Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
31078/22.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: DECISÃO SINGULAR
PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (PERSI)
EXCEÇÃO DILATÓRIA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
REQUISITOS
CONHECIMENTO OFICIOSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
IRREGULARIDADE
Data da Decisão Sumária: 04/30/2025
Votação: - -
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL
Decisão: REVISTA CONCEDIDA/PROCEDENTE
Sumário :
A violação do princípio do contraditório, consubstanciando a prolação de uma decisão surpresa corresponde a uma ilegalidade, ou seja, a violação da lei (que impõe o contraditório) e, por isso, torna a decisão nula, porque ilegal.
Decisão Texto Integral:

Cofidis, S.A. instaurou a presente acção, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo a condenação deste a pagar à A. a importância de € 38.608,54 acrescida de € 1.145,46 de juros vencidos até ao presente – 29/12/2022 - e de € 45,82 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que sobre a dita quantia de € 38.608,54 se vencerem, à taxa anual de 11,90%, desde 30/12/2022 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que à referida taxa de 4% sobre estes juros recair.

Para fundamentar tal pedido alegou a A. que, no exercício da sua actividade comercial, celebrou com o R., no dia 04/01/2022, um contrato de crédito pessoal no montante de € 35.000,00, com juros à TAEG de 11,90% ao ano; A. e R. acordaram que o referido capital e juros, bem como o prémio do seguro, a comissão de abertura, o imposto de selo de abertura de crédito e imposto de selo sobre tais juros seriam pagos em 84 prestações, mensais e sucessivas, cada uma no valor de € 643,84, vencendo-se a primeira no dia 05/02/2022 e as seguintes no dia 5 dos meses subsequentes; o R. não procedeu ao pagamento de qualquer prestação, tendo sido interpelado para o efeito, por carta registada com aviso de receção datada de 09/09/2022; a A., face ao reiterado incumprimento do R., procedeu à resolução do contrato com efeitos em 30/09/2022, data em que o montante em dívida pelo R. se cifrava em € 38.608,54.

Regularmente citado para o efeito o R. não apresentou contestação nos autos.

De seguida pela M.ma Juiz “a quo” foi proferida sentença que, por falta de alegação da A., na sua petição inicial, de ter integrado o R. no PERSI, previamente à instauração da presente acção, decidiu absolver o R. da instância por verificação de excepção dilatória inominada, a qual é de conhecimento oficioso.

Inconformada com tal decisão dela apelou a A. para a Relação de Lisboa que, por acórdão datado de 20/6/2024, confirmou a sentença proferida na 1ª instância.

Novamente inconformada com o teor do aresto supra referido veio a A. interpor recurso de revista excepcional para o STJ, tendo por base o disposto no art.672º nº1 alínea c) do C.P.C., sendo que a Formação prevista no nº3 do citado art.672º, por acórdão de 9/12/2024, admitiu tal recurso por existência de contradição jurisprudencial.

E, em tal recurso, apresentou a A. as suas alegações, terminando as mesmas com as seguintes conclusões:

i. É manifesta a identidade da situação abordada no Acórdão recorrido com aquela que foi objecto do Acórdão-fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, 5.ª Secção, processo n.º 2129/21.2T8PNF.P1, já transitado em julgado, conforme certidão adiante junta como doc. n.º 1, pelo que o presente recurso é admissível.

ii. A ora recorrente não estava nem está sequer obrigada a alegar a factualidade referente ao PERSI a que alude o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro aquando da instauração da acção, pois nos termos do disposto no artigo 5.º n.º 1 do Código de Processo Civil, cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

iii. Na petição inicial, a ora recorrente alegou os factos essenciais que constituem a causa de pedir, tendo designadamente alegado a celebração do contrato com o R., os seus termos, os montantes pagos ao abrigo do contrato, o seu incumprimento e a sua subsequente resolução, pois são estes e apenas estes os factos essenciais que cabia à ora recorrente alegar aquando da instauração da acção.

