Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5958/18.0T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
FUNDAMENTOS
OMISSÃO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
DIREITO AO ARRENDAMENTO
CASAMENTO
CÔNJUGE
COMUNICABILIDADE
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A exigência legal da indicação do fundamento específico da recorribilidade tem em vista aquelas situações em que o recurso não é por princípio admissível, a menos que se invoque uma razão a que a lei associe a possibilidade extraordinária (específica) de recurso.
II - Deste modo, se estamos perante uma revista normalmente admissível carece de razão de ser falar-se na omissão indevida dessa indicação.
III - Com a Lei n.º 6/2006, que aditou ao CC o art. 1068.º, instituiu-se a regra da comunicabilidade ao cônjuge, de acordo com o regime de bens vigente, do direito do arrendatário habitacional.
IV - Tal comunicabilidade opera relativamente a contratos estabelecidos anteriormente à entrada em vigor do RAU, que subsistam, e não apenas relativamente aos constituídos após a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006.
V - Quando se verifica um decaimento, não é através da ampliação do âmbito do recurso aberto pela outra parte que o recorrido poderá promover a reapreciação da decisão que lhe foi desfavorável, mas sim através de recurso próprio.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º5958/18.0T8FNC.L1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação …….

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I – RELATÓRIO

AA, BB e CC demandaram, pelo Juízo Central Cível………. e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, DD, peticionando a condenação da Ré:

- A reconhecer que a herança indivisa de EE, por elas representada, é proprietária do prédio urbano que identificam;

- A restituir esse prédio à herança, em bom estado de manutenção e livre de pessoas e bens;

- A indemnizar pelos prejuízos que a ocupação ilegal e legítima da Ré vem causando.

Para tanto, alegaram, em síntese, ter a sua mãe, entretanto falecida, dado de arrendamento, por volta do ano de 1960, parte desse prédio a FF.

Este, que foi casado com a Ré, faleceu em 12 de Abril de 2018.

Por força da morte do arrendatário, o contrato de arrendamento caducou, não se tendo operado a transmissão do arrendamento para a Ré porque esta possui outra casa no respetivo concelho.

O que tornou exigível a entrega do local às Autoras.

Sucede que a Ré se mantém a ocupar o local.

O que causa prejuízo às Autoras.

Razão pela qual assiste às Autoras o direito à reivindicação da sua propriedade e à reparação do dano que a ocupação da Ré lhes causa.

Contestou a Ré, concluindo pela improcedência da ação.

Para além de impugnar parte da factualidade alegada pelas Autores, disse, em síntese, que o arrendamento foi estabelecido com ela e marido, pelo que, com o falecimento deste, se concentrou na sua pessoa o direito ao arrendamento.

De outro lado, era casada em regime de comunhão geral de bens, e por isso sempre se lhe teria comunicado, nos termos da lei atual, o direito ao arrendamento, estando agora tal direito concentrado na sua pessoa.

Ainda, o contrato de arrendamento nunca teria caducado por morte do primitivo arrendatário, antes se teria operado a transmissão para a Ré do direito ao arrendamento, na medida em que a casa que tem não constitui uma alternativa viável para a sua habitação.

Seguindo o processo os seus devidos termos veio, a final a ser proferida sentença que julgou improcedente a ação.

Inconformadas com o assim decidido, apelaram as Autoras.

Fizeram-no com êxito, pois que a Relação ……. revogou a sentença e condenou a Ré nos efeitos peticionados.

É agora a vez da Ré, inconformada com a decisão assim tomada, pedir revista.

Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

A. O contrato de arrendamento para fins habitacionais está sujeito à aplicação das normas transitórias constantes do NRAU, mesmo que este lhes seja anterior.

B. Nenhuma das normas transitórias exclui expressamente a aplicação do art. 1068.º do Código Civil, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 6/2006, aos contratos de arrendamento que sejam anteriores ao NRAU – bem pelo contrário, conforme dispõe o art. 59.º do NRAU.

C. A referida norma do Código Civil estabelece a comunicabilidade do contrato de arrendamento ao cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente.

D. No caso concreto, o contrato de arrendamento foi celebrado no ano de 1963 por FF, na qualidade de arrendatário.

E. A 1 de fevereiro de 1964  FF contraiu matrimónio com a Ré, celebrado sob o regime de comunhão geral de bens, com esta residindo no locado desde então e constituindo este a respetiva casa de morada de família.

