerente. Por todo o exposto, julga-se improcedente o recurso de apelação interposto pela requerida, recaindo sobre a mesma a responsabilidade pelo pagamento das custas ex vi arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC. * Sumário (art. 663.º, n.º 7, do CPC): (…).
Decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão da 1.ª Instância. Custas processuais a cargo da apelante.
Coimbra, 8 de Julho de 2025
Luís Miguel Caldas Cristina Neves Hugo Meireles [1] Juiz Desembargador relator: Luís Miguel Caldas /Juízes Desembargadores adjuntos: Dra. Cristina Neves e Dr. Hugo Meireles [2] Como vertido na “exposição dos motivos” da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Código de Processo Civil: “[C]uidou-se de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios…, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material.”. |