Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | JORGE RAPOSO | ||
| Descritores: | RECURSO PER SALTUM HOMICÍDIO INIMPUTÁVEL MEDIDA DE SEGURANÇA AGRAVANTE ILICITUDE CULPA | ||
| Data do Acordão: | 10/15/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário : | I. A declaração de inimputabilidade, pressupondo a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio pelo que não deve ser aplicada medida de segurança ao inimputável com base na punição do art. 132º do Código Penal. II. A circunstância agravante do homicídio prevista no nº 3 do art. 86º da Lei 5/2006, de 23.2, pode ser considerada na medida de segurança aplicada ao inimputável porque o uso de arma refere-se à especial ilicitude do facto em razão do meio empregue para a sua prática, pelo que opera ao nível da ilicitude (e não da culpa). | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO Por acórdão de 3.6.2025, o tribunal coletivo julgou o arguido AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia de ..., concelho de Lisboa, nascido em D/M/1991, solteiro, desempregado, domicílio na Rua 1, Seixal, atualmente em internamento preventivo no Hospital Prisional São João de Deus, e decidiu: A) Absolver o arguido da prática de um crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma, p. e p. pelos arts. 131.º 1 e 132.º, n.º 1 e 2, als. c), e) e j), do C.P. e pelo art. 86.º, n.º 3 e 4, por referência ao n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/06, de 23-02. B) Julgar verificada a prática pelo arguido AA de factos típicos e ilícitos, integradores da prática de um crime de homicídio agravado pelo uso de arma, p. e p. pelo art. 131.º, do C.P. e 86.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 5/06, e 23-02 e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.º 1 e 2, al. d) e art. 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/06, de 23-02. C) Considerando o arguido inimputável em razão da sua anomalia psíquica considera-se o mesmo perigoso, existindo receio fundado da prática de novos factos típicos e ilícitos, e consequentemente: - aplica-se a medida de segurança de internamento que não poderá ser inferior a 3 (três) anos de prisão – art. 91.º, n.º 2, do C.P. – não podendo exceder o limite máximo de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses – art. 92.º, n.º 2, do C.P. Inconformado, o arguido recorreu apresentando motivação com as seguintes conclusões (transcrição): I - O Acórdão absolveu o ora Recorrente de um crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma, mas reconheceu a sua inimputabilidade e julgou verificada a prática de factos típicos e ilícitos, pelo que aplicou uma medida de segurança de internamento, com o prazo mínimo de 3 (três) anos de prisão até o limite máximo de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses. II – Sucede que a medida de segurança deveria ter como limite máximo a pena máxima prevista para o crime de homicídio simples, ou seja, o prazo máxima da medida de segurança jamais poderia exceder a 16 anos, diante da sua evidente inimputabilidade. III – O artigo 20º, n.º 1 do Código Penal, e a sua anomalia psíquica (esquizofrenia), consubstanciam a inimputabilidade e a total incapacidade, no momento da prática do facto, avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação. IV – O Recorrente, não tinha as mínimas condições de se auto-determinar de maneira diversa, pelo que jamais pode responder, nas mesmas condições de uma pessoa que age em plena consciência da ilicitude cometida, nunca tendo agido com culpa, conforme revela a Perícia Psiquiátrica, dada a não culpa do arguido, ora Recorrente. V – Não tendo agido com culpa, nunca pode responder pelo homicídio agravado, pois nunca agiu de maneira consciente, é uma pessoa doente, já era diagnosticado, portador de uma doença psiquiátrica, extremamente grave. VI – As autoridades de saúde nunca adotaram as cautelas mínimas para propiciar a toma da medicação, pois o doente esteve privado da sua medicação por longos meses, medicação que era injetável e dependia do HGO, mas, mesmo