Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
828/22.0T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SESSÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: OBRIGAÇÃO PLURAL
OBRIGAÇÃO CONJUNTA
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
DECLARAÇÃO TÁCITA
FACTO CONCLUDENTE
SOCIEDADE POR QUOTAS
CESSÃO DE QUOTA
VALOR
RESPONSABILIDADE
DEFERIMENTO
Apenso:
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A RESVISTA
Sumário :
I- Nas obrigações civis plurais, a regra é da conjunção: cada um dos obrigados responde para com o credor por uma parte proporcional da prestação, visto que a solidariedade deve resultar da lei ou da vontade dos interessados, como decorre do art. 513º do CCivil.

II - Não resultando a solidariedade da lei, nem da vontade expressa dos devedores, e não se tendo provado factos que com toda a probabilidade indiciem a vontade dos deveres de se obrigarem solidariamente, não pode concluir-se pela existência de uma convenção tácita de solidariedade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, residente na Urbanização ...., Lote 40-41, ..., Leiria, propôs contra

BB, residente na Rua ..., n.º ..., Anadia

CC, residente na Rua ..., n.º .., 6.º A, Aveiro

DD, residente na Rua..., n.º ..., Aveiro

Ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo a condenação solidária dos Réus na quantia de 155 311,67 EUR, acrescida de juros à taxa legal até efetivo e integral cumprimento.

Em síntese, alega que:

. em 15/12/2011, celebrou com os Réus contrato de cessão de quotas, através do qual lhes transmitiu três quotas sociais no valor de 24 939,90 EUR cada uma, das quais era titular na sociedade comercial por quotas “Luso Telha – Cerâmica de Telhas e Tijolos de Água , Lda.;

. foi decidido, no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 4006/18.5T8AVR, no Juízo Central Cível de Aveiro (Juiz 3), decisão confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, que tinha de pagar, solidariamente com a sociedade “Cerâmica Sotelha, S. A. a quantia de 250 000 EUR ao ali Autor, EE;

. pagou 155 311,67 EUR ao referido EE;

. tal montante foi considerado como devido, por conta das obrigações decorrentes do Contrato de Cessões de Quotas e Renúncia à Gerência, de 04/03/2011, pelo qual o Autor adquiriu a EE as mesmas quotas que transmitiu posteriormente aos ora Réus;

. na cláusula segunda do contrato de cessão de quotas, consta que «Estas cessões são feitas livres que quaisquer ónus ou encargos, com todos os correspondentes direitos e obrigações a elas inerentes e envolve, ainda, além da transmissão (…) dos direitos e obrigações correspondentes às (três) quotas sociais, a titularidade de eventuais suprimentos, abonos, remunerações e todos e quaisquer outros créditos que os Segundos Contraentes [aqui Autores] detenham, nesta data, sobre a sociedade comercial por quotas “LUSO-TELHA (…)”, deixando o cedente, cônjuge marido, [ora Autor] de ser sócio da mencionada sociedade, de nela ter qualquer interferência ou responsabilidade, ficando, desde já, investidos no direito de regresso sobre os ora cessionários, caso sejam demandados a pagar o que quer que seja, em virtude do Contrato de Cessões de Quotas e Renúncia à Gerência, outorgado em quatro de Março de dois mil e onze.”

. interpelados para proceder ao pagamento da referida quantia, a título daquele mencionado direito de regresso, os Réus nada liquidaram ao Autor.

Citados os Réus, contestaram, nos termos que se resumem:

DD:

. o documento n.º 1 (contrato cessão quotas), por corresponder a documento particular autenticado por advogado impedido (o advogado que autenticou o documento é filho do falecido FF, que o outorgou na qualidade de representante da sociedade Cerâmica Sotelha, S.A.), é nulo;

. as partes quiseram vincular-se somente com observância da referida forma do negócio;

. inexiste assim qualquer obrigação de que seja devedora;

. a cláusula contratual, ainda que válida, é juridicamente ininteligível pois:

