Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:6938/24.2BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/27/2025
Relator:MARCELO MENDONÇA
Descritores:PEDIDO DE PROTECÇÃO INTERNACIONAL
TAF TERRITORIALMENTE COMPETENTE
PEDIDO INFUNDADO E INADMISSÍVEL
ACTO DE INDEFERIMENTO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO “PER RELATIONEM” – CF. ARTIGO 153.º, N.º 1, DO CPA
Sumário:I- Em termos legais, a impugnação jurisdicional em matéria de protecção internacional também se considera proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono e a competência do Tribunal fixa-se no momento em que tal impugnação é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.
II- O artigo 153.º, n.º 1, do CPA, permite a fundamentação dos actos administrativos “per relationem”, ou seja, através de declaração de concordância alicerçada em anteriores pareceres, propostas ou informações dos serviços, que passam a constituir parte integrante do respectivo acto.
III- Não se pode confundir o acto impugnado com o acto da sua notificação, pois que, o segundo é mera condição de eficácia ou de oponibilidade do primeiro, não advindo o inquinamento do acto carecido de notificação por conta de eventuais vícios que padeça o acto que o notifica
Votação:UNANIMIDADE (C/ DECLARAÇÃO DE VOTO)
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I - Relatório.
Y… (igualmente conhecido por M…), cidadão do Senegal, doravante Recorrente, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) deduziu impugnação judicial contra a AGÊNCIA PARA A INTEGRAÇÃO, MIGRAÇÕES E ASILO, I.P. (AIMA), doravante Recorrida, com vista à impugnação do despacho proferido pela Vogal do Conselho Directivo da AIMA, datado de 24/04/2024, que considerou infundado e inadmissível o pedido de protecção internacional apresentado pelo ora Recorrente, inconformado que se mostra com a sentença do TACL, de 04/11/2024, que julgou improcedente a impugnação, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):
A) À data da propositura da presente ação o A. encontrava-se instalado no Centro de Instalação Temporária (CIT) de Faro, conforme resulta inequivocamente de fls. 76 do processo instrutor junto pela Ré aos presentes autos a fls. 48 e seguintes do SITAF (vd. documento 009740303);
B) Este facto, relevante, era do pleno conhecimento do tribunal recorrido, tendo, a 04/09/2024, a Mm.ª Sr.ª Juíza decidido: “Defere-se o requerido pelo Ilustre Mandatário do Autor, no requerimento apresentado nos autos em 29.07.2024 (alteração nos autos da morada do Autor e aditamento do nome do Autor).” - (Vd. Documento 009991643, a fls. 145 do SITAF)
C) Como decorre do artigo 13.º do CPTA: “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”, assim como, a sua competência fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
D) Assim, atendendo ao objeto dos presentes autos e às respetivas partes, verifica-se, em face dos critérios previstos nos artigos. 16º a 22º do CPTA, é aplicável, no caso vertente, a regra geral prevista no artigo 16º, nº 1, segundo a qual é territorialmente competente para a ação o tribunal da área da residência habitual ou da sede do autor;
E) Nas impugnações judiciais deduzidas no âmbito de procedimentos de proteção internacional cujos pedidos são apresentados nos postos de fronteira por estrangeiros que não preencham os requisitos legais necessários para a entrada em território nacional (artigos 23.º a 26.º da Lei do Asilo), os processos judiciais devem ser intentados no tribunal do domicílio do autor (conceito que inclui a área da sua residência ocasional ou, se esta não puder ser determinada, o lugar onde este se encontrar);
F) O tribunal territorialmente competente para conhecer do presente processo é o da área do domicílio habitual do Requerente, o que de acordo com as áreas de jurisdição dos tribunais administrativos definidas no mapa anexo ao Decreto-Lei nº 325/2003, de 29 de dezembro, corresponde ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé;
G) Em face do exposto, conclui-se que é territorialmente competente para dirimir o presente litígio o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, nos termos do disposto no artigo 16º, nº 1, e do mapa anexo ao Decreto-Lei nº 325/2003, de 29 de dezembro, o que determina a remessa do processo ao tribunal competente [cfr. artigo 14º, nº 1 do CPTA] o que ora se roga a V. Ex.as;
H) Ao A. tão só foi notificado o seguinte: “Proposta sobre o PPI n.º ............/2024 “Deve o pedido de proteção internacional ser considerado infundado, nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 19.º, inadmissível nos termos da alínea d) do artigo 19.º e no n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, na sua atual redação.” - (Vd. documentos 1 e 2 juntos com a p.i.)