iv. Note-se aliás que o PERSI representa um mecanismo extrajudicial de apoio à regularização de situações de incumprimento no âmbito da vigência do contrato, pelo que entre a celebração do contrato e o seu incumprimento definitivo poderá verificar-se a integração, em vários momentos, do cliente incumpridor em diversos mecanismos de PERSI.

v. O PERSI é, assim, uma mera vicissitude que surge aquando da vigência do contrato, e que se pode repetir por uma ou mais vezes antes do incumprimento definitivo, mas que não reveste um carácter de essencialidade da causa de pedir dos autos.

vi. Logo, é totalmente irrazoável que a ora recorrente, ao intentar uma acção para a condenação no pagamento das quantias emergentes do incumprimento de um contrato, estivesse obrigado a alegar a integração ou não do R. no âmbito do PERSI na petição inicial, sob pena de o mesmo ser de imediato absolvido da instância sem possibilidade de contraditório.

vii. Caso tal sucedesse, para além da ora recorrente estar obrigada a alegar factos meramente instrumentais, impenderia também sobre a ora recorrente um ónus da prova de um facto negativo, o que contraria o disposto no artigo 342.º do Código Civil.

viii. A sentença de 1.ª Instância proferida nos autos é nula, como igualmente é nulo o Acórdão-recorrido, atento o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, nulidade que expressamente se invoca.

ix. Com efeito, o Acórdão recorrido confirmou a sentença proferida em 1.ª instância que, recorde-se, decidiu de forma surpreendente absolver o R. da instância, com o fundamento na verificação de uma pretensa excepção dilatória atípica ou inominada, de falta de integração da R. no PERSI, não tendo em momento algum sido dada ao ora recorrente a possibilidade de se pronunciar quanto à pretensa verificação de tal excepção.

x. Tanto a sentença proferida em 1.ª Instância como o Acórdão recorrido configuram assim uma verdadeira decisão-surpresa, violando frontalmente o princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil conforme aliás entendido e decidido já pelo Tribunal da Relação do Porto, em acórdão proferido aos 02/12/2019 no processo 14227/19.8T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt;

xi. Em momento algum foi suscitada nos autos a possível verificação de tal excepção, sendo que caso tal tivesse sucedido a ora recorrente teria de imediato exercido o contraditório e junto aos autos os documentos comprovativos de ter cumprido – conforme o fez – com as disposições relacionadas com o PERSI.

xii. Tanto a sentença proferida em 1.ª Instância como o Acórdão recorrido consideram estar-se perante um vício insuprível – a falta de alegação do cumprimento do PERSI – quando na realidade tal vício poderia ter sido suprido pela ora recorrente, caso lhe tivesse sido formulado um convite para o efeito.

xiii. Caso assim não se entenda, o que por mera cautela se admite, sempre se dirá que tanto a sentença proferida em 1.ª Instância como o Acórdão recorrido serão em todo o caso nulos nos termos do disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil, dado que os mesmos poderão sempre padecer da nulidade geral aplicável aos actos processuais caso violem directamente a Lei, o que é nitidamente o caso.

xiv. É totalmente incompreensível o motivo pelo qual o Tribunal de 1.ª Instância profere a sentença que dos autos consta, em violação grosseira do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, pois não facultou em nenhum momento à ora recorrente a possibilidade de se pronunciar quanto à verificação de tal excepção e, bem assim, de a suprir comprovando nos autos a integração da R. no âmbito do PERSI.

xv. É também deveras surpreendente, no entender da ora recorrente, que tal posição tenha sido sufragada pelo Acórdão recorrido.

xvi. O Acórdão recorrido cita inclusivamente diversas outras decisões jurisprudenciais das quais não se extrai a conclusão de ser obrigatória a alegação, em sede de petição inicial, da matéria referente à integração e extinção do PERSI, sob pena de imediata absolvição da instância do R.

xvii. As diversas decisões jurisprudenciais citadas pelo Acórdão recorrido limitam-se apenas a tecer considerações quanto aos formalismos necessários para que tal integração e extinção do PERSI se considere validamente cumprida antes da resolução do contrato de crédito.