F. Casamento que só chegou ao fim com o falecimento de FF, a 12 de Abril de 2018, altura em que o NRAU – e, consequentemente, o art. 1068.º do Código Civil na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 6/2006 – já vigorava há mais de 10 anos.

G. De 1 de fevereiro de 1964 a 12 de abril de 2018 (já em plena vigência do NRAU) o falecido e a recorrida residiram no locado enquanto casal, constituindo aquele a respetiva casa de morada de família durante mais de 50 anos.

H. Daqui resulta que não existiu qualquer caducidade do contrato de arrendamento ou transmissão do mesmo a favor da Recorrente devido ao falecimento do seu marido, originário outorgante.

I. O que existiu, na realidade, foi a comunicabilidade do mesmo ao abrigo do art. 1068.º do Código Civil, que é automática, por efeito da lei, sem necessidade de qualquer comunicação ou aceitação do senhorio.

J. Pelo exposto, enquanto FF estava vivo e casado sob o regime da comunhão geral com a Recorrente e com esta residia no locado, casa de morada de família, o contrato passou a ser plural e titulado não só pelo falecido como também pela Recorrente.

K. Posteriormente, com o falecimento de FF, o contrato de arrendamento passou a ser titulado unicamente pela Recorrente, situação que se mantém até ao presente.

L. Sendo a Recorrente casada em regime de comunhão geral de bens com o inquilino inicial, as despesas contraídas são comunicáveis (art. 1691.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 do Código Civil) onde se incluem as rendas, ou seja o direito ao arrendamento foi pago com as economias do casal.

M. O NRAU ao ter restringido a transmissibilidade do direito de arrendamento em caso de morte do primitivo arrendatário (vide art.s 57.º da Lei n.º 6/2006 para os arrendamentos antigos e o art. 1106.º do Código Civil para os posteriores) atendeu, em contrapartida, à situação locatícia dos casados em regime de comunhão considerando que o direito de arrendamento se comunica ao cônjuge supérstite (art. 1068.º do Código Civil).

N. Comunicabilidade que tem a sua razão de ser exatamente no regime de bens que vigorou entre os casados independentemente de ter sido contraído antes ou depois da entrada em vigor do NRAU.

O. Sendo esta a legítima e verdadeira arrendatária do locado.

P. E mantendo-se válido o contrato de arrendamento nestes termos até ao presente.

Q. Por esse motivo não podem os pedidos nem a ação intentada pelas Autoras proceder, devendo, ao invés, a Ré ser totalmente absolvida dos pedidos, na esteira da decisão proferida pelo Juízo Central Cível …… .

                                                           +

As Autoras contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

Questão prévia:

Afirmam as Autoras na sua contra-alegação que “Nas suas conclusões, a Recorrente não indica o fundamento específico de recorribilidade, conforme determina o artigo 637.º, n.º 2, do CPC; pelo que deve o recurso ser rejeitado ou a parte eventualmente convidada a aperfeiçoar as suas conclusões (…)”.

Trata-se, porém, de pretensão carecida de fundamento, pelo que é indeferida.

É que não estamos perante um recurso cuja admissibilidade esteja sujeita a qualquer fundamento específico, razão pela qual a Recorrente também não tinha (rectius, podia) que invocar esse fundamento.

Estamos é bem perante um comum recurso de revista, normalmente admissível.

A exigência legal da indicação do fundamento específico da recorribilidade tem em vista aquelas situações em que o recurso não é por princípio admissível, a menos que se invoque uma razão a que a lei associe a possibilidade extraordinária (específica) de recurso. É o que sucede nos casos em que o recurso não seria admissível por razão de alçada, mas em que se quer recorrer ao abrigo de hipóteses identificáveis no n.º 2 do art. 629.º do CPCivil (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., pp. 106 e 107, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., pp. 158 e 159).

Não é, como se vê à evidência, o caso.

Portanto, não há que rejeitar o recurso ou que convidar ao aperfeiçoamento das conclusões.