. o Autor (putativamente) alienou à Ré uma quota, cujo valor nominal era de 24 939,90 EUR, pela quantia de 83 333,33 EUR;

. foi estabelecido que a cessão era realizada “livre de quaisquer ónus e/ou encargos”, pertencendo à R. a titularidade de “eventuais suprimentos, abonos, remunerações e todos os créditos detidos pelo A. sobre a sociedade «Luso-Telha…»;

. e que “deixando o cedente, cônjuge marido de ser sócio da mencionada sociedade, de nela ter qualquer interferência ou responsabilidade, ficando, desde já, investidos no direito de regresso sobre os ora cessionários, caso sejam demandados a pagar o que quer que sejam em virtude do Contrato de Cessão de Quotas e Renúncia à Gerência, outorgado em 4 de março de 2011”

. inexiste responsabilidade solidária da Ré e do A. a respeito de qualquer obrigação;

. o que as partes quiseram consagrar foi, tão-somente, a responsabilização do Autor enquanto alienante (vendedor) da participação social transmitida, e não da Ré, enquanto adquirente (compradora) da mesma;

. a Ré solveu indevidamente ao Autor, no âmbito de uma cessão de. créditos nula, a quantia de 83 333,33 EUR atenta a nulidade do contrato

Conclui assim pela improcedência da ação e, em reconvenção, pede que o reconvindo seja condenado a devolver-lhe a quantia de 83 333,33 EUR. acrescida de juros moratórios desde a notificação ao seu mandatário da presente reconvenção.

GG e BB, no essencial, assumem o mesmo tipo de defesa da co-Ré DD e formulam igualmente pedido reconvencional pelo mesmo valor.

Replicou o Autor, negando a procedência da reconvenção por o negócio não ser nulo e não terem sido os reconvintes a pagarem a quantia que peticionam, pedindo a condenação dos Réus como litigantes de má-fé, numa quantia a arbitrar pelo tribunal.

Na audiência de julgamento, os reconvintes desistiram dos pedidos, o que foi devidamente homologado, tendo posteriormente sido proferida sentença onde se decidiu:

. condenar, cada um dos réus BB, CC e DD, a pagarem ao Autor AA a quantia de 51 770,55 EUR, acrescidas dos juros legais contados desde a citação.

///

Da sentença apelaram Autor e Réus.

O primeiro, no sentido de a sentença seja substituída por outra que, julgando a ação procedente, declare a solidariedade da dívida dos Réus.

Os RR no sentido da sua absolvição do pedido.

Por acórdão da Relação do Porto de 08/05/2025, foi decidido julgar improcedente o recurso dos RR e procedente o do Autor, e alterada a sentença, foram “os RR condenados a pagar, solidariamente ao Autor, a quantia de 155.311,67 EUR, acrescida de juros legais contados desde a citação.».

Inconformada, a Ré DD, interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. Recorrente impugna o acórdão proferido na parte em que decidiu julgar procedente o recurso do A. e, em consequência, alterar a decisão recorrida, passando a constar “condenam-se os Réus a pagar, solidariamente ao Autor, a quantia de € 155.311,67 (cento e cinquenta e cinco mil trezentos e onze euros e sessenta e sete cêntimos), acrescida de juros legais contados desde a citação”, por existir, salvo o devido respeito, errónea interpretação e aplicação do Direito ao caso em apreço, inexistindo, qualquer fundamento para a decisão judicial proferida, devendo antes ser repristinada a decisão judicial de 1.ª instância – cfr. o Acórdão (Ref.ª CITIUS ... 27, de 08.05.2025). Com efeito,

B. A decisão do Tribunal da Relação carece de fundamento substantivo, porquanto (i) é sustentada em factos conclusivos e não provados; (ii) não se vislumbra qualquer motivo para afirmar “que se quis que fossem os três em conjunto que o fizessem e não que cada um ficasse limitado à sua quota parte na responsabilidade” quando resulta do facto n.º 12 da Matéria de Facto provada que “entre Autor e Réus inexistem relações pessoais”; e (iii) alude a uma (suposta) estratégia processual dos RR., em especial, da Recorrente, quando esta se limitou a cumprir a condenação do Tribunal de 1.ª Instância e a impedir o vencimento de juros de mora sobre a quantia objeto de tal condenação.