ciente de tudo, as autoridades de saúde nada fizeram, tampouco acionaram o internamento involuntário. VII – O Hospital de Almada (HGO) negligenciou o doente psiquiátrico e nada fez diante da falta da toma da medicação injetável por longos meses. Certamente, se o doente psiquiátrico tivesse a mediação, o surto psicótico que redundou na morte do idoso, jamais teria ocorrido. VIII – O ora Recorrente jamais agiu com a consciência da agravação da sua culpa, nunca agiu com conhecimento da maior censurabilidade da sua conduta, tampouco adotou comportamento perverso. IX – O doente psiquiátrico, já diagnosticado há longos anos, não pode ser censurado como um agente que tivesse a capacidade de ser exigido a agir de forma diverso, pois não poderia se determinar de maneira diversa, pelo que o ora Recorrente acabou por ser uma vítima da própria negligência das Autoridades de Saúde. X – E, tanto é assim que, na Leitura do Acórdão, foi ressaltado que o caso ocorreu porque falhamos como sociedade, uma vez que o HGO negligenciou os cuidados de saúde de um doente psiquiátrico, situação que é muito grave. XI – Inegavelmente, o Recorrente está privado da sua liberdade, pelo que a sua família também está sem o seu familiar, mas, ainda por cima, o idoso faleceu e o seus queridos filhos e familiares também estão desprovidos de seu ente querido, situação que é de lamentar profundamente. XII – Até porque o Recorrente é doente e, se não tomar a medicação, é perigoso, conforme descrito pela própria mãe, quando ouvida como testemunha. XIII – O Recorrente não é um assassino, é uma pessoa doente, é um esquizofrénico, que carece de tratamento, que teve um surto psicótico, conforme Perícia Psiquiátrica. XIV – O Recorrente não agiu imbuído de um tipo especial de culpa, pelo que não se justifica a fixação de uma medida de segurança com base na agravação do homicídio, nunca tendo idealizado um homicídio agravado. XV – O Recorrente é inimputável e incapaz de conhecer a situação e agir com culpa, motivo pelo qual não era capaz de ter um domínio da norma penal, muito menos tinha competência psiquiátricas para apreciar a ilicitude dos factos cometidos. XVI - Dada a sua inimputabilidade, não pode ao Recorrente ser imputada a prática de factos ilícitos típicos correspondentes a um crime de homicídio agravado, pelo que deve ser excluída toda a culpa do arguido. XVII – O facto de ter sido usada uma faca, uma arma de fogo, ou mesmo o gargalo de uma garrafa de vidro ou até mesmo um espancamento, é totalmente irrelevante, pois o Recorrente não tinha capacidade de se auto-determinar de maneira diversa. XVIII – O Tribunal não pode negligenciar a sua doença psiquiátrica, até porque o Recorrente é doente e precisa de um tratamento congino. XIX – Portanto, o prazo máximo da medida de segurança jamais pode exceder o prazo máximo previsto para um homicídio simples, motivo pelo qual deve ser limitado pelo período de 16 anos. XX – Para ser aplicada uma medida de segurança até o limite de 21 anos, seria imprescindível que o Recorrente tivesse consciência da sua culpa, mas, o Recorrente não conseguia se auto-determinar de maneira diversa. XXI – Na condição de doente psiquiátrico, não pode o Recorrente responder por um crime qualificado, tampouco agravado, razão pela qual o prazo máximo da medida de segurança deve ter o seu prazo máximo fixado em 16 anos, pois não restou verificada a especial censurabilidade ou perversidade do Recorrente, condição essencial para a agravação do crime de homicídio. XXII – A inimputabilidade acarreta a exclusão de culpa e obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio, conforme entendimento do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do Processo n.º 08P3775, e Ac. RC, de 12-11-2014, no processo n.º 412/09.4PATNV.C1 in www.dgsi.pt e Ac. TRC de 15-05-2019, processo n.º 382/14.7JALRA.C1, relatora Elisa Sales). XXIII – O próprio Tribunal de Almada, julgou recentemente um caso análogo, de um esquizofrénico que cometeu outros crimes de homicídio, e, outros crimes ainda muito mais grave e aplicou o prazo máximo de 16 anos de medida de segurança, designadamente no Processo n.