                                                           +

Cumpre apreciar e decidir o recurso.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

É questão a conhecer:

- Saber se o direito ao arrendamento se comunicou à Ré, com as inerentes consequências.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes (com o acrescento introduzido pelo tribunal recorrido):

A. O prédio urbano situado no Beco ……., no ………, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….36, descrito na Conservatória do Registo Predial…… sob o número ….37, da freguesia…….., composto por duas partes autónomas, sendo (i) uma com entrada pelo número de porta "….D", situada ao nível do rés-do-chão, e (ii) outra com entrada pelo número de porta "….C", situado ao nível do 1.° andar, mostra-se registado, pela Ap. ….72 de 2010/…… e por sucessão hereditária, a favor das aqui Autoras AA, BB e CC;

B. No ano de 1963, EE deu de arrendamento a FF a parte habitacional do prédio referido em A., com entrada pelo número n.º …C;

C. A 1 de Fevereiro de 1964, FF e DD celebraram, entre si, casamento católico, sem convenção antenupcial;

D. FF habitou a parte da casa referida em B. com DD, sua mulher e aqui Ré, desde o início do casamento e até à sua morte;

E. Após o falecimento da mãe das Autoras, estas comunicaram o arrendamento referido em B. à Autoridade Tributária, tendo como inquilino FF e tendo como objeto a parcela correspondente ao 1.° andar do prédio referido em A.;

F. Em 19 de Novembro de 2013, as Autoras enviaram missiva escrita a atualizar o número de identificação bancária para pagamento da renda, endereçada a FF e à Ré DD;

G. FF faleceu a 12 de Abril de 2018;

H. Em 23 de Julho de 2018, a Ré comunicou, por escrito, às Autoras o falecimento de FF;

I. O prédio urbano sito ao Caminho ……, no ……, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …66 e descrito na Conservatória do Registo Predial do ……. sob o número 1156/……, encontra-se registado em nome da Ré DD, pela Ap. 22 de …/…/2001;

J. Por carta datada de 8 de Agosto de 2018, remetida por correio registado com aviso de receção, as Autoras comunicaram à Ré entender não haver direito à transmissão do arrendamento por à data da morte do primitivo arrendatário a Ré ser proprietária de casa própria no respetivo concelho……;

K. A Ré recebeu a comunicação referida em J. em 10 de Agosto de 2018;

L. Até à presente data a Ré não entregou a chave do imóvel referido em A.;

M. A fração referida em I. encontra-se habitada por uma cunhada da Ré e tia das Autoras, regressada da Venezuela.

N. As Autoras têm vindo a receber uma renda mensal no valor de EUR 152,00, que lhes era paga pelo identificado inquilino (FF), pelo arrendamento do referido imóvel.

Foram considerados não provados os factos seguintes:

- Que a fração referida em I. é minúscula e tem fracas condições de habitabilidade;

- Que a pessoa referida em M. tem mais de 65 anos.

De direito

A questão central que se discute é a de saber se a ora Recorrente detém a qualidade de arrendatária do prédio (parte) em questão, por, face ao que passou a ser estabelecido pelo art. 1068.º do CCivil, na reposição introduzida pela Lei n.º 6/2006 (Lei que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano, NRAU), o direito do arrendatário se ter comunicado ao cônjuge (a Recorrente).

A Recorrente sustenta que detém essa qualidade, e por isso entende que não está obrigada a largar mão do local arrendado nem a indemnizar pela sua ocupação.

Assim entendeu também a sentença da 1.ª instância.

Visão diferente teve o acórdão recorrido, para quem o novo regime legal não tem aplicação ao caso vertente, de sorte que o contrato de arrendamento se extinguiu por caducidade com a morte do marido da Ré, o arrendatário.

Argumenta o acórdão recorrido da seguinte forma:

“(…) a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge que não figura no contrato, prevista no art.° 1068.° do CC, quando reportada a situação em que quer o contrato de arrendamento, quer o casamento com o cônjuge contraente, tenham ocorrido em data anterior a 27-06-2006 (data da entrada em vigor do NRAU), não é admissível,  pois que a situação de incomunicabilidade já se encontrava anteriormente estabelecida, não podendo ser alvo agora de alteração, salvo se tivesse existido (e tal não aconteceu) determinação legal expressa nesse sentido.

A comunicabilidade apenas poderia verificar-se, na eventualidade, que aqui se não regista, de um dos factos constitutivos - o casamento - ter ocorrido em data posterior à entrada em vigor da NRAU (e no caso daquele obedecer a um dos regime de comunhão de bens). A não ser assim, como não foi, há que concluir, repete-se, pela inexistência da comunicação do contrato à Ré.