I) Do ato administrativo de rejeição do pedido de proteção internacional notificado ao A. não constam os motivos de facto, e a respetiva integração no direito aplicável, o que consubstancia, por um lado, a inexistência de fundamentação do ato administrativo e, por outro, deveria constar do teor da notificação a enviar ao visado, o que não se verificou;
J) A decisão recorrida, ao invés de apurar se a notificação entregue ao aqui A. respeitava a fundamentação, de facto e de direito, do ato, procurou justificar a ausência daquela fundamentação pela Ré, o que violou o disposto nos art. 268º nº3 da CRP e arts. 114.º n.º 2, alínea a), 152.º e 153.º, todos do CPA.
K) Preceitos legais que deveriam ser interpretados e aplicados pelo tribunal recorrido no sentido de reconhecer a inexistência de fundamentação da decisão da Ré, ou a sua não notificação ao A., o que, na prática, redunda no mesmo vício processual: a impossibilidade do A. compreender a decisão e reagir adequadamente à mesma e, consequentemente, proceder à anulação da decisão administrativa da Ré, com as legais consequências.
A Recorrida não apresentou contra-alegações.
O Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
O parecer do MP foi notificado às partes.
O Recorrente emitiu pronúncia sobre o parecer do MP.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.

***
II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, o seguinte:
- Em primeiro lugar, a suscitada excepção dilatória de incompetência, em razão do território, para o TACL conhecer da presente causa, por, alegadamente, ser competente o TAF de Loulé;
- Em segundo lugar, se julgada improcedente tal matéria exceptiva (que será, como adiante veremos), importa sindicar se a decisão recorrida, ao julgar improcedente a impugnação judicial, enferma, ou não, do erro de julgamento que lhe vem assacado pelo Recorrente.
***
III - Matéria de facto.
A.1. Considerando que a fixação da matéria de facto na sentença recorrida não foi impugnada, mormente, segundo o ónus prescrito ao Recorrente pelas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, nem há lugar a qualquer alteração dessa mesma factualidade, remetemos para os termos da decisão da 1.ª instância que a decidiu, conforme o disposto no n.º 6 do artigo 663.º do CPC, aplicáveis tais comandos legais “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA.
***
A.2. Ainda assim, em ordem à resolução da matéria exceptiva acima elencada, aditamos a seguinte factualidade:
1.º - Em 20/04/2024, o ora Recorrente, tendo-lhe sido recusada a entrada em território nacional, designadamente, por “Uso de documento de identificação alheio e uso de documento de viagem falso ou falsificado”, apresentou na Divisão de Segurança Aeroportuária e Controlo Fronteiriço do Aeroporto Internacional Humberto Delgado, em Lisboa, um pedido de protecção internacional” (cf. fls. 01 a 35 do processo administrativo – PA);
2.º - No âmbito do pedido supra, em 22/04/2024, o ora Recorrente prestou declarações nos serviços da ora Recorrida junto do Aeroporto Internacional Humberto Delgado, em Lisboa (cf. fls. 44 a 47 do PA);
3.º - Em 24/04/2024, foi proferido pela Vogal do Conselho Directivo da AIMA despacho a considerar infundado e inadmissível o pedido de protecção internacional apresentado pelo ora Recorrente (cf. fls. 48 a 50 do PA);
4.º - Em 26/04/2024, o ora Recorrente foi notificado do despacho supra nas instalações do “EECIT/Zona Internacional do Aeroporto de Lisboa” (cf. fls. 69 e 70 do PA);
5.º - Em 30/04/2024, o ora Recorrente, por intermédio de email do Conselho Português para os Refugiados, requereu aos serviços de segurança social protecção jurídica, na modalidade de apoio judiciário - dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono -, com vista a “impugnar o despacho do Conselho Diretivo da AIMA que indeferiu o seu pedido de proteção internacional com vista à sua anulação e concessão de proteção internacional em Portugal”, indicando nesse mesmo requerimento a seguinte morada: “Quinta P… Norte, sn, 1…-7… Lisboa” (cf. fls. 65 a 68 do PA);
6.º - Em 11/06/2024, a petição inicial relativa ao presente processo deu entrada no SITAF (cf. páginas 01 a 05 do SITAF);
7.º - Em 17/06/2024, o ora Recorrente encontrava-se instalado no “EECIT de Faro (Aeroporto Gago Coutinho)” - (cf. fls. 76 e 77 do PA).