º 59/24.5PBSXL. XXIV – O ora Recorrente nunca cometeu um facto típico e punível como homicídio agravado, tampouco qualificado, devendo o prazo máximo da sua medida de segurança ser condicionado à previsão do artigo 131º do Código Penal – homicídio simples – punível com pena de prisão de 8 a 16 anos. DIANTE DO EXPOSTO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, DEVE SER REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO, A FIM DE SER REDUZIDO O PRAZO MÁXIMO DA MEDIDA DE SEGURANÇA APLICADA AO ARGUIDO, ORA RECORRENTE, PARA O LIMITE MÁXIMO DE 16 ANOS, CONSIDERANDO A SUA INIMPUTABILIDADE, A REFERIDA PERÍCIA PSIQUIÁTRICA, PORQUE JAMAIS AGIU COM CULPA, PELO QUE NUNCA PODE RESPONDER POR FACTOS EQUIPARADOS À PENA EQUIVALENTE A UM CRIME DE HOMICÍDIOAGRAVADO OU QUALIFICADO, CONFORME RECENTE PARADIGMA JURISPRUDENCIAL DO PRÓPRIO TRIBUNAL DE ALMADA, BEM COMO JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, FAZENDO-SE, ASSIM, A COSTUMADA JUSTIÇA, DE MODO A REDUZIR O LIMITE MÁXIMO DA DURAÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA. O recurso foi admitido. Respondeu o Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso: 1ª – Não merce qualquer reparo a medida de segurança aplicada ao arguido na exata medida em que foi fixada, quer quanto ao limite mínimo quer quanto ao limite máximo; 2ª – O arguido considerando a comprovada inimputabilidade foi absolvido do crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma, p. e p. pelos arts. 131.º 1 e 132.º, n.º 1 e 2, als. c), e) e j), do C.P. e pelo art. 86.º, n.º 3 e 4, por referência ao n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/06, de 23-02.; 3ª - A situação de inimputabilidade do arguido AA, pressupondo a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio. 4ª – Questão diversa, é precisamente saber se o supra referido crime de homicídio, tendo sido o arguido declarado inimputável, pode ser agravado nos termos do art. 86.º, n.º 3 e 4, da Lei 5/06, de 23-02. 5ª – A circunstância agravante prevista no n.º 3 do art. 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, se refere à especial ilicitude do facto em razão do meio empregue para a sua prática, tendo por fundamento razões de prevenção geral, opera pelo simples cometimento do crime com utilização de arma. 6ª – A arma que o arguido detinha e que utilizou para tirar a vida da vítima DD, preenche os requisitos de arma branca ilícita previstos no disposto no art. 86.º, n.º 1, al. d), uma vez que AA fez uso desse instrumento para tirar a vida de DD uma arma branca– faca de cozinha – com uma lâmina com tamanho superior a 10 cm.; 7ª – Preenchidos que estão os necessários pressupostos nos presentes autos, a circunstância agravante prevista no nº 3 do art. 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, referida a 5, operou pelo simples cometimento do crime com utilização da referida arma; 8ª – Mostrando-se verificados todos os pressupostos de aplicação da medida de internamento mencionada no artigo 91º, nº 1, do Código Penal (que não foram impugnados pelo recorrente), e atendendo às circunstância do caso concreto, decidiu bem o Tribunal ao aplicar ao arguido a medida de internamento pelo período mínimo de três anos e, decidido ainda que não poderá exceder o limite máximo de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses, medida essa que se quedou dentro dos limites estabelecidos pela lei para o caso dos presentes autos. A medida de segurança de fixada não merece qualquer reparo, devendo pois, manter-se nos precisos termos. Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e ser mantido na íntegra o douto acórdão recorrido. V. Exªs, porém, melhor apreciarão, decidindo conforme for de JUSTIÇA. * Nesta instância, foi cumprido o disposto no art. 417º nº 1 do Código de Processo Penal. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que termina sufragando integralmente a argumentação do Ministério Público na 1ª instância, e emite parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida. * Não foi apresentada resposta ao Parecer. * Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal). II – FUNDAMENTAÇÃO Recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal). Tendo em consideração que o limite máximo da medida de internamento é o limite superior da pena aplicável ao crime cometido, a competência do Supremo Tribunal de Justiça é inquestionável, tendo em atenção que “o internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável” (art. 92º nº 2 do Código Penal) porquanto é esse limite máximo que define a competência no caso das medidas de segurança. É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. * Tendo em conta as conclusões da motivação, a questão a decidir é a admissibilidade da agravação do homicídio praticado por inimputável. *** Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada: A. No dia 28/06/2024, entre as 14h00 e as 14h30m, o arguido AA saiu da sua residência, sita na Rua 1, munido de uma faca de cozinha com uma lâmina de 12,5cm em formato corto perfurante e comprimento total de 24cm, decidido a com essa faca matar uma pessoa. B. Então, cerca das 14h35m, na Praceta 1, no Seixal, o arguido cruzou-se com DD, com 88 anos de idade e que caminhava com apoio de uma bengala e decidiu matá-lo. C. Em concretização deste propósito o arguido aproximou-se de DD e, com aquela faca, desferiu-lhe vários golpes em DD: - um golpe abaixo da orelha direita, um golpe transversal no pescoço, um na face anterior do pescoço, e outro abaixo da orelha esquerda, golpes que determinaram a sua queda ao chão, de costas para baixo. D. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, DD sofreu lesões traumáticas no pescoço e hemorragia externa abundante produzidas pela ação de natureza cortante e corto-perfurante da referida faca: i) ferida na metade inferior da face anterior do pescoço, que seguiu um trajeto de frente para trás, de cima para baixo e da direita para a esquerda, atravessou a pele, tecido celular subcutâneo e planos musculares, e seccionou a artéria carótida esquerda, terminando na região paravertebral esquerda, lesão esta que, no mesmo dia 28/06/2024, pelas 14h42m, lhe determinou a morte; ii) ferida na metade inferior da face lateral esquerda do pescoço, que seguiu um trajeto de frente para trás, de cima para baixo e da direita para a esquerda, atravessou a pele, tecido celular subcutâneo e planos musculares, terminando na região paravertebral esquerda, sem lesão de estruturas vitais; iii) ferida no terço inferior da face posterior direita do pescoço, que seguiu um trajeto de trás para a frente, grosseiramente horizontal, da direita para a esquerda, atravessou a pele, tecido celular subcutâneo e planos musculares, terminando na região paravertebral direita, sem lesão de estruturas vitais; iv) escoriação na face ântero-lateral esquerda do pescoço, linear e grosseiramente horizontal, lesões que causaram a morte de DD. E. Depois de assim proceder, o arguido ausentou-se do local, tendo logo após deixado aquela faca numa sarjeta na Rua 2, no Seixal, onde foi recuperada. F. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a DD, sabendo que a aptidão da faca que usou, pela sua dimensão e capacidade corto perfurante, e que a zona do corpo que visou e conseguiu atingir, porque aloja órgãos vitais, determinavam lesões suscetíveis de provocar-lhe a morte, o que quis e conseguiu. G. O arguido atuou motivado pela vontade de matar ao levar consigo a faca de cozinha, sabendo que DD era uma pessoa de idade avançada e com dificuldade de locomoção, características que lhe retiravam capacidade de defesa e resistência. H. O arguido quis dar à faca uso diverso daquele que lhe está destinado, transportando-a e utilizando-a fora da habitação unicamente como instrumento de agressão e de forma a conferir-lhe posição de domínio, sabendo que causava maior perigo para a vida, que para tanto não tinha justificação, nem motivo válido, e que nas circunstâncias descritas o seu uso limitava a defesa da vítima. I. Nas circunstâncias