Na realidade, na base desta nossa posição está a circunstância de se entender (…) que pese embora o art.° 1068.° do CC, disponha directamente sobre o conteúdo da relação jurídica arrendatícia, não o faz “abstraindo dos factos que lhes deram origem”, como vem referido no artigo 12.°, n.º 2, do CC, antes pelo contrário, fá-lo tendo em consideração tais factos.”

Respeitamos este ponto de vista, mas não concordamos com ele.

A nosso ver a razão está com a Recorrente e com a sentença da 1.ª instância.

Justificando:

O contrato de arrendamento em questão foi celebrado em 1963.

A esse época, e durante os 43 anos que se lhe seguiram, era de lei[1] que o direito do arrendatário não se comunicava ao cônjuge.

Deixou de ser assim em 2006, com a Lei n.º 6/2006[2], que, regulando para o arrendamento de prédios urbanos, procedeu á reposição do art. 1068.º do CCivil, com a seguinte redação:

“O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente”.

Esta norma aplica-se à situação jurídica aqui em discussão?

Cremos bem que sim, tendo em conta que a Ré foi casada com o arrendatário no regime de comunhão geral de bens (que era o regime supletivo à data do casamento, 1964; v. ponto C. dos factos provados).

O n.º 1 do art. 59.º da Lei n.º 6/2006 estabelece que o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.

Portanto, e em princípio (esta é a regra), o NRAU aplica-se à relação contratual aqui em causa, pois que essa relação subsistia à data da sua entrada em vigor (27 de junho de 2006), na certeza de que o marido da Ré (o arrendatário) faleceu depois de tal data (mais propriamente, faleceu em 2018).

Só assim não será se acaso o previsto nas normas transitórias for em sentido contrário.

Mas não é.

Percorrendo essas normas transitórias vemos que, relativamente a contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da vigência do RAU (aprovado pelo DL n.º 321-B/90), como é o caso, se aplica (com as necessárias adaptações) o disposto no art.º 26.º da dita Lei (bem como se aplica um certo número de especificidades, mas que para aqui não relevam). É o que decorre dos art.s 27.º e 28.º, n.º 1 da mesma Lei.

Da remissão para o art. 26.º (que regula diretamente para os contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU) resulta, sem prejuízo das especificidades aí previstas (que também para aqui não relevam), que os contratos para fins habitacionais celebrados anteriormente à entrada em vigor do RAU passam a estar submetidos ao NRAU.

NRAU esse que, precisamente, estabelece, nos termos do art. 1068.º do CCivil, que o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente.

De tudo isto resulta, portanto, que a lei (a lei nova) contém ela própria preceitos especiais (direito transitório, regra de resolução de conflitos) sobre a sua aplicação (neste caso, imediata) no tempo.

Quando assim acontece, não há necessidade de enveredar pelo art. 12.º do CCivil, e procurar saber se se impõe (resolução do conflito de leis) a aplicação da lei nova ou a sobrevigência da lei antiga. Nem outra coisa está a significar Castro Mendes (Introdução ao Estudo do Direito, 1977, p. 397) quando expende que “A lei nova pode conter preceitos especiais sobre a sua aplicação no tempo (…). Quando não contenha, aplicam-se os princípios gerais, consagrados nos arts. 12.º e 13.º do Código Civil (…)”. O mesmo se diga de Oliveira Ascensão (O Direito, Introdução e Teoria Geral, p. 430), quando refere que “Se não houver nenhum preceito específico ou se os preceitos existentes não bastarem para afastar a ambiguidade, aplicam-se então as regras do art. 12”.

Mas mesmo face ao disposto no art.º 12.º do CCivil, a conclusão de que a nova lei (art. 1068.º do CCivil) se aplica aos arrendamentos em curso antolha-se como evidente.

Desde logo, diga-se que não estamos aqui perante aplicação retroativa da lei.

Dá-se a aplicação retroativa da lei nova quando esta se aplica a factos já ocorridos ou a efeitos já produzidos anteriormente à sua entrada em vigor, isto é, quando a lei nova modifica uma situação jurídica para o passado. Não é o caso.