***
IV - Fundamentação de Direito.
A.1. Da oficiosamente suscitada (pela 1.ª instância) incompetência territorial do TACL para conhecer da presente causa
Importa deixar registado, antes de tudo, que foi o próprio Recorrente a dirigir a petição inicial impugnatória ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL), ou seja, segundo a perspectiva do então Impugnante, seria competente, em razão do território, o TACL e não qualquer outro Tribunal geograficamente distinto da jurisdição administrativa.
A presente problemática só se colocou, diga-se, sem responsabilidade do ora Recorrente, em resultado do despacho de 18/07/2024, proferido pelo então Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal a quo, em serviço de turno, que levantou a necessidade de se apurar o domicílio do então Impugnante para o efeito de determinar o tribunal territorialmente competente.
Realizadas as diligências ordenadas em ordem ao cumprimento do referido despacho, eis que o Tribunal a quo nenhuma consequência extraiu da questão por si mesmo despoletada e proferiu saneamento tabelar inserto na sentença recorrida, considerando-se genericamente competente em razão do território, sem, contudo, ter emitido uma concreta pronúncia sobre a matéria que, oficiosamente, ele próprio suscitara.
É contra tal falta de pronúncia que o Recorrente se insurge agora em sede recursiva, o que leva a que sobre a mesma tenhamos de nos debruçar, o que sempre assim seria, porquanto, tratando-se de uma questão de competência, o seu conhecimento é oficioso mesmo pelo Tribunal de apelação, atento o previsto o no artigo 13.º do CPTA, que prescreve o seguinte: “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.”
Apreciemos.
Em jeito introdutório, dizemos que as decisões administrativas proferidas em matéria de pedidos de protecção internacional, incluindo as relativas a pedidos apresentados nos postos de fronteira, nomeadamente, os das fronteiras aeroportuárias, são susceptíveis de impugnação jurisdicional, o que resulta dos artigos 22.º e 25.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06 (doravante apenas referida como Lei do Asilo - a lei estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou protecção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de protecção subsidiária).
O Recorrente, resumidamente, lança à presente impugnação jurisdicional a regra geral de atribuição de competência territorial preconizada no artigo 16.º, n.º 1, do CPTA, ou seja, a da residência habitual do autor, pretendendo agora retirar a competência territorial do TACL e indexá-la ao TAF de Loulé, porquanto, conforme sustenta, foi descortinado que o ora Recorrente, no momento da instauração da impugnação em juízo, afinal já se encontraria a residir no centro de instalação temporário do Aeroporto de Faro.
Mas sem razão.