descritas, do dia 28/06/2024, o arguido apresentava sintomatologia compatível com o diagnóstico de perturbação esquizofrénica e estava em período de agudização da sua doença, na forma de alucinações auditivas de comando que lhe terão dado indicações "para matar" a vítima. J. O arguido estava em fase de descompensação dessa anomalia psíquica grave, o que determinou que não tinha capacidade plena para avaliar a ilicitude dos seus atos e de se autodeterminar perante tal avaliação, oferecendo perigosidade social elevada quanto à prática de outros factos da mesma natureza. Do pedido de indemnização: K. A assistente exerce a profissão de comercial e o demandante exerce a profissão de técnico de telecomunicações. L. Os demandantes são filhos de DD. M. A vítima DD faleceu no estado de viúvo. N. DD tinha 88 anos quando faleceu. O. DD imediatamente antes de morrer e devido à atuação do arguido dada como provada sentiu dores, angústia, aflição. P. DD era uma pessoa alegre, saudável, era autónomo e independente, vestindo-se e fazendo a sua higiene por si próprio, fazia comida e cuidava das tarefas diárias da casa, fazia compras e pagava as contas a seu cargo. Q. Vivia sozinho, mas todos os dias um dos demandantes ou um dos seus netos o visitava. R. Passava os fins de semana, alternadamente, em casa de cada um dos filhos. S. Passava as épocas festivas com os seus filhos, sendo muito próximo e cúmplice dos mesmos. T. Quando os demandantes tinham férias passava parcialmente as mesmas com os mesmos e seus netos. U. Em consequência da morte de DD os demandantes sofreram um grande desgosto, tristeza que lhes provocou crises de choro, sentiram-se depressivos, não conseguindo aceitar a forma como o seu pai morreu, não tendo tido estes a possibilidade de se despedir do mesmo, provocando nos mesmos sentimentos de injustiça e sofrimento, sentimentos que ainda sentem atualmente. V. Os demandantes nutriam um grande carinho e afeto pelo seu pai. Das condições económicas e sociais do arguido: W. À data dos factos supra referido, AA residia com a mãe, com o padrasto e com a irmã de 37 anos. X. Entre novembro/2023 e fevereiro/2024 integrou esse mesmo agregado uma namorada do arguido, relacionamento que iniciaram durante o internamento de ambos numa unidade de psiquiatria. Y. Em março/2025 o agregado viria a mudar de residência para a Quinta 1/Palmela com o intuito de se afastarem do meio comunitário anterior. Z. A família continua a disponibilizar-lhe apoio, visitando-o semanalmente no atual contexto prisional, e mostrando-se disponível para o acolher no futuro. AA. Apesar de, maioritariamente, apresentar adequação nas interações, por vezes AA assumia comportamentos de agressividade verbal no contexto familiar, instabilidade que decorria do incumprimento da terapêutica farmacológica que mantinha há vários meses. BB. Os pais do arguido separaram-se quando ele tinha cerca de dois anos, ficando aos cuidados da mãe, não estabelecendo vinculação com o pai, que viria a falecer em 2017, tendo cinco irmãos consanguíneos mais novos. CC. A figura materna iniciou um relacionamento afetivo com o padrasto de AA quando este tinha cerca de treze anos, existindo uma relação adequada entre ambos. DD. O arguido mantinha-se anteriormente inativo, sem rotinas estruturadas, num quotidiano de ociosidade, tendo como última ocupação uma formação na área imobiliária com o intuito que não viria a concretizar-se de desempenhar funções nessa atividade laboral junto da irmã. EE. AA tem como habilitações literárias o nono ano de escolaridade, que concluiu aos 28 anos através de um curso de formação profissional de técnico de logística através do IEFP, tendo interrompido anteriormente os estudos aos 17 anos para ingressar no mercado de trabalho. FF. O arguido teve algumas experiências laborais indiferenciadas de curta duração como empregado de balcão, na restauração, na construção civil e nas mudanças. GG. A economia do agregado é estável e anteriormente capaz de garantir sem dificuldades a subsistência do arguido e dos familiares, dependendo