C. Inexiste fundamento para afirmar uma relação solidária no âmbito dos presentes autos, atento (i) nunca tal havido sido convencionado pelas Partes, nem sendo a obrigação uma obrigação comercial (emergente de acto de comércio ou de acto entre comerciantes); e (ii) inexistir qualquer comportamento das Partes que traduza ou revele, com toda a probabilidade, uma intenção de constituição de responsabilidade solidária entre si, ou, tão pouco, factos concludentes que suportem qualquer eventual declaração tácita naquele sentido – cfr. os arts. 1.º, 2.º, 13.º e 100.º do Código Comercial e os arts 217.º e 513.º Código Civil; na doutrina, ANTUNES VARELA e MENEZES LEITÃO; PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA; MENEZES CORDEIRO; ALBERTO VIEIRA; OLIVEIRA ASCENSÃO; ALBERTO DA MOTA PINTO; e e, na jurisprudência, o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 29.05.2007 (RELATOR: SILVA SALAZAR), o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 01.04.1997 (RELATOR: NASCIMENTO COSTA); e o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2000 (RELATOR: TORRES PAULO).

D. A aplicação do regime do direito de regresso mostra-se ontologicamente impossível, uma vez que a Recorrente e o Recorrido não são obrigados solidários.

E. Ainda que a aplicação de tal regime fosse, todavia, hipotetizada, a Recorrente apenas seria devedora da respetiva quota parte na responsabilidade do crédito, a qual corresponde a um valor igual a todos os putativos codevedores – cfr. os arts. 516.º e 524.º do Código Civil; na doutrina, PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA; e, na jurisprudência, o ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.07.2020 (ARLINDO CRUA).

F. A obrigação em causa nos presentes autos é conjunta, e não solidária, sendo devido pela Recorrente somente o valor em que a mesma foi condenada por Sentença Judicial proferida a 03.12.2024, a qual deve ser integralmente repristinada.

G. O acórdão proferido, na parte recorrida, violou o disposto nos arts. 1.º, 2.º, 13.º e 100.º do Código Comercial, bem como nos arts. 217.º, 512.º, 513.º, 516.º e 524.º do Código Civil, devendo assim ser revogado.

Não foram apresentadas contra alegações.

Fundamentação.

Eis, antes de mais, a matéria de facto provada:

1 - Em 15 de Dezembro de 2011, Autor e Réus celebraram o contrato de cessão de quotas.

2 - Por via de tal contrato, o ora Autor transmitiu aos co-réus as três quotas sociais no valor de 24.939,90€ (vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e noventa cêntimos), cada uma delas, de que o Autor era titular na sociedade comercial por quotas “Luso-Telha - Cerâmica de Telhas e Tijolos de Águeda, Lda”, NIPC ... ... .28,

3 – Por decisão transitada em julgado proferida no processo sob o nº 4006/18.5T8AVR, no Juízo Central Cível de Aveiro (Juiz 3), foi o ora Autor condenado a pagar, solidariamente com a sociedade “Cerâmica Sotelha, SA”, a quantia de 250.000,00€ (duzentos e cinquenta mil euros) ao ali Autor, EE.

4 - O aqui Autor procedeu então ao pagamento da quantia de 155.311,67€ (cento e cinquenta e cinco mil trezentos e onze euros e sessenta e sete cêntimos) ao referido Sr. EE, nos termos em que foi condenado.

5 - O montante em causa foi considerado como devido, por conta das obrigações decorrentes do Contrato de Cessões de Quotas e Renúncia à Gerência, de 04- 03-2011, pelo qual o aqui Autor adquiriu ao Sr. EE as mesmas quotas que transmitiu posteriormente aos ora Réus, através do contrato referido nos pontos 1 e 2 dos factos provados.