xviii. Contudo, o que está em causa nos presentes autos vai muito para além do formalismo inerente ao cumprimento de tal obrigação.

xix. Está em causa saber se o Tribunal de 1.ª instância devia ter convidado a ora recorrente a suprir tal irregularidade, mediante a prolação de um simples despacho, ou se pelo contrário devia simplesmente desaproveitar o estado dos autos e proferir uma sentença totalmente arbitrária absolvendo o recorrido da instância, sem facultar a possibilidade de exercício do contraditório por parte da ora recorrente.

xx. Ao invés de ter decidido da forma que o fez, o Acórdão recorrido deveria ter decidido no sentido de declarar nula a sentença proferida em 1.ª Instância, ordenando simultaneamente a baixa do processo com vista a que fosse proferido despacho que convidasse a ora recorrente a alegar e comprovar a integração do recorrido no âmbito do PERSI a que alude o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, não só pelo facto de tal alegação não ser obrigatória na petição inicial, como também pelo facto de, não o tendo feito, ter violado de forma grosseira o princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

xxi. Deve assim revogar-se o Acórdão recorrido, substituindo-o por Acórdão que ordene a baixa dos autos ao Tribunal de 1.ª Instância, por forma a que o mesmo profira despacho convidando a ora recorrente a alegar e comprovar a integração do recorrido no âmbito do PERSI a que alude o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, desta forma se fazendo Justiça.

Pelo R. não foram apresentadas contra alegações de recurso.

Atenta a não complexidade da questão a dirimir o relator irá fazer uso da faculdade que lhe é conferida pelo disposto nos arts.652° nº l alínea c) e 656º, aplicáveis “ex vi” do art.679º, todos do C.P.C., e apreciar essa questão jurídica mediante decisão sumária apenas por si proferida.

Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º nº 1 do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.

Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (art. 635º nº3 do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº4 do mesmo art. 635º).

Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.

No caso em apreço emerge das conclusões da revista (excepcional) apresentadas pela A., aqui recorrente, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se o acórdão é nulo, por violação do princípio do contraditório (cfr. art.3º nº3 do C.P.C.) - constituindo, por isso, uma verdadeira decisão surpresa - por ter sustentado a verificação da excepção dilatória inominada decorrente da falta de integração do R./devedor no PERSI, a qual é de conhecimento oficioso, sem previamente ter ouvido a A. para, querendo, se pronunciar.

Na sentença da 1ª instância e no acórdão recorrido foram considerados provados os factos alegados na petição inicial, tendo-se remetido para tal peça processual esse elenco factual.

Além disso, face ao objecto do presente recurso de revista, revela-se totalmente desnecessário estar a indicar aqui tais factos, bastando a descrição sumária acima enunciada.

Ora, apreciando, de imediato, a questão jurídica suscitada pelo A. – a qual se encontra supra identificada – importa referir a tal propósito que, nos termos do nº3 do art. 3º do C.P.C.: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

E, acrescenta o nº 4: “Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.”

Estes normativos legais consagram o princípio do contraditório como princípio geral e na vertente proibitiva da decisão-surpresa (n.º 3) e no atinente à alegação dos factos da causa (n.º 4), garantindo-se às partes a sua efectiva intervenção no desenvolvimento de todo o litígio, sob pena de nulidade da decisão que o não observe (contraditório dinâmico).

A este respeito afirmam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in C.P.C. Anotado, Vol. 1º, 3ª ed., pág. 7, o seguinte:

- “Resultam estes preceitos duma conceção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento. Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.”

Do princípio do contraditório - que é uma decorrência do princípio da igualdade das partes estabelecido no art. 4º do C.P.C. - emana, pois, o direito da parte ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma acção e, logo, um direito à audição prévia antes de contra ela ser tomada qualquer decisão ou providência, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a poder tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta, que consiste “na faculdade, concedida a qualquer das partes, de responder a um acto processual (articulado, requerimento, alegação ou acto probatório) da contraparte.” – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1997, págs.46/47.