dos rendimentos auferidos pelo padrasto e pela irmã de AA, enquanto motorista da ... e agente .... HH. AA e a mãe são beneficiários da Prestação Social para a Inclusão, decorrente dos seus quadros clínicos, nomeadamente doença psiquiátrica e oncológica, respetivamente. II. O arguido aufere a quantia global de €564,98 a título de prestação social para a inclusão, não exercendo qualquer atividade remunerada. JJ. O arguido não possui bens imóveis registados em seu nome ou veículos automóveis. KK. O arguido era seguido em consulta de psiquiatria desde 2016 por diagnóstico de esquizofrenia, registando internamentos hospitalares em contexto de descompensação do seu quadro clínico, o último dos quais por superdosagem de medicação na sequência da rotura afetiva com a namorada, mantendo-se à data dos factos sem qualquer acompanhamento médico e farmacológico há vários meses. LL. AA iniciou na adolescência o consumo de substâncias psicoativas (haxixe, metanfetaminas e álcool), sendo que mantinha consumos irregulares à data dos factos em contexto de convívio social. MM. O arguido encontra-se internado preventivamente no Hospital Prisional S. João de Deus em Caxias, à ordem dos presentes autos. NN. O arguido mostra-se estável e mantém uma postura adequada e consonante com as regras institucionais, aderindo ao plano terapêutico prescrito, participando nas atividades ocupacionais existentes e recebendo visitas semanais dos familiares. Dos antecedentes criminais do arguido: OO. O arguido não possui antecedentes criminais registados. O acórdão recorrido fundamentou a sua posição sobre a questão em apreciação da seguinte forma: Não se pode concluir estarem preenchidos, aqui, todos os elementos subjetivos do tipo de crime. Efetivamente, o arguido encontrava-se incapacitado de avaliar a ilicitude dos factos e de se guiar por essa avaliação à data dos factos– sendo inimputável à luz do artigo 20º do CP. É que, em virtude do quadro psicótico apresentado - ideação paranoide no quadro da esquizofrenia – a capacidade do arguido para avaliar o alcance dos seus atos estava alheada. A capacidade do arguido compreender que determinado facto viola as normas penais estava prejudicada ou mesmo abolida por força deste funcionamento enfermo, resultante dos sintomas da esquizofrenia de que padece. Pelo que não se mostra preenchido o elemento cognoscitivo do dolo. E apesar da vontade de praticar os factos, esta determinação não é livre, mas é condicionada, de forma decisiva, por este quadro de anomalia psíquica. Assim, conclui-se que o arguido está comprometido com os elementos objetivos do tipo de crime de homicídio simples, previsto e punível pelo artigo 131º do Código Penal, mas já não poderá estar comprometido com os elementos subjetivos. Pelo que o arguido, apesar de comprometido com o tipo criminal ora em apreço, não é merecedor de uma pena, pela prática deste crime, não podendo ser condenado pelo crime de homicídio qualificado, podendo apenas discutir-se a necessidade de aplicação de medida de segurança. Perante tal inimputabilidade questiona-se, neste momento, se é possível imputar-se ao arguido as qualificativas previstas no art. 132,º, n.º 2, als. c), e) e j), do C.P.. O homicídio qualificado ocorre quando «a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade», sendo «suscetível de revelar a especial censurabilidade a circunstância de agente (…) c) praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez (…) e) Ser determinado (…) por qualquer motivo torpe ou fútil; (…) j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas. É a consagração da técnica dos exemplos padrão (Regelbeispieltechnik). Mas o art.º. 132.