O mais de que se poderá falar é duma retroconexão da lei nova: constituição para o futuro de uma situação jurídica com base num facto passado (no caso, o facto do casamento)[3].

Estamos, na realidade, perante norma (art. 1068.º do CCivil) que dispõe (para o futuro) diretamente sobre o conteúdo de uma relação jurídica - a relação de arrendamento, centrada na sua comunicabilidade (estatuto pessoal da relação) – e que abstrai dos factos que lhe deram origem.

Isto (a abstração “dos factos que lhe deram origem”) é assim porque a nova lei não está aqui a regular sobre efeitos que são expressão duma valoração de quaisquer factos (v. Oliveira Ascensão, ob. cit., p. 431), ou seja, os factos que lhes deram origem. A nova regulamentação não se prende com qualquer facto que haja produzido determinados efeitos, antes se refere diretamente ao direito sem conexão direta com o facto que lhe deu origem.

Usando a terminologia de Teixeira de Sousa (ob. cit. pp. 286 e 288), podemos dizer que a nova lei não está aqui a regular sobre uma situação jurídica que não possa abstrair do seu título constitutivo, isto é, que seja modelada por esse título. O título constitutivo é o ato de arrendamento, mas ao estipular sobre a comunicabilidade do direito a lei não se está a fixar no título, mas sim na situação jurídica, tudo independentemente, pois, do ato que a criou.

Esse mesmo autor expende, a propósito (ob. cit., p. 285):

“(…) é importante determinar se a situação jurídica tem um conteúdo que depende do seu facto constitutivo, ou se esse conteúdo é independente deste facto. Neste contexto, parece útil recorrer ao título que está na base de qualquer situação jurídica, devendo então admitir-se duas hipóteses.

Uma delas é aquela em que o título não modela a situação jurídica, dado que a situação jurídica tem sempre o mesmo conteúdo, qualquer que seja o título que a ela esteja subjacente (…). Esta hipótese é a que está prevista no art. 12.º, n.º 2 2.ª parte, CC.

A outra hipótese é aquela em que o título modela a situação jurídica, isto é, em que o conteúdo da situação jurídica varia de acordo com o respetivo título jurídico. Por exemplo: o conteúdo definido pelas partes, de um contrato de comodato ou de mútuo determina os correspondentes direitos e deveres. Esta hipótese é regulada pelo art. 12.º, n.º 2 1.ª parte, CC.”

Como se vê, para os fins aqui em discussão o enfoque deve ser posto na relação da lei nova com o título subjacente (“os factos que lhes deram origem”, de que fala a lei), e mais nada.

Aqui chegados, pergunta-se: em que é que num caso como a vertente o conteúdo da situação jurídica pode variar de acordo com o contrato de arrendamento que foi oportunamente estabelecido?

Em nada, cremos.

É que, diferentemente do suposto no acórdão recorrido, a data do facto do casamento (e a incomunicabilidade que lhe estava associada) nada tem a ver com os “factos que lhes deram origem”, a que se reporta o n.º 2 do art. 12.º do CCivil.

Estando-se, pois, perante a regulação de uma situação jurídica sem atenção ao facto que lhe dá origem, vale o disposto na segunda parte do n.º 2 do art. 12.º do CCivil: a nova lei abrange as relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

Concordantemente, afirma Rita Lobo Xavier (“Concentração” ou Transmissão do Direito ao Arrendamento Habitacional em caso de divórcio ou de morte - em Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, pág. 1019), que “A aplicação da lei nova aos contratos de arrendamento já em curso está em conformidade com o princípio formulado no art. 12º, nº 2. Na verdade, as disposições do NRAU constituem manifestamente normas que versam o conteúdo das relações jurídicas, abstraindo do facto que lhe deu origem e, por isso, na falta de disposição em contrário, sempre se aplicariam aos contratos de arrendamento já existentes.”

Também Maria Olinda Garcia (O arrendatário invisível – A comunicabilidade do direito ao cônjuge do arrendatário no arrendamento para habitação, Scientia Ivridica, Setembro/Dezembro 2016, tomo LXV, n.º 342, p. 417) aponta que “(…) a aplicação do art. 1068º não introduz efeitos retroativos na relação de arrendamento, pois todos os efeitos inerentes à qualidade de arrendatário singular produzidos antes da entrada em vigor desta norma não são alteráveis.