Por força desse entendimento amplo da regra do contraditório e face à garantia de processo equitativo do artigo 20º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, a decisão final só deve ser proferida, assegurada que seja a participação efectiva dos titulares da relação litigiosa, ou seja, antes de decidir, o juiz deve facultar às partes a invocação de razões que julguem pertinentes perante uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, e, sobremaneira, face à invocação de qualquer excepção pela outra parte – cfr. ainda nesse sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, C.P.C. Anotado, Vol. I, 2018, pág. 19.

Do princípio do contraditório decorre, pois, a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.

A decisão-surpresa que a lei pretende afastar é aquela que revela uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, ou seja, não podem ser confrontadas com decisões com que não poderiam contar, o que não abrange os fundamentos utilizados pelo tribunal para fundamentar decisões que eram previsíveis ou que as partes devessem esperar ou admitir como possíveis.

No caso em apreço, perante os factos aduzidos na petição inicial entenderam as instâncias que a A., porque omitiu qualquer menção ao PERSI, não tinha dado cumprimento à obrigação de integrar o devedor mutuário - o R. - nesse procedimento extrajudicial, mas fizeram-no sem que os elementos aduzidos pela parte a tanto as autorizassem.

Na verdade, como sustenta a A., aqui recorrente, não é a mera circunstância de ter sido omitida qualquer menção à sujeição do devedor ao PERSI que permite afirmar - sem mais - que tal integração não ocorreu!

Com efeito, da mera leitura da petição inicial apresentada nos autos e na ausência de quaisquer documentos que a suportassem, não podiam as instâncias concluir no sentido da evidência de falta de integração do R. no PERSI, devendo, ao contrário, diligenciar pela obtenção de informação clara sobre essa matéria.

Por isso, é nosso entendimento que, na situação sub judice, face à ausência de qualquer menção por parte da A. relativamente à integração do R. no PERSI, e porque não se mostravam juntos quaisquer documentos sobre tal matéria (ainda que, na verdade, fosse de ponderar sobre se se estaria perante um caso de obrigatória submissão do devedor mutuário ao procedimento extrajudicial em referência), impunha-se às instâncias que determinassem a notificação da A. para - ao abrigo do disposto no art.3º nº3 do C.P.C e no prazo que tivessem por conveniente - esclarecer o seu articulado no que a esse ponto concerne e, mais do que isso, juntar toda a documentação tida por relevante e pertinente para essa apreciação.

E, relativamente à questão das decisões surpresa veja-se, entre outros, o Ac. da R.P. de 2/12/2019 (Relatora Eugénia Cunha), disponível in www.dgsi.pt, no qual se afirmou, a tal propósito, que:

- Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório ideias de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema, dinâmico, de comunicações entre as partes e o Tribunal.

- Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.

- Decisão - surpresa é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.

- Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.

- Contudo, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito, mesmo que meramente adjetivas, suscetíveis de virem a integrar a base de decisão, situação presente.

- A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que adjetivo.

Por outro lado - e em caso idêntico ou similar ao dos presentes autos, no qual a A. também foi parte/recorrente - importa ter presente o Ac. da R.P. de 10/10/2022 (Relator José Eusébio de Almeida) no qual, a dado passo, foi afirmado o seguinte:

- (…) Como decorre do sentenciado, o réu foi absolvido da instância, uma vez que se julgou verificada a exceção atípica, de natureza insuprível e de conhecimento oficioso, da falta de integração do réu no PERSI.

No seu recurso, a apelante, ainda que venha a pedir a revogação da sentença, coloca como primeira e relevante questão a da nulidade da sentença e se invoca o disposto no artigo 615, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil (CPC) não deixa também de invocar expressamente a prolação pelo tribunal recorrido de uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do CPC), uma vez que a causa (questão) de absolvição do réu da instância nunca foi, precisamente, objeto de contraditório, nunca foi antecipada no processo.

Neste contexto processual, há que decidir se houve violação do princípio do contraditório e, tendo havido, que consequência retirar.