Decorre do ponto 5.º do aditamento supra que, “Em 30/04/2024, o ora Recorrente, por intermédio de email do Conselho Português para os Refugiados, requereu aos serviços de segurança social protecção jurídica, na modalidade de apoio judiciário - dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono -, com vista a “impugnar o despacho do Conselho Diretivo da AIMA que indeferiu o seu pedido de proteção internacional com vista à sua anulação e concessão de proteção internacional em Portugal”, indicando nesse mesmo requerimento a seguinte morada: “Quinta P…, sn, 1…-… Lisboa”.
Pois bem, requerido que foi pelo ora Recorrente o apoio judiciário na modalidade de nomeação e compensação de patrono, é imperioso ter em atenção o disposto no artigo 33.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2024, de 29/07, a Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais, que dita o seguinte: “A acção considera-se proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono.”. Isto significa que, por força do citado comando legal, a presente impugnação se tem por proposta em juízo no dia 30/04/2024.
Importa também relacionar o acima exposto com o estipulado no artigo 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08, a Lei da Organização do Sistema Judiciário, aplicável “ex vi” do artigo 60.º, n.º 1, do CPC, e do artigo 1.º do CPTA, que dispõe o seguinte: “A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.”
Ora bem, se a presente impugnação se considera proposta na data em que foi apresentado o pedido de nomeação de patrono, ou seja, em 30/04/2024, por força do preceituado no artigo 33.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2024, de 29/07, e se a competência do Tribunal se fixa nessa mesma data (incluindo a competência em razão do território), isto é, no momento em que a impugnação foi proposta, atento o que rege o já aludido artigo 38.º, n.º 1, Lei da Organização do Sistema Judiciário, então, para o efeito de determinar a regra geral da residência habitual do autor, trazida pelo artigo 16.º, n.º 1, do CPTA, temos como único elemento comprovado pelo ora Recorrente a morada que o próprio deu naquele mesmo requerimento de apoio judiciário - “Quinta P…., sn, 1…-7… Lisboa.
Portanto, pelo acabado de afirmar se vê que o Recorrente não logra demonstrar que, naquela data (30/04/2024), outra fosse a sua residência, acrescendo dizer ainda que, embora conhecido o seu paradeiro em 17/06/2024 nas instalações do Aeroporto de Faro (cf. ponto 7.º do probatório aditado), ou seja, numa data já bem posterior à da instauração da demanda, isso não demonstra que, em 30/04/2024, o ora Recorrente já aí se encontrasse (no Aeroporto de Faro), o que, em rigor, até seria contraditório ao que afirmara no seu próprio requerimento de apoio judiciário (a morada em Lisboa).
E ainda que tal transferência do ora Recorrente entre centros de instalação temporária, plausivelmente, pudesse ter ocorrido em data posterior à de 30/04/2024, pois que, como dissemos, foi encontrado nas instalações do Aeroporto de Faro em 17/06/2024, tal facto, ainda assim, não teria qualquer virtualidade na determinação da competência territorial, pois que, atento o vertido no já mencionado artigo 38.º, n. 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, são irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente” (ao momento em que a ação foi proposta).
Assim sendo, contrariamente ao aduzido em conclusões recursivas, nada nos autos permite concluir que, comprovadamente, em 30/04/2024, data em que, legalmente, se deve considerar como a da propositura da presente impugnação, o ora Recorrente já se encontrava “instalado no Centro de Instalação Temporária (CIT) de Faro”.
Isto significa, face a todo o exposto, que inexiste comprovado elemento factual que permita indexar a competência territorial para julgar a presente impugnação ao TAF de Loulé, pelo que, em consequência, improcedem todas as conclusões recursivas nesse sentido, mantendo-se, por conseguinte, o acerto quanto à consideração da competência territorial do TAC de Lisboa.
***
A.2. Na que importa perscrutar quanto ao mérito propriamente dito da sentença recorrida, impõe-se dizer, em termos de enquadramento, que, compulsada a p.i., o ora Recorrente de modo exclusivo concentrou a sua argumentação em torno do dever de fundamentação que, alegadamente, foi incumprido pela ora Recorrida aquando da prolação do acto administrativo impugnado.