6 - Da cláusula segunda do contrato referido em 1 e 2 dos factos provados, no seu parágrafo único, consta que “Estas cessões são feitas livres que quaisquer ónus ou encargos, com todos os correspondentes direitos e obrigações a elas inerentes e envolve, ainda, além da transmissão (…) dos direitos e obrigações correspondentes às (três) quotas sociais, a titularidade de eventuais suprimentos, abonos, remunerações e todos e quaisquer outros créditos que os Segundos Contraentes [aqui Autores] detenham, nesta data, sobre a sociedade comercial por quotas “LUSO-TELHA (…)”, deixando o cedente, cônjuge marido, [ora Autor] de ser sócio da mencionada sociedade, de nela ter qualquer interferência ou responsabilidade, ficando, desde já, investidos no direito de regresso sobre os ora cessionários, caso sejam demandados a pagar o que quer que seja, em virtude do Contrato de Cessões de Quotas e Renúncia à Gerência, outorgado em quatro de Março de dois mil e onze.”

7 - Da cláusula terceira do contrato referido em 1 e 2 dos factos provados consta que “os primeiros outorgantes (isto é, HH, II e FF) na invocada qualidade de administradores e com poderes para o acto da sócia e sua representada “Cerâmica Sotelha, SA, declaram que autorizam as cessões de quotas ora efectuadas pelos segundos contratantes, nos termos acordados.

8 - No âmbito do processo 4006/18.5T8AVR ficou provado que:

a) - Até Março de 2011 eram únicos sócios da Sociedade “Luso-Telha” Tijolos de Águeda Lda, EE, sua mulher JJ, KK e LL, sendo gerentes o Autor e suas filhas MM e LL.

b) - Por contrato promessa de cessão de quotas celebrado a 17 de Fevereiro de 2011, os sócios referidos em a) prometeram vender ao aí 1.º Réu, AA ou a quem ele viesse a indicar, a integralidade das quotas da Sociedade “Luso-Telha” Tijolos de Águeda Lda.

c) - O aí 1.º Réu, prometeu adquirir ou indicar pessoa ou sociedade que adquirisse aquelas quotas sociais, livres de ónus ou encargos, com todos os direitos e obrigações inerentes, pelo preço global de 3.500.00,00 €.

d) - A 4 de Março de 2011 foi celebrado Contrato de Cessões de Quotas e Renúncia à Gerência, através do qual EE, sua mulher JJ, KK e LL venderam ao aí 1.º Réu, NN e à “Cerâmica Sotelha, S.A.” –, representada no acto pelos aí 2.º e 3.º Réus, HH, II (juntamente com o falecido Dr. OO) que compraram, a integralidade das quotas sociais da empresa “Luso-Telha-Cerâmica de Telhas e Tijolo de Águeda, Lda.”, estando convencionado um preço 3 500 000 €.

e) - Declararam os cedentes “que a sociedade, para além da facturação já facultada aos cessionários, cujo vencimento ocorre após a celebração do contrato, não tem outras dívidas perante terceiros, nem foi notificada, até ao momento presente, para o pagamento de quaisquer responsabilidades, incluindo as resultantes de fornecimentos de bens ou de serviços”.

f) - Foi ainda convencionado que “o Segundo contratante (Réu NN) e os Terceiros Contratantes (Réus II, HH e OO, entretanto falecido), estes últimos na qualidade de Administradores e em representação da Cessionária Cerâmica Sotelha SA, se obrigavam a diligenciar junto da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, pela exoneração ou liberação dos avales ou fianças, designadamente os prestados na conta corrente caucionada e na garantia bancária constituída a favor do I.A.P.M.EI (Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação), que qualquer um dos Primeiros Contratantes tenha prestado a favor da Sociedade Comercial por Quotas, denominada “Luso-Telha – Cerâmica de Telhas e Tijolos de Águeda, Lda”.

g) - Pela apresentação 2/20110307 foi registada, no registo comercial, a designação de II, HH e FF como gerentes da Luso-Telha – Cerâmica de Telhas e Tijolos de Águeda Lda.