Antes de mais, diga-se que a invocação da violação do contraditório, depois de proferida a sentença que consubstancia essa (invocada) violação, suscita-se em via de recurso, como exatamente sucedeu no caso presente. Por outro lado, e muito em síntese, por não termos dúvidas de estarmos perante um entendimento consensual, o princípio do contraditório é um princípio jurídico fundamental e estrutural de qualquer processo judicial moderno, impondo a garantia, com assento constitucional2 , de ninguém poder ser atingido pelos efeitos de uma decisão judicial sem ter tido a possibilidade de intervir na sua formação, isto é, impõe-se ouvir a outra parte (Audiatur et altera pars) antes da decisão, sempre que se esteja perante uma decisão que não seja de mero expediente ou inócua ao direito da parte – cfr. Jorge Miranda/Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I – 2.ª ed., pág. 443).

Importa, pois, saber qual a consequência de não ter sido dada à recorrente a possibilidade de pronúncia, antes da decisão (realidade que os autos revelam de modo inequívoco) que determinou a absolvição da instância.

Ainda que a violação do princípio do contraditório, consubstanciando a prolação de uma decisão surpresa seja entendido por alguma doutrina e jurisprudência como correspondendo à nulidade (da sentença) por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615, n.º 1, alínea d), segunda parte, do CPC, preceito invocado pela recorrente, entendemos, com todo o respeito por outra opinião, que tal violação corresponde a uma ilegalidade, ou seja, a violação da lei (que impõe o contraditório) torna a decisão ilegal.

Como refere Rui Pinto “como qualquer outro ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cf. artigo 378). A decisão não pode deixar de ser nula”- cfr. “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º) Julgar Online, maio de 2020, pág. 31.

Em consequência do que acaba de ser dito, e independentemente da natureza da exceção decretada na sentença (que, diga-se, custa a entender como insuprível, quando nenhuma oportunidade de suprimento foi dada) temos de concluir que a sentença, porque ilegal, é nula. Efetivamente, não resulta minimamente dos autos, pelo contrário, que à autora haja sido dada a oportunidade de se pronunciar sobre a questão que veio a fundamentar a absolvição do réu da instância.

Esta nulidade, no entanto, não implica, nem justifica, a substituição ao tribunal recorrido.

Com efeito, o disposto no artigo 665, n.º 1 do CPC só tem cabimento nos casos de nulidade (de sentença) pelos fundamentos constantes do artigo 615 do mesmo diploma legal.

Diversamente, no caso em apreço, a violação da norma processual que impõe o contraditório, tornando a decisão ilegal, impõe a revogação e substituição desta pela determinação do cumprimento da norma processual omitida, com prejuízo dos demais atos incompatíveis praticados em primeira instância.

Nestes termos, atentas as razões e fundamentos supra explanados, forçoso é concluir que o acórdão recorrido não se poderá manter - de todo - e, por via disso, concede-se a revista (excepcional) interposta pela A., declara-se nulo tal acórdão e, em consequência, determina-se que os autos baixem à 1ª instância a fim de ser cumprido o contraditório relativamente ao fundamento que determinou a absolvição do R. da instância - para que sejam praticados os actos que se mostrem estritamente necessários, em decorrência do aludido cumprimento do contraditório – e, posteriormente, seja proferida uma nova sentença em conformidade.


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Finalmente, atento o estipulado no nº 7 do art.663º do C.P.C. passamos a elaborar o seguinte sumário:

- A violação do princípio do contraditório, consubstanciando a prolação de uma decisão surpresa corresponde a uma ilegalidade, ou seja, a violação da lei (que impõe o contraditório) e, por isso, torna a decisão nula, porque ilegal.


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Decisão:

Pelo exposto decide-se julgar procedente o presente recurso interposto pela A. e, em consequência, concede-se a revista e declara-se nulo o acórdão recorrido nos exactos e precisos termos constantes da parte final da presente decisão (cfr. fls.10).

Sem custas.


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Lx., 29/4/2025 (à noite)

Rui Machado e Moura