Vejamos, pois, a fundamentação de direito aduzida na sentença recorrida sobre tal vício de forma, transcrevendo-se o seguinte trecho, por ser aquele que, de modo mais relevante, interessa à decisão do presente recurso:
(…) 1. Do vício de forma por falta de fundamentação
Decorre do Probatório que o acto administrativo impugnado foi exarado sobre uma informação que contém a referência às alíneas a), e c) do n.º 1 do artigo 19.º e n.º 4 do artigo 24.º da Lei 27/2008, de 30.06. e à alínea d) do artigo 19.º-A da mesma Lei, e contém uma análise às declarações prestadas pelo Autor.
É referido como fundamento de facto, “o requerente apresentou-se no posto de fronteira com documento alheio, portanto indocumentado”, o que corresponde ao preenchimento da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei de Asilo.
Por outro lado, foi realizada uma análise às declarações prestadas pelo Autor, tendo-se concluído pelo preenchimento da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei do Asilo, que fez “declarações claramente incoerentes e contraditórias”.
Acresce que é mencionado que o Autor viajou para a Guiné-Bissau, que a Entidade demandada refere que é considerado um país seguro, segundo fontes internacionais.
Termos em que se conclui que o acto administrativo impugnado se encontra fundamentado de facto e de direito, sendo que o artigo 153.º, n.º 1 do CPA na redacção actual, admite a fundamentação por remissão para pareceres, informações ou propostas.
Neste âmbito, o Acórdão do STA, de 02.12.2010, Processo n.º 0554/10, disponível em www.dgsi.pt:
I – Segundo a jurisprudência uniforme deste STA, e atendendo à funcionalidade do instituto da fundamentação dos actos administrativos, ou seja, ao fim instrumental que o mesmo prossegue, um acto estará devidamente fundamentado sempre que um destinatário normal possa ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razões que a sustentam, permitindo-lhe apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela entidade administrativa, e optar conscientemente entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação.
II – A fundamentação por remissão, expressamente prevista no art. 125º, nº 1 do CPA consiste na remissão para os termos de uma informação, parecer ou proposta que contenha, ela mesma, a motivação do acto, de tal modo que essa remissão deve ser entendida no sentido de que o acto administrativo absorveu e se apropriou da respectiva motivação ou fundamentação, que, assim, dele ficará a fazer parte integrante.
O Acórdão do TCAN, 24-02-2023, Processo n.º 00233/21.6BECBR, que sufragou o seguinte entendimento, ao qual se adere (Acórdão disponível em www.dgsi.pt):
“1.A fundamentação do ato administrativo tem por finalidade dar a conhecer ao destinatário o percurso cognitivo e valorativo do autor daquele mesmo ato, de modo a permitir uma defesa adequada e consciente dos direitos e interesses legalmente protegidos do particular lesado. Para tanto, a fundamentação tem que ser suficiente, clara e congruente, de forma a permitir ao destinatário médio ou normal, colocado na posição do real destinatário do ato, compreender a motivação que subjaz ao raciocínio decisório.(…).”
Mesmo que fosse procedente o vício de forma por falta de fundamentação, que não é o caso, seria de aplicar o princípio do aproveitamento do acto administrativo (cf. artigo 163.º, n.º 5, alínea a) do CPA na redaçcão vigente), considerando a análise realizada pela Entidade demandada às declarações prestadas pelo Autor em sede de procedimento administrativo e o disposto nos artigos 3.º e 7.º da Lei de Asilo.
Neste âmbito, o Acórdão do TCAN, de 04-05-2018, Processo n.º 00446/10.6BEMDL sufraga o seguinte entendimento, ao qual se adere (acórdão disponível em www.dgsi.pt):
1 – Verificado o vício de falta de fundamentação, será ainda assim de aplicar o princípio do aproveitamento do ato administrativo em casos de atos vinculados, ou de situações, como a presente, em que, a proceder-se à correção do vício de forma verificado, a Administração não poderia ter outra conduta se não aquela já antes adotada.