h) - Desde 3 de Maio de 2007 vigorava um Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente entre a Sociedade por Quotas “Luso-Telha” e a Caixa Geral de Depósitos, S.A.

i) - Em tal Contrato (n.º .... ...... .92) de Abertura de Crédito em Conta-Corrente com aval, a Caixa Geral de Depósitos concedeu à mutuária Luso-Telha – Cerâmica de Telhas e Tijolos de Águeda, Lda, um crédito, em conta-corrente, até ao montante de € 250.000,00, destinado a apoiar o seu fundo de tesouraria.

j) - Tal contrato era avalizado pelo Sr. EE, aqui Autor, e a sua filha Dra. PP, também sócia e gerente da empresa “Luso-Telha”.

k)- Foi convencionado que o prazo do contrato seria de 6 meses, automaticamente prorrogado por períodos iguais e sucessivos a menos que a Caixa ou o Cliente denunciassem o contrato por escrito, com, pelo menos, 30 dias de antecedência em relação ao termo do prazo que estiver em curso, não gozando o cliente do direito de denúncia enquanto se mantiver qualquer importância em dívida ou existir qualquer valor tornado indisponível na conta-corrente.

l) - O contrato de crédito impõe como requisito de utilização dos fundos contratados o pedido escrito efectuado com uma antecedência mínima de três dias úteis.

m) - A nova gerência da Luso-Telha – Cerâmica de Telhas e Tijolos de Águeda, Lda., fez várias utilizações do crédito ao seu dispor na conta-corrente caucionada, logo no primeiro ano de funções, entre 31-07-2011 e 31-12-2011, atingindo-se o saldo devedor, em 31-12-2011, de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) – igual ao montante máximo de capital contratado, sendo que no momento de celebração do contrato de cessão de quotas ainda nenhum capital tinha sido usado.

n) - Em tal período continuaram a figurar como avalistas o Sr. ... e sua filha.

o) - Não foi efectuada qualquer comunicação dos aí Réus ao Autor da intenção de utilizar a conta.

p) - No dia 15-12-2011 foi celebrado Contrato de Cessões de Quotas, Aumento de Capital e Alteração do Contrato Social, através do qual o aí 1.º Réu, aqui autor, cedeu todas as suas quotas ficando consignado in fine § ÚNICO da Cláusula SEGUNDA:

“deixando o cedente, cônjuge marido (1.º Réu), de ser sócio da mencionada sociedade, de nela ter qualquer interferência ou responsabilidade, ficando, desde aí investidos (1.º Réu e esposa) no direito de regresso sobre os ora cessionários, caso sejam demandados (1.º Réu e esposa) a pagar o que quer que seja, em virtude do Contrato de Cessões de Quotas e Renúncia à Gerência, outorgado em quatro de Março de dois mil e onze.”

q) - No dia 16 de Setembro de 2015, a Caixa Geral de Depósitos enviou à Luso Telha –Cerâmica de Telhas e Tijolos de Águeda, Lda., uma carta regista com A/R de denúncia do contrato e solicitando o pagamento da dívida, continuando a conta corrente n.º ...........92 a apresentar à data o saldo devedor de € 250.000,00, igual ao montante máximo de capital contratado, dando conhecimento do envio dessa carta ao agora Autor.

r) - Em 24-11-2015, para evitar a inevitável execução e penhora de bens, nomeadamente das contas bancárias do aí Autor e sua filha, o Autor autorizou uma transferência no montante de € 250.000,00 da sua conta bancária para a conta da Luso Telha.

s) - Nessa mesma data, a Caixa Geral de Depósitos liquidou a dívida da Luso Telha, no valor de € 250.000,00, da conta corrente n.º ...........92.

t) - Pela apresentação 1/20160311foi registada a declaração de insolvência da Luso-Telha – Cerâmica de Telhas e Tijolos de Águeda Lda, determinada por sentença transitada em julgado a 30/03/2016, conforme apresentação 7/20160412.

u)- O Réu II pertenceu ao Conselho de Administração da Cerâmica Sotelha SA até 2015 e o Réu HH até 2016.

v) – Foi a sociedade Luso-Telha, Lda. quem utilizou a conta corrente caucionada.

x) - O aí Réu NN nunca teve intervenção na gestão da empresa Luso Telha, Lda, não fazendo qualquer diligência para liberação do aval referido em f).