º, CP, não consagra o exemplo padrão para dele retirar o efeito agravante de forma imediata, antes ele é feito funcionar por referência a uma cláusula agravante determinada (Teresa Serra, Homicídio Qualificado, tipo de culpa e medida da pena, 1990, p. 70). As circunstâncias não são taxativas, nem de funcionamento automático. Pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se pode concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. A mera verificação da circunstância, não implica, por si só, a qualificação do crime (Eduardo Correia, Actas, parte especial p. 21 a 24, Jorge de Figueiredo Dias, CJ. XII t.4 p. 51, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, tipo de culpa e medida da pena, 1990, p. 126, Anabela Rodrigues, A Determinação da Pena Privativa de Liberdade, 1995, p. 594 (59), Margarida Silva Pereira) Direito Penal II Os homicídios, 2008, p. 67). O preenchimento de uma das circunstâncias do art. 132.º/2, CP, constitui, apenas e só, um indício da existência de especial censurabilidade ou perversidade na ação ou omissão que o agente levou a cabo e que fundamenta a moldura penal agravada do homicídio qualificado. É a ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa que confirma esse indício, ou, inversamente o neutraliza e infirma. Por isso é que no art.º 132.º/2, CP, se estatui que é suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente (…). Afirmar que «a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade», não é viável quando o agente é um inimputável, por natureza quem «por força de uma anomalia psíquica, é incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação». Sendo o inimputável incapaz de culpa só pode cometer o tipo de crime de homicídio simples, não o de homicídio qualificado, uma vez que a agravação pressupõe culpa agravada (ac. do STJ de 31.10.90, proc. 41.010, ac. do STJ de 12.4.00, CJ STJ, 2000, tomo II, com anotação favorável de Nuno Brandão, RPCC, 10º, 4, 2000, p. 618 e 624, ac. STJ 30.05.2001, CJ on line (ref. 8925/2001) ac. STJ 18.02.2009, disponível em www.dgsi.pt, Maria João Antunes, Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica, 2002, p. 359-360). A especial perversidade tem em vista uma atitude com base em motivos ou sentimentos profundamente rejeitados pela mesma sociedade – cfr. Ac. do STJ de 12-6-2003, in www.dgsi.pt. Aqui chegados, deveremos concluir que: - pressupondo o homicídio qualificado um tipo especial de culpa, sendo a culpa a censurabilidade do facto ao agente, - que um inimputável é incapaz de culpa; e que, - a especial censurabilidade ou perversidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do facto; o arguido, ao ser declarado inimputável, não pode ser agente de factos ilícitos típicos correspondentes ao homicídio qualificado, ou seja, a declaração de inimputabilidade, pressupondo a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio e necessariamente para a qualificativa do crime de ofensa à integridade física – neste sentido: Ac. STJ, de 18-2-2009, no proc. n.º 08P3775, e Ac. RC, de 12-11-2014, no proc. n.º 412/09.4PATNV.C1 in www.dgsi.pt e Ac. TRC de 15-05-2019, processo n.º 382/14.7JALRA.C1, relatora Elisa Sales. Ora, tendo em conta as qualificativas imputadas ao arguido as mesmas funcionam ao nível da culpa, estando em causa uma culpa qualificada. Um arguido inimputável, porque não é suscetível de um juízo de culpa, não pode cometer o tipo do crime de homicídio qualificado pelas qualificativas em causa, porque este requer a prática do facto em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, exigindo, portanto, uma culpa qualificada que não pode ser imputada ao arguido pois o mesmo é insuscetível de juízo de culpa. Assim, a conduta do arguido apenas preenche o tipo objetivo do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.º, do C.P.. Questão diversa é se tal crime pode ser agravado nos termos do art. 86.º, n.º 3 e 4, da Lei 5/06, de 23-02. Nos termos do art. 86.º, n.º 3, do diploma em análise as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. Por sua vez, o n.º 4 estabelece que “Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.” Ora, como veremos a arma que o arguido detinha e que utilizou para tirar a vida de DD preenche os requisitos de arma branca ilícita previstos no disposto no art. 86.º, n.º 1, al. d) uma vez que usou para tirar a vida de DD uma arma branca – faca de cozinha – com uma lâmina com tamanho superior a 10 cm. Entende-se que a circunstância agravante prevista no nº 3 do art. 