2 - Independentemente da insuficiente fundamentação contemporânea do ato, e considerando todos os condicionalismos que envolveram a prática do ato objeto de impugnação, outra não poderia ser o sentido da decisão proferida, valendo pois o princípio do aproveitamento dos atos administrativos - utile per inutile non vitiatur.
Não está em causa sanar os vícios detetados, mas tão-só tornar inoperante a força invalidante dos mesmos, em resultado da verificada inutilidade da anulação resultante do juízo de evidência quanto à conformidade material do ato com a ordem jurídica, uma vez que a anulação do ato não traduz vantagem real ou alcance prático para o impugnante. *
Termos em que se julga improcedente o vício de forma por falta de fundamentação, e deverá ser julgado improcedente o pedido de condenação à prática do acto devido de concessão de asilo ou de autorização de residência por protecção subsidiária e por isso, deverá a acção ser julgada totalmente improcedente.
O Recorrente, sobre tal temática, em conclusões de recurso, asseverou o seguinte: “H) Ao A. tão só foi notificado o seguinte: “Proposta sobre o PPI n.º ............/2024 “Deve o pedido de proteção internacional ser considerado infundado, nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 19.º, inadmissível nos termos da alínea d) do artigo 19.º e no n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, na sua atual redação.” - (Vd. documentos 1 e 2 juntos com a p.i.)
I) Do ato administrativo de rejeição do pedido de proteção internacional notificado ao A. não constam os motivos de facto, e a respetiva integração no direito aplicável, o que consubstancia, por um lado, a inexistência de fundamentação do ato administrativo e, por outro, deveria constar do teor da notificação a enviar ao visado, o que não se verificou;
J) A decisão recorrida, ao invés de apurar se a notificação entregue ao aqui A. respeitava a fundamentação, de facto e de direito, do ato, procurou justificar a ausência daquela fundamentação pela Ré, o que violou o disposto nos art. 268º nº3 da CRP e arts. 114.º n.º 2, alínea a), 152.º e 153.º, todos do CPA.
K) Preceitos legais que deveriam ser interpretados e aplicados pelo tribunal recorrido no sentido de reconhecer a inexistência de fundamentação da decisão da Ré, ou a sua não notificação ao A., o que, na prática, redunda no mesmo vício processual: a impossibilidade do A. compreender a decisão e reagir adequadamente à mesma e, consequentemente, proceder à anulação da decisão administrativa da Ré, com as legais consequências”
Analisemos, pois, tais conclusões.
Desde já se adianta que, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não se verifica qualquer erro de julgamento do Tribunal a quo sobre a apreciação da temática do dever de fundamentação do acto impugnado.
A sentença recorrida considera, e bem, que o acto impugnado teve como suporte documentalmente fundamentador a informação dos serviços da Recorrida sob o n.º ............/2024, na qual incidiu declaração de concordância do titular do órgão investido de competência decisora e, como tal, para a prolação do acto impugnado.
O acto impugnado absorveu, assim, a fundamentação de facto e de direito inclusa em tal informação técnica antecedente, no que, comumente, se denomina por fundamentação “per relationem”, preconizada no artigo 153.º, n.º 1, do CPA.
De igual modo disse o Tribunal a quo que o acto impugnado teve por alicerce o teor das declarações prestadas pelo ora Recorrente, o que se mostra correcto, bastando, para tal, ter em atenção que a referida informação n.º ............/2024 a tal facto atesta (a prestação de declarações e seu teor – cf. fls. 48 a 50 do PA – cf. ponto 2.º do probatório por nós aditado), servindo, pois, de novo elemento justificativo da decisão impugnada. É ainda tido por relevante na sentença recorrida o excerto motivador do acto impugnado em que os serviços da ora Recorrida consideraram tais declarações “claramente incoerentes e contraditórias”.