9 – O advogado que autenticou o documento que titula a cessão de quotas, referido em 1 e 2, Dr. QQ, é filho do falecido FF, que o outorgou na qualidade de representante da sociedade Cerâmica Sotelha, SA.

10 – O valor de transmissão de cada uma das quotas referidas em 1 foi feito pelo valor de 83.333.33. €, cada uma.

11 - Os pagamentos das quotas em questão foram concretizados com dinheiro, titulado por cheque emitido pela sociedade Cerâmica Sotelha, SA.

12 – Entre Autor e Réus inexistem relações pessoais.

13 - Através do contrato referido em 8 d) a empresa Cerâmica Sotelha SA adquiriu a quota maioritária da sociedade LUSO-TELHA (com o valor nominal de 149.639,40€) e o Autor, adquiriu as remanescentes três quotas referidas no ponto 2 dos factos provados

14- Os ora Réus, a quem o Autor veio a alienar as suas ditas quotas na sociedade LUSO TELHA, têm relações familiares e pessoais directas, próximas com os administradores da Cerâmica Sotelha SA,

15 - Os Réus não tinham conhecimento dos factos descritos no ponto 8 dos factos provados.

16 - Os Réus sabiam que o advogado que autenticou o contrato referido em 1 e 2, Dr. QQ, era filho de um dos administradores da Cerâmica Sotelha, SA Horácio Marçal.».

E resultou não provado:

A) – Os Réus não tenham tido conhecimento do teor do contrato referido em 1.

B) O Autor só tivesse intervenção no negócio para evitar que a SOTELHA, adquirisse a totalidade das quotas da empresa LUSO TELHA e assim passasse a estar sujeita ao tratamento fiscal previsto no art.2º/2, d) do CMIT, por deter mais de 75% das participações sociais.».

O direito.

A questão decidenda resume-se em saber se a responsabilidade dos RR perante o Autor é conjunta ou solidária.

A sentença de 1ª instância decidiu condenar cada um dos réus BB, CC e DD, a pagarem ao Autor AA a quantia de 51 770,55 EUR, acrescidas dos juros legais contados desde a citação.

Na procedência da apelação do Autor, o acórdão recorrido alterou a sentença e condenou os RR, a pagar, solidariamente àquele a quantia de 155.311,67 EUR, acrescida de juros legais contados desde a citação.

Nos termos do art. 512º do CCivil, na parte que interessa, a obrigação é solidária quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera (1), não deixando de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles (2).

Por seu lado, dispõe o art. 513º do mesmo diploma que a solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.

Deste preceito resulta, nas obrigações civis integrantes de responsabilidade contratual em que haja pluralidade de devedores, a regra geral da conjunção: cada um dos obrigados responde para com o credor por uma parte proporcional da prestação, se o contrário não tiver sido estipulado entre as partes – que pode ser mediante declaração tácita (art. 217º do CC), nem resultar da lei. Diversamente, nas obrigações comerciais, isto é, que têm por fonte um acto mercantil, a regra, havendo pluralidade de sujeitos passivos é a da solidariedade, também salvo estipulação contrária (art. 100º do Cód. Comercial).

A sentença de 1ª instância considerou que obrigação dos RR é conjunta e não solidária, pois que:

“Nos termos do art. 513º do Código Civil a solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.

No caso, já se referiu que o direito de regresso do autor baseia-se numa cláusula contratual. É, pois, de origem convencional.

Só existirá, pois, solidariedade entre os devedores, aqui réus, se tal tivesse sido também acordado, o que não acontece.

Assim, cada um dos devedores responderá na proporção da quota adquirida.

Tendo Réus adquirido quotas de igual montante, responderão, perante o Autor, na proporção de 1/3, cada um.”