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, se refere à especial ilicitude do facto em razão do meio empregue para a sua prática, tendo por fundamento razões de prevenção geral, e opera pelo simples cometimento do crime com arma. Assim, tal agravação, operando ao nível da ilicitude, pode ser imputado ao arguido declarado inimputável – neste sentido Ac. STJ de 05-09-2024, processo 36/22.0PAAMD.L1.S1, relator Vasques Osório, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 /8d44f3515b0d2d5580258b900050a6dd?OpenDocument. *** A única questão a decidir é, como se referiu, saber se é possível considerar que um inimputável em razão de anomalia psíquica e perigoso pratica factos típicos e ilícitos, integradores da prática de um crime de homicídio agravado pelo uso de arma, p. e p. pelo art. 131º do Código Penal e 86º nº 3 e 4 da Lei 5/06 e 23.2, aplicando-se em consequência medida de segurança de internamento que não poderá ser inferior a 3 anos de prisão – art. 91º nº 2 do Código Penal – não podendo exceder o limite máximo de 21 anos e 4 meses – art. 92º nº 2 do Código Penal ou se, como sustenta o Recorrente, o prazo máximo da medida de segurança está condicionado à previsão do art. 131º do Código Penal – homicídio simples – punível com pena de prisão de 8 a 16 anos, porque não pode responder por factos equiparados à pena equivalente a um crime de homicídio agravado ou qualificado. Salvo o devido respeito o Recorrente quer colocar no mesmo patamar os crimes de homicídio qualificado nos termos do art. 132º do Código Penal e o crime agravado pelo uso de arma por força do art. 86º nº 3 e 4 da Lei 5/06 e 23.2. A fundamentação do tribunal a quo explica cabalmente: • As razões pelas quais não deve ser aplicada medida de segurança ao inimputável com base na punição do art. 132º do Código Penal: porque a declaração de inimputabilidade, pressupondo a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio. • Os fundamentos para que a circunstância agravante prevista no nº 3 do art. 86º da Lei 5/2006, de 23.2, possa ser considerada na medida de segurança aplicada ao inimputável: porque o uso de arma refere-se à especial ilicitude do facto em razão do meio empregue para a sua prática, pelo que opera ao nível da ilicitude (e não da culpa). Assim, tal agravação, por se referir à especial ilicitude do facto em razão do meio empregue para a sua prática, tem por fundamento razões de prevenção geral e opera pelo simples cometimento do crime com arma e, por isso, nada tendo a ver com a especial censurabilidade ou perversidade do agente ou com uma culpa qualificada. Nesse sentido tem decidido este Supremo Tribunal e não se encontram, nem o Recorrente invoca, razões pertinentes para pôr em causa essa jurisprudência1. Por fim, importa apenas dizer que, tal como decidiu o acórdão recorrido, quando a conduta do arguido inimputável é enquadrada desta forma, nos termos do disposto no nº 2 do art. 92º do Código Penal, a duração máxima da medida de segurança de internamento a aplicar corresponde ao limite máximo de moldura penal abstracta para o crime de homicídio agravado, p. e p. pelos arts. 131º do Código Penal e 86º nº 3 da Lei 5/2006, de 23.2. III – DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente em confirmar a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC. Lisboa, 15-10-2025 Jorge Raposo (relator) António Augusto Manso Maria Margarida Almeida _________ 1. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.2021, proc. 55/19.4SWLSB.L1.S1 (sobre a inviabilidade de afirmar que a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade quando o agente é um inimputável); de 25.10.2017, proc. 1504/15.PBCSC.L1.S2 e de 30.11.2016, proc. 103/14.4JAPRT.P1.S1 (estes, sobre a questão do art. 86º nº 3 da Lei 5/2006 tutelar a especial ilicitude e não a culpa) e; de 5.9.2024, proc. 336/22.0PAAMD.L1.S1 (sobre todas as questões e sobre a possibilidade da agravação do nº 3 do art. 86º da Lei 5/2006 no caso do agente ser inimputável ).↩︎ |