De igual modo, é perfeitamente percebido da fundamentação do acto impugnado, tal como bem apreciou a sentença recorrida, que o ora Recorrente entrou na fronteira aeroportuária portuguesa com “documento alheio, portanto indocumentado”, facto esse que foi subsumido pelo acto impugnado à “alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei de Asilo”. Isto demonstra, pois, que ao acto impugnado foi aportada fundamentação de facto e de direito, como bem ajuizou a sentença recorrida.
Foi ainda tido em atenção pela sentença recorrida que o acto impugnado afirma que (prestadas as declarações) “é mencionado que o Autor viajou para a Guiné-Bissau, que a Entidade demandada refere que é considerado um país seguro, segundo fontes internacionais.”
Portanto, bem vistas as coisas, só podemos concluir no mesmo sentido em que concluiu a sentença recorrida, ou seja, de que o acto impugnado é perceptível quanto ao seu iter cognoscitivo, mostrando-se fundamentado de facto e de direito, ainda que “per relationem”, conforme o previsto no artigo 153.º, n.º 1, do CPA.
Diferente questão é já a de saber se esses factos e o direito foram devidamente interpretados ou convocados pelo acto impugnado, sendo questão que, todavia, já nada tem a ver com o vício de forma por falta de fundamentação, mas sim com erro sobre os pressupostos de facto ou/e de direito, matéria que, contudo, face às conclusões recursivas, já não está em cima da mesa.
Em suma, neste segmento, improcedem as conclusões recursivas, mantendo-se o acerto do julgamento formulado pela sentença recorrida sobre tal matéria.
Prosseguindo, vem ainda o Recorrente trazer a seguinte argumentação: “deveria constar do teor da notificação a enviar ao visado, o que não se verificou (…)”;A decisão recorrida, ao invés de apurar se a notificação entregue ao aqui A. respeitava a fundamentação, de facto e de direito, do ato (…); “a inexistência de fundamentação da decisão da Ré, ou a sua não notificação ao A., o que, na prática, redunda no mesmo vício processual (…)” – (sublinhados nossos).
Isto é, o Recorrente lança a temática supra, que, no seu entender, também justifica a invalidade do acto impugnado: a incompletude do teor da notificação do acto, ou, dizendo de outra forma, a falta de notificação da fundamentação do acto ao ora Recorrente.
Acontece que, não se pode confundir o acto impugnado com o acto da sua notificação, pois que, o segundo é mera condição de eficácia ou de oponibilidade do primeiro, não advindo o inquinamento do acto carecido de notificação por conta de eventuais vícios do acto que o notifica.
Improcede, assim, tal conclusão de recurso.
À míngua de outras ou substanciadas conclusões de recurso, de que só ao Recorrente competia esgrimir, entendemos que ao recurso deve ser negado provimento e a sentença recorrida, com a presente fundamentação, deve ser mantida.
***
Sem custas, por ser gratuito o processo, nos termos do artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho.
***
Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - Em termos legais, a impugnação jurisdicional em matéria de protecção internacional também se considera proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono e a competência do Tribunal fixa-se no momento em que tal impugnação é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.
II - O artigo 153.º, n.º 1, do CPA, permite a fundamentação dos actos administrativos “per relationem”, ou seja, através de declaração de concordância alicerçada em anteriores pareceres, propostas ou informações dos serviços, que passam a constituir parte integrante do respectivo acto.
III - Não se pode confundir o acto impugnado com o acto da sua notificação, pois que, o segundo é mera condição de eficácia ou de oponibilidade do primeiro, não advindo o inquinamento do acto carecido de notificação por conta de eventuais vícios que padeça o acto que o notifica.
***
V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, com a presente fundamentação, em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 27 de Março de 2025.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Ana Lameira – (1.ª Adjunta)
Joana Costa e Nora – (2.ª Adjunta, em substituição)
Declaração de voto:
Em relação à questão relativa à (in)competência relativa, acompanho a decisão, mas não a fundamentação.
Ana Lameira