Já a Relação decidiu condenar os RR solidariamente, decisão assim justificada:

“Esta é a génese do direito do Autor sobre os Réus: a aquisição de quotas de «Lusotelha…» e ter assumido que teria de obter o resultado de extinguir aquele aval e/ou fiança, o que afinal não fez. Tendo depois cedido as suas quotas aos Réus, quis salvaguardar-se de algum tipo de dívida que viesse a assumir em virtude de ter sido detentor de capital social da empresa, o que se veio a concretizar - só por ter adquirido aquelas quotas é que o Autor também terá assumido a obrigação de libertar o antigo detentor do capital social da obrigação decorrente do aval -.

As partes não questionam, nos autos e no recurso, que está preenchido o circunstancialismo que possa desencadear o pedido do Autor e, em rigor, estará: por causa das obrigações assumidas pelo Autor ao adquirir as quotas é que o mesmo aceitou obter a extinção do aval, sendo até lógico concluir que aquela salvaguarda pode ter sido um dos pressupostos da efetiva celebração da cedência de quotas.

De qualquer, modo, esta questão não é suscitada no recurso pelo que, voltando então ao nosso contrato, está em causa uma cláusula convencional que, na nossa visão, não se encaixa numa figura típica de uma obrigação – não é uma fiança pois não se assume a obrigação de garantia de dívida do Autor (artigo 627.º, n.º 1); não é uma assunção de dívida já que o credor é alheio à negociação (artigo 595.º, n.º 1) - nem é uma sub-rogação de direitos (artigos 589.º e seguintes, todos do C. C.) pois o devedor não efetuou qualquer pagamento ao credor -.

Assim, a alegada fonte solidariedade terá de resultar da convenção.

O que então sucede é que o Autor, deixando de ser detentor de capital social, por ter cedido a três pessoas as suas quotas, pretendeu que fossem essas três pessoas a assumir qualquer responsabilidade que adviesse do funcionamento de «Luso-Telha…», aqui se incluindo a obrigação de pagar o aval por falta de liberação do mesmo.

Ora, se três pessoas adquirem quotas de uma empresa, passando a ser quotistas da sociedade e essas mesmas três pessoas aceitam que têm de pagar ao cedente das quotas o que este tenha pago (naquele condicionalismo), afigura-se-nos que se quis que fossem os três em conjunto que o fizessem e não que cada um ficasse limitado à sua quota parte na responsabilidade.

Os três Réus adquiriram as quotas, cada uma de valor igual, e assumiram pagar aquela dívida como uma obrigação dos três e não como uma obrigação dividida em três frações, cada um decidindo se paga a sua quota parte ou não (obrigação solidária como foi a do Autor em conjunto com «Sotelha…» a pagar a EE, conforme sentença de 14/04/2020, confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto em 27/04/2021).

Essa poderá ser a estratégia processual, totalmente legítima, dos Réus (em especial da Ré DD que já consignou em depósito a usa quota parte – apenso B -), mas do contrato e do seu contexto – adquirem quotas no âmbito de uma empresa em que há relações familiares, havendo proximidade entre a noção de empresa «Sotelha…» e os Réus quotistas, aceitando que seja a empresa a pagar a sua dívida - como que estes surgem como um só, como a própria empresa.

Não se nos afigura que, ao estabelecer-se aquela possibilidade, os Réus terão querido apenas responder perante o Autor na sua quota parte de responsabilidade mas antes que, havendo uma dívida que tinha origem na empresa cujas quotas adquiriram, se o Autor o solicitasse a qualquer um deles, responderiam como um só como se fosse solicitado à própria empresa.

Pensamos assim que, do contrato, surgem factos que permitem concluir que se quis instituir uma solidariedade convencional no pagamento da dívida ao Autor, conclusão que se retira de uma convenção de solidariedade tácita, conforme artigo 217.º, n.º 1, parte final, do C. C.: «a declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam. (veja-se Ac. R. C. de 02/06/2020, processo n.º 1990/19.5T8VIS.C1, www.dgsi.pt, sobre esta possibilidade).