Cite-se ainda o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2018 (Processo n.º 4685/14.2T8FNC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), onde se defende que com a publicação da Lei nº 6/2006 instituiu-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos, e que do art. 59º do NRAU resulta a aplicação do art. 1068º a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor.

Isto posto:

Como sobredito, o contrato de arrendamento aqui em questão foi celebrado em 1963, altura em que o direito ao arrendamento não se comunicava ao cônjuge.

Portanto, não há dúvida que até à Lei n.º 6/2006 (mais propriamente até ao dia 26 de junho de 2006) o arrendamento não se comunicou à Ré.

Mas por força da nova lei, a partir de 27 de junho de 2006, o estatuto jurídico desse arrendamento alterou-se quanto às pessoas, passando a ser reconhecido à Ré, que era casada com o arrendatário sob o regime da comunhão geral de bens, a mesma qualidade de arrendatário que o marido detinha, pois que este é o efeito da comunicação do direito ao arrendamento ao cônjuge.

Este arrendamento de natureza plural concentrou-se depois, com o falecimento do marido, na pessoa da Ré.

Detendo a Ré a qualidade de arrendatária do local em questão, não tem de o entregar às Autoras nem, consequentemente, há fundamento para a pretendida indemnização (que tinha como causa precisamente a falta de título para a detenção do local).

Procede, pois, o recurso.

                                                           +

Aparentemente terão as Autoras pretendido ampliar o âmbito do recurso, de forma a envolver nele o conhecimento dessa questão do abuso do direito e da colisão de direitos.

 A verdade é que tal questão já as Autoras a haviam colocado na sua apelação, mas acontece que não colheu procedência junto do tribunal ora recorrido, que a abordou nos termos que julgou devidos e a decidiu de forma que não foi favorável para as Autoras.

Contra o assim decidido não foi interposto pelas Autoras qualquer recurso.

E era através de recurso próprio que as Autoras podiam reagir contra o assim decidido.

Como nos diz Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 97), quando se verifica um decaimento, não é através da ampliação do âmbito do recurso que o interessado poderá promover a reapreciação da decisão no segmento em que saiu vencido, mas sim mediante impugnação autónoma ou recurso subordinado.

Logo, não tendo as Autoras recorrido do que foi decidido em seu desfavor quanto à citada questão, consolidou-se nessa parte o acórdão recorrido.

O que significa que, sob pena de violação do n.º 5 do art. 635.º do CPCivil (proibição de reforma para pior), não é possível decidir no presente recurso da Ré sobre o pretenso abuso do direito ou sobre a pretensa colisão de direitos.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido, repristinam, para ficar a valer, a sentença da 1.ª instância.

Regime de custas:

As Autoras são condenadas nas custas do presente recurso de revista e nas custas referentes ao tribunal recorrido (custas da apelação).

                                                           +

Lisboa, 13 de abril de 2021

 

José Rainho (Relator)

Graça Amaral (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

Henrique Araújo (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] Era o que decorria do art. 44º da Lei nº 2030, de 22.06.48, do nº 1 do art. 1110º do CCivil e do art. 83.º do RAU.
[2] Sucessivamente alterada pelas Leis n.ºs 31/2012, 79/2014, 42/2017, 12/2019, 13/2019 e 2/2020.
[3] Diz Teixeira de Sousa (Introdução ao Direito, pp. 294 e 295) que “A retroconexão decorre do preenchimento da previsão da LN com factos passados ou efeitos já produzidos. A retroconexão não conduz a nenhuma alteração do passado, mas à definição do presente em função de factos ou efeitos do passado. Por exemplo: suponha-se que a LN passa a estabelecer a transmissão do arrendamento a quem viva , há mais de um ano, em economia comum com o falecido arrendatário (…); dado que esta lei é de aplicação imediata aos arrendamentos em curso (art. 12.º, n.º 2 2ª parte, CC), verifica-se uma situação de retroconexão quando esse prazo já se encontrar completado quando aquela LN entrou em vigor”.


Na sua contra-alegação as Autoras, dizendo fazê-lo a título meramente subsidiário, afirmam que sempre se verifica um manifesto abuso do direito por parte da Ré ou, in extremis, uma colisão de direitos, passível de determinar a cessação do contrato de arrendamento e a entrega do prédio às Autoras.