Deste modo, pensamos que a obrigação de pagamento em causa é solidária, alterando-se assim a douta decisão recorrida, apenas nesta parte.”

Vejamos.

Como vimos, a obrigação pode ser conjunta ou solidária. Se for conjunta, cada um dos devedores só responde face ao credor (e este só lhe pode exigir) pela sua parte na prestação. Na eventualidade de se tratar de uma obrigação solidária, o credor pode demandar ambos os condevedores, ou só um deles à sua escolha, pela totalidade da prestação. (Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2ª edição, p.183).

O acórdão do STJ de 29.05.2007, P. 07A1159, decidiu:

Nas obrigações civis integrantes da responsabilidade contratual em que haja pluralidade de devedores, a regra é a da conjunção; cada um dos obrigados responde para com o credor por uma parte proporcional da prestação, se o contrário não tiver sido estipulado entre as partes, expressa ou tacitamente, nem resultar da lei.

O acórdão do STJ de 29.11.2011, CJ/STJ, ano XIX, 3º, pag. 282:

I - Nas obrigações plurais a regra é da conjunção visto que a solidariedade deve resultar da lei ou da vontade dos interessados, como decorre do disposto no art. 513º do CCivil.

II – A solidariedade pode resultar de acordo tácito no sentido de os devedores se responsabilizarem desse modo, perante o credor, sendo que o carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos facto de que a declaração se deduz.

No caso vertente, não oferece dúvidas de que estamos perante uma obrigação plural civil, e não comercial, pelo que a regra é da conjunção e não o regime da solidariedade.

Considerou o acórdão recorrido que embora não tenha sido estipulado expressamente o regime da solidariedade, da matéria de facto provada resulta a existência de uma convenção de solidariedade tácita, conforme artigo 217.º, n.º 1, do CCivil.

Concorda-se que o regime da solidariedade não tem de ser estabelecido mediante declaração expressa, podendo a vontade das partes manifestar-se tacitamente, nos termos do art. 217º do CCivil (cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, pag. 614).

Nos termos do nº1 do art. 217º do CCivil, “A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: diz-se expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro modo directo de manifestação de vontade; e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, revelem.”

O Supremo Tribunal de Justiça, tem reiteradamente decidido que os factos concludentes de onde se deduz a declaração negocial devem ser significantes, positivos e inequívocos (entre outros, os acórdãos do STJ de 24.10.2000, CJ/STJ, 3, pag. 93, de 24.05.200709.07.2014, Sumários, 2014, p. 427).

A declaração negocial tácita é constituída por um comportamento do qual se deduza com toda a probabilidade a expressão ou a comunicação de algo, embora esse comportamento não tenha sido finalisticamente dirigido à expressão ou à comunicação daquele conteúdo. (Acórdão do STJ de 24.05.2007, P.07A988, e Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9ª edição, p. 464).

Posto isto, e percorrendo a matéria de facto, não nos parece, ressalvando o respeito devido por diferente opinião, que daquela resultem factos ou comportamentos, que, com toda a probabilidade, revelem ter sido intenção dos RR que a sua responsabilidade perante o Autor era solidária, no caso de vir a verificar-se a eventualidade prevista na cláusula 2ª do Contrato de Cessão de Quotas celebrado em 15.12.2011.

A conclusão da Relação segundo a qual os RR, não terão querido apenas responder perante o Autor “na sua quota parte de responsabilidade mas antes que (…) se o Autor o solicitasse a qualquer um deles, responderiam como um só como se fosse solicitado à própria empresa”, não tem, com o devido respeito, respaldo na matéria de facto, pelo que não podemos acompanhar a decisão recorrida quando concluiu pela existência de uma convenção tácita de solidariedade.

Nestes termos procede a revista.

Decisão.

Pelo exposto, concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido para ficar a subsistir a sentença da 1ª instância.

Custas pelo Recorrido.

Lisboa, 02-10-2025

Ferreira Lopes (Relator)

Maria de Deus Correia

Rui Machado e Moura